Arte povera

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in The Berardo Collection

na Colecção Berardo

Povera

ARTE

ARTE Povera

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Índice

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Index

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Nota Note José Berardo

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Energy=Material+Concept The ungraspable formula of Arte Povera Energia=Material+Conceito A intangível fórmula da Arte Povera Francesco Manacorda

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Obras Works

Arte Povera na Colecção Berardo


Artistas

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Artists

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Alighiero Boetti

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Alighiero Boetti

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Alighiero Boetti

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Enrico Castellani

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Gilberto Zorio

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Giovanni Anselmo

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Giovanni Anselmo

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Giovanni Anselmo

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Giulio Paolini

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Giulio Paolini

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Giuseppe Penone

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Jannis Kounellis

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Jannis Kounellis

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Mario Merz

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Michelangelo Pistoletto

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Piero Manzoni

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Piero Manzoni

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Piero Manzoni

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Pino Pascali

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Lucio Fontana extra exposição/ not in exhibition

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Nota José Berardo

Com o intuito de ajudar a cumprir os propósitos pedagógicos de formação, fidelização e democratização cultural que são parte integrante das intenções programáticas do Centro das Artes da Casa das Mudas, a Colecção Berardo tem a maior satisfação em apresentar, novamente, na Calheta, um importante núcleo de obras de arte. Um ano após a mostra inaugural, “Grande Escala”, voltamos a apresentar uma parte importante da Colecção Berardo, a “Arte Povera”, movimento artístico italiano que se desenvolveu em meados da década de 60. Leigo na matéria e sem pretensão de competir com historiadores e críticos de arte parece-me importante fazer aqui um breve parêntesis no contexto histórico. A segunda metade do século XX foi um período de profundas convulsões e para que se perceba a Arte Povera é, no meu entender, necessário, conhecer a época da sua génese. A ressaca da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria estilhaçaram por completo toda a pretensão de humanização do próprio homem. O mundo estava agitado e alternava entre o máximo desequilíbrio e o mínimo equilíbrio. Investia-se em armamento, em investigação militar e as grandes potências, belicamente munidas, ficariam capazes de destruir o Mundo inteiro. Assistindo às radicais modificações: politicas, económicas, sociais e artísticas, o homem do século XX produzia reflexões profundas sobre conceitos de liberdade e independência. A viver na África do Sul, sentia-me revoltado com o “primitivismo” do Apartheid e solidarizava-me, espiritualmente, com o primeiro grande espasmo, o Maio de 68. Um movimento originado e sustentado pela revolta dos jovens contra a sociedade estabelecida. A este, outros se seguiram. Os acontecimentos em Paris faziam parte de um movimento ainda maior de contestação que ocorria Arte Povera na Colecção Berardo


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em vários países do Ocidente, no Brasil, nos Estados Unidos e um pouco por todo o Mundo. Estávamos no Verão 1969 e numa fazenda em Bethel, Nova Iorque, teve lugar o Festival de Música e Artes de Woodstock. Um mega evento pacifista contra a Guerra do Vietname. Os anos setenta eram agora tempos de sonho e utopia… Estava traçada uma linha divisória na cultura e na história de arte do século XX. Apesar de não se poder falar numa ruptura total com as vanguardas históricas do período entre as duas guerras, os artistas radicalizaram mais as suas intervenções, quanto às técnicas, aos temas e aos materiais utilizados. E é neste clima dos anos 60 que entre Turim e Milão nasce a Arte Povera. Um movimento subversivo como forma de afirmação perante o consumo de massas, a industrialização e o perfeccionismo tradicional da arte moderna. À semelhança de outros movimentos absorveu, também, temas de cariz político como oposição mundial às efemérides vividas. Influenciada pela Arte Minimal e Conceptual, a Arte Povera foi um movimento da vanguarda. Os artistas utilizavam materiais inúteis e precários, como metal enferrujado, areia, detritos, trapos, pedaços de árvores e pedras. O propósito era empobrecer as obras despojando a arte da “clássica” redoma mística e erudita. Enquanto coleccionador e fruidor de arte sinto-me privilegiado por, aqui e agora, a Colecção Berardo ter a possibilidade apresentar uma exposição que reúne nove, dos doze consagrados apóstolos da Arte Povera. Resta-me desejar que esta exposição tenha um grande sucesso e manifestar os meus sinceros agradecimentos a todos os que contribuíram para a concretização deste projecto.

