Primeira Impressão / 39th edition

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nยบ 39 | julho de 2013 |

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Memรณrias



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C A R TA AO LEITOR

O que fica

Clara Állyegra Petter

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esmo que o passado não seja o tempo do jornalismo, se concordamos que ele ajuda a construir o presente, percebemos que, necessariamente, ele também auxilia na construção da memória social. Pesquisando antigas produções jornalísticas, podemos descobrir quais acontecimentos foram destacados em cada época, em cada lugar e como. Quais vozes foram ouvidas. Quais imagens que marcaram. A própria imprensa faz questão de atualizar datas do passado. O 11 de setembro, a morte de celebridades, as manifestações históricas, são vários os acontecimentos permanentemente revividos. Mas a relação da memória com o jornalismo pode ser vista ainda por outro ângulo. O repórter depende da memória de suas fontes e da sua própria para construir suas reportagens. A questão é que ela é sempre interpretativa. Cada sujeito lembra de um fato de uma forma diferente e também pode recordá-lo de diferentes maneiras a cada vez que aquele acontecimento retorna. Essa talvez seja a maior angústia dos jornalistas: é impossível alcançar os acontecimentos. Sempre serão versões a serem divulgadas, e serão sempre elas também interpretadas. Nas próximas páginas, os repórteres e fotógrafos da Primeira Impressão tentam cercar a memória por vários lados. Pela visão científica, pelos relatos e gestos de pessoas, por percepções próprias. Vamos ver o que permanecerá na sua.

Thaís Furtado Editora de textos Flávio Dutra Editor de fotos

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ÍNDICE

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Marília Dias

Arranjos do cérebro

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Trabalho

Identidade

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62

Memória sensorial

Música

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Livros

Dias difíceis

20

70

Parque abandonado

Passado preservado

24

74

Clubes extintos

Recordações visuais

28

78

Nostalgia

65 anos de história

32

82

Tradição

Entrevista

36

86

Teste sua memória

Foot-ball

40

90

Museu

Inesquecível

44

94

Dedicação

Inventando história

48

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Aventura

Teste sua memória

52

102 Teutônia

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Clara Allyegra

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ARRANJOS DO CÉREBRO

Esquecer para lembrar MEMÓRIA NÃO É UM REGISTRO EXATO DE UM ACONTECIMENTO, MAS SIM A CAPACIDADE DAS CÉLULAS DE SE REORGANIZAREM EM UMA ESTRUTURA QUE RECOMPÕE UM REGISTRO PRÓXIMO DAQUILO QUE JÁ VIVENCIAMOS TEXTO: Taize Odelli

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FOTOS: Lucas brito de Barros e Clara Állyegra Petter

uando minha mãe me ligou e perguntou “tu tá bem?”, logo fiquei imaginando que tipo de tragédia poderia ter acontecido para ela me ligar fazendo essa pergunta. Foi assim que meus pais reagiram ao incêndio de Santa Maria, em que por algum motivo pensaram que eu poderia estar lá, a centenas de quilômetros de distância da minha casa. Falei que sim, estava bem, logo emendando um curioso “por quê?”. “É que tu não me ligou ontem”, ela falou. Minha cabeça começou a tiquetaquear, procurando motivos para ligar para ela. Até que lembrei: era seu aniversário. Consegui esquecer o aniversário da minha própria mãe, a coisa mais insensível que um filho poderia fazer. Chorei, me desculpei mil vezes e me repreendi por ter tido esse lapso de memória. Memória é a capacidade de registrar acontecimentos e lembrar deles mais tarde, e todos os seres vivos têm. Quem me disse isso foi Rogério Lessa Horta, médico especialista em Saúde Mental, professor do curso de Psicologia e do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da Unisinos. Marquei uma conversa com ele para falar sobre como funciona o nosso cérebro quando o assunto é armazenar e resgatar lembranças. “Basicamente, toda a célula, todo o organismo vivo, é capaz de reconstituir ou de se recolocar numa condição que ele já tenha experimentado”, começou explicando o professor. A memória, segundo ele, é a capacidade das células se reorganizarem em uma estrutura já vivenciada antes, que recompõe um registro próximo dessa situação. Ou seja, minha mente trabalha com determinado arranjo e mecanismos que ativam a lembrança da

data do aniversário da minha mãe. Esses arranjos se reagrupam quando, por exemplo, vejo essa data (7 de abril) em algum lugar. Meu cérebro a relaciona com algum outro acontecimento que sei ser importante. Contudo, eu nem ao menos me dei conta de que aquele era o dia 7 de abril, o que não ativou a lembrança, o arranjo, de que aquele era um dia especial. Mas esse meu momento de esquecimento não foi fruto de má vontade ou insensatez, pode ter sido, na verdade, algo bem comum no funcionamento de nosso cérebro: precisamos esquecer muitas informações a que somos submetidos para poder lembrar e aprender outras. “Assim como a gente recebe um estímulo e se adapta a ele, quando o estímulo desaparece, a gente retoma a condição original”, Rogério me falou. Significa que, com o esquecimento, um espaço se abre na nossa cabeça, o que permite que novos arranjos, novas lembranças, sejam formados. “Para ter memória, o fundamental é esquecer”, foi a frase de impacto dita pelo professor, automaticamente me aliviando em parte da culpa pelo meu esquecimento. Claro! Eu não estava exercitando a lembrança da data de aniversário da minha mãe. Este ano, diferentemente do que sempre costumei fazer, não anotei o aniversário de ninguém na minha agenda. Além disso, é muito mais prático lembrar dessas datas agora com o Facebook, onde recebo todos os dias notificações de aniversários dos meus amigos e familiares. Contudo, minha mãe não está na rede social para que eu possa ser avisada no dia exato que tenho que comprar um presente e felicitá-la. Minha cabeça sobrecarregada de informações das minhas leituras para atividades

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das aulas, tarefas a serem feitas, preocupações com o trabalho e contas para pagar, não recebeu o estímulo que precisava para trazer à tona essa lembrança. APRENDENDO A VIVER COM A TECNOLOGIA Poderíamos pensar, com isso, que o nosso cérebro estaria sendo afetado por essas mudanças trazidas pelas tecnologias. Hoje já não memorizamos mais números de telefones, datas importantes ou endereços como antigamente. Todas essas informações estão armazenadas em uma agenda virtual, no celular ou no computador. Na verdade, nos comunicamos com as pessoas sem precisar ficar rediscando ou reanotando seus endereços de e-mail ou números de telefone toda vez que queremos alcançá-las: eles aparecem automaticamente assim que digitamos os seus nomes, é só escrever a mensagem, apertar um botãozinho e enviar. Com isso, estaria a tecnologia destruindo a nossa capacidade de memória? O professor Rogério foi bem enfático ao dizer que não: “Se sair da natureza e viver

protegido debaixo de um teto não acabou com o ser humano, não vai ser um smartphone que vai acabar”. Isso porque, segundo ele, a tecnologia não degenera o nosso cérebro. Ela é apenas outro elemento que nós inserimos na natureza e que estamos aprendendo a lidar. Nossa cabeça não está perdendo a capacidade de memorizar, ela apenas criou outra ferramenta para acessar essa memória. Ou, como o professor disse, eu preciso lembrar como usar esse equipamento e mantê-lo funcionando para resgatar aquela informação que procuro, formando um novo arranjo neuronal que permite meu acesso a essa memória. Parece complexo, e é, mas ao mesmo tempo tudo funciona de uma forma bem simples. “É só conseguir imaginar o simples operando entre bilhões de células. A gente tem alguns milhões de neurônios que produzem alguns bilhões de conexões”, explicou Rogério de uma forma bem didática, e é aí que tudo ganha uma grandiosidade. Imagine esses bilhões de conexões, arranjos e associações acontecendo o tempo todo dentro do nosso organismo. E não apenas no nosso cérebro,

lembra o professor. Todas as partes do nosso corpo que carregam qualquer tipo de informação trabalham com uma manifestação de memória, só que diferentes. A memória genética, por exemplo, é o nosso DNA. Nosso sistema imunológico também é um tipo de memória, explica ele, pois as células reconhecem um organismo diferente entrando em nosso corpo. Esse organismo ativa a lembrança de que ele é um intruso e deve ser barrado. Para que novas memórias sejam criadas, é fundamental, então, que possamos esquecê-las também, como a memória de um computador, em que precisamos liberar espaço para poder salvar novos arquivos. “Aprender significa ter a capacidade de produzir aqueles arranjos em outros momentos”, ressalva, “isso também é garantido pela capacidade de eu poder me desfazer disso. Porque senão eu ficaria com um arranjo fixo, permanente, fixado num estímulo, numa condição, e não ingressariam novos. Não haveria uma complexidade, nem aprendizado e nem associações.” Se ficássemos sempre nessa mesma condição, se o nosso cérebro não adquirisse novos arranjos e os neuLUCAS BRITO DE BARROS

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aparecerá com deformações. Podemos ter certeza absoluta de alguma frase que falamos, uma conversa que tivemos, do rosto de alguém, mas a realidade é que essa lembrança nunca é igual ao que vimos de fato. Enquanto o professor conversava conosco indicando imagens para o Lucas (o fotógrafo que acompanhava a entrevista), ele deu um exemplo bem visual de como nossa memória se degenera. “Tu perdes a memória sempre da periferia para o centro”, exemplifica, “tu localizas a tua atenção sempre no centro”. O que, no caso da nossa conversa, seriam os olhos. Fomos aprendendo, inconscientemente, que devemos olhar para os olhos da pessoa com a qual falamos. “É óbvio que se eu olho no teu olho, a memória que eu preservar vai durar mais tempo em torno desse ponto”, ele diz. Agora, semanas após a entrevista, ele provavelmente não se recorda mais da cor do meu cabelo ou da roupa que eu estava usando. Agora sei que, para não cometer a gafe de esquecer o aniversário da minha mãe de novo, é melhor que eu lembre de deixar essa informação visível em algum lugar, na agenda. Ou, quem sabe, fazer ela finalmente entrar no Facebook, para que eu possa ver o alerta no dia 7 de abril. Preciso fazer qualquer coisa que não me deixe esquecer essa data e outro fato sem importância acabe ocupando seu lugar na minha cabeça.

