Almanaque Brasil 115 - Novembro de 2008

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Faltaram asas ao seu retrato

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o nome não me lembro, mas do corpo não há como esquecer. Era miúdo, não tinha braços e era corcunda. A idade parecia inferior à dos outros meninos que freqüentavam o curso de desenho que Ismael dos Santos oferecia gratuitamente a garotos pobres num galpão nos fundos da igreja da Vila Ipojuca, em São Paulo. Lembro-me da noite em que Ismael nos apresentou o novo aluno. Sob o olhar espantado de todos, o menino sentou diante de uma prancheta colocada no chão e tirou do bolso da camisa, com os dedos dos pés, suas ferramentas de trabalho. Apontou o lápis com uma gilete e riscou um corpo feminino perfeito sobre o papel. Eu só tinha olhos para os movimentos seguros e precisos de seus pés de longos dedos. Não consegui traçar uma única linha naquela noite. Depois de alguns meses desenhando a seu lado, soube que ele tinha sido abandonado ainda bebê e criado em orfanatos como uma aberração. Mas com os pés era capaz de criar imagens lindas, de uma natureza perfeita, de um mundo sem defeitos. Naquele ano, Ismael decidiu promover um concurso entre os alunos, que teriam os trabalhos julgados por especialistas. Ganhei a competição. Quando deixamos o galpãoescola, embarcamos juntos no ônibus para a Lapa – era admirável como ele galgava a escada, apoiando-se na porta do ônibus; depois, sentado, tirava os sapatos para sacar com o pé o dinheiro da passagem guardado no bolso da camisa. Durante a viagem, disse a ele que, se os jurados soubessem que ele desenhava com os pés, seria o vencedor. Irritado, ele respondeu: “Não importa como são feitos os desenhos, com as mãos ou com os pés. O que importa é o que sente quem faz”. E nada mais disse. Já na Lapa, de onde tomaríamos outras conduções a caminho de casa, tomei coragem e mostrei o trabalho com o qual havia vencido o concurso. Era um retrato dele. Sem defeitos. “É assim que você me vê?”, ele perguntou. Eu disse que sim, e me dirigi ao ônibus que me levaria à Vila Anastácio, de onde, pela janela, assisti a seu gesto de agradecimento. Do retrato, só me arrependo de um deslize: esqueci de acrescentar-lhe asas. Elifas Andreato

As proverbiais montanhas que a fé remove nada são comparadas ao que faz a vontade. Goethe (1749-1832), escritor alemão.

A R M A Z É M DA M E M Ó R I A N AC I O N A L Diretor editorial Elifas Andreato Diretor executivo Bento Huzak Andreato Editor João Rocha Rodrigues Editor de arte Dennis Vecchione Editora de imagens Laura Huzak Andreato Editor contribuinte Mylton Severiano Redatores Bruno Hoffmann, Clara Caldeira e Nara Soares Revisor Lucas Carrasco Assistentes de arte Guilherme Resende e Paula Chiuratto Assistente administrativa Eliana Freitas Assessoria jurídica Cesnik, Quintino e Salinas Advogados Jornalista responsável João Rocha Rodrigues (MTb 45265/SP) Impressão Posigraf

Presidente Cmte. David Barioni Neto Diretora de Marketing Manoela Amaro Mugnaini Diretor de Assuntos Corporativos Marcelo Xavier de

Mendonça

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Correspondências

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Capa: Adaptação de O Clamor, de Elifas Andreato, tela

produzida para o disco Bandalhismo (1980), de João Bosco.

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Em fevereiro de 1927 foi realizado o primeiro vôo comercial da história do transporte aéreo no Brasil. A iniciativa foi da Viação Aérea Rio-Grandense, que viria a ser conhecida como Varig, empresa fundada pelo alemão naturalizado brasileiro Otto Ernst Meyer. O hidroavião Atlântico levantou vôo do rio Guaíba, em Porto Alegre, com destino à cidade de Rio Grande. Estavam a bordo Guilherme Gastal, João Oliveira Goulart – um comerciante gaúcho – e Maria Echenique, portadora de mensagem do prefeito de Porto Alegre para o prefeito de Rio Grande.

como Irmãos Coragem, Selva de Pedra e Pecado Capital. Graças ao sucesso de audiência, ficou conhecida como “A Maga das Oito”. No 152° capítulo, Selva de Pedra bateu o recorde de audiência da emissora, mantido até hoje. Todos os televisores do País estavam sintonizados na Globo no momento em que Simone (interpretada por Regina Duarte) foi desmascarada. “Acho que entendo um pouco da psicologia do povo. Sei o que ele gostaria de sentir naquele momento”, explicou a novelista, que escrevia o último texto quando morreu, em 16 de novembro de 1986. Eu Prometo ficou inacabada e foi concluída por Glória Perez e Dias Gomes. Jenete Stocco Emmer Dias Gomes ficou conhecida em todo o País por seu nome artístico, uma homenagem à obra Clair de Lune, do compositor francês Debussy. (CC)

reprodução/AB

Ilustrações paula chiuratto

ineira da cidade de Conquista, esta figura enigmática iniciou a carreira artística em 1943, como atriz na Rádio Tupi. Nos anos 1950, incentivada pelo marido, o também dramaturgo Dias Gomes, começou a escrever radionovelas. O primeiro grande sucesso foi Perdão, Meu Filho, transmitida pela Rádio Nacional em 1956. Na década de 1960, deu início à produção televisiva, com as novelas O Acusador e Paixão Proibida, ambas pela Tupi. Estreou na Rede Globo em 1967, incumbida de reduzir os custos de Anastácia, Mulher sem Destino. A solução foi um terremoto que matou metade dos personagens e destruiu parte dos cenários. A idéia garantiu seu lugar cativo na emissora, na qual, nos anos 1970, escreveu algumas das novelas de maior sucesso da história da televisão brasileira,

Solução na p. 32

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25/11/1955

25/11/1935

Entre a eleição e a tomada de posse de JK, é decretado estado de sítio, justificado pela iminência de um golpe militar.

Com a explosão da Intentona, é decretado estado de sítio no Brasil a fim de conter a tentativa de um golpe comunista.

Olhos que viram o mundo pela primeira vez em 2 de novembro de 1946. Sua dona estreou no teatro em 1965, com a peça As Feiticeiras de Salém. Três anos depois, participou do musical Roda Viva, duramente censurado pela ditadura militar. Com o autor, teve três filhas. Na telona protagonizou Carlota Joaquina, de Carla Camurati; na telinha, integra o elenco de uma série humorística de grande sucesso. (CC) Confira a resposta na página 36.

A MALANDRAGEM DE DONGA

Polêmica marca o surgimento do primeiro samba

“NÃO TEMOS PROBLEMA RACIAL...”

Ilê-Aiyê incomoda logo em sua estréia no Carnaval

reprodução/ab

rejane carneiro/a tarde/ae

PARTITURA Do samba.

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casa de Tia Ciata era famosa no centro carioca no início do século passado. Entre os freqüentadores, músicos como Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Sinhô e Donga, que entraria para a história como o autor do primeiro samba a ser gravado, Pelo Telefone: O chefe da polícia/ Pelo telefone/ Mandou avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta/ Para se jogar... A autoria, porém, sempre foi contestada. De acordo com vários relatos, a música foi uma criação coletiva num dos encontros na casa de Ciata. Mas Donga, espertamente, a registrou em 6 de novembro de 1916. Mais tarde, incluiu o jornalista Mauro de Almeida como parceiro. Pelo Telefone foi o maior sucesso do Carnaval de 1917. Mas a ironia contra a polícia e a apologia à jogatina – que estava proibida no Rio – poderiam trazer problemas. Num ato de autocensura, os primeiros versos foram mudados para O chefe da folia/ Pelo telefone/ Manda (BH) avisar/ Que com alegria/ Não se questiona/ Para se brincar. Saiba Mais Donga e Chico Buarque cantam Pelo Telefone no programa de Hebe Camargo. Acesse www.youtube.com e pesquise pelas palavras “Donga” e “Chico”.

membros DO BLOCO BAIANO.

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s tambores soaram alto em 1° de novembro de 1974. Na ladeira do Curuzu, em Salvador, tomava forma o primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê-Aiyê. Festejado como “o mais belo dos belos” e propulsor da reafirmação da herança africana no Carnaval da Bahia, os predicados não foram tão generosos em sua primeira incursão no reinado de Momo – pelo menos não da parte do jornal A Tarde, que o acusava de ser racista e proporcionar “um feio espetáculo”. E o periódico prosseguia, justificando não entender a existência de um bloco afro-descendente numa cidade como Salvador: “Não temos felizmente problema racial. Esta é uma das gRandes felicidades do povo brasileiro”. As críticas, entretanto, não abalaram as estruturas do Ilê, que tornou-se uma associação cultural, desenvolvendo projetos sócio-educativos como alfabetização, aulas de canto, dança, cidadania, ex(MF) pressão corporal e orientação sexual. Saiba mais Site do bloco: www.ileaiye.org.br

“A história das civilizações é uma sucessão de abismos em que toneladas de conhecimento desaparecem. “

Umberto Eco


QUEM DIRIA?

Geisel é acusado de apoiar o comunismo internacional

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reprodução/ab

ode acreditar: em plena ditadura militar, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, em 11 de novembro de 1975. Com a derrubada da ditadura salazarista em 1974, o colonialismo português entrou em colapso. Em Angola, o poder se dividiu entre três grupos: FNLA, amparado por potências ocidentais; UNITA, que estava ao lado das forças sul-africanas; e MPLA, que, apoiado por União Soviética e Cuba, saiu vitorioso,

integrantes do mpla.

proclamando a República Popular de Angola. O inesperado apoio de Geisel causou insatisfação no governo norte-americano. A decisão estava inserida num leque de medidas que vinham modificando o rumo da política externa brasileira, como a reconciliação com a China e o acordo nuclear com a Alemanha. Pode parecer piada, mas Geisel chegou a ser acusado de estar alinhado com o comunismo internacional. (CC)

Saiba mais Assista a um documentário sobre a independência de Angola no Youtube (www.youtube.com). Busque pelo termo “Independência de Angola”.

PLÁGIO OU ADAPTAÇÃO?

Candinho cantou marchinha antes de ser gravada

PIMENTA NA TEQUILA

Brasileiro derrota mexicanos para conquistar o mundo

Saiba mais Ouça a primeira gravação de A Jardineira, por Orlando Silva, no YouTube (www.youtube.com). Busque pelo termo “A Jardineira”.

Saiba mais Eder Jofre, de Luiz Carlos Lisboa (Rio, 2002).

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Em agosto de 1960, o boxeador Eder Jofre enfrentou o adversário mais difícil da carreira. Era o mexicano Joe Medel, pelo qual tinha que passar para ter direito a disputar o título mundial na categoria peso-galo. Somente ganhou, por nocaute técnico – e depois de apanhar bastante –, no décimo assalto. A sensação da imprensa era de que, se passou por Medel, levar o cinturão seria fichinha. eder jofre. E estava certa. Em 18 de novembro de 1960, Jofre enfrentou, em Los Angeles, o também mexicano Eloy Sanchez. Dominou a luta de ponta a ponta e, no sexto round, levou o adversário à lona. Pela primeira vez o Brasil consagrava um campeão mundial no esporte. Ao chegar ao País, o boxeador surpreendeu-se com a recepção. Uma multidão, que havia acompanhado as batalhas pelo rádio, o esperava no aeroporto. Recebeu homenagens e presentes, entre os (BH) quais um carro oferecido pelo presidente Jânio Quadros.

