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A Bahia, o povo brasileiro, o mar. No centenário de Jorge Amado, reunimos casos, histórias e curiosidades sobre a produção literária, a vida e as crenças do baiano que era sozinho uma religião. T exto : natália pesciotta Arte : Rodrigo T erra Vargas
Mais de 50 livros editados em 52 países, traduzido para 49 línguas. Tudo é grandioso quando se fala no autor brasileiro mais publicado no mundo e mais adaptado para televisão e cinema no Brasil e no exterior. O artista plástico Calasans Neto garante: “Jorge não é uma pessoa. É uma religião”. Se assim fosse, seus deuses seriam pessoas comuns, fonte de inspiração para mais de 5 mil personagens. As pedras do Pelourinho poderiam fazer o altar e, a fala popular, sua reza. Do primeiro livro, aos 18 anos, ao último, quando tinha 82, nunca abandonou a linguagem das ruas. Assim mandava a cartilha da Academia dos Rebeldes, que ajudou a fundar em 1928, “para afastar as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros”. Na definição dele mesmo: “Sou um escritor do pobre contra o rico, do futuro contra o passado, ao lado da liberdade contra a opressão, ao lado da fartura contra a miséria”. Seja em sua fase politicamente engajada ou já desiludido com o Partido Comunista, a partir dos anos 1950, as palavras acima nunca desapareceram da obra do baiano de Itabuna, nascido em 10 de agosto de 1912. Talvez fosse esse o segredo. O historiador Alberto da Costa e Silva vai além: “Nunca se sai de cabeça baixa de um livro de Jorge Amado”.
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imagens: Reprodução
sobre as ondas verdes do mar desde criancinha O mar, elemento constante nos livros de Jorge Amado, foi o assunto do primeiro texto de destaque do baiano, aos 11 anos. É que o professor do internato havia dado o tema para a classe como mote para uma redação. Depois de avaliar os trabalhos dos alunos, padre Cabral fez questão de ler o escrito de Jorge para a turma. E garantiu: “Esse vai ser escritor”. VOCÊ SABIA? Mar Morto, que retrata a vida de pescadores, inspirou uma das canções mais emblemáticas do repertório de Dorival Caymmi. O cantor logo viu, ao ler o livro do amigo, que uma das frases da prosa parecia poesia: “É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar”.
Para Getúlio, Amado merecia a fogueira Os sons de Jorge Não faltaram artistas consagrados para musicar a obra de Jorge Amado. A canção-tema do filme Seara Vermelha era de João Gilberto. A abertura da novela Gabriela Cravo e Canela, de Dorival Caymmi. Já a trilha da adaptação cinematográfica era de Tom Jobim. Chico Buarque entrou com O Que Será para Dona Flor e Seus Dois Maridos, e Caetano com a trilha de Tieta para as telonas.
É possível encher caixas com a coleção de fichamentos de Jorge Amado pelo serviço de censura do Estado Novo (1937-1945). Além de ter sido preso como subversivo aos 25 anos, ele era seguido por ser catalogado como “simpatizante do credo vermelho”. Integrante do Partido Comunista, seus primeiros livros divulgavam a doutrina marxista. O governo de Vargas encontrou um bom lugar para eles: o fogo. Em 1937, Cacau, sobre a exploração dos trabalhadores, Jubiabá, que termina em uma greve, e o então último lançamento, Capitães da Areia, foram queimados em praça pública.
5 milhões é o número de exemplares vendidos de Capitães da Areia (1937). O enredo do bando de garotos de rua que sobrevive de ilegalidades é o livro mais lido de Jorge Amado. Agosto 2012
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De carne e osso O único ateu que acreditava em milagres É de Jorge Amado a lei que enfim permitiu a liberdade de culto no Brasil, feita quando deputado pelo Partido Comunista, em 1946. Em uma entrevista ao Pasquim, mais tarde, Caetano Veloso perguntou se o ogã de oxóssi e obá de xangô tinha mesmo crença no candomblé. “Feliz ou infelizmente, não acredito, porque sou materialista.” Jorge disse ainda que invejava o misticismo do amigo Caymmi e concluiu: “Mas que eu já vi o candomblé fazer muitos milagres, isso eu já vi! São milagres do povo”.
Quem é ateu e viu milagres como eu Sabe que os deuses sem Deus Não cessam de brotar, nem cansam de esperar 20
Trecho de Milagres do Povo, música de Caetano Veloso, inspirada pela entrevista de Jorge Amado ao Pasquim.