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Sempre gostei de conhecer mais sobre o corpo humano, e meu interesse sobre a memória aumentou quando li um artigo comentando a descoberta de uma substância no cérebro que poderia ajudar a desenvolver um “tratamento” de esquecimento de situações traumáticas – algo parecido com o que é narrado no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças. O que achei mais interessante nesse artigo, porém, não é essa possibilidade definitiva de esquecer coisas dolorosas, mas sim ver que nossas lembranças não são concretas: a cada vez que nossa mente acessa uma memória, ela vem de forma diferente, com novos (ou menos) detalhes. Escrever sobre como o cérebro atua armazenando e esquecendo memórias foi interessante, pois não havia tido a oportunidade de abordar um tema por um lado mais científico, que mostrasse de uma maneira simples a complexidade do nosso cérebro. Conhecer mais sobre como a nossa mente funciona só a torna ainda mais incrível.

O médico Rogério Horta conta que a capacidade de se desfazer das memórias é fundamental para criarmos novas lembranças

Lucas brito de Barros

rônios não se renovassem, nossa capacidade de aprendizado se esgotaria logo nos primeiros anos de vida. Felizmente, nosso sistema neuronal sofre alterações conforme crescemos, e alguns arranjos são totalmente descartados. Um exemplo que o professor usa é o de quando começamos a caminhar sobre as duas pernas: existe um arranjo próprio que leva o bebê a andar “de gatinhas”, mas conforme ele adquire a capacidade de se equilibrar em suas pernas, aquele arranjo se desfaz, é esquecido, e ele começa a desenvolver um novo arranjo responsável pela caminhada sobre os pés. “Com o passar do tempo, as células vão se reacomodando, vão se reorganizando, e a capacidade de manter esse estímulo, esse registro vivo, vai se perdendo”. Isso continua acontecendo diariamente. Nem todo estímulo que recebemos durante os dias são armazenados em nossa cabeça. Alguns se fixam mais, pois fazemos associações com outras lembranças que permitem que ele seja resgatado depois. Mas a tendência é, nas palavras de Rogério, que todas as nossas lembranças sejam degenerativas: “A gente acessa mais dados se eles estiverem sido fixados com mais atenção, com mais associações, com melhor harmonia, dependendo do ritmo, dependendo da ligação com outros estímulos ou registros, dependendo da integração com outras experiências e dependendo do meu interesse”. Quanto mais o cérebro receber estímulos, mais essa memória se mantém, caso contrário, ela vai gradualmente sumindo da nossa cabeça. Isso faz com que a memória também não seja um arquivo fiel de fatos. Ela não é um registro exato do acontecimento original, mas sim uma reprodução de algo que vivenciamos. “Memória nunca é reviver a situação de verdade. É produzir um arranjo, ou uma nova condição muito próxima da que foi vivida anteriormente”. Novamente é possível usar uma máquina para entender como isso funciona. Uma fotografia, por exemplo, é uma representação que nos dá um registro mais próximo ao fiel daquilo que vivemos. Porém, se projetarmos essa fotografia em um monitor com configurações diferentes daquelas em que ela foi registrada, a imagem

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Realidades CONSTRUÍDAS pelo esquecimento

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JAIME JOSÉ DA SILVA E Darni Bublitz Molz COMPARTILHAM O ALZHEIMER, MAS VIVEM EM MUNDOS PARALELOS TEXTO: Thaís Zimmer Martins l FOTOS: Caroline Weigel E Juliana de Brito

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s pés, revestidos por uma meia soquete branca e um sapato da mesma cor, se arrastam pelo pátio enorme, esbarrando nas folhas secas e galhos espalhados pelo chão batido. Conhecem cada centímetro do terreno. Só não o percorrem dia e noite porque tem sempre alguém, no final da tarde, que pega o senhor pela mão e faz com que ele arraste os seus pés para dentro da casa de dois pisos. Quando chove é um problema. Os olhos, arregalados e escuros, ora distantes ora mergulhados demais na realidade, gritam que o corpo magro e miúdo precisa estar lá fora, um passo lento depois do outro, andando sem rumo, mas, ainda assim, andando. Não pede que lhe abram a porta. Ele mesmo abre. É que fala pouco. Não porque quer, mas porque o Alzheimer chegou cedo e culminou com um fato que está na justiça até hoje: uma pancada do porrete de um guarda em sua cabeça.

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Jaime José da Silva, 63 anos, tem carteira de identidade – apesar de não se reconhecer nela –, dois irmãos e dois filhos, mas mora com uma família que não tem o mesmo sangue que ele. A dona da casa, e também responsável pelos cuidados do senhor, é mais nova do que todos os outros moradores. Não é sempre que Jaime se lembra do nome dela. Talvez esqueça que se chama Dalva. Talvez sequer saiba que o seu segundo nome é Beatriz e que o sobrenome é Borges da Silva. Mas sorri quando a vê. Um sorriso apertado, que quase não se abre. Tem seu próprio modo de sorrir e de amar. É com os outros habitantes do lar que divide os cuidados de Dalva. Mas divide algo mais: a doença. Dos 33 idosos que vivem na Casa de Repouso Recanto das Borboletas, em Farroupilha, na Serra Gaúcha, quase todos têm Alzheimer. Cada um vivencia a própria fase, mas não é apenas a doença que os assemelha

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e os une. Em cada uma das 33 camas, há um bicho de pelúcia e um edredom estendido e limpo. Em cada olhar, a necessidade de amparo e a resposta tanto da dona da casa, Dalva, quanto das funcionárias: amor. Jaime foi o primeiro a morar no lugar e também o mais novo a desenvolver o Mal de Alzheimer – com 56 anos. Anda o dia inteiro, as costas curvadas, as mãos enrugadas carregando um galho, a boca mastigando um pedaço de folha, a calça de moletom folgada denunciando a fralda. Quando encontra alguém no pátio, entre uma volta e outra, não diz nada. Encara a pessoa como se dissesse algo com os olhos pequenos e depois pega na mão dela, com força, e faz com que o acompanhe. Os olhos intensos, às vezes cabisbaixos, delatam que está imerso em algum pensamento. Em algumas vezes, dirige o seu olhar para os acontecimentos. Fica tão compenetrado em


FOTOS Juliana de Brito

Em alguns momentos, Jaime reconhece a irmã Maderlei, mas desconhece o rosto masculino na própria carteira de identidade

entender o que se passa que quase volta a pertencer a mesma realidade das outras pessoas sem Alzheimer. Isso normalmente acontece nos finais de semana, quando vê chegar a irmã caçula Maderlei Josefa Monteiro da Silva. O nariz puxa um pouco mais de ar, as veias do pescoço se contraem e ele anuncia um grito que não sai em forma de voz, mas de suspiro. Instintivamente abre os braços e ela se acomoda no seu suéter verde. A emoção em forma líquida quer correr pelo rosto da irmã. Mais um dia Jaime a reconheceu. Da bolsa de couro, Maderlei retira uma sacola plástica e, entre uma caminhada e outra do irmão, lhe dá um wafer. Torna a afagá-lo, a dizer-lhe oi e lembrá-lo que é o amor da sua vida. Às vezes ele murmura uma ou duas palavras que não podem ser compreendidas com exatidão. Em outras, vê atentamente e com curiosidade os olhos maquiados e emocionados. “Ele

adora wafer”, a irmã conta quando ele se afasta com um galho na mão, arrastando por onde quer que passe. Quando caminha, deixa para trás não apenas a irmã, mas uma porção de fatos que a mente expulsou. A barba feita, o cabelo penteado e as roupas bem passadas não remetem apenas aos cuidados das funcionárias da Casa de Repouso. Remetem também ao seu próprio passado. Há sete anos, quando se levantava pela manhã, reconhecia-se no espelho do banheiro e pegava o barbeador. Era muito vaidoso. Hoje, carrega lembranças que ninguém consegue adivinhar. Talvez não tenha lembrança alguma. Ou os fatos mudem de forma e de proporção a cada minuto. Em algum lugar do passado, ficou aquele homem que gerenciava lojas, corria no parque no final da tarde, fazia exercícios em casa e, aos finais de semana, andava de bicicleta. Esse homem virou uma lembrança, uma lembrança viva para os seus familiares,

mas não para ele próprio, pois quando se vê no espelho mal consegue se encarar. Esse homem começou a se perder quando a boca do fogão a gás foi sendo esquecida ligada com cada vez mais frequência e quando passou a desrespeitar a sinaleira. Foi muito rápido que esse Jaime se perdeu completamente. Junto com os primeiros esquecimentos, um incidente agravou ainda mais o seu estado. “Ele estava no parque. Sempre gostou muito de crianças. Foi falar com uma delas, e a mãe pensou que era assédio, chamou o guarda. Por trás, o guarda acertou Jaime na cabeça. Meu irmão caiu em cima do cordão da calçada. Depois disso, pouco falou”, relembra Maderlei. O neurologista dele, Ildo Sonda, constatou que a pancada ajudou na perda da fala. Desde então, as frases articuladas não passam de dez palavras balbuciadas, mas são raras. Mesmo com a perda de memória,