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Note José Berardo

With the intent of furthering the pedagogical aims of cultural formation, adherence and democratisation that make up such an integral part of the programme of the Casa das Mudas Arts Centre, the Berardo Collection is glad to bring once more to Calheta an important set of works of art. One year after the “Large Scale” opening show, we return with Arte Povera, an Italian artistic movement that developed in the mid1960s. Though but a layman on the subject, with no desire of competing with art historians and critics, I find it appropriate to present here a brief summation of that movement’s historic context. The second half of the 20th century was a deeply conflicted time and I believe that to understand Arte Povera one must know the epoch that gave it birth. The aftermath of World War II and the beginning of the Cold War had completely shattered any hopes for the humanisation of Man. The world was restless, oscillating between maximal imbalance and minimal equilibrium. There was much investment on arms and military research, and the great powers were ready to destroy the whole World. Having witnessed radical changes in politics, economy, society and art, 20th-century Man produced profound statements about the concepts of freedom and independence. At the time I was living in South Africa, angry at the ‘primitivism’ of Apartheid and feeling a spiritual solidarity with that first great spasm that took place in May 1968, a movement that originated and fed on the revolt of young people against established society. Other actions would follow it. The Paris events were part of an even broader protest movement that spread across several Western countries, the United States, Brazil and many other parts of the world. In the summer of 1969, a farm in Bethel, New York, hosted Arte Povera na Colecção Berardo


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the Woodstock Music and Arts Festival. The 1970s were times for utopian dreaming… A dividing line had by now been drawn in 20th-century culture and art history. Though there was no clean break with the historic avantgarde expressions from the time between the wars, artists were now carrying further their interventions, in terms of techniques, subjects and materials. It was from this 1960s climate that Arte Povera emerged, between Turin and Milan. Arte Povera was a subversive movement, a stand taken before mass consumption, industrialisation and the traditional perfectionism of modern art. Like other movements, it also absorbed political issues, in opposition to the world’s state. Influenced by Minimal and Conceptual Art, Arte Povera was an avant-garde movement. Its creators used useless and precarious materials, like rusted iron, sand, debris, rags, bits of wood and stones. Their aim was to impoverish their works, freeing art from the ‘classic’ limitations of mysticism and erudition. As an art collector and lover, I feel privileged by the fact that, here and now, the Berardo Collection is presenting an exhibition that contains works by nine of the twelve apostles of Arte Povera. I wish all success to the present exhibition, and I am sincerely grateful to all who have worked towards the fulfilment of this project.

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Energia=Material+Conceito A intangível fórmula da Arte Povera Francesco Manacorda

A definição do termo Arte Povera tem sido fonte de muitos problemas, tanto para os críticos como para os historiadores de arte. Para começar, os artistas que se agruparam sob esta designação apenas mantiveram uma identidade coesa enquanto grupo durante um período limitado de tempo, especialmente depois de, em 1972, o termo ter sido rejeitado pelo seu criador, o crítico Germano Celant, levando a que os artistas do grupo passassem a concentrar-se mais nas suas respectivas expressões individuais. Os interesses linguísticos e formais até então partilhados seguiram orientações diferentes; contudo, um certo tema ou estilo colectivo ainda é reconhecível nas diferentes carreiras das principais figuras dessa corrente. Graças à notável visão de José Berardo, a presente exposição de Arte Povera da Colecção Berardo apresenta obras importantes dos primeiros anos de actividade do grupo, acompanhadas de algumas obras tardias, onde figuras individuais aprofundam os interesses que haviam unido alguns artistas radicais italianos durante a década de 60. De um ponto de vista crítico, Arte Povera aparenta esquivar-se a explicações simples e directas; a componente evocativa da designação parece, com efeito, desservir o entendimento das suas características mais importantes. Povera significa “pobre” em italiano, mas enquanto a pobreza dos materiais usados na Arte Povera pode oferecer pretextos de leitura tentadores, essa característica não é exclusiva do movimento italiano. Movimentos como o minimalismo (Donald Judd, por exemplo) e o antiformalismo (Richard Morris), para não falar em personalidades individuais como Joseph Beuys e Richard Serra, tiveram em comum o facto de basearem a sua prática artística na experimentação com materiais em bruto, não tratados, ou industriais e baratos (pobres), que não pertenciam à tradição das artes mais elevadas. O princípio irredutível que define a Arte Povera deverá, assim, consistir noutra coisa. O movimento faz parte das alterações internacionais que ocorreram no seio das vanguardas europeias e americanas durante os anos 60, e que culminaram na lendária exposição When Attitudes Become Form, organizada por Harald Szeeman (Kunsthalle Bern, 22 de Março a 27 de Abril, 1969). O conceito básico por trás da exposição era o facto de um grupo de artistas propor estratégias Arte Povera na Colecção Berardo