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Ó Jardineira/ Por que estás tão triste?/ Mas o que foi que te aconteceu?/ Foi a Camélia que caiu do galho/ Deu dois suspiros e depois... Quem não é capaz de substituir os três pontinhos? Pois há pelo menos sete décadas, desde que o cantor Orlando Silva gravou A Jardineira, os versos estão na ponta da língua das multidões. Porém, antes mesmo que Orlando nascesse, a ode à triste jardineira já era entoada nas ruas do orlando silva: primeiro a gravar. Rio. Mas de quem seria a composição? A favor de Candinho das Laranjeiras, que fundou o bloco Filhos da Primavera em 24 de novembro de 1896, depoimentos de duas autoridades da nossa música: Almirante e Tinhorão, que asseguram que já nos idos de 1906 a turma de Candinho cantava os versos. Quem ficou com as letrinhas miúdas abaixo do título, no entanto, foi Benedito Lacerda e Humberto Porto, que alegavam ter feito uma adaptação. “Se a gente soubesse que ia dar tanto rolo, não tinha feito”, concluiu Lacerda, diante de tanta polêmica. (NS)

O r i g e m da e x p r e s s ão

Chegar de mãos abanando A origem é bem brasileira, e remete à segunda metade do século 19, quando se exigia que os imigrantes levassem suas próprias ferramentas ao serem contratados para trabalhar em fazendas e plantações. Os que chegavam sem elas, de mãos abanando, eram malvistos – sinal de que não estavam dispostos a “pegar no pesado”.

Novembro 2008


NOvemBrO 2 dia de finados TURISMO NO CEMITÉRIO

A maior galeria de arte a céu aberto do Brasil E

sebastião moreira/ae

m vez de entrar em contato com as obras nesse passeio inusitado. Entre as sepulturas, de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, destacam-se o suntuoso túmulo da família Tarsila do Amaral e Monteiro Lobato em Matarazzo, de 20 metros de altura, e o jazigo bibliotecas ou museus, por que não visitá-los da Marquesa de Santos, a famosa amante de pessoalmente? Ué? Mas eles não estão mordom Pedro I. tos? Sim, por isso o ponto-de-encontro é o Entre os freqüentadores assíduos, está a esCemitério da Consolação, em São Paulo, que critora Maria Adelaide Amaral, que gosta de desde 2001 organiza passeios monitorados. visitar os “queridos modernistas”, retratados Túmulo de mário de andrade. O visitante imerge na cultura e na história por ela na minissérie Um só Coração. “Gosto paulistana. Além de conhecer as sepultanto deles que vou visitá-los no Consolação. turas de importantes nomes da cidade, também se depara com A Tarsila, o Oswald, o Mário... Estão todos lá. É como se fosse gente valiosas obras de arte, como esculturas de Victor Brecheret, Luigi da minha família”, conta. Brizollara e Eugênio Prato. Há também a peça em granito Solitudo, Para evitar que haja furtos, o cemitério Não distribui folhetos explide Francisco Leopoldo e Silva, considerada o primeiro nu feminino cativos sobre a localização das obras e túmulos. Para encontrar o que das artes plásticas brasileiras. “É um museu a céu aberto”, explica o deseja, só marcando um horário com Popó. As visitas monitoradas du(BH) guia Francivaldo Gomes, o Popó, que desde 2002 orienta o público ram, em média, uma hora. Saiba Mais Agendamento de visitas monitoradas: (11) 3396-3815 ou 3396-3833.

5 dia do inventor MADE IN BRAZIL

Criação de brasileiro lacra até ogivas nucleares E

Lançado em 1967, o selo de plástico induardo Lima Castro Netto era o tipo de ventado por Eduardo era superior a qualpessoa que não perdia a oportunidade quer outro tipo de lacre. E assim conquistou de dar uma boa idéia. Recifense, foi o primeiro cliente: os Correios. Dificuldades para o Rio de Janeiro para terminar os esnão faltaram para o inventor. Ele só consetudos. Especializou-se em engenharia meguiu patentear o lacre nos Estados Unidos cânica e montou a própria empresa. contando com a boa vontade de uma aeroSempre pensou em coisas que ninguém moça, que, no último dia para o pagamento havia imaginado antes. E, assim, inventar da patente, levou o dinheiro para o país. tornou-se um negócio. Buscando matériaEduardo morreu em 2000, mas deixou alprima para trabalhar, descobriu uma grangumas invenções para os filhos, que hode quantidade de lacres de chumbo desje tocam a empresa e exportam uma teccartados em um ferro velho, que serviam o inventor eduardo lima. nologia 100% nacional para o mundo todo. para sacos postais, medidores de eletriciOs lacres são usados pela Casa da Moeda, Inmetro e tantas outras dade, bombas de gasolina, placas de veículos etc. Foi então que veio instituições e empresas. Foram até escolhidos para selar as ogivas o estalo: por que não criar um modelo de lacre que dispensasse o nucleares norte-americanas. chumbo e se valesse de material reciclado? (NS) acervo elc

Saiba Mais Matéria no site do programa Globo Repórter (http://globoreporter.globo.com). Procure pelo termo “Eduardo Lima Castro”.


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dia nacional da cultura VOVÓ DO PHOTOSHOP

Dona Telma ou

DIVUlgação

Rita Hayworth, Elizabeth Taylor, Marilyn Monroe, Scarlet O’Hara...

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uito antes dos programas de computador educadamente esconderem as rugas das senhoras, uma técnica de pintura aplicada sobre fotos preto-e-brancas antecipava o poder de mutação da imagem. A fotopintura, hoje não tão comum nas casas do sertão, geralmente retrata os patriarcas da família, com liberdade para pequenas mudanças corretivas. No Crato, interior do Ceará, uma técnica especial, que usava tinta a óleo no lugar da tradicional aquarela, foi desenvolvida por uma jovem, filha do primeiro fotógrafo da cidade: Telma Rocha Saraiva. Já moça, nos anos 1940, ela começou a criar auto-retratos vestida como as damas do cinema. Fazia penteados, maquiagem e arrumava o figurino. Fotografava a si mesma, ampliava e pintava sobre

a imagem. Na brincadeira, incorporou divas como Rita Hayworth e Elizabeth Taylor. O trabalho chamava atenção. Toda família cratense que se prezasse tinha uma foto pintada pelo estúdio Foto Saraiva. Clássico regional, a arte da fotopintora começou a ser amplamente divulgada a partir de 2005. Aos 75 anos, Telma ganhou uma exposição no Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza. Em 2007, foi visitada pelo fotógrafo Cristiano Mascaro, que a retratou em sua residência – uma atração à parte. O ensaio foi apresentado na exposição Telma Saraiva: A Procura de um Mito, em São Paulo, no começo deste ano. As fotopinturas de dona Telma foram exibidas ao lado das últimas fotos da diva Marilyn Monroe, o mito que a moça do Crato um dia também incorporou. (Mariana Albanese)

Saiba Mais Site da exposição A Procura de um Mito: www.galeriaestacao.com.br/exposicoes/mito

novembro também tem 1 Dia de Todos os Santos 2 Dia da Esperança Cristã 3 Dia do Guarda Florestal 4 Dia da União dos Escoteiros do Brasil 5 Dia do Cinema Brasileiro 6 Dia Municipal do Voleibol (SP) 7 Dia do Radialista 8 Dia do Aposentado 9 Dia Nacional do Hoteleiro 10 Dia Nacional do Trigo

11 Dia Nacional do Supermercado 12 Dia Nacional do Diretor de Escola 13 Dia da Indústria Automobilística 14 Dia Nacional da Alfabetização 15 Dia do Esporte Amador 16 Dia da Tradição Oral 17 Dia Internacional do Estudante 18 Dia Nacional de Combate ao Racismo 19 Dia da Bandeira Nacional 20 Dia do Biomédico

21 Dia Mundial da Televisão 22 Dia da Liberdade 23 Dia Mundial sem Compras 24 Dia Mundial do Vovô 25 Dia Universal dos Doadores de Sangue 26 Dia do Ministério Público 27 Dia da Infância 28 Dia do Soldado Desconhecido 29 Dia do Café 30 Dia da Reforma Agrária

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dia mundial do urbanismo LÁ NO ALTO

Cidade paraense foi construída sobre pontes de madeira

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valéria gonçalves/ae

s 40 mil moradores de sair com a família para passear? Foi Afuá, cidade paraense então que entrou em cena a invenção localizada na Ilha de de Raimundo do Socorro, também Marajó, não têm o pé no chão. Andam conhecido como Sarito: o bicitáxi. sobre palafitas. Moram em cima delas. Com capacidade para até quatro pesA arquitetura peculiar tem sua justifisoas e nome registrado em cartório, o cativa: constantemente alagada pelo inovador meio de transporte foi consrio, a região não permite construções truído a partir da junção de duas biciem terra firme. Assim, casas e pontes cletas. Com o tempo, peças de carro de madeira foram sendo desenhadas a foram sendo acrescentadas: volante, um metro de altura. Por tabela, carros pneus, pára-choque, sistema de som. bicitáxis: transporte oficial de afuá. e motos não podem circular. PrejudiOs veículos, apesar do nome, são parcariam a estrutura que ainda prevalece, resistindo ao concreto que ticulares. Podem custar de dois a seis mil reais, dependendo dos acesteima em avAnçar. sórios. Há também quem os personalize, acrescentando, por exemplo, Na falta de transportes motorizados, a bicicleta predomina: há quem neon. Outros, mais criativos, os aproximam de modelos conhecidos, calcule que o número de magrelas é superior ao de habitantes. Mas hacomo Jipes e Ferraris. Se Batman aparecesse por lá, não ficaria a pé: via um porém: elas só carregam uma, no máximo duas pessoas. Como não falta um bicitáxi Batmóvel para transportá-lo. (MA) Saiba Mais Site da Prefeitura de Afuá: www.prefeituradeafua.com.br

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dia nacional da consciência negra ARTE CONTRA A DESIGUALDADE

Grupo teatral lança luz sobre as causas negras E

folha imagem

m 1944, um grupo teatral de atores Abdias do Nascimento não se impornegros, comandado pelo dramaturtava com o pouco apelo comercial das go Abdias do Nascimento, é criado peças que produzia. Tanto que o grupo no Rio de Janeiro. Inicialmente, o Teatro nunca se profissionalizou. Foram enceExperimental do Negro (TEN) apenas conadas cerca de 10 peças, boa parte no labora com a peça Palmares, do Teatro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Estudante do Brasil. Em pouco tempo, poMas as atividades não se limitavam às teatro experimental do negro. rém, começa a trilhar caminho próprio. artes cênicas. Foram criados concurMas logo os artistas se dão conta da ausência de textos que retratassem sos de beleza para mulheres negras e até uma exposição de artes as questões do povo negro. Decidem, então, criar suas próprias peças, plásticas sobre o tema Cristo Negro. originais, modernas e, sobretudo, ideológicas. O grupo também promoveu convenções para discutir as questões raciais Outros atores são selecionados, entre empregadas domésticas, e, em 1950, o 1º Congresso do Negro Brasileiro, além de editar o joroperários e moradores de favelas. Além de teatro, o TEN passa a nal Quilombo. Os ideais de Abdias incentivaram iniciativas semelhantes, alfabetizar os alunos, já que muitos dos novos atores nunca hacomo o grupo homônimo paulistano, criado pelo dramaturgo Geraldo (BH) viam freqüentado a escola. Campos de Oliveira. O TEN encerrou as atividades em 1961. Saiba Mais Site sobre Abdias do Nascimento: www.abdias.com.br