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FOTOS Caroline Weigel

Na sala da filha Lenice, Darni embala o urso e, às vezes, emerge do próprio mundo para dialogar desconexamente com a família

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continua gostando de crianças. A Casa de Repouso fica ao lado de uma escola. Quando a bola cai no pátio, lá vai Jaime alcançar, a tentativa de sorriso nos lábios grossos identificando o apreço. Apesar dos passos firmes, ele precisa de auxílio em tudo, desde na higiene pessoal até nas refeições. Entretanto, os próprios movimentos das pernas são um progresso – e a doença não admite progressos. Quando chegou ao lar, em 2010, sequer ficava em pé ou falava qualquer palavra. Havia passado por outras casas de idosos, mas foi nesta, onde está atualmente, que encontrou condições não só para se levantar, mas para retomar uma vida, mesmo que seja uma vida silenciada. outro lado da mesma regeneração Distante de Jaime, mas próximo da sua realidade de uma memória quase sem memórias, está Darni Clades Bublitz Molz. Ela não anda de um lado para o outro, como o senhor. Tampouco consegue alcançar a bola para uma criança. Não só porque mora em um apartamento, mas porque quebrou a perna e sente dificuldade em andar. Passa a maior parte do dia sentada na cadeira de praia azul, colocada ao lado do sofá da filha Lenice Molz Rodrigues, em Santa Cruz do Sul. Embora pouco consciente do que se passa ao redor, delimitou o seu próprio jeito de sentar: cruza as pernas, embalando o pé direito para frente e para trás, e apoia o queixo na mão direita. As épocas da vida da senhora se confundem nos olhos azuis, um tom de azul tão intenso que engole o preto das pupilas. Eles guardam uma história de 74 anos, mas também guardam uma década de esquecimento. Nos últimos dez anos, o Alzheimer roubou o papel de protagonista. Mas não são apenas nos olhos que elementos do passado se misturam. A fala, ainda grave, denuncia as lembranças embaralhadas. As frases começam em português e terminam em alemão, quando não se findam com a repetição de um monossílabo. Raramente responde verbalmente e com coerência ao

que lhe pedem, mas os movimentos corporais atendem aos pedidos feitos pela família. Às vezes observa com tamanha atenção a conversa da filha, do genro e das duas netas, com quem mora, que a lucidez parece ter retornado. No rosto sereno, deixa transparecer a calma. Mas nem sempre foi assim. Depois que os primeiros sinais do Alzheimer começaram a se manifestar na repetição da conversa e no esquecimento, quando dividia a casa com uma jovem estudante, lentamente as fases da doença foram se apresentado. Aos poucos foi deixando de fazer as atividades de casa. Aos poucos também foi precisando de ajuda nas tarefas diárias até, enfim, não realizar mais nem a própria higiene pessoal. Várias lembranças estão espalhadas em cima da cômoda, no quarto que tem na casa da filha Lenice. Não se recorda de quase nenhum rosto estampado nas fotografias, mas os enfeites são uma tentativa da família de manter o ambiente do antigo lar da senhora. Mais do que uma tentativa de confortar Darni, é uma demonstração de amor. Se a doença exclui da mente da idosa o seu passado, afastando-a mais e mais da dona de casa dedicada ao lar e da viúva que passou anos morando sozinha, não exclui dos familiares quem ela foi. Assim como a família de Jaime, a família de Darni adaptou-se ao Alzheimer e tenta acompanhar o ritmo dos novos mundos dos idosos. Ela vive com a filha de sangue. Ele convive semanalmente não apenas com a irmã Maderlei e com o filho Fellipe Antônio, mas com outros idosos e com uma mulher que o acolheu como se fosse filho. Embora conscientes das realidades dos idosos, aceitam-nas. Aprenderam a respeitar e a amar os outros mundos. Apesar de a doença ser uma só, as fases são muitas, inconstantes e imprevisíveis. É como uma dança. Uma dança cuja música que a embala vai perdendo a letra e, aos poucos, a melodia. Uma dança que continua no silêncio, no vazio das mentes, nos lábios secos e selados, nos olhares perdidos e nos mundos individuais e solitários.

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Há pouco mais de um ano estive na Casa de Repouso Recanto das Borboletas. Fui até lá para visitar minha tia-avó, com Alzheimer, e me deparei logo na entrada com um senhor que pegou firme na minha mão e me puxou para um passeio no pátio. Contemplei-o curiosa. Curiosa por saber que vida se escondia por detrás daqueles olhos que pareciam absurdamente lúcidos, mas cujas atitudes não condiziam com essa expressão. Perguntei-me se ele sabia o que é que estava fazendo, caminhando de um lado para o outro, sem parar. Perguntei-me quem é que ele tinha sido. E o que é. Descobri que se chamava Jaime José da Silva e que tinha Alzheimer desde muito cedo. Quando a oportunidade desta matéria surgiu, imediatamente pensei nele. A Caroline Weigel, que também fez as fotos desta matéria, sugeriu também a sua avó, Darni Clades Bublitz Molz. Conhecer a história dela foi tão sensacional quanto conhecer a de Jaime. Apesar de ninguém saber o que é que se passa na mente de uma pessoa com Alzheimer, uma coisa é certa: o mundo em que eles vivem é completamente diferente do mundo em que vivemos. Mas nem por isso é um mundo errado. É inútil insistir para que se lembrem de um passado embaralhado. Talvez o que se possa fazer é participar do mundo deles, aceitando as lembranças confusas como as suas realidades.

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O colecionador O MÚSICO GAÚCHO MÁRCIO PETRACCO É APAIXONADO POR INSTRUMENTOS ANTIGOS TEXTO: Luciana Marques FOTOS: JÉssica Sobreira e Sabrina Strack

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música é ecoada em todos os cantos da casa do músico multi-instrumentista Márcio Petracco, de 45 anos. Mas não é necessário que alguém esteja cantando ou tocando para que se possa ouvi-la. Basta olhar para a vasta quantidade de instrumentos musicais antigos espalhados pelo ambiente que acompanha a decoração vintage do local e deixar o som fluir na imaginação. Os acordes entraram muito cedo na vida deste artista, que é também um dos fundadores da banda de rock T.N.T, uma das mais representativas do cenário gaúcho. “Comecei a ouvir Rock’n roll através do meu irmão mais velho. Eu olhava para as capas dos discos e relacionava com as músicas. No início, eu nem gostava muito, aí um belo dia eu comecei a redescobrir os sons”, conta. Os pais dele também serviram de inspiração. “Minha mãe tocava piano e meu pai, gaita de boca”, comenta. Foi um cavaquinho velho, da década de 1960, que despertou em Petracco a vontade de aprender a tocar um instrumento, quando ele ainda tinha 14 anos. “Eu fiz uma restauração linda nele. Comprei umas cordas, descobri como o afinava e comecei a tocar um rock no cavaquinho. A coisa mais incrível neste instrumento é que ele tem uma afinação que possibilita tirar vários acordes. Me lembro até hoje a marca dele: Rei dos Violões”, recorda. Aos 16 anos, Petracco saiu de casa, para, em seguida, formar a banda T.N.T. Foi nesse período que ele passou a dar maior relevância para as origens da música. Nessa época, entrou em contato com o blues e com o ícone deste gênero, o cantor e guitarrista B.B King. “Me lembro de ter ido a três shows dele, e teve uma vez em que eu entrei em seu camarim. Ele me entregou uma palheta. Foi demais. Ele é o cara”, revela. O músico não nega sua admiração pelos instrumentos musicais antigos. “Um instrumento usado por estudantes antigamente, se comparado com um de hoje em dia, era ótimo. Eles duravam bem mais”, garante. Para ele, aprender a tocar depende, sobretudo, de muita dedica-

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de SONS Sabrina Strack

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Petracco tem mais de 20 instrumentos em casa, alguns com 100 anos ção. “Acho que essa coisa de genética é muito mítica. Se tu fores criado num ambiente musical, isso pode te ajudar a tocar. Mas para ser um bom jogador de futebol, ou motorista, por exemplo, é preciso treinar, treinar e treinar”, destaca. QUANTO MAIS VELHO, MELHOR Desde que começou a tocar, ele adquiriu um apreço pelos instrumentos musicais, e para ele, quanto mais velhos, melhor. O músico começou a ir atrás desses objetos e a colecionálos. Aos poucos, amigos, parentes e vizinhos, sabendo desse interesse, passaram a informá-lo sobre peças antigas à venda. “Cada instrumento aqui tem uma história. Não sei dizer quantos eu tenho agora, mas, com certeza, são mais de 20”, diz. Na década de 1980, durante uma visita à cidade do Rio de Janeiro, ele se deslumbrou com uma guitarra Fender, ano 1965, modelo principiante. Ele tinha apenas a metade do valor, que na época era 400 dólares, e contou com a ajuda da tia para emprestar o restante. “Uma guitarra dessas 18

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vale, hoje, uns quatro mil dólares, só pelo seu caráter retrô”, explica. Em sua sala, um piano brasileiro, fabricado há mais de 30 anos, apoia uma harpa automática de três acordes, produzida com um sistema binário. Na capa do disco “Dom Quixote”, dos Mutantes, a cantora Rita Lee aparece vestida de noiva, segurando uma harpa igual. “Este instrumento country é originário do Sul dos Estados Unidos, local de onde veio a família de Rita Lee. A família Carter (de June, do filme Johnny e June) popularizou este instrumento”, conta. Subindo as escadas, a primeira imagem que se obtém é uma sala repleta de estojos e caixas, que guardam os mais variados e antigos instrumentos musicais. Em uma só caixa estão escondidos uma minicítara indiana, que deve ter, aproximadamente, 100 anos, e um banjo infantil, feito com o casco de um tatu, que possui mais de 30 anos. O que mais chama atenção na minicítara, é a imagem de uma cobra naja, esculpida em seu braço. Outras duas peças centenárias, e protegidas a sete chaves, são o bandolim português e a guitarra portu-

