TEXTO: BRUNO HOFFMANN ARTE: RODRIGO TERRA VARGAS
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A Tropicália completa 45 anos. Bastaram pouco mais de 365 dias para o movimento chacoalhar a produção cultural brasileira, misturando Beatles com Chacrinha, penico com Che Guevara, numa geleia geral que ainda hoje dá o que falar.
Caminhando contra o vento / Sem lenço e sem documento / No sol de quase dezembro / Eu vou. O surgimento do baiano de cabelos encaracolados durante o Festival da Record de 1967 mudaria para sempre os rumos da música brasileira. A apresentação de Alegria, Alegria por Caetano Veloso é considerada o marco inicial da Tropicália, um movimento que em pouco mais de um ano transformou o modo de ver a produção cultural do País. Tudo ali soava diferente. O corte de cabelo, as roupas extravagantes, as guitarras elétricas. Pouca gente entendeu o que o rapaz magro pretendia com aquela aparição. No mesmo festival, Gilberto Gil acabaria de fundir a cuca dos espectadores ao apresentar Domingo no Parque ao lado dos Mutantes, também com direito a guitarras e outras irreverências no palco, numa mistura anárquica de influências estrangeiras com símbolos bregas. Sem saber o que fazer, restou ao público vaiar. Mal sabiam que o espírito de renovação já estava se alastrando por outros flancos. Quase ao mesmo tempo, Zé Celso Martinez Corrêa revolucionava o teatro com O Rei da Vela; Glauber Rocha apresentava uma nova forma de fazer cinema em Terra em Transe; Hélio Oiticica causava espanto com suas obras provocativas. Começava a surgir uma leva de músicos e letristas que rompiam com a estrutura da então sisuda música nacional. Além de Caetano e Gil, compunham a linha de frente do Tropicalismo Tom Zé, Gal Costa, Torquato Neto e Capinan. O movimento durou exatos um ano e três meses, da apresentação de Caetano no Festival da Record, em setembro de 1967, à prisão do compositor, ao lado de Gil, em dezembro de 1968. Mas a revolução já estava feita. “O Tropicalismo quis e conseguiu ser uma chuva de verão que alargasse infinita enquanto durasse”, definiria Capinan.
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Música de Caetano ainda espera nome definitivo
Oiticica não gostou de ver Tropicália virar moda
Em fevereiro de 1968, Nelson Motta percebeu que não tinha assunto para preencher sua coluna sobre música no jornal Última Hora. Lembrou-se de uma conversa que tivera com cineastas na noite anterior. Em tom de puro deboche, a turma imaginou uma festa fictícia que seria feita em homenagem às novidades culturais do Brasil. Os exemplos dados foram a peça O Rei da Vela, escrita por Oswald de Andrade e recém-encenada por Zé Celso Martinez Corrêa, o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e a música Alegria, Alegria, de Caetano. Aliviado, Nelson encontrou o mote para cumprir sua obrigação como jornalista. O texto recebeu o título de Manifesto Tropicalista. Explicava que a festa de lançamento do movimento seria no Hotel Copacabana Palace, cuja decoração traria “palmeiras, vitórias-régias, abacaxis, vatapá, maria-mole e xarope Bromil”. A coluna foi levada a sério pelo resto da imprensa. E o movimento, sem querer, foi lançado para todo o País.
A Tropicália caiu na boca do povo rapidamente. Revistas e jornais discutiam o tema, acadêmicos filosofavam sobre as raízes estéticas da novidade e até uma confecção de roupas batizou uma coleção com o nome do movimento. Em um artigo, o artista plástico Hélio Oiticica mostrou-se indignado diante da repercussão: “E agora o que se vê? Burgueses, subintelectuais e cretinos de toda espécie a pregar a Tropicália. Virou moda”.
ROLANDO DE FREITAS/AE
CENTRO DE ARTES HELIO OITICICA
CENTRO DE ARTES HELIO OITICICA
Caetano Veloso preparava o disco Alegria, Alegria, em 1967, mas não tinha título para a sua música preferida. O produtor de cinema Luís Carlos Barreto sugeriu: “Bota Tropicália”. A inspiração, explicou, vinha do nome de uma obra de Hélio Oiticica. “É uma coisa maravilhosa. Um labirinto cheio de plantas e araras onde só se pode pisar descalço em areia e, depois de atravessá-lo, você encontra uma televisão.” A contragosto, Caetano acatou a sugestão como título provisório. Mas até hoje não decidiu o nome definitivo.
Falta de assunto inspirou manifesto
Setembro 2012
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Uma convicção passou a acompanhar Caetano Veloso: era preciso fazer um disco-manifesto para congregar todas as ideias dos tropicalistas. Em maio de 1968, chegava às lojas Tropicália ou Panis et Circencis, com direito a canções psicodélicas, rocks, salsas e bolerões. Um elepê coletivo com a participação de 10 artistas e arranjos de Rogério Duprat.
A mala que Tom Zé segura foi colocada em cena na última hora, porque o empresário Guilherme Araújo não gostou do “figurino quadrado” do compositor.
A boina, não se sabe se proposital ou não, gerou comentários sobre a simpatia de Torquato Neto por Che Guevara.
Os mutantes Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee fizeram questão de posar com baixo e guitarra elétrica, símbolos da discórdia na música brasileira.