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dia nacional da homeopatia

dia da baiana do acarajé OFERENDA A IANSÃ

Clínica de Raul Seixas foi pioneira no uso de homeopatia

No tabuleiro da baiana tem que ter

laura ha

fernando vivas/a tarde/ae

TEM ATÉ BLUES

clínica tobias

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medicina antroposófica surgiu na Europa no início do século 20 e chegou ao Brasil, trazida por imigrantes alemães, no fim dos anos 1950. Além do diagnóstico tradicional – exames e radiografias –, os médicos que seguem essa linha também analisam a vitalidade, o desenvolvimento emocional e a história de vida de seus pacientes. Assim, a busca pela cura é individualizada e acontece a partir da restauração do equilíbrio do corpo, da mente e do espírito. Em 1969 foi inaugurada a primeira clínica antroposófica do País. Situada no Alto da Boa Vista, bairro da zona sul paulistana, a Clínica Tobias foi uma das primeiras a utilizar remédios homeopáticos para o tratamento de doenças. Feitos de substâncias vindas da natureza – plantas, minerais e até mesmo metais –, esses medicamentos são produzidos com técnicas de diluição e dinamização. Um de seus oito leitos chegou a ser ocupado por Raul Seixas nos anos 1970, já que era o único lugar em que o Maluco Beleza aceitava ficar internado para desintoxicação. Lá, Raul escreveu a música Canceriano sem Lar, ou Clínica Tobias Blues. Na época, além da implementação dos tratamentos, a instituição também foi responsável pela formação de cerca de 80 médicos de diferentes regiões do Brasil. A clínica funciona até hoje, mas a partir de 1993 passou a atuar apenas no atendimento ambulatorial. Os leitos para internação tornaram-se consultórios e passaram a ser oferecidos cursos de formação em medici(CC) na antroposófica e terapia artística. Saiba Mais Site da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica: www.abmanacional.com.br

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a missa no pelourinho.

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festa da Baiana do Acarajé não significa pouca coisa, não. É ela que inicia o calendário oficial das festas populares de Salvador. Começa com uma missa no Pelourinho, seguida de um cortejo que, ao som de sambas-de-roda, vai até o Memorial das Baianas, na Praça da Se. No Brasil, o ofício começou no período colonial com as “escravas de ganho”, que trabalhavam vendendo quitutes de porta em porta. Vestidas tradicionalmente, levavam na cabeça cestos recheados de beiju, acarajé, cuscuz e outras especialidades da culinária afro-brasileira. A massa do bolinho, feita de feijão fradinho e cebola, era preparada no terreiro de candomblé, onde a delícia servia também de oferenda à orixá Iansã. A tradição é africana, de onde se origina também a palavra: àkàrà (bola de fogo) mais je (comer). Por isso é sempre prudente maneirar na pimenta... Hoje as baianas se fixaram por toda a cidade, principalmente em pontos como o Largo de Santana, onde fica o Acarajé da Dinha, que, mesmo com o falecimento da dona, em maio deste ano, continua atraindo apreciadores. Sem perder o caráter sagrado, o acarajé tornou-se fonte de sustento de muitas bravas soteropolitanas. Por isso o ofício foi reconhecido pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como bem cultural de natureza imaterial. O objetivo do registro é preservar a prática e impedir que ela se dissocie do conjunto cultural em que está inserida, garantindo a sobrevivência desta técnica que (CC) atravessou séculos, de geração em geração. Saiba Mais Confira o site do bairro Rio Vermelho, onde encontram-se alguns dos melhores acarajés de Salvador: www.portalriovermelho.com.br/acarajé Novembro 2008




Rachel de Queiroz

Uma vida feita de palavras Por Bruno Hoffmann

Em 92 anos, ela foi romancista, cronista, jornalista, teatróloga, professora. Teve constante atuação política – ora ao lado dos comunistas, ora a favor dos militares. Quando

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aventaram seu nome para a Academia

OTAVIO MAGALHAES/AE

Brasileira de Letras, perceberam que

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ra uma escritora prodígio e tímida, que não mostrava os textos para ninguém.A situação mudou quando o jornal O Ceará promoveu um concurso para escolher a rainha dos estudantes. A garota resolveu mandar uma crônica ironizando a promoção, sob o pseudônimo Rita de Queluz. De tão bem escrita, até a vítima, a tal rainha dos estudantes, se sentiu orgulhosa. Houve um zunzum entre os leitores e o pessoal da redação. Todos queriam saber quem era a escritora misteriosa. Depois de muitas hipóteses, o poeta e jornalista Alencar Guimarães, amigo da família, sentenciou:“Só pode ser coisa da Rachelzinha”. Desta maneira, aos 17 anos, Rachel de Queiroz iniciou a car-

as regras não aceitavam mulheres. Mudaram as regras. reira literária, que não abandonaria nunca mais. A cearense, nascida em 17 de novembro de 1910 em Fortaleza, desde cedo teve propensão à literatura. O pai, professor e magistrado, a alfabetizou pessoalmente, com direito a livros clássicos. Aos 5 anos, leu Ubirajara, de José de Alencar. “Obviamente, não entendi nada”, contou depois. Devido à terrível seca que atingiu a região em 1915, a família passou por diversas cidades, até se fixar em Quixadá. Lá, a menina é matriculada num colégio de freiras, e se forma como professora com apenas 15 anos. De volta a Fortaleza, e após o episódio da crônica de O Ceará, é convidada a ser colaboradora fixa do jornal. Começou a esboçar um romance em folhetim chamado A História de uma Moça. Não empolgou nem a si própria.“Era uma droga”, resumiu.


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Além de livros e peças, colaborou por mais de 30 anos com crônicas para a revista O Cruzeiro.

Pouco depois, aceita o convite para lecionar num colégio como professora de história.Tinha apenas 18 anos, quase a idade das alunas, com as quais criaria uma relação de cumplicidade, defendendo-as nas constantes discussões com o rígido diretor. De tão popular, foi escolhida no fim do ano – por ironia do destino – a Rainha dos Estudantes.

Em 1939, separa-se do marido e muda definitivamente para o Rio. Na cidade, conhece o médico Oyama de Macedo, com quem se casaria. Além dos livros, escreve peças de teatro e crônicas para a disputada revista O Cruzeiro. Foram mais de 30 anos de colaboração semanal, sempre na última página da publicação.

“Não vou fazer correção alguma”

Sempre ligada às questões políticas, foi favorável ao golpe militar que depôs o governo de João Goulart em 1964, pois considerava-o um seguidor de Vargas. “A minha geração habituou-se a considerar Getúlio como fonte de todos os males políticos”, explicou mais tarde. O novo presidente, general Castelo Branco, era amigo da família. Por isso atendeu a dois pedidos do militar: o de filiar-se ao Arena (“Ele queria que o partido tivesse mais intelectuais em seus quadros”) e ser a delegada do Brasil num congresso da ONU. Nos governos militares que se sucederam, manteve uma relação cortês, mas distante. Em 1977, um grupo de imortais da Academia Brasileira de Letras tentou convencê-la a disputar uma cadeira na instituição. Rachel gostou da proposta, mas não se empolgou, já que o estatuto da ABL não permitia mulheres. Os simpatizantes da idéia encontraram uma solução: mudar as regras. Desse modo, ela venceu o jurista Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda por 23 votos a 15. Nos anos 1990, alcança grande popularidade com a adaptação para a tevê de O Memorial de Maria Moura, minissérie que conquistou ótimas críticas da imprensa. A escritora morre, dormindo, em 4 de novembro de 2003, dias antes de completar 93 anos.

De volta às letras, Rachel publicou, em 1930, o primeiro romance: O Quinze. A obra fala sobre uma terrível seca, igual à enfrentada anos antes. A publicação a tornou notória quase que instantaneamente. Recebeu o prêmio da Fundação Graça Aranha, no Rio de Janeiro, na categoria ficção. O idealizador do prêmio, o próprio Graça, morreu de enfarte logo depois. Em seu gabinete estava O Quinze aberto. “O Graça morreu de desgosto ao ler seu livro”, gozavam os amigos. A viagem ao Rio também serviu para aproximá-la do Partido Comunista Brasileiro, pelo qual já tinha simpatia. Filiou-se e recebeu a incumbência de organizar o PCB em Fortaleza. O sítio da família abrigou diversas reuniões do partido. Um ano depois, entretanto, membros tentaram censurar seu novo romance, João Miguel. Entre os argumentos, estava que um camponês não poderia matar o outro, e exigiram mudanças.“Eu não reconheço nos companheiros condições literárias para opinarem sobre a minha obra. Não vou fazer correção alguma”, afirmou, convicta. Nunca mais teve contato com o partido. Na mesma época conheceu o poeta José Auto da Cruz Oliveira, com quem casou. Em 1937, lança o romance Caminho de Pedras. Com a decretação do Estado Novo, seus livros são queimados em praça pública, sob a acusação de serem subversivos.

A primeira mulher da ABL

SAIBA MAIS Tantos Anos, de Rachel de Queiroz e Maria Luíza de Queiroz (Siciliano, 1998).

O M elhor Produto do Brasil é o Brasileiro CÂMARA CASCUDO

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texto: Bruno Hoffmann

ESPECIAL 1968

arte: Paula Chiuratto

Cenas de um ano que nao terminou Como num transe coletivo, 1968 marcou uma revolução em todo o mundo. Nada mais seria como antes. No Brasil, a música e a política ganharam corações e mentes de uma juventude ávida por mudanças sociais e de comportamento. Sonhos interrompidos pelo AI-5, que impôs um silêncio de vozes – mas não de idéias e ideais – por mais de uma década.

É PROIBIDO PROIBIR

1166

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e tão importante, o acaso deu a 1968 uma folha a mais no calendário. Ainda assim, os 366 dias desse ano bissexto parecem pouco para as transformações radicais que aqueles 12 meses provocaram na sociedade mundial, com reflexos visíveis até hoje. Na Europa, a população lutou contra a opressão social, seja ela qual faceta tivesse. As ruas de Paris foram tomadas por estudantes que, sob slogans como É Proibido Proibir, colocaram carros de ponta-cabeça e botaram fogo na cidade. Em Praga, a primavera trouxe sonhos de liberdade para um povo que vivia num fechado regime comunista, e buscava humanizá-lo. Nos Estados Unidos, manifestações infestavam as ruas, fosse para queimar sutiãs, para protestar contra a Guerra do Vietnã ou para ouvir Martin Luther King. O Brasil não ficou alheio. Pelo conT rário: a luta pelas liberdades individuais e pela quebra dos paradigmas mobilizava a sociedade. Era um tempo em

que o grande inimigo tinha nome, cassetetes e calabouços: o regime militar, instaurado em 1964. A resistência não se fazia apenas nas ruas e centros acadêmicos. Os artistas também entravam nas trincheiras. “Em 1968 a arte não poderia viver sem a política”, sintetiza o jornalista Zuenir Ventura. Os festivais da canção, o palco mais visível desse clima, eram locais de inflamadas – e às vezes fanáticas – discussões políticas e estéticas. Canções que parecessem apolitizadas eram impiedosamente vaiadas, como aconteceu com Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso. Já as músicas engajadas se tornavam novos hinos nacionais. “É a nossa Marselhese”, definiu Millôr Fernandes sobre Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, a emblemática canção de Geraldo Vandré. Um ano tão carregado de sonhos e ideais teve o pior desfecho possível. Em dezembro, o presidente-militar Arthur da Costa e Silva desferiu um duro golpe contra as liberdades individuais do País. Decretou o Ato Institucional nº 5, que interrompeu um forte e amplo anseio de transformação e marcou a escalada da supressão de direitos e das atrocidades de um regime autoritário. E 1968 acabou na escuridão.