e processos artísticos como a principal preocupação, a raison d’être das suas obras. Parafraseando o título da exposição, uma determinada atitude em relação à arte ou em relação à vida (talvez especialmente em relação ao intervalo entre ambas) podia ser transmitida por meio da obra, materializando abordagens e preocupações conceptuais na forma de um objecto físico. A Arte Povera pode certamente ser abordada a partir desta perspectiva, pois representa um conjunto de fórmulas possíveis que combinam estas diferentes atitudes. Para um entendimento correcto da Arte Povera, será provavelmente útil tomarmos como ponto de partida o interesse comum que muitos destes trabalhos parecem incarnar com êxito: a energia. Tendo em conta essa combinação de materiais em bruto e precisão conceptual, a fórmula peculiar que surge como denominador comum do grupo de artistas que gravitam em redor do termo Arte Povera poderá ser definida como “materiais combinados sob uma visão conceptual”, o que resulta na manifestação de um certo tipo de energia, capturada em plena transformação. Essa energia pode assumir formas diversas, ora derivando de leis físicas e naturais, ora personificada no poder conceptual da imaginação e do entendimento racional, cujos objectivos incluem a capacidade de produzir afirmações poéticas.

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Giovanni Anselmo Torsione, 1968 180x200cm

Giovanni Anselmo é provavelmente um dos artistas em cujas obras a transição é mais evidente. A sua escultura Torsione (1968) é literalmente consolidada pela parede do museu. A barra metálica parece prestes a saltar numa súbita convulsão, libertando a energia acumulada na estrutura torcida e retorcida. Anselmo interessa-se pela precariedade e pelo poder de forças físicas, como a gravidade, a electricidade ou a temperatura. A sua abordagem conceptual exige a subversão do nosso entendimento adquirido do mundo que nos rodeia. Recorrendo a metal e pedra, procura criar uma manifestação tridimensional dos materiais mais elementares e das forças que governam a interacção destes em relação ao nosso corpo. Isso consegue-se criando uma situação na qual a energia se encontra na sua condição mais instável, nunca se cristalizando num equilíbrio estático. A redução do objecto físico à sua expressão mínima é sem dúvida um interesse partilhado por muitos destes artistas. Na obra de Giuseppe Penone, este essencialismo é acompanhado por uma investigação dos processos naturais e da sua relação com a corporalidade do artista. Na peça Cuneo (1969), o artista aprisiona uma cunha de cera numa rede de fios eléctricos tecida à mão. A fricção entre os dois materiais que constituem a escultura evoca

Giuseppe Penone Cuneo, 1969 29x31x148cm

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Gilberto Zorio Sem Título, 1967 42x150x147cm