Dias antes de ser tirada a foto, o maestro Rogério Duprat visitou uma tia idosa e achou engraçado o penico que estava em sua casa. Decidiu posar com o objeto como se fosse uma xícara de chá.
A intenção de Gal Costa era fazer pose de menina do interior. Para isso, preparou um penteado especial.
“Eu sou o rei do Tropicalismo! Tropicalismo!” Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes tornaram-se atrações constantes na Discoteca do Chacrinha, anárquico programa de auditório que Abelardo Barbosa mantinha na Globo. O apresentador, aliás, sentia-se um deles. “Eu sou tropicalista há mais de 20 anos. O que acontece é que antes a imprensa me chamava de débil mental, de maluco, de grosso. Agora a imprensa intelectualizada é obrigada a reconhecer o meu valor. Eu sou o rei do Tropicalismo!”. REPRODUÇÃO
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A decisão de tirar a foto foi feita de uma hora para outra. Capinan e Nara Leão não conseguiriam chegar a tempo em São Paulo. A solução encontrada foi expor porta-retratos dos dois empunhados por Gil e Caetano. A foto de Capinan é de sua formatura no Instituto Normal da Bahia.
Maria Bethânia dispensou o movimento Convidada pelo irmão, Maria Bethânia não quis fazer parte do disco Tropicália ou Panis et Circencis. O motivo, alegou, foi sua participação na peça Opinião, três anos antes. “Olha, Caetano, já fiquei muito estigmatizada como cantora de protesto. Quero mais saber, não, de fazer parte de movimento algum. Só assim serei livre.”
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Sucesso de Tom Zé contou com ajuda de censora
Quem torceu o nariz para a novidade ELIS REGINA
FLÁVIO CAVALCANTI
A cantora foi uma das idealizadoras da Marcha contra a Guitarra Elétrica. Conseguiu alistar até Gilberto Gil, fã declarado dos Beatles e dos Rolling Stones. E ficou indignada quando o baiano se uniu aos Mutantes e suas guitarras no Festival da Record de 1967.
Ao vivo, na TV Tupi, o apresentador do programa Um Instante, Maestro estraçalhou o disco compacto com Alegria, Alegria, de Caetano Veloso.
O compositor paraibano considerava o movimento alienado ante o momento político do País. Também reprovava veementemente as influências internacionais dos tropicalistas.
O artista que desenhou as formas da Tropicália
Em um de seus textos, o criador do personagem Stanislaw Ponte Preta vociferou contra os tropicalistas: “É uma pena que artistas de talento estejam metidos nessa besteira, que o menos exigente dos críticos honestos poderá classificar de subdesenvolvimento musical baiano”.
Tropicália teve fim, mas segue viva Assis Valente, apontar a arma para a cabeça. Dias depois, a dupla foi presa e obrigada a se exilar em Londres. E, assim, com o decreto do AI-5 acirrando a violência do regime militar e com seus principais articuladores longe do Brasil, teve fim (ao menos formal) o movimento tropicalista. Mas o barulho que provocou ressoa até hoje, seja na obra de antigos tropicalistas como Tom Zé, nas mais variadas vertentes da música brasileira ou como influência de artistas nos quatro cantos do planeta.
Em outubro de 1968, Caetano e Gil estrearam o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi. Mais do que telespectadores, o programa angariou cartas de gente revoltada com o que os tropicalistas aprontavam no ar. Um dos momentos que mais indignaram os tradicionalistas foi quando Gil se caracterizou de Jesus Cristo e, ao lado dos “apóstolos”, preparou uma ceia repleta de bananas. Às vésperas do Natal, foi a vez de Caetano chocar ao surgir com um revólver na mão e, enquanto cantava a marchinha Boas Festas, de
Tropicália – A história de uma revolução musical, de Carlos Calado (34, 1997). Tropicália – Um caldeirão cultural, de Getúlio Mac Cord (Ferreira, 2011).
ARQUIVO/AE
ÇÃ O DU RO RE P
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SAIBA MAIS
FOLHAPRESS
O artista plástico baiano Rogério Duarte, na contramão de seus colegas da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, acreditava que a grande arte deveria estar na capa de discos, nos cartazes de cinema, nas páginas de revistas. Era um defensor entusiasmado da cultura de massa. “Um filósofo inglês disse que a prova da existência de um pudim é comê-lo. Para mim, o contato mais íntimo entre sujeito e objeto é o uso”, declarava. Por esse motivo, tinha grande influência estética sobre os tropicalistas. O artista criou algumas das imagens mais emblemáticas da Tropicália.
SÉRGIO PORTO
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GERALDO VANDRÉ
Muitos bateram na trave. Mas só Tom Zé, entre os tropicalistas, ganhou um festival da canção, o da Record, de 1968, com São São Paulo. A letra é resultado de uma “parceria” que não foi registrada nos créditos. Uma funcionária do Departamento de Censura Federal chamada Judith, em tom dócil, explicou que o verso uma bomba por quinzena deveria ser cortado. O compositor ficou sem nenhuma ideia para mudar a letra, quando a censora sugeriu: “Meu filho, por que você não fala dessa inflação de festivais da música brasileira? Põe um festival por quinzena”. E a letra ficou pronta.