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RODA VIVA

a última Roberto Carlos apresenta Guarda . edição do programa Jovem

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O estudante Edson Luís de Lima Souto é morto em conflito com a polícia no restaurante Calabouço, no centro do Rio. Mais de 50 mil pessoas acompanham o enterro. a equipe Em São Paulo, lo médico comandada pe Jesus Zerbini Euryclides de ro transplante realiza o primei . América Latina de coração da

É U BR MA A MO SA, RA ?

Mais de cinco m il pessoas part icipam das com do Dia do Trab emorações alho, em São Pa ulo. A passeata não se transfor é tensa; só ma em batalha porque o govern Sodré não orde ad or Abreu nou a repressã o. 68 cidades são consideradas áreas de segurança nacional; as eleições municipais são suspensas.

SEXTA-FEIRA SANGRENTA

Uma chuva de vasos e grampeadores pela liberdade Quatro pessoas mortas, 25 baleadas, 35 soldados feridos e mais de mil presos. Este foi o saldo de uma das mais violentas batalhas campais ocorridas no Rio de Janeiro, conhecida como Sexta-Feira Sangrenta. Tudo começou pela manhã, quando estudantes – como já havia virado hábito – jogaram pedras na embaixada dos Estados Unidos, acusados de patrocinar o golpe militar. Em poucos minutos, surgem carros de polícia com a ordem de “atirar para matar”. Obedientes, alvejam uma jovem, que morre logo depois. Não esperavam que o contra-ataque pudesse vir do céu, ou das janelas dos apartamentos. Foram surpreendidos por uma chuva de máquinas de escrever, vasos de flores, grampeadores. Acuada, a polícia atira para todos os lados e resolve debandar. “Violência por violência, a dos garotos é mais simpática”, escreveu o cronista José Carlos Oliveira.

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Garotas de classe média – e de cabelos impecáveis – lotaram o auditório do Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. Era a estréia da peça Roda Viva, escrita pelo genro ideal de seus pais, Chico Buarque. As meninas suspiravam ao imaginar o que o cantor dos olhos de ardósia e símbolo do bom-mocismo havia criado. Quando as cortinas se abriram, entretanto, ficaram espantadas. A peça era extremamente provocativa, quase violenta. Tratava-se de uma encenação revolucionária comandada pelo diretor Zé Celso Martinez Corrêa. O texto de Chico também não ficava atrás: era uma ironia deslavada ao mundo do show business, do qual ele fazia parte. Muitos saíram antes de terminar, ofendidos. O ator Antônio Pedro, que fazia o anjo da guarda, foi ameaçado em cena aberta: “Olha aqui ó, anjo, se você não parar vou te dar uma porrada”. Ficou só na ameaça. Porrada mesmo quem deu foram os membros do Comando de Caça aos Comunistas, grupo de extrema direita favorável ao regime militar, que espancaram integrantes da peça após uma apresentação em São Paulo e seqüestraram dois atores em Porto Alegre.

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Genro ideal surpreende com peça sarcástica

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SABIa

De música “alienada” a canção de protesto Tom Jobim suportou exatos 23 minutos de vaias durante a apresentação de Sabiá, na fase eliminatória do 3° Festival Internacional da Canção. A platéia de 20 mil pessoas que lotava o Maracanãzinho considerava a canção alienada. Quase todos torciam por Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, a politizada canção de Geraldo Vandré. O co-autor de Sabiá, Chico Buarque, escapou dos apupos por estar em turnê pela Europa. Na finalíssima, entretanto, teve que encarar a multidão. E suportar mais vaias, que calaram as intérpretes Cynara e Cybele. Ao final da apresentação, Geraldo

Vandré tomou as dores dos adversários e, ao microfone, proferiu uma de suas últimas frases em público. “A vida não se resume a festivais!”, bradou à platéia. Contrariando a preferência popular, Sabiá foi a vencedora. E logo seria adotada como uma espécie de hino da saudade dos exilados políticos: Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para meu lugar.

Caetano Velo so é vaiado durante a ap de É Proibid resentação o Proibir no auditório do Paulo. Em re T u c a , em S ão sposta , profe re um discu “Mas é isso rs o enfurecido que é a juve : ntude que d o poder? ”. iz que quer to mar O artista plástico Hélio Oiticica estende uma bandeira com a inscrição “Seja marginal, seja herói” durante um show na boate Sucata, no Rio.

TODOS S P RESO

Estréia o filme O Bandido da Luz Vermelha , de Rogério Sg anzerla , um dos ícones do cinema marg inal.

CONGRESSO SECRETO

“Seu delegado, há muitos barbudos no sítio do Simões” É possível fazer um encontro secreto com quase mil pessoas? Estudantes que participaram do 30º Congresso da UNE em Ibiúna, interior de São Paulo, acreditavam que sim. Da noite para o dia, a cidade foi tomada por jovens vindos de todo o Brasil. O local da concentração era o sítio Munduru, nas cercanias da cidade, onde pretendiam discutir clandestinamente sobre o movimento estudantil e as formas de combater o governo. A derrocada do plano suicida começou quando um lavrador avisou ao delegado: “Há muitos barbudos armados no sítio do Simões”. A operação para prendê-los foi cinematográfica. Mais de 200 policiais do Dops e da Força Pública participaram da ação. Os estudantes não tiveram como oferecer resistência.

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O jornal Última Ho ra é pressionado a pu blicar uma crônica que reba tia a música Pra Não Dizer qu e Não Falei de Flores, escolh ida num concurso entre os militares. O texto vencedor , de um tal aspirante Bastos assim: Tu, Vandré , começava , que andas pela noite no chopinho do Castelinho, qu e sabes da nossa Pátria?


ABAIXO A DITADU RA

Passeata esperava 30 e juntou 100 mil Cinco dias depois da Sexta-Feira Sangrenta, o centro do Rio foi palco de outra manifestação. Desta vez, mais organizada e com autorização do comando militar, conseguida após tensas negociações. Artistas e intelectuais estavam na linha de frente: Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Gilberto Gil, Nara Leão, Paulo Autran, Odete Lara, Franklin Martins. Sem repressão policial, os organizadores, esperançosos, previam que reuniriam 30

mil manifestantes na Cinelândia. Estavam enganados. Foram chegando grupos de padres, jornalistas, professores... A conta final: 100 mil pessoas. “Só não víamos um único preto ou um único operário”, ironizou Nelson Rodrigues, direitista convicto. A passeata correu com tranqüilidade, entre discursos dos diversos grupos presentes, com palavras de ordem como “O povo no poder”, “Viva os estudantes do Brasil” e a clássica “Abaixo a Ditadura!”.

Pela primeir a vez, o trio de canhoto Gérson, Rive s llino e Tostã o é escalad como titula o r na seleção brasileira, numa partid a contra a P olônia. O Brasil gole ia por 6 a 3.

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et Circensis, É lançado o histórico Panis a, com a disco símbolo da Tropicáli loso, participação de Caetano Ve Nara Leão, to, Ne ato Gilberto Gil, Torqu . Gal Costa, Tom Zé e Mutantes

E o Brasil escureceu

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Estudantes do Mackenzie e da Faculdade de Filosofia da USP se enfrentam com rojões, coquetéis molotov e tiros na rua Maria Antônia, em São Paulo.

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O verão no Rio estava quentíssimo. Mas, estranhamente, a previsão do tempo do Jornal do Brasil do dia 14 de dezembro indicava: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”. O Ato Institucional nº 5 havia entrado em vigor no dia anterior, o que, na prática, fechava o Congresso, cassava mandatos políticos e suspendia garantias constitucionais. Começava a se desenhar a faceta mais perversa e totalitária do regime militar. Quase que instantaneamente os órgãos de imprensa foram invadidos por censores. Vários jornais, que até então se sentiam com alguma Liberdade para noticiar, tiveram as edições recolhidas. Não raro, os editores eram levados de camburão. Políticos, artistas e estudantes eram presos ou fugiam para o exílio. O regime, definitivamente, havia endurecido. Sem sombra de ternura. Nas reuniões governamentais que decidiram pela medida, a voz corrente era que, se tivessem que implantar uma ditadura de fato para conter a “contra-revolução”, que assim se fizesse. O presidente Costa e Silva finalizou: “Eu confesso que é com verdadeira

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violência aos meu princípios e idéias que adoto uma medida como esta”. O militar acreditava que o AI-5 duraria “de oito a nove meses”. Durou dez anos. Tempo suficiente para censurar 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 letras de música e o mesmo número de livros. E para prender, torturar e matar qualquer um que soasse como subversor ou inimigo do regime. A anistia “ampla, geral e irrestrita” devolveu os direitos políticos às vítimas (que sobreviveram). Estendendo-se, na prática, aos torturadores, que permanecem impunes até hoje.

1968: O ano que não terminou, de Zuenir Ventura (Planeta, 2008). 1968 Destinos 2008: A passeata dos 100 mil, de Evandro Teixeira (Textual, 2008). Veja cenas de 1968 sob a música de Geraldo Vandré. Acesse o YouTube (www.youtube.com) e busque pelos termos “1968” e “Vandré”.

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Gisele

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O Boticário resgata perfumaria artesanal com processo de enfleurage

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Boticário pesquisou um processo artesanal de produção de perfumes extinto no mundo (enfleurage) para trazer ao mercado perfumes como o Lily Essence – o primeiro eau de parfum da empresa, lançado em 2006 –, produzido a partir de lírios e Sensuelle Essence, edição limitada que acaba de chegar às lojas, produzida com a rara flor de tuberosa. A enfleurage é uma forma artesanal para obtenção de óleos essenciais das flores que data da Antiguidade. Embora tenha sido muito usada, ela só se sofisticou e aprimorou durante o século 19, na França, daí o nome. A técnica, cara e rara, não é mais praticada em parte alguma desde 2002. Ou pelo menos não era até o Boticário inovar mais uma vez e retomar este antigo processo. Para tornar este sonho uma realidade, a empresa entrou em contato com pesquisadores da divisão de agrotecnologia da Unicamp, em Campinas. Ali, os estudiosos desenvolveram um processo mais moderno de enfleurage, que não utilizasse gordura animal – premissa do Boticário. Durante seis meses, vários pesquisadores, em parceria com a empresa, trabalharam duro até conseguir um resultado perfeito com gordura vegetal. Na técnica de enfleurage, as flores são colocadas em caixas e tampadas com uma placa coberta de gordura. A gordura não toca as pétalas, mas retém todo o seu perfume. Após algum tempo, a gordura é lavada em álcool. Em seguida, é feita a purificação do óleo essencial. O processo é tão primoroso que para se extrair um quilo de essência são necessárias, aproximadamente, 126 mil flores. Tanto Lily quanto Sensuelle fazem parte da marca Essence do Boticário, criada pela empresa para destacar os itens upper premium comercializadas nas 2.500 mil lojas espalhadas pelo Brasil.