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guesa. A parte de trás do bandolim imita uma caravela. Entre as três harpas automáticas que ele guarda, uma delas foi fabricada na década de 1920, e tem até o manual, para o orgulho do colecionador. Um violão tenor de quatro cordas, produzido entre as décadas de 1920 e 1930, divide as atenções com uma guitarra havaiana (pedal steel) dos anos 1970, um violão dinâmico dos anos 1930, um banjo marroquino, que possui mais de 20 anos, entre muitos outros artigos. Em sua garagem, amplificadores grandes, médios e pequenos disputam o olhar dos curiosos. O seu xodó é o primeiro a ser fabricado no Brasil, nos anos 1950, e que possui um design totalmente retrô. Entretanto, um dos seus instrumentos favoritos não é o mais antigo, porém, é raro: se trata do violão Martin Americano, fabricado no final dos anos 1970, originalmente em mogno e com casca de tartaruga, que hoje, é ilegal. “Eu já o tenho há uns 15 anos. O som dele é muito bom. É diferente”, sublinha. Quando instigado sobre a possível venda de um de seus instrumen-


Sabrina Strack

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jÉssica Sobreira

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tos, ele é enfático: “Não gosto de me desfazer das minhas coleções. Me apego muito. Fica difícil até estipular um valor”, declara. Segundo ele, cada instrumento é responsável por emitir um som único. O instrumentista relata também que não aprova o sistema de rotular canções, como a indústria fonográfica faz. “Cada som tem uma origem, e o legal é poder criar diferentes melodias, misturando estas influências”, enfatiza. Multi-instrumentista Além de ter gravado três discos com o T.N.T, inicialmente como baixista e depois como guitarrista, Petracco também já tocou com as bandas Cascavelletes, The Bluesmakers, Cowboys Espirituais e Trem 27. Atualmente, é possível vê-lo tocando bandolim com os demais integrantes do conjunto Bluegrass Porto-alegrense, na Redenção e em outros eventos. Ele toca, ainda, banjo (baseado em vários instrumentos africanos e usado pelos grupos de bluegrass e jazz), dobro (uma guitarra com cordas de aço e empregada no country e no blues), guitarra havaiana (pedal

steel), berimbau de boca (que extrai um som similar ao de trilhas de desenhos animados), violão, piano, harpa automática (auto-harp), entre outros. Seu talento foi reconhecido

no ano de 2007, quando conquistou o prêmio “Açoriano de Música” como melhor instrumentista. Foi até tarde, para um artista que já contribui com a boa música há um bom tempo.

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O que se pode dizer quando tu escreves algo que te proporciona conhecimento? Acho que o jornalista é o profissional que mais tem a oportunidade de conhecer novas pessoas, culturas e lugares. Essa matéria me surpreendeu muito, porque eu não tinha a menor ideia sobre o que escrever relacionado com o tema “Memórias”. Eu tinha apenas um anúncio de um instrumento musical antigo à venda em mãos. Marquei com as fotógrafas Jéssica e Sabrina de irmos à Redenção para procurarmos alguém que colecionasse instrumentos musicais antigos e por meio de algumas indicações encontrei o músico Márcio Petracco, um dos fundadores do grupo gaúcho T.N.T. Liguei para ele que, imediatamente, topou ser entrevistado. Fomos à sua casa e nos surpreendemos com a quantidade de instrumentos musicais, uns antigos, outros improvisados. A primeira coisa que me chamou a atenção foi uma gata linda que estava sobre o sofá. Depois, foi o piano. Naquele momento, percebi que a pauta havia caído em meu colo. Consegui obter todas as informações de que precisava em uma única tarde. Na verdade, ele tinha assunto para um especial. Quando chegamos na sala em que ficava a maioria dos instrumentos, me maravilhei: nunca tinha visto tantos instrumentos antigos juntos. Não esquecerei a atenção que o músico nos deu e de como essa matéria abriu meu leque cultural. Afinal, não aprendi apenas coisas relacionadas aos instrumentos, conheci um pouco do rock gaúcho e da vida de um músico premiado que continua encantando a todos que passeiam pela Redenção aos domingos.

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Carlos Bastos, que trabalhava como repórter do jornal Última Hora, participou da campanha da 20 PRIMEIRA Legalidade l

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DIAS DIFÍCEIS

Repórter da Legalidade O tempo passou, mas a memória do movimento da legalidade permanece acesa nas mentes de muitos gaúchos TEXTO: DIEGO APPEL l FOTOS: Greice Nichele E Marcelo Grisa

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udo começou no momento em que Jânio Quadros surpreendeu o país anunciando sua renúncia, no dia 25 de agosto de 1961. A população se espantou ao saber que os ministros militares vetavam a posse do vice-presidente João Goulart, que na época encontrava-se visitando a China comunista. Enquanto isso, no “frio” Grande do Sul, Leonel, o então governador Leonel Brizola, levantava a voz a favor da ordem legal do país, pois estava escrito na constituição que, em caso de renúncia, o vicepresidente deveria assumir. Brizola queria que a ordem e a legalidade fossem respeitadas, e então decidiu tomar medidas cabíveis para que a constituição fosse cumprida. O marechal Henrique Teixeira Lott, que concorrera à presidência, tendo em sua chapa, como candidato a vice, João Goulart, lançou um manifesto defendendo a posse de Jango. O manifesto foi lido nas principais rádios gaúchas: Gaúcha, Farroupilha e Difusora. A reação veio rápida: as rádios foram tiradas do ar. A Guaíba, que se dedicara a transmitir apenas música, permanecia com suas transmissões.

No Palácio Piratini, Leonel Brizola sentia-se isolado. Sabia que teria de enfrentar uma verdadeira guerra na defesa da legalidade. Ele necessitava de instrumentos poderosos para mobilizar o povo, que se agitava nas ruas de forma desordenada, e enfrentar os inimigos. Todo líder de um movimento sabe que a comunicação é a sua maior arma, e o meio de maior alcance, o que chega a todos os cantos, a toda hora, é o rádio. Esta máxima era ainda mais verdadeira em 1961, quando a televisão no Brasil apenas engatinhava. Brizola não teve dúvidas. Teria que chegar ao rádio, um meio que dominava já há bastante tempo com suas “Palestras de Sextas-Feiras”, na Rádio Farroupilha. Como os militares haviam retirados os cristais das rádios (equipamento responsável pela transmissão radiofônica) que vincularam o manifesto pró Jango, restou somente a Guaíba, e foi em cadeia com ela que Brizola criou a Rádio da Legalidade. Os militares ensaiaram uma tentativa de retirar os cristais da rádio Guaíba, mas desistiram e deram meia volta, pois Brizola havia colocado a Brigada Militar para proteger a rádio.

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Os discursos de Brizola eram transmitidos a partir de um estúdio montado no porão do Palácio Piratini, sob orientação do engenheiro Homero Simon, que cuidou para que rádios do interior retransmitissem a programação. Em ondas curtas, a legalidade alcançava ouvintes em outros estados e mobilizava a população. Foram momentos tensos e de emoções à flor da pele. O Brasil e principalmente o Rio Grande do Sul estavam vivendo sob as ondas sonoras da Rádio da Legalidade. Carlos Bastos era repórter de política no extinto jornal Última Hora, cobria a Assembléia Legislativa e o Palácio Piratini. Participou pelo jornal de todo a campanha da legalidade, inclusive morando nos porões do Palácio. Bastos acompanhava a rotina do governador Brizola e conta que viveu momentos que nunca esquecerá. “No início da campanha, eu ia diariamente ao Palácio e depois acabei até morando lá. Dormia e vivia nos porões da Legalidade. Foram dias difíceis, não sabíamos o que iria acontecer.” A população também estava começando a agitar-se pelas ruas da capital.” Nunca me esquecerei dos momentos que vivi com o Brizola na campanha da Legalidade. No inicio eram mais ou menos umas 5 mil pessoas na frente do Palácio. O momento mais marcante foi o pronunciamento dramático de Brizola, no dia 28 de agosto, em que ele disse que resistiria até a morte. Nesse dia, havia umas 70 mil pessoas em frente ao Palácio”, conta Bastos. O pronunciamento foi feito, porque, naquele mesmo dia, o comandante do III Exército, general Machado Lopes, recebeu ordem do ministro 22

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da Guerra para deter, imediatamente e de modo drástico as ações do governador gaúcho. Quem assinava a mensagem era o general Orlando Geisel, chefe de gabinete do ministro da Guerra, Odílio Denys. A instrução para Machado Lopes era a seguinte: “Faça convergir sobre Porto Alegre toda tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente (...) Empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário”. A nota diz que Brizola “colocou-se fora da Legalidade” ao deslocar tropas. O Ministério considerava, portanto, subversiva a sua ação. A mensagem foi captada por diversos radioamadores e repassada ao Palácio Piratini. Isso foi o suficiente para alarmar a todos. Carlos Bastos ainda lembra da importância do discurso de Brizola naquele memorável dia do mês de agosto. “Falou de improviso, com toda a emoção que o momento exigia.” O engenheiro Homero Simon, da Guaíba, que cuidava da parte técnica da transmissão, o avisara que enquanto aquela luz estivesse acesa, estariam no ar. Os portões do Palácio estavam guarnecidos, havia barricadas com caminhões, sacos de areia como proteção e pessoal armado nas janelas, este era o cenário de preparação para o conflito. Conta Bastos que muitos auxiliares, dentro do prédio, choravam. Os estudantes estavam em peso na praça, na época o Anfiteatro Araújo Viana ficava ao lado do Theatro São Pedro e muitas cadeiras foram arrancadas e serviam de armas para os jovens que ficaram de campana em fronte ao Palácio. “Foram feitas barricadas para nossa proteção”, lembra o ex-repórter da Última Hora.