Jannis Kounellis Sem Título, 1981/82 100,2x69,8x16,5cm

o conflito entre um elemento muito natural - a cera - e os fios tecnologicamente avançados, capazes de conter e transportar energia eléctrica. Penone anima a natureza e os seus elementos com um desejo vital que os torna quase humanos. As suas acções mostram a imparável força da natureza, lado a lado com a fragilidade humana. A procura de acções e reacções alquímicas entre materiais industriais e substâncias químicas (p. ex. cloreto de cobalto ou ácido sulfúrico e ácido hidroclorídrico) é o principal interesse de Gilberto Zorio. Muitas vezes, os seus trabalhos contêm materiais que vão sofrendo alterações, como se a peça tivesse vida própria. Em Sem Título o artista combina de forma invulgar e sugestiva dois dos materiais de construção mais divulgados. Em cima de uma placa de fibrocimento está deitada uma coluna de cimento, que parece derreter-se sob o efeito do contacto com a superfície amarela e ondulada. a gramática da construcão arquitectónica convencional é completamente subvertida, dando ao espectador a impressão de estar num estaleiro de construção de ficção científica, ainda por decifrar. Na peça de Zorio, a energia é transformada numa forma plástica através de um processo de corrupção e transformação elemental de materiais vitais em jogo uns com os outros. Inventoriar os elementos que podem ser usados para produzir uma obra e infundir neles uma força violenta constitui uma das principais pulsões da prática artística de Jannis Kounellis. Fogo, carvão, algodão em rama, cactos, animais vivos, café, pedras e sacas de serapilheira são alguns dos componentes que o artista usa, no seu estado mais bruto. Constituem uma espécie de vocabulário artístico primordial, à beira de um “grau zero” da escultura. Um dos elementos recorrentes no seu trabalho é uma superfície de chumbo supensa como uma tela, sugerindo a ideia da tabula rasa, bem como da impossibilidade de Kounellis usar a tela como suporte na arte. Na peça Sem Título (1981-82), acumula nalgumas prateleiras, montadas em cima de uma dessas estruturas, uma série de elementos parcialmente cobertos de tinta preta. Este gesto sintetiza a incongruência entre o suporte onde a tinta é aplicada em camadas e a noção de um arquivo de materiais possíveis. Com efeito, o artista acumulou nesta obra velhos fragmentos de madeira de portas abandonadas e peças de mobiliário. Os elementos, que contêm ainda o fantasma da sua vida anterior, são apresentados como tendo sido brutalmente extraídos do mundo quotidiano num gesto de violenta abstracção. No extremo mais conceptual do espectro, alguns dos artistas que gravitam em redor do termo Arte Povera empregam técnicas

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elaboradas, combinando actividades lúdicas, linguística e manipulações semânticas com referências à história da arte. Alighiero Boetti é sem dúvida um dos principais praticantes desta atitude. A sua abordagem matemática do mundo permitiu-lhe explorar o seu interesse pela transfiguração poética de um modo lúdico e arguto. A sua peça Lampada Annuale (Lâmpada Anual) é uma lâmpada programada para se acender apenas uma vez por ano. A obra joga com os limites que separam escultura de objecto funcional: o que parece um belo objecto, evocativo do design italiano dos anos 60, é transformado numa delicada afirmação poética que leva a noção de função a desintegrar-se. Mais tarde, o seu trabalho veio a concentrar-se na noção da escrita, enquanto associada a jogos de palavras e produção serial. Boetti combina a exactidão com uma paixão pela natureza ilimitável do significado. O facto de este escapar constantemente a uma definição linguística fechada representa, para o artista, o paradoxo de um sistema que se esquiva a uma construção perfeita de si próprio. O uso de trocadilhos por Boetti para transmitir sentidos ocultos é também um dos principais elementos para a nossa compreensão de Baco da setola, de Pino Pascali. Esta peça compõe-se de pincéis enormes, com a forma de vermes gigantescos. O título joga com o nome italiano dos bichos-da-seda (baco da seta) e o termo italiano que designa a cerda usada nos pincéis (setola). A proximidade linguística de seta e setola permite ao artista aventurarse nesta condensação escultural. A forma lúdica como Pascali usa materiais invulgares ganha tonalidades mais políticas na sua famosa série de armas, nascidas da combinação de refugo de material industrial, como peças de motores de automóvel, e autênticos componentes de artilharia. O artista parece apostado em desafiar tanto a tecnologia como o senso comum, abandonando-se ao prazer de formas obtidas com materiais simples, cuja rica história acrescenta uma camada à posição conceptual da obra. Paolini é um dos membros do grupo cuja prática artística é mais sofisticada em termos filosóficos e formais. Afirmou certa vez que a sua obra “trata da própria linguagem da criação”.1 Muitos dos seus primeiros trabalhos dedicam-se a explorar a tela ou a esculturaobjecto, reduzidos à sua forma mais elementar. Telas pintadas de branco e reproduções de esculturas clássicas, igualmente de cor branca, que representam para ele o conceito abstracto de pintura e escultura, são em seguida manipulados pelo artista como objectos não-icónicos, paradigmáticos da linguagem da história da arte. A obra A J.L.B., muito provavelmente dedicada ao artista James Lee Byars, consiste numa série de elementos empilhados contra a parede, de modo a evocar a forma paradigmática de uma pirâmide ou de uma escadaria branca, plana e sem fim. A representação

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Alighiero Boetti Lampada Annuale, 1966-67 79x40x40cm

Pino Pascali Baco da selota verde acqua, 1968 110x35cm

Giulio Paolini A J.L.B., 1965 200x200cm Arte Povera in The Berardo Collection


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Michelangelo Pistoletto Due Ragazzi alla Fonte, 1962-75 230x125cm

