1a Edição curitiba - pr - brasil Março 2016
PREFÁCIO
“Arte” é uma daquelas palavras tipo “liberdade” ou “felicidade”: a gente meio que sabe o que significa, mas quando senta pra conversar com outra pessoa e tenta fechar uma definição, a coisa complica. Tem coisas que não precisam de uma definição fechada. Tem coisas que não aceitam uma definição fechada. Os livros de história da arte, tipo o do Gombrich, falam das paredes das cavernas, das pinturas feitas lá no fundo, que só podiam ser vistas com a luz de tochas e que, naquele tremelique das chamas, pareciam respirar, se mover. Daí eu lembro das pichações nas paredes e muros na abertura daquela série “Roma” da HBO (lembra?). Daí vêm os filmes, tipo a “Moça com brinco de pérola”, aquele que tem a Scarlett Johansson e que retrata a vida do pintor Vermeer, que tentava colocar em seus quadros um pouquinho da vida ao seu redor. Uma coisa vai levando à outra, uma coisa está dentro da outra. “Arte” é uma coisa que muda, se transforma. “Arte” é uma coisa que pode ser muitas coisas. É escrita, é música, composição, ritmo, pensamento, vida. É ordem na disposição de elementos, é construção de significados, é discussão, é disputa. É o objeto mais trivial e a intenção mais pretensiosa e tudo que há entre um e outro.
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E também são essas coisas de pendurar na parede. Essas coisinhas corriqueiras, ordinárias, que podem ganhar um status de “Arte” quando levadas pra um museu ou amparadas pelo discurso de alguma “autoridade” no assunto. Eu gosto muito dessa tensão entre o ordinário e a “Arte”. Pra mim, as histórias em quadrinhos são perfeitas pra ilustrar essa tensão. Uma linguagem que se consagrou no século XX, vinculada à indústria da cultura de massas, sempre considerada como uma subliteratura, sempre depreciada de alguma maneira, mas ao mesmo tempo cativante, brilhante, encantadora, cheia de vida com todos os seus absurdos e precariedades. Este livro brinca entre essas tensões. Entre pretensões e desilusões, entre o cotidiano modorrento e um tipo de narrativa fantástica que ressoa o espírito dos quadrinhos de terror da EC Comics. Existem essas tensões, essas barreiras que separam o “sublime” do “ordinário”. Como uma parede. E em cima dessa parede, nessa superfície que separa espaços, existem coisas. Aqui estão algumas delas.
Liber Paz Curitiba, 03 de março de 2016
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Copyright © 2016 José Aguiar
Produção
Quadrinhofilia Produções Artísticas www.quadrinhofilia.com.br Coordenação
Fernanda Baukat Roteiro, Desenhos, Capa e Direção de Arte
José Aguiar Projeto gráfico, Balonamento e Web
Aline G.S. Scheffler Revisão
Sabrina B. Lopes e Fernanda Baukat Arte da criança na página 52
Heitor Baukat Aguiar
Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
Aguiar, 1975 Coisas de adornar paredes / José Aguiar. - Curitiba, PR : Quadrinhofilia, 2016. 120 p. : principalmente il. ; 29 cm.
Texto em quadrinhos. ISBN 978-85-66235-06-7
1. Histórias em quadrinhos. I. Título.
CDD ( 22ª ed.) 741.5
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Adornando
O embrião deste livro surgiu em outro século, mais precisamente no já distante ano de 1999, na antologia independente de artistas curitibanos “Almanaque Entropya Volume 3”. Na ocasião, criei duas histórias em quadrinhos curtas, que já traziam este título - de que gosto tanto - e um pouco do espírito aqui presente. Então peço licença para resgatá-las do limbo para, quase duas décadas depois, tentarmos entender melhor como este livro se tornou o que você tem em mãos. Na revista Entropya encontrei minha primeira oportunidade de fazer HQs mais experimentais e o resultado me deixou bem contente por exercer tal liberdade criativa. Naquela época, eu publicava praticamente só tiras de jornais, tinha uma caligrafia horrível e algumas ideias estranhas que ainda não tinham para onde ser canalizadas.