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Foram dias memoráveis e difíceis para todos os brasileiros. Alguns diziam que havia ocorrido um golpe militar, outros chamavam de revolução. Pela constituição, Jango deveria assumir, mas muitos ficaram com medo de o Brasil virar uma república comunista, um quintal da extinta União Soviética. O fato é que a constituição não foi respeitada, pois o vice deveria assumir. Foram lágrimas derramadas, sangue jorrado e histórias nebulosas ocorridas no país sob o regime militar. Mas não foram só momentos ruins e tragédias que ocorreram naqueles dias. Histórias bonitas fizeram parte do repertório da campanha da legalidade, como fala Bastos. “ Uma história marcante foi a das viúvas que moravam perto da Igreja Santa Terezinha. Elas só saiam de casa para ir à missa, e nada mais. No dia da grande movimentação popular em frente ao Palácio, um amigo meu disse que viu as duas senhoras na Praça da Matriz. Daí pude perceber a força de Brizola. Elas nunca saiam de casa, mas mesmo assim foram para lá”, conta Bastos. Foram dias de tensão, com Brizola alertando para a possibilidade do Palácio ser atacado pelo Exército. O movimento foi decisivo para a posse de Jango. A Cadeia da Legalidade obteve sucesso. Jango assumiu como chefe de Estado no sistema parlamentarista, dia 7 de setembro de 1961. A Cadeia da Legalidade permaneceu 12 dias no ar. Atualmente, Bastos trabalha na comunicação da Secretaria Extraordinária para a Copa do Mundo 2014 (Secopa), da prefeitura de Porto Alegre.


Marcelo Grisa

Marcelo Grisa

Greice Nichele

Bastos chegou a morar nos porões do Palácio Piratini para participar das atividades da Rádio da Legalidade

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A matéria para a revista Primeira Impressão foi muito boa e de grande aprendizado, pois tive contato com um jornalista muito experiente e competente que viveu momentos marcantes da historia do país. Entrevistar Carlos Bastos, exrepórter do extinto jornal Última Hora, foi uma aula de jornalismo de excelente nível.

Ele viveu dias intensos nos anos 1960, em plena atividade da Rádio Legalidade, chegando a morar por alguns dias no Palácio Piratini, um dos principais palcos daquela época. Bastos é uma pessoal acessível e de muito bom trato. A entrevista foi muito natural e ele sente-se muito confortável ao falar sobre o assunto em pauta.

Conversamos cerca de trinta minutos na sede da Secopa, local onde Bastos trabalha atualmente. Foi significante entrevistar um jornalista que atuou e vivenciou momentos tão importantes para os brasileiros. Espero ter muitas oportunidades como essa, pois me senti um pouco mais parte da história do Rio Grande do Sul e do Brasil.

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À base de água e fogo

Élio Rigatti começou a trabalhar na ferraria com seu pai, Guido, quando tinha oito anos. Subia em um banquinho, segurava uma peça e seu pai batia com a marreta

FOTOS Sabrina Strack

A Ferraria do Guido, fundada há 116 anos no interior do Estado, guarda memórias da evolução histórica da cidade e do trabalho TEXTO: Dieverson Colombo FOTOS: Alessandra Fedeski E Sabrina Strack

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iz o ditado: casa de ferreiro, espeto de pau. Mas a 13 quilômetros do centro de Farroupilha, cidade no interior do Rio Grande do Sul, em uma casa cercada de histórias, Élio Rigatti é a exceção que confirma a regra. Ao chegar, a campainha da família é uma demonstração da tradição deixada pelo avô. Para alguém atender a porta, uma marreta de ferro precisa ser tocada em um pedaço de trilho pendurado próximo ao portão. O som dos metais anuncia a visita. É claro que nem os mais de cem anos de história da Ferraria do Guido foram capazes de impedir a chegada da modernidade. O portão é aberto eletronicamente. Ao acionar o controle, o ferreiro abre um sorriso e convida para entrar. Vestido de camisa xadrez, chinelo de pano e chapéu de palha, ele representa a figura típica da cultura italiana. Aos 65 anos, Élio tem muita história para contar. Neto de Angelo Rigatti, fundador da ferraria, e filho de Guido, que dá nome ao local, ele guarda lembranças centenárias dentro do pátio da sua casa. Hoje desativada, a empresa se tornou um lugar de exposição aos visitantes. Inaugurada em 1897, em Linha Muller, 3º Distrito, a Ferraria do Guido produzia macha-

dos, enxadas, foices e ferraduras de cavalos. Essas ferramentas garantiam o transporte e o trabalho rural dos imigrantes italianos chegados à Serra Gaúcha no final do século 19. Com oito anos, Élio começou a ajudar o pai. Como não tinha altura suficiente, foi necessário um banquinho. Ele segurava a peça e seu pai batia com a marreta. Foi ainda naquela época que conheceu a paixão pelo engenho da família. Uma paixão que demonstra aos visitantes do agora ponto turístico. Ao mostrar cada peça, lembra dos detalhes, do ano, da época em que era produzida. Além da alegria de Élio ao detalhar os instrumentos, outro aspecto chama a atenção: o funcionamento. Nada de maquinário industrial. Tudo é feito pela força da água e do fogo. A água que desce do Arroio Pinhal faz girar uma roda de madeira, e, com sua força, faz todo o maquinário funcionar. Em 1920, Angelo criou outra roda, que, ao ser acionada, aumenta a força do fogo, necessário para “cozinhar” o ferro na hora de ser ajustado. Até criar essa roda, o fogo era abanado somente pelo fole, que tem aproximadamente 160 anos. “Quando foi criado, aquilo era como uma tecnologia que hoje é a internet. Coisa de primeiro mundo”, conta Élio. Estraga-

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do com o tempo, a solução foi instalar um motorzinho elétrico. Sem contar que para trabalhar com o fole era necessária uma pessoa manuseando o tempo todo. Rotina facilitada Juntar água do poço, fazer um churrasco ou produzir materiais para trabalhar nunca foi um problema para a família Rigatti. E as ferramentas para essas atividades não eram feitas com molde, em que basta bater em cima para saírem praticamente prontas. Com 16 filhos, Angelo precisava colocá-los para trabalhar. Havia a agricultura, mas a terra começou a escassear. Ferrarias eram necessárias, praticamente os postos de combustível da época. “Aqui na Linha Muller, num raio de três quilômetros, existiam oito. Todas elas sobreviviam. Hoje só existe a minha, que no início era maior que a Tramontina”, lembra Élio, que agora é funcionário público estadual. De acordo com ele, nos anos 1970, se a Tramontina, hoje líder do segmento no Brasil, vendesse uma enxada, eles vendiam 100 dúzias da mesma peça. A matéria prima da produção até os anos 1960 era trilho de trem e de bonde. Com a proliferação da indústria, começaram a ser utilizadas molas de caminhão e de automóvel que, segundo Rigatti, eram feitas com um aço melhor. “A região nunca se desenvolveu, porque só tinha água do rio e no verão escasseava. Faltava para trabalhar. E sem água não dava para movimentar a roda. Então a gente não se dedicava somente à ferraria. Quando tinha água, se trabalhava. No inverno nunca faltava”, comenta. Dos produtos, poucos se modernizaram. Alguns ainda não existem para o consumidor. O principal motivo é que a família Rigatti, por ter uma produção manual, os personalizava. Um exemplo são ferramentas para canhotos, como foices. Fazer máquina para embutidos também era função das ferrarias. “Os italianos chegaram no Brasil e sabiam da tecnologia para a gente fazer o salame e o presunto em26

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butido. Só que muitos deles vieram fugidos. Eles não trouxeram máquinas. Então, foram em ferrarias e fizeram essa máquina para dar enchimento no salame.” Até os produtores de leite eram auxiliados pelos ferreiros. Na época da Segunda Guerra Mundial, os produtores conseguiam transportar a pé 20 litros de leite para vender, 10 em cada balde, e carregavam um em cada mão. Mas era necessário aumentar a produção. Para isso, as ferrarias passaram a desenvolver um taro, que servia como uma terceira opção. Esse objeto era pendurado no ombro e aumentava em 50% a produção. E para espetar o churrasco? Uma ponteira criada pelo avô de Élio era encaixada em uma vara para espetar a carne. “Essa peça é centenária”, salienta ao retirá-la de um armário para mostrar. Aliás, peças antigas não faltam na casa dos Rigatti. Descascador de arroz, cartucho de canhão, arma do exército. Sem contar com o guarda louças, construído em 1899, e que agora funciona como uma espécie de mini museu. Ferraria que dá luz Para os Rigatti, energia elétrica nunca foi problema. Os maquinários não precisavam, já que eram movidos pela força da água. Mas a casa de seu Élio tem luz

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Élio preserva a ferraria no interior de Farroupilha para rememorar as histórias de sua família

quando o abastecimento convencional falha. Isso porque a família aciona uma roda, instalada ainda antes de a energia elétrica chegar à comunidade, que conta com a força da água para garantir o funcionamento de equipamentos dependentes desta fonte energética. “Em dezembro deu temporal, ficamos 48 horas sem luz. Então, de noite, eu puxava um cabo e tinha uma lâmpada lá dentro de casa. É uma engenharia”, conta ao fazer a demonstração. Élio também faz questão de exemplificar como se faz a tempra, que se trata da maneira de deixar o ferro na consistência certa. Para isso, o ferreiro tem de colocar fogo na peça, ajustar seu tamanho e esfriá-la. Por Élio ter se destacado pela perfeição do trabalho, um livro o descreveu como o “Pelé da Tempra”. Mas nem tudo ele faz sozinho. Quando precisa de ajuda, o ferreiro aciona a esposa. Algumas batidas na bigorna, utilizada para ajustar o tamanho do ferro, são suficientes para ela chegar correndo. “Eu me sinto orgulhosa.