Mario Merz Près de la Table, 1980

levada ao mínimo necessário para que seja reconhecível uma estrutura ou conceito, bem como a ausência de cor, constituem as estratégias habitualmente empregadas pelo mais elegante dos artistas deste grupo. O classicismo é uma forma de essencialismo para Paolini, cuja investigação está dirigida para alcançar o grau mais experimental da abstracção mental. Michelangelo Pistoletto foi sempre considerado o animador teórico do grupo, especialmente nos primeiros anos deste. A sua abordagem conceptual atinge um alto grau de complexidade. O artista recorre à abstracção para, paradoxalmente, gerar produções muito concretas, nas quais todo o sistema da arte é posto em questão. Due Ragazzi alla Fonte, extraído da série das pinturasespelhos”, é um notável exemplo de tal. Obras como esta podem ser encaradas como uma tentativa de apontar uma dicotomia que ocorre em qualquer tipo de arte. Exprimem a separação entre o espaço da representação e o espaço da mera presença contingente, uma esfera de pura reflexão que reproduz o mundo no seu fluxo imparável. Neste sentido, a prática de Pistoletto implica sempre uma visão panorâmica da estrutura de relações físicas e intelectuais que operam naquilo que a sociedade ocidental definiu como o domínio da arte. Germano Celant afirma que Pistoletto está interessado em abordar “o problema da liberdade da linguagem que não está presa nem ao sistema nem à coerência visual, mas sim a uma coerência interna”.2 O problema inverso será talvez uma das preocupações centrais de Mario Merz. A sua obra parece ser concebida como uma sucessão de composições instáveis carregadas de questões metafísicas prementes. O néon é violentamente inserido pelo artista em muitos dos seus trabalhos, agindo aí como uma representação da interacção das forças energéticas da natureza. O recurso à série de Fibonacci, a sequência matemática que torna evidente o processo da proliferação natural por meio de uma regra precisa e abstracta (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, etc.), permite a Merz colocar em primeiro plano o paradoxo que existe entre o saber exacto e regras universais mais ocultas e orgânicas. Esta investigação levou-o a criar uma versão diferente de outra estrutura primária paradigmática: o igloo. Esta construção é usada por Merz como uma superfície para a visualização de pensamentos, um ponto de partida para experiências escultóricas. A relação que os artistas do grupo Arte Povera mantêm com o material e a superfície enquanto tabula rasa deve-se certamente à influência de mestres italianos da geração anterior como Lucio Fontana e Enrico Castellani, enquanto a sua precisão conceptual e irreverência teve um precursor em Piero Manzoni. Destes artistas,

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herdaram a vontade de quebrar com a tradição formalista italiana, sem a abandonarem por completo. A inclusão nesta exposição de obras de Castellani, e especialmente de Manzoni, ajuda a facilitar o entendimento da interacção de materiais, conceitos e superfície que constitui um aspecto central de muitas peças de Arte Povera. Uma vez identificado um denominador comum como este na atitude do grupo, importa compreendermos que a forma como se combinam formas peculiares de energia ou conceitos varia conforme variam, de artista para artista, as preocupações e atitudes experimentais. Se o grupo se une em redor de uma fórmula que articula preocupações gerais com energia através da interacção de conceito e matéria,3 diversas aplicações serão dadas a essa receita, devido a obsessões pessoais e necessidades metafísicas por vezes irreconciliáveis.

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Lucio Fontana Concetto Spaziale, 1960 69x69cm

(Notas) 1 Carla Lonzi, Autoritratto, De Donato, Bari, 1969, p. 99. 2 Germano Celant, “Arte Povera – Appunti per una gueriglia”, Flash Art, No. 5, Novembro/Dezembro 1967. 3 Os primeiros anos da Arte Povera são a sua idade de ouro, durante a qual os seus praticantes partilhavam os mesmos interesses linguísticos. Richard Flood e Frances Morris lembram que esses artistas “partilhavam, durante o Outono de 1967, um entendimento cristalino da união entre conceito e material”. Richard Flood e Frances Morris, From Zero to Infinity, Arte Povera 1962-72, Walker Art Center, Minneapolis & Tate Modern, London, 2001 (itálicos meus).