ODED GRAJEW

fotos: EDI PEREIRA

Tanta injustiça é insustentável.

Como você define sua atuação? Isso era um problema para a minha mãe. Quando eu era engenheiro, empresário, era fácil responder para as amigas. Depois começou a confundir, ela mesma não sabia definir. Costumo dizer que sou um empreendedor social. Ou seja, tento empreender coisas na área social e ambiental, que tenham conseqüências positivas para a sociedade. De onde veio o desejo de deixar de ser empresário e se tornar um “empreendedor social”? Desde criança. Sempre olhei ao meu redor, sempre me interessei pelas causas sociais. Na empresa que fundei, tentava fazer as coisas de acordo com o que eu achava que deveria ser. Também comecei a dar palpites no Sindicato das Indústrias de Brinquedos e Instrumentos Musicais do Estado de São Paulo, ao qual éramos filiados. Eu tinha idéias, e sempre tive vontade de transformá-las em fatos. Fazer acontecer. Um dia, no sindicato, acharam que eu deveria ser o presidente. Topei, porque como presidente, além de dar palpites, teria a chance de fazer as coisas. E então segui este caminho.

Ele é o fundador de uma das mais importantes empresas de jogos e brinquedos do País, a Grow. Tinha tudo o que precisava para esquecer os tempos de vendedor de livros porta a porta e desfrutar da prosperidade, mas as conquistas empresariais não foram o bastante. Partiu então para novos empreendimentos, agora sociais. Desde 1990, Oded soma a seu currículo a criação da Fundação Abrinq, do Instituto Ethos, do Fórum Social Mundial e do Movimento Nossa São Paulo.“Nós somos o que fazemos”, justifica, evocando sua constante inquietação e propensão para o fazer. Diante das dificuldades que o futuro reserva e da iminência de um “desastre total”, pondera:“Há tantas variáveis. A perspectiva futura nunca me paralisou”. Essa empresa a que você se refere é a Grow. Ela já nasceu grande? Não, ela nasceu muito pequena, num fundo de quintal, em 1972. Grow são as iniciais dos quatro fundadores: Geraldo, Roberto, Oded e Valdir. Era Valdir com “V” mas ficou o “W”. A gente começou juntando as nossas economias: o equivalente ao valor de um Volkswagen, naquela época. Então, desde o princípio, sabíamos que o nosso poder competitivo seriam as idéias. A idéia era um produto novo para um mercado novo... Jogos para adultos, para adolescentes, e também comunicação, marketing, produção. Nós tínhamos que ter a informação como diferencial. Acredito que é preciso fazer coisas fora do comum, vamos dizer assim. O que os outros fazem já é feito. Para que possamos contribuir, é necessário fazer o que ninguém ou pouca gente faz. Quando você começou a atuar no terceiro setor já enxergava a necessidade de profissionalização? O que eu sentia era a necessidade de fazer as coisas... A gente pode falar, pode achar, pode pensar, mas o que vale é o que a gente faz. Nós somos aquilo que fazemos. Em qualquer lugar do Brasil, se você

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fizer uma pesquisa perguntando quem é a favor da corrupção, duvido que alguém levante a mão. Mas o Brasil é um país cheio de corrupção. Se você perguntar quem é a favor da criança e do adolescente como prioridade nacional, todos vão levantar a mão, mas na prática isso não acontece... Para fazer as coisas, você tem que estruturar um processo. Não basta querer.

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Você foi um dos primeiros empresários a levantar o tema da responsabilidade social. Houve evolução de lá para cá? Em relação a eu ser um dos primeiros empresários atentos à responsabilidade social, gostaria de abrir um parênteses. Na verdade, não há nada de excepcional nisso. Estranho é a indiferença diante de tanta desigualdade. O que não pode ser natural é ficar de braços cruzados. É tão óbvio que tem que ser feito... Ainda na Grow, tentei implementar as coisas, mesmo com uma situação que, no começo, era financeiramente precária. Nos vários indicadores do setor de brinquedos – salário, funcionários registrados, assistência médica, alimentação, condições de trabalho – sempre procuramos ser os melhores do setor... É claro que isso custa mais, mas eu sou testemunha de que dá certo financeiramente.

Estranho é a indiferença diante de tanta desigualdade. O que não pode ser natural é ficar de braços cruzados.

E em relação à evolução do empresariado brasileiro? Houve progresso? Sim, mudou bastante. Hoje, mais empresas se engajam, de uma forma ou de outra, nas questões sociais e ambientais. Mas ainda assim, não só no Brasil como no mundo, as melhores empresas têm investimentos em ações e projetos sociais que não chegam a 1% do seu faturamento. No Instituto Ethos, defendemos a aplicação não apenas desse 1%, mas também dos outros 99% em ações socialmente responsáveis. Ou seja, tudo o que a empresa faz: como ela lida com seus funcionários, com o meio ambiente; como são os produtos... Nada foge da responsabilidade social. Geralmente gasta-se muito mais na divulgação dos projetos do que na realização deles. Não há uma distorção? Não sou contra propaganda ou marketing, porque é saudável divulgar os bons exemplos. Os concorrentes vão atrás. Enfim, cria-se uma cultura de ação social. Mas, na hora de divulgar, não adianta falar o que está fazendo e gastar em publicidade muito mais do que com o projeto. Nas pesquisas do Instituto Ethos, uma das coisas que mais leva o consumidor a ter uma idéia ruim da empresa é a propaganda enganosa. O cliente se sente ludibriado. Uma companhia que faz propaganda da sua responsabilidade social sem ter um real compromisso com o conteúdo acaba desmoralizando o conceito de responsabilidade social: “Ah! Isso é só coisa de marketing, de propaganda!”.

Isso deve valer também para as iniciativas da sociedade civil, não? Os sindicatos e as ONGs deveriam servir de exemplo para os empresários. Tem gente usando como desculpa que, se registrar os funcionários, por exemplo, não sobrevive. É a mesma coisa dizer que se não roubar não sobrevive... Valeria também para os políticos: “Ah, se eu não pegar dinheiro por fora, se não fizer acordos espúrios, não consigo governar”. Como surgiu a idéia do Fórum Social Mundial? Foi em 2000. Era a época do Fórum Econômico Mundial, e predominava a idéia de que a economia ia salvar o mundo. As pessoas eram vistas mais como consumidores e produtores do que como cidadãos. Naquela época, o ex-presidente argentino Carlos Menem, por exemplo, era recebido com tapete vermelho em Davos, como um modelo a ser seguido. Aí começamos a pensar uma maneira de se contrapor a isso. Se tinha o Fórum Econômico Mundial, tinha que haver um Fórum Social Mundial. Foi aqui nessa sala, onde antes era o Ethos, que se realizou a primeira reunião do grupo brasileiro. Eu convidei algumas pessoas para expor a idéia, ver o que achavam... Porque mesmo os processos que surgem na minha cabeça só vão adiante coletivamente.

O Fórum vem cumprindo o papel de equilibrar as discussões econômicas e sociais? É preciso olhar como era o mundo naquela época. Em 2000, quando foi realizado o primeiro encontro, vivia-se “o fim da história”. O modelo neoliberal imperava. A desregulamentação dos mercados, o estado mínimo e a globalização financeira pareciam o caminho. Hoje o quadro político na América Latina mudou totalmente – basta olhar os presidentes. Ninguém ousa dizer “Eu sou neoliberal”. Se você comparar a agenda do Fórum Econômico Mundial daquela época com a atual... Eu às vezes brinco que o site do Fórum Econômico parece com o do MST... Há discussões que nunca haviam acontecido lá: a questão social, as desigualdades, a questão ambiental, a fome... Nada disso entrava na agenda. Não estou dizendo que melhorou efetivamente, mas que mudou, mudou. A próxima edição do Fórum Social Mundial será na Amazônia, em Belém, o que proporcionará uma discussão sobre a sustentabilidade mundial. O planeta está tendo seus recursos esgotados por causa desse modelo predatório que incorporamos. Isso questiona todo o sistema de cultura, valores, consumo e produção. Quando se discute sustentabilidade, costuma-se pensar apenas no aspecto ambiental. Não se trata de um conceito mais amplo? Sim. Se você aumenta ou preserva uma distância enorme entre ricos e pobres, isso é insustentável, porque gera violência e conflitos... Tanta injustiça é insustentável. É insustentável oferecer produtos e


serviços que esgotam os recursos naturais. Ou preservar um sistema econômico que incentiva o consumo predatório, que transfere a felicidade para o consumo. Hoje ser feliz é possuir várias coisas que há dois séculos não existiam... Então quer dizer que as pessoas não eram felizes? Essa ficha da sustentabilidade vai cair, mais cedo ou mais tarde. Nossa luta é para que ela caia antes do desastre total. E por que a reação demora tanto? Geralmente os governos agem quando a crise atinge pessoalmente os governantes e seus financiadores de campanha. E eles não são atingidos pela pobreza, pela falta de habitação, de saneamento. Um exemplo é a atual crise financeira mundial. Diante dela, mobilizaram-se instantaneamente 700 bilhões de dólares. Esse dinheiro estava disponível! Para que se atinjam as metas do milênio, a ONU estima que sejam necessários 150 bilhões de dólares por ano. Até agora, menos da metade disso foi investido. Por que se mobilizou agora e não se mobilizou antes? Com a iminência de uma crise no País, as conquistas sociais não estão em risco também? No modelo atual, estão sim. Na hora da escassez sempre se tomam decisões de o que se vai priorizar e o que se vai cortar. Não todos, mas muitos governantes dedicam parte do mandato para dar retorno a quem investiu nas campanhas. Quem investiu não foi porque achou lindo. É investimento mesmo. Então, na hora da crise, são prioridade. Pobre não financia campanha. Então, o governo coloca recursos para viabilizar exportações, para ajudar aos que apostaram errado no câmbio, e por aí vai. Por que não investir esse dinheiro na educação? Primeiro porque não existe um interesse em que a educação melhore, pois um povo mais inteligente e mais bem informado é mais crítico e exigente. E também porque os filhos dos governantes e financiadores não usam os serviços públicos. Se houvesse uma lei ou um código de ética obrigando os filhos dos governantes a estudar em escolas públicas, eu garanto que a educação do País melhoraria. O mesmo vale para a saúde. O Brasil tem uma carga tributária de primeiro mundo, semelhante à dos países europeus, e os serviços públicos são de quinta categoria. E como combater a distância entre os interesses da população e as necessidades dos governantes? O movimento Nossa São Paulo surgiu exatamente para isso. Nós pagamos impostos, somos eleitores. O governo tem que estar a serviço da população. Ou nos organizamos, exigimos e acompanhamos o poder público e as políticas públicas, ou não temos futuro.