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Ver as coisas por uma perspectiva diferente e inusitada é algo que particularmente me encanta. Como nas analogias que o cantor Arnaldo Antunes fez na música O Nome (no CD homônimo de 1993): “O girino é o peixinho do sapo/ O silêncio é o começo do papo/ O bigode é a antena do gato” e assim por diante. Este primeiro episódio foi inspirado por minha sogra, Clara, que chamava lagartixas de jacarezinhos de parede. O que eu achava particularmente fofo, embora esse ponto de partida não tenha rendido uma HQ, digamos, doce. Mas foi o início de uma forma de criar histórias que, de certa forma, contaminam minhas tiras da série Nada Com Coisa Alguma até hoje. Isso quando não extrapola o papel. Curiosamente, enquanto finalizava esta edição, Fernanda Baukat me enviou o link de uma bizarra notícia que dialoga com minha velha ficção. Publicada em 04/12/15 pelo portal Rede TV (http://www.redetv.uol.com.br/ jornalismo/da-para-acreditar/homem-flagra-lagarto-enorme-em-paredede-casa-na-australia?cmpid=fb-uolnot) o texto falava do australiano Eric Holland, que encontrou um lagarto de 1,5 metro de comprimento em uma parede de sua casa em Thurgoona, Nova Gales do Sul.
Jacarezinho de parede em ação no mundo real. Foto: Reprodução/Twitter/smh.com.au)
Ideias Já o episódio seguinte veio inspirado num açougue no centro de Curitiba, localizado atrás da praça Tiradentes e que ficava na “rota dos sebos” que eu frequentava entre a Gibiteca de Curitiba e o meu ponto de ônibus. O bizarro troféu que ornava sua parede me chamava muito a atenção pela sua bizarrice. Mas como açougues não passam de um comércio de cadáveres, então nada mais justo que um boi, o produto principal do lugar, vigiar a freguesia. Próximo da Gibiteca, na Rua Riachuelo, existia outro açougue, menor e com um churrasquinho grego que não inspirava confiança em mim. Unindo a estética duvidosa com o aspecto nada higiênico do churrasquinho, veio o delicioso segundo episódio. Só para constar, anos depois me tornei vegetariano. E a série ficou só nisso por um bom tempo. Entropya acabou no quarto número e fui me envolvendo com outros projetos de quadrinhos nos anos posteriores. Mas a vontade de dar continuidade à série permaneceu. Anotei vários rascunhos na forma de conto que foram acumulando na gaveta. A princípio, quis manter o formato original, uma espécie de tira grande, numa história de apenas uma página. Mas as ideias foram amadurecendo, cresceram e se tornaram narrativas maiores. Selecionei as que mais me agradavam e depois decidi que não faria mais uma mera antologia e encontraria uma forma de costurar todas elas. Assim veio a ideia do aspirante a escritor que, sim, fala um pouco das experiências que eu e colegas passamos ao publicar livros e quadrinhos nos anos entre as duas HQs “piloto” e este livro. Que aconteceu na hora em que tinha de ser. “Coisas de Adornar Paredes” é um projeto sobre aquelas pequenas coisas em que presto atenção quando caminho pelas ruas de Curitiba ou quando visito a casa de alguém e me deparo com alguma sutileza que me sensibiliza. É um olhar especulativo sobre o que vivo, por ser cercado como todo mundo, por toda sorte de coisas de pendurar, colar ou que marcam nossas paredes. Paredes adornadas com mais histórias do que conseguimos imaginar.
José Aguiar
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Realização:
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Projeto realizado com o apoio do programa de apoio e incentivo à cultura fundação cultural de curitiba e da prefeitura municipal de curitiba
Agradecimentos Marcelo Juvinski e Lucio Alberto Hansel pelo apoio. Sandro Lobo pelos conselhos. Liber Paz pela ajuda. Aline Scheffler, por sempre me ajudar a fazer do impossível possível. Especialmente para meus amados Fernanda, Tere, Fábio, Heitor, Violeta, Claudia, Jasmine, Malu, Joaquim e Ismael, que me deram forças durante todas as adversidades.
Toda cidade é viva, respira e se expressa. Uma forma de entendê-la é através de elementos decorativos inusitados ou corriqueiros encontrados nas suas paredes. Tudo aquilo que é possível pendurar, riscar, colar ou criar sobre elas fala não apenas de nosso ambiente, mas de nós mesmos. A relação que as pessoas constroem com seus objetos cotidianos ao lhes atribuir valores emocionais, sociais ou até surreais é parte da vida de um aspirante a escritor de suas histórias que ninguém quer publicar.
ISBN 978-85-66235-06-7