Piero Manzoni Achrome, 1962 24x18cm

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Energy=Material+Concept

The ungraspable formula of Arte Povera Francesco Manacorda

The definition of the label Arte Povera has created many problems for critics and art historians alike. First of all the group of artists gathered under that name had a cohesive group identity only for a limited period; in particular after 1972, the term was rejected by its creator, the critic Germano Celant, with the result of the artists of the group dedicating themselves to their personal practice individually. The shared linguistic and formal concerns took on different routes but a certain recognisable collective theme or style is still perceivable in the different careers of the protagonists. Thanks to José Berardo’s remarkable vision, the exhibition of Arte Povera from Berardo collection brings together key works from the early years of the group activity together with some later works in which individual personalities elaborate further the concerns that brought together a few radical artists in the Italian scene during the 60s. From a critical point of view, Arte Povera seems to evade plain, straightforward explanations and the evocative component of the label seems in fact to do a disservice to the understanding of its most important characteristics. Povera means poor in Italian but while the poverty of the material used in Arte Povera might be a tempting way of understanding it, such feature is not a privilege of the Italian movement. Minimal art (Donald Judd for example) and Anti-form (Richard Morris) as well as individual personalities such as Joseph Beuys and Richard Serra all have based their artistic practice around the experimentation with unprocessed raw materials or industrial, cheap (poor) materials not belonging to the tradition of high art. It is thus something else that constitutes the irreducible defining principle of Arte Povera. The movement is positioned within the international changes in the European and American avant-garde of the 60s that coagulated around the legendary exhibition When Attitudes Become Form curated by Harald Szeeman (Kunsthalle Bern, 22 March – 27 April 1969). The central thesis of the show was that artistic processes and strategies were put forward by a group of artists as the key concern of the artwork, its raison d’être. Paraphrasing the exhibition Arte Povera na Colecção Berardo


title, a certain attitude towards art or towards life (perhaps mainly towards the gap between the two) could be conveyed in the work, materialising conceptual approaches and concerns into a physical object. Arte Povera can be certainly approached from this perspective and represents a collection of possible formulae combining these attitudes together. To properly understand Arte Povera, it is perhaps useful to start from the general concern that seems to be successfully encapsulated inside many of the works: energy. Through the combination of unprocessed materials and conceptual precision, the peculiar formula that takes shape as a common denominator of the group of artists gravitating around the label of Arte Povera could be defined as materials combined under a conceptual vision, resulting in the manifestation of an energy of some kind captured in its state of flux. Energy can take different forms, deriving from physical and natural laws or being impersonated in the conceptual power of imagination and rational understanding, whose goals include the capacity to produce poetic statements.

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Giovanni Anselmo Torsione, 1968 180x200cm

Giovanni Anselmo is arguably one of the artists whose works make the transition most evident. In his work Torsione (1968), the sculpture is kept together literally by the museum’s wall. The metal bar seems to be ready to spring out in a sudden convulsion liberating the energy captured in the twisted, contorted fabric. Anselmo is interested in precariousness and the power of physical forces such as gravity, electricity or temperature. His conceptual approach requires the subversion of our inherited understanding of the world around us. Through the use of metal and stone he aims to create a three-dimensional manifestation of the most elemental materials and the forces that regulate their interaction in relation to our body. This is obtained by generating a situation in which energy is in its most unstable condition, never crystallised into a static balance. The reduction of the physical object to its minimum is definitely a concern that many of these artists share. In the work of Giuseppe Penone this essentialism is paired with a research into natural processes and its relation to the artist’s corporality. In the work Cuneo (wedge) (1969) the artist traps a wedge made of wax into a handmade net of electrical wires. The friction between the two materials of the sculpture conjures up the conflict between a very

Giuseppe Penone Cuneo, 1969 29x31x148cm

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Gilberto Zorio Sem Título, 1967 42x150x147cm