Como é, concretamente, a atuação do Nossa São Paulo? A idéia é criar uma rede de articulações que comprometa a sociedade e sucessivos governos com o desenvolvimento sustentável da cidade. Hoje são cerca de 530 organizações, que atuam em quatro eixos de trabalho. O primeiro é a montagem do observatório da cidade, dos indicadores; outro é o acompanhamento cidadão, porque não adianta você ter a informação sem acompanhar; o terceiro é a educação, com campanhas e ações para que as pessoas se comportem como cidadãos e exijam dos governos seus compromissos; e, por último, a mobilização – tornar cada paulistano parte da rede. É possível contabilizar resultados? O movimento foi lançado em 15 de maio de 2007. Nesse tempo, montamos uma base de indicadores da cidade muito importante para o debate eleitoral. Um exemplo é a questão do trânsito, para a qual sempre se pensou em soluções como a construção de pontes e viadutos. Houve uma mudança na agenda, no sentido de priorizar o transporte coletivo. Em relação ao acompanhamento da Câmara Municipal, uma das coisas que conseguimos aprovar foi a mudança da Lei Orgânica do Município, que hoje está em várias cidades. Ela diz que o próximo prefeito tem 90 dias para apresentar um programa de metas – tanto qualitativas, como quantitativas –, em cada área da administração pública, para as subprefeituras e os distritos da cidade. A cada seis meses, devem ser divulgados os indicadores e, a cada ano, o andamento das metas. Isso não existia em lugar nenhum do Brasil...

Ou nos organizamos, exigimos e acompanhamos o poder público e as políticas públicas, ou não temos futuro.

É realmente incrível como se administravam cidades sem esses tipos de compromisso... O nome do movimento é Nossa São Paulo, mas, na minha cabeça, é o movimento do óbvio. Ele apenas defende o cumprimento integral de leis que já existem. Se você falar isso para um estrangeiro, ele não entende. Mesmo diante de tantos problemas, é possível seguir acreditando em maneiras de interferir no rumo das coisas? Na realidade, há muita coisa boa acontecendo. Se eu não visse perspectivas, não seguiria em frente. Vejo que muita coisa aconteceu, muitas mudanças... Basta olhar para trás e ver como era e como é hoje. Não sei o que vai acontecer lá na frente, não me preocupo muito com isso. Vou fazendo, vou tentando, e as coisas acontecem. A perspectiva futura nunca me paralisou. Há tantas variáveis. Além disso, é gratificante saber que você está fazendo a sua parte. Não sou otimista nem pessimista. Acho que é preciso tomar algumas atitudes. A partir daí, será o que será.

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Enigma Figurado

ligue os pontos

sujeitinho aí ao lado nasceu em 9 de novembro de 1955. Aos 12 anos, ganhou a primeira filmadora. Apesar da afinidade com as lentes, cursou arquitetura. Tirou a nota mínima por seu trabalho de graduação, apresentado em forma de filme. Na década de 1980, fundou a produtora Olhar Eletrônico, responsável por experimentações em vídeo e quadros de tevê. Em 1998, dirigiu seu primeiro longa, O Menino Maluquinho, mas não foi com ele que ficou famoso. (CC)

R.:

(sobrenome)

reprodução/ab

O

1

a Foi definido pelo crítico norte-americano Harold Bloom como o maior escritor afro-descendente de todos os tempos.

2

b Gilberto Freyre comparou sua atuação política à habilidade dos futebolistas mestiços. É tido como o único presidente negro brasileiro.

3

c Conhecido como “o padre mulato”, foi um dos maiores compositores sacros brasileiros, condecorado até por dom João VI.

4

d Ao lado de Domingos da Guia, foi o primeiro ídolo negro da seleção brasileira. Brilhou na Copa de 1938 e virou nome de chocolate.

O Calculista das Arábias

BRASILIÔMETRO

acervo da família

Nossa homenagem a Júlio César de Mello e Souza, o Malba Tahan

Em passagem por uma antiga hospedaria, o sábio Beremiz foi interpelado por três viajantes inconformados com um mistério. “Após o jantar, pedimos a conta, que foi de 30 dinares. Cada um deu 10, mas alguns segundos depois o escravo que nos servia trouxe 5 de troco. A conta, na verdade, dera 25. Devolveu 1 dinar a cada um de nós e foi recompensado por sua honestidade com os 2 restantes. A conta aparentemente estava certa. Mas se cada um de nós deu 10 e recebeu 1 de volta, gastou 9. Três vezes nove é igual a 27. E se dois foram dados ao escravo (27+2=29), um dinar desapareceu!”. Beremiz esclareceu o mistério sem hesitar. E você? Sabe o que aconteceu com o dinar restante?

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teste o nível de sua brasilidade 1 Companhia cinematográfica fundada em 4/11/1949, na paulista São Bernardo do Campo: (a) Jaraguá (b) Vera Cruz (c) Cinédia (d) Atlântida 2 Centro de pesquisa ambiental (inaugurado em 1/11/1997). Funciona onde antes era o presídio: (a) do Carandiru (b) da Ilha Anchieta (c) de Ilha Grande (d) da Ilha das Cobras 3 Usina inaugurada entre Brasil e Paraguai em 5/11/1982: (a) Furnas (b) Tucurui (c) Itumbiara (d) Itaipu

Palavras Cruzadas

4 Programa de combustível alternativo criado em 14/11/1975: (a) Proálcool (b) Combustível Legal (c) De Olho no Combustível (d) Programa do Biodiesel 5 Revolta autonomista ocorrida na Bahia em 7/11/1837: (a) Farrapos (b) Malês (c) Sabinada (d) Balaiada 6 A segunda baía mais extensa do mundo, descoberta em 1/11/1501: (a) de Guanabara (b) de Todos os Santos (c) dos Porcos (d) dos Golfinhos 7 Cartão-postal da cidade de São Paulo, inaugurado em 8/11/1892: (a) Masp (b) Oca (c) Copan (d) Viaduto do Chá 8 Nome original da ferrovia que passou a se chamar Central do Brasil em 22/11/1889: (a) Central Lusitana (b) Estrada Imperial (c) Dom Pedro II (d) Barão de Mauá Respostas na p. 36 AVALIAÇÃO – Conte um ponto por resposta certa: 0 a 2 - Brasilidade na reserva 3 a 4 - Meio tanque 5 a 8 - Tanque cheio

“Tudo vem quando você vai atrás.”

Silvia Duailib


Diversão para pequenos

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e grandalhões

Sai da frente da televisão! V

ideogame é legal, ninguém pode negar. Mas há uma infinidade de jogos, brinquedos e brincadeiras que não precisam de nada eletrônico para funcionar e podem ser muito mais divertidos do que ficar com o joystic na mão. Quer alguns exemplos? Rodar pião, bater figurinha, empinar pipa (ou papagaio, ou quadrado, ou pandorga), pular amarelinha, brincar de boneca, jogar futebol de botão etc. etc. e etc. Desde que o mundo é mundo existem brincadeiras. É uma forma de estimular a imaginação, mexer com o corpo, fazer amigos e conhecer o que está ao redor. Brincar é a melhor forma de pôr a cabeça e o corpo para funcionar. As origens dos brinquedos são diversas. Os ursinhos de pelúcia foram criados nos Estados Unidos; o skate também vem de lá, pois os surfistas queriam praticar o esporte no asfalto; a boneca surgiu no Egito muito tempo atrás; a terra dos faraós também inventou o bambolê. Já o futebol de botão, como não podia deixar de ser, é brasileiro. Alunos de uma escola carioca passaram a arrancar os botões do uniforme para praticar o jogo. Os pais e professores iam ao desespero, mas eles se divertiam de montão.

A peteca é coisa nossa

JÁ PENSOU NISSO?

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Solução na p. 36

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Cada número no diagrama abaixo corresponde a uma página do Almanaque. Descubra a letrinha colorida na página indicada e vá preenchendo os quadrinhos até completar a mensagem cifrada que escrevemos para você.

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jogar cartas?

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Quem sempre ganha ao

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Se todos os brasileiros resolvessem, de uma hora para outra, brincar de roda, seríamos capazes de dar sete voltas e meia no mundo! Basta fazer a conta. O Brasil tem 180 milhões de habitantes. A média de altura da população é de 1,70m. Ao esticar os dois braços para o lado, como numa roda bem aberta, o comprimento de uma mão à outra é o mesmo da altura da pessoa (sabia dessa? Pode testar). A circunferência da roda teria o comprimento de 306 mil quilômetros, o suficiente para envolver o planeta quase oito vezes. Se só a gente poderia dar esse abraço gigantesco, imagine se todo o mundo resolvesse entrar na brincadeira...

A peteca é uma invenção brasileira, criada quando esta terra nem se chamava Brasil. Ela era jogada por índios há centenas de anos. Para produzir o brinquedo, eles usavam uma trouxinha de folha cheia de pedrinhas dentro, amarrada a uma espiga de milho. Os índios já a chamavam com o nome que usamos hoje, que em tupi significa “bater”. Quando os portugueses desembarcaram por aqui, adoraram a nova brincadeira, e ela passou de geração em geração. Hoje a peteca é considerada um esporte, com regras, federação e tudo mais.

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Um ioiô original não se desoriginaliza. Novembro 2008

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Tiradentes

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O passado e o presente num mesmo instante

A princípio pode-se pensar numa daquelas cidades que fazem de tudo para reencontrar o Brasil colonial. Mas Tiradentes não parou no tempo. Criou uma receita original e requintada que harmoniza suas igrejas barrocas e um casario secular a pousadas suntuosas, restaurantes sofisticados e refinadas galerias de arte. Texto, fotos e ilustrações de Heitor e Silvia Reali

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Tiradentes: arquitetura colonial e clima de modernidade envoltos pela serra azul.

H

á pouco mais de 20 anos, se alguém resolvesse fazer um passeio turístico por Tiradentes, localizada a 198 quilômetros de Belo Horizonte, seria a toque de caixa. Num roteiro que incluía as cidades históricas mineiras, Ouro Preto e Mariana eram as preferidas. Assim, a cidade não quis reviver o século 18, mas se situar no presente, sem perder a atmosfera aconchegante daquela época. Ali o tempo não existe. O presente e o passado são apenas o mesmo instante. É isso que faz Tiradentes singular.

Como as outras cidades históricas da região,Tiradentes teve um desenvolvimento rápido,fundado no ciclo do ouro.Mas o progresso durou pouco, e a vila se conservou intacta. Os resíduos desses tempos estão espalhados por suas ruas de clima moderno e agradável.A cidade surge colorida, salientando a arquitetura colonial que privilegia as construções térreas, sem fricotes de estilo, e as igrejas situadas nas colinas. Em contraponto, surge o azul índigo dos paredões da Serra de São José, que contorna a cidade. Não por acaso as montanhas são conhecidas como Serra Azul.


Palco da história Cada cidade tem seus segredos. A parcela invisível dessa vila está nas boas histórias. Longe de duvidar. O Chafariz de São José, de 1749, tem três fontes:uma para beber,outra para lavar roupa e a terceira a serviço dos cavalos. A imagem que encima o chafariz é a única que se conhece de São José das Botas. Conta-se também que os escravos nem ali podiam ficar sem fazer nada, indício de que paqueravam as lavadeiras, atrapalhando o serviço. Mas os escravos eram gente séria e obreira. Foram eles que, à noite, e às escondidas de seus senhores, edificaram a igreja do Rosário dos Pretos. No interior dela, três altares são dedicados aos santos negros: Benedito, chafariz de são josé: a única imagem de são josé das botas. Antônio de Cartagerona e Elesbão. Era também na moita que, na casa do Padre Toledo, hoje museu, se reuniam os inconfidentes mineiros, verdadeiros patriotas, para criar o primeiro grande racha contra a coroa portuguesa, voraz sugadora da terra descoberta. Entre eles, Joaquim José da Silva Xavier,Tiradentes, nascido em 1746 na Fazenda Pombal.