Sabrina Strack

Sabrina Strack

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Alessandra Fedeski

É raro ter uma ferraria como a nossa. Ela é muito antiga. Não entendo muito, mas gosto de ajudar”, diz Dulce, casada há 40 anos com Élio. As peças que ajuda a produzir e as histórias contadas pelo marido são conhecidas por turistas do mundo inteiro. A ferraria já recebeu russos, americanos, canadenses, coreanos e japoneses. A maioria se dirige à Serra para passear pela turística Bento Gonçalves. Aproveitam a proximidade para visitar outro ponto referencial da região, a cascata do Salto Ventoso. Nessas visitas, esporadicamente, ele ainda produz algum material. “Esses dias vieram dois italianos. Me comunico bem com eles. Uma mulher disse que queria uma ferradura porque dá sorte. Daí eu fiz. Às vezes, o pessoal pede uma foice pequena também.” As lembranças acionadas pelo contato com os objetos fazem com que os visitantes também queiram levar para casa uma recordação de seu passado. Em abril, uma turista italiana ficou encantada com a arma que Élio ganhou do seu avô quando tinha oito anos. Ela quis tirar uma foto com a espingarda, chamada pelo ferreiro de “espera um pouco”, já que para cada tiro é necessário carregá-la manualmente. A caça era um meio de sobrevivência, então, na época, a arma veio a calhar. “Que presente”, comenta Élio, feliz pela peça ainda preservada.

Mas há quem queira mais que uma foto. Em uma excursão de Belo Horizonte, em 2003, uma senhora comprou uma ferradura por 10 reais. Justificou a compra dizendo que quando era moça ferrava o cavalo para ir à missa e visitar o namorado. A oportunidade de visitar uma ferraria tanto tempo depois despertou na senhora uma espécie de nostalgia. Há quem duvide da “façanha” de não precisar de energia elétrica. Até a força da água provoca desconfiança. Em 2003, nesta mesma excursão, um homem pegou Élio pelo braço. Insistiu para saber onde estava o motor que

mexia a água e fazia a roda girar. O ferreiro reforçou que não havia motor. O turista ficou brabo. “Ele me disse: se não quer contar não conta. Vou sair chateado daqui”, rememora. Dessas recordações, a vida de Élio está cheia. Elas servem para fortalecer a relação dele com a terra onde vive desde que nasceu e que não troca por nada. “Meu sonho é que quando eu estiver morrendo abram a janela do meu quarto para eu ver as araquãs cantando. Isso eu sempre digo que gostaria de ver. E não saio daqui”, emociona-se o ferreiro.

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Quando tive a ideia de fazer essa pauta, não pensei que fosse achar um caso tão interessante no interior da cidade. Fui para o local sabendo que a ferraria tinha muita história, mas não sabia que seria tão impressionante. Por si só, com tantas tecnologias disponíveis, ver uma empresa hoje sem funcionar, mas que nunca precisou de energia elétrica e usava a força da água, já é uma grande experiência como repórter. Depois que Élio mostrou que consegue até hoje ter luz dentro de casa, mesmo quando a energia elétrica não funciona, tive mais certeza do quanto estava valendo a pena realizar essa matéria. Sem contar a simpatia da família, típica de moradores do interior. Depois dessa experiência, tive a certeza de que diversas histórias poderiam ser melhor exploradas pelos jornalistas, e que jornalista que reclama não ter pautas é porque não foi para a rua procurar. Um aprendizado que levarei sempre comigo e uma tentativa, que é a de explorar boas histórias que são desconhecidas por grande parte da população.

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Com a ajuda de estímulos visuais, o taxista Vandir cultiva LEMBRANÇAS cheias de detalhes TEXTO: Mariana Staudt l FOTOS: JAQUELINE LORETO

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Durante os trajetos, o taxista Vandir costuma ler todas as placas e letreiros

iariamente, aviões decolam e pousam de forma elegante no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, o maior da Região Sul em número de aeronaves e passageiros. Do lado de fora da sala de desembarque, há uma grande fila de carros brancos com uma faixa lateral azul, que identifica a cooperativa oficial de táxis, a Cootaero. Esses aguardam viajantes de todas as partes do planeta que necessitam de outro transporte para, finalmente, chegar ao seu destino final. No meio de toda essa movimentação, Vandir Machado Pedroso, de 56 anos, coleciona momentos e recordações da atividade. Na profissão de taxista, ter uma boa memória é fundamental para lembrar os nomes das ruas, os melhores caminhos, buscar os passageiros na hora marcada, fazer o cálculo do troco, assim como para não esquecer as centenas de histórias que são contadas nessa espécie de “divã móvel”. Vandir é mais do que uma prova disso. Ele é exemplo de quem sabe usar a memória a seu favor. Talvez essa qualidade seja resultado do gosto por exercitar a mente e passar o tempo entre uma corrida e outra fazendo palavras-cruzadas, que comprovadamente estimula a atividade mental e faz o tempo passar mais rápido. Ou, ao menos, parecer passar. Outra possibilidade para a sua facilidade em memorizar dados e situações possa ser o hábito que traz desde os 17 anos de trocar letras por números. Mostrando suas anotações em uma agenda, explica que adaptou uma palavra-chave de nove letras diferentes, em que cada uma corresponde a um número. “É um teste de memória e eu uso o tempo todo, até fazendo compras no mercado”, conta.

A palavra, porém, é segredo. “Se eu contar não tem sentido. Perde o valor.” Vandir utiliza os códigos para tudo: senhas de banco, nas finanças, datas e números de telefone. A neurologista Fabiana Mugnol, de Porto Alegre, afirma que além de bons hábitos de sono e alimentação, jogos mnemônicos, ou seja, a memorização por associação auxilia para quem quer recordar grandes quantidades de informações, que é o caso de Vandir. Mesmo com o auxílio tecnológico do GSP, o taxista afirma que, até quando não traça um itinerário no aparelho, está sempre lendo o que passa pela frente, desde placas de estabelecimentos até os nomes das ruas. Assim, quando alguém diz um destino, ele tem alguma lembrança de onde o local possa ser. “Há muitas maneiras de codificar e recuperar informações visualmente. Usar a estratégia de associar conceitos a imagens pode incrementar a memória visual, assim como incluir diagramas, tabelas, esquemas, desenhos, símbolos, letras ou números”, explica a neurologista Fabiana. Algumas pessoas têm mais facilidade para lembrar de situações de forma detalhada. “O mecanismo está ligado ao quanto as imagens são significativas, remetendo a alguma forma de conexão com conhecimentos prévios”. Portanto, este conhecimento já adquirido altera a forma com que as imagens são processadas, permitindo que milhares delas sejam transferidas para a memória de longo prazo, com riqueza de particularidades. É assim que Vandir conta as suas histórias. Durante a conversa dentro do automóvel, uma Meriva, o taxista é muito detalhista. Todas as narrações são completas. Seja o desconto dado para a senhora que pediu uma via-

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Vandir utiliza uma técnica que troca números por letras, auxiliando no estímulo da memória

gem para Passo Fundo, que do custo original de 728 reais passou para 650 pagos em euros, já que ela estava chegando da Espanha, ou ainda o horário do ônibus da menina que iria fazer vestibular em Santa Maria no dia seguinte, mas não tinha dinheiro. Essa situação da garota, inclusive, é especial para Vandir. “Funciona assim, só o primeiro da fila pode negociar valor, e eu era o décimo quando chegou esta menina. Eram 23h10min, e ela foi sacar dinheiro no caixa eletrônico, mas errou a senha três vezes e bloqueou o cartão. O ônibus dela saía à meia-noite. A coitadinha ficou lá na frente com o nariz enorme de tanto chorar. Para a sorte dela, 23h30min eu cheguei em primeiro e fui falar com ela. ‘Resolveu teu problema?’”. Ao receber a resposta negativa, o motorista disse que iria levá-la até a rodoviária. “Mas eu não tenho dinheiro, tu não entende?”, retrucou ela, desesperada. “Chegamos lá faltando 15 minutos para a meia-noite. Ela pediu o número da minha conta, saiu correndo, nem agradeceu nem nada e foi embora.” Dois dias depois, estavam depositados 30 reais na conta, mesmo a corrida tendo custado 22. “A minha surpresa foi no ano passado, quando me chamaram na ponta da fila. Eu não reconheci logo de cara, mas quando ela sorriu, lembrei quem era. Ela veio, me abraçou, me deu um beijo e disse que estava ali para me agradecer e se desculpar por ter saído correndo para o ônibus sem dizer nada. Contou que passou no vestibular em veterinária e que daquele dia em diante, só andaria de táxi comigo”, lembra Vandir com carinho. Como seu ponto fica no aeroporto, seus serviços também se tornam internacionais. Com um “Hola, que tal?” ou um inglês meio enrolado, Vandir se vira para atender bem o cliente, seja