Jannis Kounellis Sem Título, 1981/82 100,2x69,8x16,5cm

natural element – wax – and the technologically advanced wire able to contain and transport electric power. Penone animates nature and its essential elements with a vital desire that makes them almost human. His actions point out the unstoppable force of nature in relation to human fragility. The research for alchemical actions and reactions between industrial material and chemical substances (e.g. cobalt chloride or sulphuric acid and hydrochloric acid) is the main interest of Gilberto Zorio. His works very often contain materials that are subject to change as if the work was meant to have a life of his own. In Untitled (1967) the artist combines two of the most diffused construction materials in an unusual and evocative way. On top of an fibre-cement roof board lies a cement column that seems to be melting under the effect of the contact with its yellow corrugated base. The grammar of conventional architectural construction is completely upsidedown, giving the viewer the impression of being in a science-fictional building site yet to be deciphered. In Zorio’s work energy is turned into a plastic form through a process of corruption and elemental transformation of vital materials at play with each other. The inventory of elements that could be used to produce a work and the infusion of a violent force in them is one of the main drives of Jannis Kounellis’ artistic practice. Fire, coal, cotton wool, cacti, live animals, coffee, stones and burlap sacks are some of the components that the artist uses in their most unrefined state. They constitute a sort of primordial artistic vocabulary, verging on a ‘degree zero’ of sculpture. One of the recurrent elements in his work is a lead surface hung as a canvas, evoking the idea of the tabula rasa and of the impossibility for Kounellis to use the canvas as the support for art. In the work Untitled (1981-82) he accumulates in few shelves mounted on top of such a structure some elements partially covered with black paint. This gesture resumes the incongruence between the support onto which paint is layered and the notion of the archive of possible materials. In this work, in fact, the artist has gathered old fragments of wood from abandoned doors and pieces of furniture. The elements carry with them the ghost of their previous life but are presented as brutally extracted from the everyday world in a gesture of violent abstraction. On the more conceptual side of the spectrum, some of the artists gravitating around the label of Arte Povera employ refined techniques based on game and play, linguistics and semantic

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manipulations alongside references to art history. Alighiero Boetti is undoubtedly one of the most important protagonists of this attitude. His mathematical approach to the world allowed him to explore his interest for poetic transfiguration in a playful and cunning fashion. His Lampada Annuale (Annual Lamp) is a lamp programmed to switch on once a year only. The work plays with the boundaries between sculpture and functional object: what looks like a beautiful object reminiscent of Italian design of the 60s is turned into a delicate poetic statement that makes the notion of function crumble into pieces. His later work elaborates on the notion of writing associated with word games and serial production. Boetti combines exactitude with a passion for the uncontainable nature of meaning. Its running away from a closed linguistic definition represents for the artist the paradox of a system that evades its perfect construction. Boetti’s use of pun conveying hidden meaning is also one of the key elements to understand Baco da setola by Pino Pascali. The work consists of hugely magnified brushes shaped as giant worms. The title plays with the Italian name for silkworms (baco da seta) and the word for bristle (setola). The linguistic proximity of seta and setola allows the artist to play out a sculptural condensation. Pascali’s playful way of using unusual material takes more political shape in his famous series of weapons made through the assemblage of industrial discarded material such as car engine components and real pieces of war artillery. The artist seems to attempt to defy technology and common sense by abandoning himself to the pleasure of forms obtained with simple materials whose charged history adds a layer to the work’s conceptual position. Paolini is the artists in the group whose practice is most sophisticated philosophically and formally. He has declared that his work is ‘about the language of creation itself’.1 Many of Paolini’s early works aim to explore the canvas or the object sculpture reduced to its most elementary form. White canvases and white reproductions of classical sculptures represent for him the abstract concept of painting and sculpture, which he then manipulates as non-iconic objects, paradigmatic of the language of art history. The work A J.L.B., with high probability dedicated to the artist James Lee Byars, is composed of a series of flat white elements piled up onto the wall so as to evoke the paradigmatic form of a pyramid or of an endless white staircase. Representation pushed towards the bare minimum necessary to recognize a structure or a concept and

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Alighiero Boetti Lampada Annuale, 1966-67 79x40x40cm

Pino Pascali Baco da selota verde acqua, 1968 110x35cm

Giulio Paolini A J.L.B., 1965 200x200cm Arte Povera in The Berardo Collection


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Michelangelo Pistoletto Due Ragazzi alla Fonte, 1962-75 230x125cm