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cláudio salvalaio

Preste Atenção

Repare na qualidade do artesanato tiradentino. São esculturas em madeira, colchas e tapetes em harmoniosa combinação de cores, feitos em teares manuais. Há também taças, pratos e travessas em peltre, bordados em ponto Richelieu e utilitários em cerâmica. Além de “namoradeiras” em papel machê que suspiram pelas janelas. Novembro 2008


Novos sabores Apesar de ter sido palco de alguns dos episódios mais marcantes deste País, não foi a história que tirou a cidade do marasmo. Se for para resumir em uma palavra o que impulsionou o renascimento de Tiradentes nos últimos anos, está aí: gastronomia. Paulistas, cariocas, franceses, italianos e até mineiros lotam os cafés, bares e restaurantes da cidade. É difícil estabelecer as fronteiras de quando e como o fenômeno ocorreu. A jóia da coroa hoje é a culinária, com inesperadas combinações de pratos franceses e singelos temperos da roça. Os restaurantes se esmeram nos pratos preparados em fogões a lenha. Vão do frango caipira às especialidades, como a sopa de abóbora com cerveja preta, escargot com ora-pro-nóbis, ovo caipira em crocante de aspargos, ou ainda creme de cebola doce. Criaram uma culinária diferenciada, capaz de cativar os mais exigentes gourmets. O boca-a-boca funcionou rapidamente, e a cidade, trocando em miúdos, se tornou capital mineira da boa mesa. Durante os famosos festivais gastronômicos, chefs de todos os Estados brasileiros apresentam suas receitas livres de clichês. E assim Tiradentes encontrou sua nova identidade – um balaio cultural – com liberdade de criar novos sabores.

TIRADENTES TEM MAIS Igreja Matriz de Santo Antônio Inaugurada em 1750, depois de 40 anos de construção, é a segunda mais rica do Brasil, com seus altares em ouro. Pinturas em rococó, órgão do século 18 e um portal de entrada desenhado por Aleijadinho mostram a importância dessa cidade no Império. No piso, 116 sepulturas de nobres e escravos.

Bichinho O povoado que fica próximo a Tiradentes é um convite para conhecer os artesãos ceramistas. Ou simplesmente para tomar uma boa cachacinha.

Sobrado Ramalho O mais antigo sobrado da cidade abriga o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O local, conhecido como Quatro Cantos, é um dos mais bem conservados edifícios coloniais de Tiradentes.

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Sopa de abóbora e frango com ora-pro-nóbis.

Não deixe de viajar A Estação Ferroviária construída em 1880 e inaugurada por Pedro II em 1884 é hoje ponto de partida para um prazeroso passeio que acontece nos feriados e fins de semana. Dela parte a maria-fumaça que liga Tiradentes a São João Del Rey. O trajeto de 12 quilômetros tem como pano de fundo a Serra de São José e fazendas centenárias.


Prata da Casa

Doces do Chico F

ruta + açúcar. Simples assim. Na cho. No meio do bafo quente da forex-garagem, o móvel envidraçaja, Chico, com seu avental e touca de do tem um quase nada de doces. Os mestre-cuca brancos, é como uma noúltimos foram vendidos como água. ta de frescor. Acalma. O trabalho é árMoleza? Nenhuma. No fundo da lojiduo, mas tem que ser ao mesmo temnha, detrás de uma formação de nupo delicado e constante. E dá-lhe-quevens vindas do fogaréu de lenha, o dá-lhe mexer. mestre doceiro trabalha. Nome: FranChico calcula tudo de olhada: os pucisco Xavier, talvez até descendente nhados de açúcar, a lenha, o ponto do alferes da Inconfidência. Apelido: certo de apurar o doce. Calcula prinChico Doceiro. Setenta e oito anos e... cipalmente a hora de começar, pois o formiga, como se diz por lá dos que cheiro bom que exala do tacho tem adoram doces. Melhor seria dizer forque ser capaz de atiçar a freguesia. Esmiguinha. Trabalha 12 horas por dia. sa hora é no meio da manhã ou da tarChico é magro, e não é alto. Fica ainda de, quando os visitantes já subiram e menor atrás daquela erupção debaixo desceram as ladeiras da cidade e predo tacho de cobre amorangado. Dencisam repor energias. E aí a lojinha fi“são de três a quatro horas mexendo.” tro deste, o caldo doce aos borbotões. ca apinhada. A quentura aumenta na mesma proporção que os moviA terra mineira é farta em frutas que viram doce ou compota – figo, mamão, laranja, limão, goiaba. Mas ainda mentos dos braços fortes, moldados pelo mexer que não tem nem conta. “São de três a quatro horas mexendo, tem batata-doce, abóbora, coco. Sem contar que esbansendo que uma e meia sem parar. Daqui a pouco, quanja leite. Daí os famosos ‘canudinhos’. “O doce é da épodo as bolhas ficarem bem grandonas, tá pronto”, ensina. ca do arco da velha, mas eu dei uma incrementada. FazeChico aprendeu sozinho. “A mãe só fazia arroz-doce, e mos mais de 500 por dia.” É de comer e chorar por mais. É para levar para casa e, quaneu, para começar, adoro doces”, confessa, soltando a mão direita da colherona de pau, que mais parece um do bater saudade, comer de colherada, para reacender a remo, enquanto com a outra ajunta lenha debaixo do talembrança do clima gostoso que reina em Tiradentes. saiba mais Chico Doceiro. Tel.: (32) 3355-1900.

SERVIÇO Como chegar A TAM oferece vôos diários para Belo Horizonte, saindo das principais cidades brasileiras. Confira em www.tam.com.br Onde ficar

Pousada Pequena Tiradentes. A três quilômetros do centro, a

Onde comer

Restaurante Padre Toledo. Ótimos pratos temperados com ora-pro-

pousada retrata uma vila colonial do século 18, entre ruazinhas, jardins e sobrados. Tel.: (32) 3355-1262. www.pequenatiradentes.com.br

nóbis. Tel.: (32) 3355-2132.

Pousada do Ó. Fica logo ali, no centro (e não é mineiro quem diz). Tudo

Panela de Minas. Para quem não quer inventar, o local serve a

pertinho: restaurante, lojas, igrejas e barzinhos. Tel.: (32) 3355-1699.

tradicional comida mineira. Tel.: (32) 3355-1217.

Novembro 2008

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M AÇÃ Malus domestica

Fruta da longevidade e do conhecimento Digestiva. Rejuvenescedora. Purifica o sangue. Limpa dentes e fortalece gengivas. Faz bem à pele. Regula o colesterol e ajuda a emagrecer. Protege coração, pulmões e células. Boa para o cérebro. Um dos primeiros alimentos sólidos que o bebê conhece. Por Mylton Severiano

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riança da minha geração, longe dos grandes centros, só quando doentinha comia maçã – era rara e cara até meio século atrás. Mas, para essa criança, inapetente, necessitada de alimento fortalecedor e de fácil digestão, os pais compravam. Na mercearia, ficavam as maçãs envoltas uma a uma num papel sedoso azul arroxeado, que guardava seu perfume durante dias. Vinham da Argentina, da província de Mendoza. A fruta da macieira, árvore da família das rosáceas, é parenta da pêra, da nêspera, do marmelo. Com tronco de casca parda e lisa, o pé de maçã chega a dez metros de altura. A copa oferece um espetáculo aos olhos quando se carrega de suas vermelhas frutas. Originária do Cáucaso, Oriente Médio e leste asiático, é a árvore mais cultivada no mundo, e certamente há mais tempo que qualquer outra. Para o europeu “fruta rainha”, a maçã aqui chegou com os colonizadores e perpetuou-se nos pomares, mirrada e ácida. Pela década de 1960, podia-se comprar maçã nacional em Valinhos, a 50 quilômetros da capital paulista.Vinha em caixas de tomate, a preço baixo, qualidade idem. Quem transformou o Brasil em grande produtor, no meio da década de 1970, foram imigrantes europeus e seus descendentes,

fixados nos Estados mais frios, os sulistas Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Aí se concentra até hoje nossa maçã – 95% da produção brasileira. Graças a gente dedicada, agora até regiões serranas de Pernambuco produzem a fruta que exige clima frio ou temperado. O holandês Theodorus Daamen, um apaixonado pela maçã, desde que aqui chegou em 1973 se empenha em desenvolver o cultivo em regiões “marginais”. A revista Globo Rural de fevereiro de 2008 dá notícia de um feito de Theodorus: acaba de implantar a cultura da maçã também no coração da Bahia, em plena Chapada Diamantina. Uma façanha, pois, explica a reportagem, lá não faz um mínimo de 350 horas de frio por ano – é com o frio que a árvore entra em dormência,“ativando as enzimas que possibilitam o posterior florescimento e a frutificação”. A paixão pela maçã acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. É o fruto do conhecimento dos cristãos. Para certas culturas, o paraíso é representado por macieiras – lugar de abundância e prazeres, onde o chão, em vez de relva, é coberto de maçãs; para outras, é uma ilha repleta de macieiras carregadas.


Árvore de outros mundos E

ntre os gregos, corria que os deuses Zeus e Hera ganharam maçãs como presente de casamento. E o semideus Hércules cumpre o último de seus 12 trabalhos indo justamente buscar os pomos que constituem a fonte da eterna juventude, cultivados pelas ninfas Hespérides e guardados por uma serpente. Sob uma macieira o mago Merlin transmitia ensinamentos ao rei Artur. Sob uma macieira Newton intuiu a lei da gravidade, quando uma maçã lhe caiu na cabeça. A simbologia para os cristãos foi flagrada no samba-enredo

Mulheres do Brasil (1988), de Joyce, que começa: No tempo em que a maçã foi inventada / Antes da pólvora, da roda e do jornal / A mulher passou a ser culpada / Pelos deslizes do pecado original. Segundo a Bíblia, Deus diz a Adão que, se comer da árvore do conhecimento, terá vida atribulada. Eva oferece e Adão experimenta o “fruto proibido”, a maçã. É com a macieira que pintores do cristianismo retratam o paraíso. E o aluninho que deixa na mesa da professora uma apetitosa maçã vermelha? Que significa?

Uma maçã por dia mantém o médico longe

Um vinagre normalizador de anormalidades 35

H O

título acima traduz um ditado de língua inglesa (ver castanheira-do-pará, na edição de junho de 2008). Pelas propriedades da maçã, está certo. Tem vitaminas A, B1, B2, C; fósforo, ferro, tanino, pectina. Antioxidante, preserva as células. Combate obesidade, reumatismo, diabetes, doenças cardiovasculares, da pele, do sistema nervoso, acidose, pneumonia, afecções das vias respiratórias, problemas intestinais, esgotamento nervoso e cerebral, pedra nos rins, inflamações da bexiga e do aparelho urinário. Está bom, não?