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O que os personagens de Jorge Amado têm de tão especial? O historiador Alberto da Costa e Silva explica: “São pessoas que você, abrindo a janela da sua casa, poderia encontrar atravessando a rua. É que foram mesmo lançadas do plano real para o plano imaginado”. Eis alguns deles. Cabo Plutarco ou Quincas Berro D’Água? Sabe a história do sujeito boêmio que deu mais valor às noitadas nos botecos do que às regras da classe média e, quando morreu, foi carregado no colo dos amigos em uma última volta pelos bares e bordéis da cidade? Parece muita invencionice de Jorge Amado para A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água. Mas a cena realmente aconteceu com um cearense fanfarrão no Rio de Janeiro. O escritor ouviu em Fortaleza e adorou o caso do cabo Plutarco: “Contaram-me como a solidariedade dos amigos na hora da ausência transformou a dor da despedida em festa”. Romance não vingou, mas foi parar em livro A musa do personagem principal de Jubiabá tem história semelhante à de uma moça por quem Jorge Amado se apaixonou em um bordel de Maceió, durante a juventude: filha de usineiro, foi abandonada pelo noivo e por isso terminou no prostíbulo.
Autor foi humilhado por Maria Machadão O bordel frequentado pelos coronéis de Ilhéus em Gabriela Cravo e Canela não só existiu como é preservado até hoje. Quem for à cidade da infância de Jorge Amado pode visitar a reconstituição do quarto de Antônia Machado. No romance chamada Maria Machadão, ela chegou a conhecer Jorge. Ele tentava entrar no castelo com um amigo quando a cafetina lhes deu puxões de orelha em alto e bom som: “O que dona Eulália vai pensar se souber que você veio aqui?”. O escritor concluía a lembrança de infância: “Saímos de lá humilhadíssimos”. Dona Flor teve mesmo dois maridos O esotérico acontecimento na história de Dona Flor e Seus Dois Maridos ficou guardado na memória de seu criador por três décadas. Foi o amigo e poeta Álvaro Moreyra quem lhe contou, nos anos 1930, o caso de uma conhecida: a viúva de um jornalista casara-se com um comerciante português e, sendo espírita, via o ex-marido toda noite querendo deitar-se com ela. Mote para o enlace de Flor com o metódico Teodoro Madureira e com o fanfarrão Vadinho, mesmo depois de morto.
BAHIA EM HOlLYWOOD Beije-me e adeus Preste atenção na sinopse do filme hollywoodiano Meu Adorável Fantasma, de 1982: “Após três anos da morte do marido, uma viúva conhece outro homem, um egiptólogo do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, e se apaixona. Mas, um dia antes de seu casamento, o fantasma do primeiro marido vem fazer uma surpresa”. Sim, é ela mesma. A história de Dona Flor e Seus Dois Maridos foi comprada pelos americanos e virou, no título em inglês, Kiss Me Goodbye.
Gabriela ê, my comrades Gabriela Cravo e Canela, quem diria, também foi interpretada na Califórnia. O resultado pode ter sido de qualidade um pouco duvidosa, mas a venda dos direitos da história rendeu ao autor a famosa residência no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Ponto de encontro de intelectuais nos anos 1960, com fachada de azulejos azuis e brancos assinados pelo amigo Carybé e portas entalhadas por Calasans Neto, foi comprada “com dinheiro do imperialismo americano”, brincava o morador.
12 milhões de espectadores foram aos cinemas assistir a Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto. O filme, de 1976, é a segunda maior bilheteria nacional até hoje, só ultrapassada por Tropa de Elite 2, mais de 30 anos depois.
Foi por pouco que a atriz Sophia Loren
não fez Tieta do Agreste, em adaptação italiana. Estava tudo pronto para o filme, em 1980, quando o banco que financiava a produção foi à falência.
Cuidado: escritor trabalhando
Para Jorge, com amor
Antes de escrever os capítulos dos livros, Jorge Amado amadurecia muito as ideias até sentar à máquina. A filha Paloma achava graça quando alguém o via deitado na rede e cutucava: “Está descansando?”. Ele retrucava: “Nada. Estou trabalhando!”.
A esposa Zélia Gattai contava que o assédio feminino sobre o “seu” Jorge era incrível. Ele recebia cartas insinuantes com declarações de amor e quem as respondia era Zélia. “Assinava como Zélia mesmo, dizendo que ele gostaria muito de responder, mas que estava ocupado”, contava.
Até hoje ele mora no Pelourinho Pedro Arcanjo, Tereza Batista, Dona Flor, Quincas Berro D’Água. Muitos personagens viveram aventuras no Pelourinho, onde o escritor morou no mais alto dos casarões quando estudante, aos 15 anos. Não tinha dúvidas: “No Pelourinho, com o povo pobre da Bahia, no convívio íntimo da vida, vivida intensa e apaixonadamente, aprendi quase tudo que sei”. Hoje a Fundação Casa de Jorge Amado fica na praça soteropolitana.
SAIBA MAIS
Navegação de Cabotagem: Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado (Companhia das Letras, 1992). Essencial Jorge Amado, de Alberto da Costa e Silva (Companhia das Letras, 2010). No site do A lmanaque, leia mais histórias de Jorge Amado.
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