Mario Merz Pres de la Table, 1980

the absence of colour are common strategies employed by the most elegant artist of the group. Classicism is a form of essentialism for Paolini whose interest is to investigate the most experimental degree of mental abstraction. Michelangelo Pistoletto has always been considered the theoretical animator of the group, especially in the early years. His conceptual approach attains a high degree of complexity. Abstraction is used by the artist in order to paradoxically generate very concrete statements in which the entire system of art is put into question. Due Ragazzi alla Fonte (Two Boys at the Fountain) is a remarkable example from the series of the ‘mirror paintings’. Such works can be conceived as an attempt to point out a dichotomy at play in any kind of art. They articulate the separation between the space of representation and the space of mere contingent presence, a sphere of pure reflection that duplicates the world in its unstoppable flux. In this sense, Pistoletto’s practice always implies an overview on the structure of physical and intellectual relations operating in what Western society has isolated as the domain of art. Germano Celant defines the Pistoletto’s preoccupations as addressing ‘ the problem of the freedom of language not tied to the system or to visual coherence, but to an inner coherence’.2 The inverse problem is perhaps one of the central preoccupations of Mario Merz. His work seems to be conceived as unstable compositions charged with urgent metaphysical questions. The neon is used by the artist as an element violently inserted into many of his works, and acting as a representation of the interaction of the energetic forces in nature. The use of the Fibonacci series, the mathematical sequence that makes evident the process of natural proliferation into an abstract precise rule (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55 etc.), allows Merz to put to the fore the paradox between exact knowledge and more occult and organic universal rules. This research extends into the different version of another primary paradigmatic structure: the igloo. This construction is used by Merz as a surface for the visualisation of thoughts, as a starting point for sculptural experimentations. The relationship that the artists from the Arte Povera group entertain with material and with the surface as a tabula rasa is certainly indebted to Italian masters from the previous generation such as Lucio Fontana and Enrico Castellani while their conceptual precision

Arte Povera na Colecção Berardo


and irreverence has a precursor in Piero Manzoni. From these artists they inherited the will to break with the tradition of Italian formalism without abandoning it completely. The inclusion in the exhibition of works by Castellani and, more importantly, Manzoni aims to facilitate the understanding of the interaction between materials, concepts and surface that constitutes a key aspect of many Arte Povera works. Once such a common denominator in the group attitude is identified, it is important to differentiate how peculiar kinds of energy or concepts are combined due to different sets of concerns and experimental attitudes in the individual artists. If the group coalesces around a formula that articulates general preoccupations around energy through the interaction of concept and matter3, such a recipe takes diverse applications infused with sometimes irreconcilable personal obsessions and metaphysical needs.

(Footnotes) Carla Lonzi, Autoritratto, De Donato, Bari, 1969, p. 99 Germano Celant, ‘Arte Povera – Appunti per una guerriglia’, in Flash Art, Nr.5, November/December 1967 3 The early years are the golden age in which they all share the same linguistic concerns, defining the artists common ground Richard Flood and Frances Morris recall that the artists ‘in the autumn of 1967, all shared a crystalline understanding of the marriage of concept and material’ Flood and Morris, ‘Introduction: Zero to Infinity’ in Richard Flood, Frances Morris (eds.), From Zero to Infinity, Arte Povera 1962-72, Walker Art Center, Minneapolis and Tate Modern, London, 2001, p. 9 1

19

Lucio Fontana Concetto Spaziale, 1960 69x69cm

2

Piero Manzoni Achrome, 1962 24x18cm

Arte Povera in The Berardo Collection


20

Alighiero Boetti Positivo Negativo, 1988-89 100x100cm

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22

Alighiero Boetti Regola e Regolarsi, 1979 100x210cm

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24

Alighiero Boetti Lampada Annuale, 1966-67 79x40x40cm

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26

Enrico Castellani Superficie Bianca, 1967 80x80cm

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28

Gilberto Zorio Sem Título, 1967 42x150x147cm

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30

Giovanni Anselmo Torsione, 1968 180x200cm

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32

Giovanni Anselmo Sem Título, 1966 alt. 163x10cm

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34

Giovanni Anselmo Un Giro Più del Ferro, Detalhe, Detail 1969 128x128cm

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36

Giulio Paolini A J.L.B., 1965 200x200cm

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38

Giulio Paolini Tra sé e me, 1985 198,2x301cm

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40

Giuseppe Penone Cuneo, 1969 29x31x148cm

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42

Jannis Kounellis Sem Título, 1981/82 100,2x69,8x16,5cm

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44

Jannis Kounellis Sem Título, 1971 8x108x4cm

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46

Mario Merz Près de la Table, 1980 Dimensions variable

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48

Michelangelo Pistoletto Due Ragazzi alla Fonte, 1962-75 230x125cm

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50

Piero Manzoni Achrome, 1958 80x60cm

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52

Piero Manzoni Achrome, 1962 24x18cm

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54

Piero Manzoni Otto tavole d`accertamento, 1958

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56

Pino Pascali Baco da selota verde acqua, 1968 110x35cm

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58

Lucio Fontana Concetto Spaziale, 1960 69x69cm

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