á 20 anos, na minha dieta só entra vinagre de maçã. Li maravilhas sobre ele nalgum lugar. Oxigena o sangue e previne o endurecimento das artérias. Fortalece ossos e dentes. Favorece a coagulação do sangue (para a mulher: reduz o fluxo da menstruação). Em jejum, com uma colher de mel, evitará demência senil. E aí vai um fato. Em Veranópolis, interior gaúcho, onde o povo consome muita maçã e derivados, como vinagre e chá da fruta seca, a expectativa de vida é superior à média do Brasil.

Saiba mais Vinagre de Maçã – Uma receita de vida, de G. P. Boutard (Claridade, 2005). Cozinha Vegetariana – Maçã, de Caroline Bergerot (Cultrix, 2004).

Mylton Severiano é jornalista.


sábado

Benigno

domingo 3 segunda 4 terça 5 quarta 6 quinta 7 sexta 8 sábado 9 domingo 10 segunda 11 terça 12 quarta 13 quinta 14 sexta 15 sábado 16 domingo 17 segunda 18 terça 19 quarta 20 quinta 21 sexta 22 sábado 23 domingo 24 segunda 25 terça 26 quarta 27 quinta 28 sexta 29 sábado 30 domingo

Hermes

1 2

O vendedor de cavalos

Vidal Zacarias Demetriano Amaranto Deodato Orestes Justo Valentim Josafá Arcádio Serapião Eugênio Fidêncio Vitória Romão Isabel da Hungria Dásio Celso Cecília Clemente I * Flora Tello Belino Basílio Mansueto Saturnino

O

causo que eu quero contar agora veio de um sujeito que se chamava Adãozinho, que vendia e trocava cavalos. Um belo dia, ele oferece a um cumpadi lá dele um cavalo, sem estar com o dito-cujo à mostra. Comprador – Mas o cavalo é bão mêmo, Adãozinho? Adãozinho – Craro. Marcha picada. Das mió. Ocê amonta nele e quando ele marcha ocê nem sente que tá amuntado num cavalo. Ocê desliza quiném em tapete das Arábia. Comprador – E esse cavalo é novo de idade? Adãozinho – Que é isso, sô?! Ocê acha que eu ia te oferecê um cavalo véio? Um pangaré? Esse cavalinho tem só dois ano. Tá na frô da idade... Comprador – E quanto ocê qué por esse cavalo? Adãozinho – Tô vendendo ele baratinho. Qualquer 500 mir réis, tô entregando.

Zózimo

Comprador – Tá feito. Toma aqui os 500 mir réis e traz logo o animá pra eu vê. Adãozinho busca o bicho e dêxa que o cumpadi examine pra verificar a mercadoria. O tal cumpadi verifica tudo e por fim vai examinar a boca do cavalo, para ver pelos dentes a idade dele. Ao tentar abrir os beiços do cavalo, só aí percebe que o dito-cujo não tinha um pedaço dos tais beiços, ficando aqueles dentões à mostra – uma coisa feia de se ver. O cumpadi comprador, nessa verificação, estrila raivoso: Comprador – Ô Adãozinho! Ocê falou que o cavalo era bão. Mas tô vendo aqui que esse cavalo num tem um pedaço do beiço. Ocê me vendeu um cavalo aleijado! Adãozinho (matreiro) – Péra aí! Ocê qué um cavalo pra amontá ou um cavalo pra assobiá? Dêxa de sê insigente, sô!

Adaptado de Contando Causos, de Rolando Boldrin (Nova Alexandria, 2001).

ESCORPIAO (23/9 a 22/10)

* Clemente I Também conhecido como Clemente Romano, foi papa entre 88 e 97. Após eleito, restabeleceu o uso da crisma, seguindo o rito de são Pedro, e deu início à utilização da palavra “amém” nas cerimônias. Perseguido, foi condenado a trabalhos forçados nas minas de cobre de Galípoli. Depois de converter companheiros de prisão, foi atirado ao mar.

O indivíduo nascido sob o signo de Escorpião não é afeito à quantidade, prefere a qualidade. Vive cercado de mistérios, principalmente na vida amorosa. Dificilmente revela o amor que sente. Prefere o amor platônico, distante e suspirante. Sua postura de autocontrole deixa entender que nada o abala, transmitindo sempre confiança e poder. Busca suas amizades pela empatia mental e detesta bajulações.

Helvio romero/ae

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Silvia

DE QUEM SÃO ESTES OLHOS? Marieta Severo

Estação Colheita O que se colhe em NOVEMBRO Almeirão, chicória, maçã, melancia, pêssego, vagem.

Crescente: 6/11 às 1h03 Cheia: 13/11 às 3h17

Minguante: 19/11 às 18h31 Nova: 27/11 às 13h55

CARTA ENIGMÁTICA – A mais importante “noveleira” da nossa televisão. Morreu quando escrevia sua última novela (Janete Clair) BRASILIÔMETRO – 1b; 2c; 3d; 4a; 5c; 6 b; 7d; 8c. O QUE É O QUE É? – Cartomante. ENIGMA FIGURADO – Fernando Meirelles SE LIGA NA HISTÓRIA – 1c; 2d; 3b; 4a. O CALCULISTA DAS ARÁBIAS – O raciocínio dos viajantes está errado. Deve-se considerar que dos 27 dinares pagos, 25 ficaram para a hospedaria e 2 para o escravo. Os outros 3 foram devolvidos aos viajantes (25+2+3=30).

“A arte de vencer é a arte de ser ora audacioso, ora prudente.”

Napoleão Bonaparte


Tem francês no samba, no forró, no xaxado, no baião... Um francês ao violino, no comando de quatro brasileiros, tocando música nordestina. O projeto inusitado criou um dos mais interessantes discos do ano, Nicolas Krassik e Cordestinos. Radicado no Rio de Janeiro há sete anos, o parisiense tornou-se figura respeitada em rodas de samba e choro da cidade. Este ano decidiu dar um passo ousado: criar versões instrumentais para canções nordestinas, valendo-se apenas de instrumentos de corda e percussão. Para isso convocou o contrabaixista acústico Gu-

to Wirtti, o rabequeiro Marcos Moletta, o zabumbeiro Chris Mourão e o percussionista Carlos Cesar. O repertório passeia por clássicos de Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Humberto Teixeira, Hermeto Pascoal e outros. A exceção entre os temas nordestinos é o samba Opinião, do carioca Zé Kéti, incluído no repertório devido à paixão do francês pela música. Participam do disco, como convidados especiais, Yamandú Costa, Hamilton de Holanda, Carlos Malta e João Hermeto. (BH)

À Deriva Avesso a padrões estéticos fechados, o quarteto instrumental À Deriva dialoga livremente com diferentes estilos de jazz e música contemporânea. Amigo de Fé O sambista Cláudio Jorge, um dos expoentes do gênero, apresenta canções feitas em parceria com Elton Medeiros, Wilson das Neves, Martinho da Vila e outros bambas. Tributo a Bezerra da Silva Artistas famosos recriam clássicos do ícone da malandragem. Entre os participantes, Jards Macalé, Nação Zumbi e Pedro Luís e a Parede. 37

Pra encarar tanta confusão, só mesmo com bom humor Verdadeiro almanaque da política tupiniquim, O Livro dos Políticos traça um panorama bem-humorado da sociedade brasileira, a partir de ilustres e controversos protagonistas: os presidentes. De Luiz Inácio Lula da Silva a Deodoro da Fonseca – assim mesmo, de trás pra frente – os autores relembram passagens importantes que ajudam a compreender o cenário político atual. Da proclamação da República, passando pela ditadura militar e pelo impeachment de Collor, nenhuma maracutaia passou despercebida, e peripécia alguma deixou de ser re-

latada. Heródoto Barbeiro e Bruna Cantele uniram a pesquisa histórica à jornalística para recordar e descrever os paradoxos, embates e programas criados ao longo de todos esses anos de governo. Ao lado de propagandas antigas e imagens históricas, ganham espaço também charges e quadrinhos. Um rico material iconográfico que ajuda o leitor a encarar de maneira crítica, porém bem-humorada, todas as crises e escândalos que infelizmente fazem (CC) parte do cotidiano nacional. Ediouro, 304 p., R$ 50.

Cordelinho

Chico Salles

Com ilustrações do xilogravurista Ciro Fernades, o livro reúne duas histórias infantis contadas em formato de cordel: O Barato da Barata e O Tigre que Virou Doutor. Rovelle, 68 p., R$ 50. Ideologia da Cultura Brasileira Carlos Guilherme Mota

Primeira reedição da obra que, lançada nos anos 1970, em plena ditadura militar, causou polêmica e admiração dentro e fora do meio acadêmico. Editora 34, 424 p., R$ 52. O Brasil bem Temperado – Nordeste Ana Cecília de Mendonça e Fátima Helena Sciarretta

O livro põe num mesmo caldeirão culinária, literatura, história e antropologia. São receitas bem temperadas com folclore, músicas e tradições da região. Gaia/Boccato, 197 p., R$ 148. Novembro 2008


AGRICULTURA FAMILIAR A pesquisadora bate à porta de um sitiozinho perdido no interior. – Senhor, esta terra dá mandioca? E o capiau, coçando o cocuruto: – Dá não, senhora. – Dá batata? – Batata? Dá não, senhora. – E chuchu? Chuchu dá em todo canto... – Chuchu também não dá, não, senhora. – Mas como é que pode? Uma terra bonita dessas, e não adianta plantar... – Ah! Se plantar é diferente...

“Casal feliz é o que vive separado.” A legítima lua-de-mel As legítimas viagens de lua de núpcias só serão possíveis quando os nubentes embarcarem mesmo para a Lua. A lua-de-mel, nos dias que correm, é ainda uma legítima tapeação. Não só em relação à Lua, mas principalmente no que concerne ao mel, que é uma porcaria.

A alcova

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RODANDO NO SALÃO Começou a música e o bebum se animou. Levantou trocando as pernas, dirigiu-se até uma senhora de negro e arriscou: – A madame me dá o prazer desta dança? – Não, por três motivos. Primeiro: o senhor está bêbado. Segundo: não se dança o Hino Nacional. E terceiro: não sou madame coisa nenhuma! Eu sou o vigário desta paróquia!

Os casais modernos não dormem juntos. O marido tem uma cama e a esposa dorme noutra. Assim não há interesse também de dormirem na mesma peça. Já que a alcova nupcial é uma dependência destituída de qualquer finalidade, deve ser suprimida da planta dum lar modelo.

HERANÇA GENÉTICA Depois de examinar o caboclo, o médico elogia: – O senhor está muito bem para os 75 anos, seu Antonio. Quantos anos tinha seu pai quando morreu? – E quem disse que o véio bateu as bota? Tá com 92 anos e ainda toca na bandinha... – Puxa, que alegria! E seu avô, quando faleceu, quantos anos tinha? – E quem disse que o véio abotoou o paletó? Tá beirando os 108 e ainda anda de bicicleta... – Que dádiva, hein? E o bisavô? Com quantos anos feneceu? – E quem disse que o véio desocupou o beco? Tá com 123. E tá noivo! – Não é possível! Assim já é demais! E por que um homem de 123 anos vai querer casar?! – Querer mesmo, ele não queria. Mas deu de engravidar a moça...

Nossa homenagem a Aparício Torelly, o Barão de Itararé.

Ponto Final

“Os talentos atingem metas que ninguém mais pode atingir; os gênios atingem metas que ninguém jamais consegue ver.”

Paulo Car uso

Artur Schopenhauer




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