de onde ele for. “Uma vez com um alemão foi difícil. Nos entendemos por gestos, basicamente. Ele queria passar na frente da Arena do Grêmio, logo que inaugurou. Com o sotaque forte, me perguntou se eu era gremista ou colorado. Quando eu respondi que torcia para o Grêmio, ele começou a pular no banco de trás e me deu um abraço, que eu quase perdi o controle do carro”, ri. Situações engraçadas, a propósito, são as mais frequentes. OBSERVADOR ATENTO Além da boa memória visual, que, segundo a neurologista, é o tipo de recordação que permite lembrar uma imagem que já desapareceu do alcance dos sentidos, o motorista garante que também tem uma sensibilidade de saber para onde a pessoa está indo, antes mesmo de ela falar. “Eu analiso muito as pessoas, a forma como se comportam. Quando vem caminhando, eu já fico pensando ‘aquele vai para a rodoviária’. Ou se um cara sai correndo, logo que desembarcou do avião, ele provavelmente tem uma reunião aqui perto mesmo. Se eu ofereço táxi e me respondem ‘vou fumar um cigarro primeiro’, é porque este vai fazer uma viagem longa e vai ficar um bom tempo sem fumar”, constata. A simpatia, a forma irreverente e o sorriso constante encantam os clientes. “Muitos se tornam meus amigos, de trocar e-mails, de ligar para saber como está. Até convite para pescar eu recebo”, brinca. Algumas celebridades também são conquistadas por Vandir, que tem um atraente serviço de bordo – balas 7 Belo. Já pegaram carona com o taxista diversos jogadores da dupla Gre-Nal e jornalistas de grandes empresas de comunicação. “Com o Gabriel Pensador eu tenho até uma foto, muito bacana ele. Mas quem eu queria mesmo carregar um dia é a Adriane Galisteu. Acho que ela não anda muito de táxi... Quem sabe um dia!”, confessa esperançoso. Após anos trabalhando como vendedor e rodando todo o estado, Vandir ingressou na atividade de taxista por convite de um amigo. “Estava

meio sem chão depois de me separar e minha empresa falir. Precisei nascer e viver de novo. Um amigo tinha a placa do táxi e sempre dizia: ‘Cara, tu tens um potencial incrível de comunicação, de conhecimento. Quem sabe a gente faz um esquema juntos?’. E eu fiquei relutando. Taxista? Eu?”. O arrependimento foi não ter começado antes. O que é perceptível quando afirma com ênfase o que acha do seu trabalho: “É muito bom, é muito legal. Uma hora tu estás com um estudante, daqui a pouco com um médico, um jornalista, um psicólogo, um jogador, um ator ou uma pessoa qualquer. Cada vez que eu coloco a chave na ignição e entra alguém, eu me pergunto ‘quem será?’”.

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Para encontrar o personagem da minha matéria, resolvi ir a campo, no caso, o Aeroporto Salgado Filho, devido a grande concentração de taxistas, e buscar algum profissional com uma boa história para me contar. Não foi tarefa fácil! No meio do movimento dos desembarques, fui mandada de um lado para o outro para achar quem pudesse me dar alguns minutos de atenção. Foi então que decidi ir até o terminal antigo, pois me informaram que naquele horário era mais tranquilo. Deparei-me com o simpático Vandir por acaso, que prontamente me atendeu e ofereceu sua história de vida. Por sorte, ele tem a facilidade da memorização visual, encaixandose bem com o que eu precisava. O bacana de fazer esta pauta, assim como tantas outras na jornada de um repórter, foi conhecer um apaixonado pelo o que faz. Como ele mesmo disse, se arrepende de não ter começado antes como motorista de táxi. Cada detalhe era narrado com emoção, mesmo que talvez não signifiquem tanto para quem está de fora.

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65 ANOS DE HISTÓRIA

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um castelo no centro da cidade Palco de uma curiosa lenda urbana, o Castelinho do Alto da Bronze ultrapassou décadas e hoje está no meio do Centro Histórico de Porto Alegre TEXTO: Bibiane Engroff l FOTOS: ALESSANDRA FEDESKI E JORGE LEITE

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m castelo em estilo medieval, construído no centro histórico de Porto Alegre nos anos 1940, gera estranheza e fascínio aos porto-alegrenses. Seus paredões de pedra, suas torres dentadas e janelas em arco, guardam muitas histórias que mexem com o imaginário de quem o conhece, de quem já ouviu falar ou de quem apenas transita pelo Centro Histórico da cidade. Tudo começou com a adoração que Carlos Eurico Gomes, um aclamado político casado com Ruth Caldas, irmã do diretor do jornal Correio do Povo, tinha por castelos. Ele colecionava fotos e recortes de revistas e jornais, pois sempre sonhara em construir um para si. Foi quando Carlos, já casado, se apaixonou por Nilza Link, uma jovem de 18 anos, mãe de um garoto e desquitada. Os dois mantiveram um relacionamento em segredo, mas sua mulher descobriu a traição e pediu o divórcio. Sendo assim, Carlos desenhou a próprio punho a planta do castelo e o ergueu para morar com Nilza. Reza a lenda que a jovem se tornou a Rapunzel de Porto Alegre, devido ao excessivo ciúme do companheiro, que não a deixava nem se aproximar das janelas, muito menos sair de dentro de casa sozinha. Após quatro anos de convivência, entre 1948 a 1952, Nilza se cansou da vida que levava e resol-

veu fugir com seu filho. Esse romance foi narrado pelo escritor e jornalista gaúcho, Juremir Machado da Silva no livro A prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze. Depois da fuga de Nilza, Carlos se casou novamente e continuou morando no castelo com Nélida, sua nova esposa. O castelo, que está situado na esquina das ruas General Vasco Alves e Fernando Machado, foi construído onde deveria ser o pátio da casa de Rui Claudio da Cunha Marques e Neila da Cunha Marques. A residência do casal existe há 109 anos e contorna a construção medieval fazendo um “L” no castelo. Esse foi o motivo que fez com que, em 2005, Rui decidisse adquirir a casa. Já Neila, que vem de uma família tradicional do Alto da Bronze, conhece o castelo desde pequena e sempre teve uma ligação afetiva com ele. Hoje se sente honrada em ter comprado a edificação. “Carlos faleceu, e então Nélida continuou morando no castelo e, depois que ela morreu, eu sempre pensava que ele poderia ser nosso, tenho uma ligação forte com ele, que representa boa parte da minha vida”, afirma Neila. Nélida faleceu em 2003, mas como parou de morar no castelo anos antes, o espaço acabou sendo palco para inúmeras atividades. O Castelinho participou da noite de Porto Alegre quando se

transformou na Wiskeria Ivanhoé, uma tradicional boate da época, criada por Ovídio Chaves. Ovídio era poeta, compositor, jornalista e boêmio. Seu sobrinho, Ricardo Chaves, mais conhecido como Kadão, fotógrafo que atualmente trabalha como colunista da Zero Hora, conta que Ovídio sempre foi uma pessoa muito simples. “Meu tio era uma figura muito interessante. Em Porto Alegre, ele despertava amor e ódio por ser pouco convencional para a época”, explica. Além da Wiskeria, o poeta abriu em meados dos anos 1950 também no castelo, o Clube das Chaves, que foi sua casa mais expressiva. O Clube foi um dos primeiros locais noturnos de Porto Alegre que tinha música ao vivo e não era parecido com os cabarés de prostituição que sempre existiram. Era frequentado por intelectuais, artistas e músicos, como Mario Quintana, Carlos Scliar, Iberê Camargo, Nelson Gonçalves, Ivon Curi, Marlene, Silvio Caldas, Gregório Barrios, Cecília Meireles, Manoel Bandeira e muitos outros. Kadão conta que Ovídio sempre foi uma pessoa muito romântica e não se importava com luxos. “Quando ele se mudou para o Rio de Janeiro, fui lá visita-lo, e ele morava em uma casa velha, caindo aos pedaços. A porta da geladeira era enferrujada, era um lugar bem estranho, mas ele era um cara assim,

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não dava muita bola para essas coisas e vivia uma vida pouco convencional”, conta o sobrinho. Mesmo sendo uma pessoa conhecida na noite de Porto Alegre, Ovídio não tinha muito êxito com seus investimentos. Como era boêmio, acabava consumindo mais bebidas do que faturando. No entanto, não se sabe se na época das duas boates, Carlos Eurico Gomes ainda estava vivo, e se Ovídio alugava dele o castelo, pois a separação com Nilza e a abertura das casas noturnas aconteceu na mesma época, tudo em meados dos anos 1950. A única coisa que se sabe é que Nélida herdou a edificação após a morte de Carlos. Como as histórias são muito antigas e cheias de detalhes, é inevitável que algumas perguntas fiquem sem respostas. Depois que o Clube e a Boate se extinguiram, Rui e Neila passaram a alugar o espaço, em 2009, para sete artistas, eram os “Se7e artistas residentes”. O grupo era formado por Alejandro 34

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Ruiz Velasco, Adriana Xaplin, Elen de Oliveira, Lena Kurtz, Lisete Bertotto, Manoel Henrique Paulo e Sandra Santos. O espaço cultural dispunha de oficinas de pintura, escultura, muralismo (tipo de pintura que é executada diretamente em uma parede), fotografia, literatura, teatro, quadrinhos, caleidoscópio, toy art e leitura. Cada artista instalou no castelo o seu atelier, e o objetivo era oferecer cultura e informação à sociedade. Luzia Helena Kurtz de Sousa Bragatti, conhecida apenas como Lena, foi uma das artistas que montou seu espaço no Castelinho. Além de ser jornalista, Lena estuda artes visuais na UFRGS e sempre teve uma ligação muito forte com as paredes de pedra do castelo. “Durante muito tempo, minha linguagem visual foram as histórias em quadrinhos inspiradas em arte gótica. Quando descobri que no centro de Porto Alegre existia um castelo gótico, eu me emocionei muito, e minha ligação com ele se iniciou”, conta ela. Durante os dois anos, os artistas fizeram festas, aulas de xadrez, cursos de desenho, brechós em prol dos animais e diversas oficinas. Este foi o único momento em que o castelo foi efetivamente aberto a um público variado. “Tenho saudade dessa época,

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JORGE LEITE

ALESSANDRA FEDESKI

Rui e Neila são proprietários do Castelinho desde 2005. O espaço é alugado para Sandra, que realiza projetos culturais no local, como pintura e leitura

aquele é um lugar mágico, muito movimentado, me sinto muito grata por ter podido participar de tudo isso.” O grupo dos sete artistas terminou quando Elen de Oliveira morreu. Hoje a artista plástica, designer têxtil, escritora e ex-integrante dos “Se7e Residentes”, Sandra Santos, trabalha e reside no castelo. No início, Sandra precisava apenas de um local para realizar o lançamento da obra de um poeta português, pois era curadora do evento e alugou o castelo somente para isso. No entanto, a artista também precisava de um lugar para colocar em prática um de seus projetos, o “Casa Naíf”, que é voltado para pintores não conhecidos e sem verba para realizar as obras e fazer exposições. O projeto tem o foco de incentivar a produção artística naíf brasileira e latino-americana. Sandra entra em contato com estes artistas e oferece hospedagem de duas semanas para eles produzirem as obras. “São artistas com dificuldades, que não recebem ajuda alguma, alguns não têm e-mail ou telefone. Eu preciso ir na casa deles para convidar para o projeto. Eles não são reconhecidos”, explica Sandra. Além de ela pagar a passagem e garantir o bem estar dos pintores, eles também recebem tintas,


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pincéis e telas para realizar as pinturas. No final deste período, Sandra monta uma exposição no castelo para eles venderem suas obras. “Eles têm cores maravilhosas. O folclore brasileiros está dentro de seus quadros, é a arte mais brasileira que existe”, explica. Depois que a artista assumiu o local, o castelo se tornou o “Espaço Cultural Castelinho do Alto da Bronze”, onde acontecem periodicamente exposições de artes plásticas e fotografias, lançamentos e performances artísticas, saraus literários e exposições. Além disso, Sandra realiza atividades literárias e artísticas com as escolas, “Na Páscoa, convidei as escolas para trazerem os alunos. Montei uma oficina de arte para eles pintarem os coelhos e fiz uma atividade para procurarem os ovos pelo castelo. Às vezes eu chamo algum escritor ou poeta infantil para fazer um bate-papo com as crianças”, conta ela. Sandra também é curadora de um projeto de incentivo à leitura, do Castelinho Edições, o “Instante Estante”. O objetivo é distribuir livros que cheguem ao leitor gratuitamente, através da Intervenção Urbana Instante Estante ou pela distribuição nas bibliotecas comunitárias. Sandra se considera uma “moradora de passagem” do castelo, pois viaja

bastante. Ela diz que se sente como um Naíf, que passa curtas temporadas morando na edificação. “Eu não sinto o castelo como minha casa. Eu estou sempre de passagem, mas os momentos que passo aqui são bons”. Sandra está com um novo projeto em mente. Sua ideia é fazer o Clube da Leitura. Ela pretende comprar um caixão e montar dentro do castelo um acervo de literatura fantástica. O projeto é diferenciado, pois não consiste na venda de livros. “Existem muitos clubes de leituras que acontecem nas livrarias, onde o intuito é vender as publicações Aqui vai ser diferente. O clube escolhe que livros as pessoas vão ler, depois elas pesquisam sobre o tema e é criado um debate sobre o assunto. Será uma coisa mais ampla, uma discussão sobre a leitura mesmo”. Sessenta e cinco anos depois de ter sido construído, o castelo continua chamando a atenção. Muitas pessoas desconhecem a lenda da prisioneira, e muitas se intrigam com o que acontece dentro do castelo, que já foi palco de inúmeras histórias e está cravado no centro de Porto Alegre. O que se imagina é que não sairá do meio da cidade tão cedo e continuará mexendo com o imaginário das pessoas. O que resta saber é quais serão as novas histórias que as paredes de pedras vão guardar?

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Subo a Rua Vasco Alves há muitos anos, pois minha mãe trabalha na redondeza. Sempre tive uma curiosidade muito grande em saber o que tinha acontecido dentro naquele castelo, pois uma construção dessas no meio da cidade não é muito comum. Quando decidimos o tema da Primeira Impressão, não tive dúvidas sobre minha pauta. Iria descobrir tudo o que aconteceu naquele lugar. Durante todo o processo de reportagem, me deparei com histórias incríveis e interessantes, desde a lenda urbana da prisioneira, até o que acontece no castelo nos dias de hoje. Além de ter descoberto as memórias do prédio, que nasceram em 1948, é fantástico saber que, mesmo depois de anos, ele não está desativado, muito pelo contrário. No momento em que iniciei o trabalho sobre o castelo, imaginava encontrar ele vazio, servindo, de repente de museu. Quando me deparei com as atividades que são realizadas no castelo, com os projetos de incentivo à leitura e a pintura nacional, fiquei realizada com a reportagem, ultrapassou as minhas expectativas.

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O passado vivo de um ex-combatente As lembranças de Francisco Pértile, um homem que participou da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial TEXTO: Augusto Veber l FOTOS: Clara Állyegra Petter

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le podia ter ficado onde nasceu e foi criado, dando seguimento aos negócios da família. A agricultura, no distrito de São Valentim, em Bento Gonçalves, é a maior força econômica daquela região. Mas Francisco Pértile, hoje com 92 anos, não se contentava em ficar parado. Ainda jovem, aos 22 anos, embarcou para Quaraí, onde iria iniciar sua vida militar no 5º Regimento de Cavalaria Mecanizado. Em janeiro de 1942, o jovem soldado ainda não sabia, mas essa

viagem seria mais longa e marcante do que ele esperava. Depois de quase 20 meses treinando maneiras e estratégias de combate em Quaraí, recebeu o convite para servir no Rio de Janeiro. Foi na então capital do Brasil que o combatente recebeu a notícia que transformou sua vida: ele estava na tropa de elite do Exército Nacional e foi convidado para participar da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e iria apoiar o Brasil, aliado dos Estados Unidos, na Segunda Guerra Mundial.

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Primeira Impressão - Como foi o período de treinamento em Quaraí e quais as lembranças marcantes? Francisco Pértile - A sujeira. Em Quaraí, durante o período de treinamento, corríamos feito loucos. Éramos tratados feito bichos pelos oficiais, que exigiam sempre o máximo de todos os soldados. E, devido a exaustão do treino, a fome nos intervalos era grande. Mas naquela época Quaraí era uma cidade pequena, ainda em desenvolvimento, e não havia luxo no quartel. A comida era cheia de animais e insetos, nunca vi coisa igual. O feijão para os soldados era feito em tonéis e, enquanto um militar mexia a comida com uma colher, outro passava uma peneira para tirar os bichos. Quando um rato era encontrado, precisava ser tirado rapidamente, pois podia derreter e aí estragava o feijão. Na época não tínhamos outra coisa, então restava a nós tirar a sujeira possível e comer o resto. PI - Quantos jovens de Bento Gonçalves foram servir também em Quaraí? Francisco - Na época, nós fomos em quatro homens, mas somente eu fui 38

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para a Itália. Os oficiais realizavam uma espécie de seleção entre os combatentes. Os que aparentavam ser fracos e também os que não tinham uma altura boa eram deixados de lado. Dois dos que vieram comigo eram baixos demais, e o outro pegou varicela quando chegou no Rio de Janeiro, ficando impedido de treinar. PI - E quando você ficou sabendo que iria participar da Força Expedicionária Brasileira (FEB)? Francisco - Depois de Quaraí nós fomos para o Rio de Janeiro. Viajamos em um trem de carga durante sete dias e oito noites. Dormindo, na maioria das vezes, no chão ou por cima da carga. Quando chegamos na Estação Central, no Rio, fomos ao Quartel da Guarda, no Palácio da Guanabara. Foram dois meses em que pouco fizemos. Fiquei a maior parte do tempo passeando no Rio de Janeiro. Foi ali que recebemos o convite de participar da FEB. Eu aceitei. Teve um outro gaúcho que se recusou a fazer parte e desertou. Ele tinha medo da guerra.

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Eu achava que se fizesse a mesma coisa não estaria provando meu amor ao país. Depois de aceitar participar da guerra, fui para São João Del-Rei, em Minas Gerais, onde estavam reunidos todos os combatentes que iriam participar do confronto. Lá foram mais 78 dias de treinamento e recebendo instruções dos oficiais do Exército Americano. Em um dia de folga, pegamos detenção porque estávamos cantando músicas em italiano no gramado do quartel, porque a maioria dos combatentes gaúchos eram descendente de italianos. PI - Você participou da tomada de Monte Castelo e de Montese. Como foram esses episódios? Francisco - Os americanos já tinham tentado cinco vezes invadir a cidade de Monte Castelo. Na sexta vez, depois de um grande planejamento, foi possível fazer a invasão. No meio estavam os brasileiros, de um lado os americanos e de outro os ingleses. Os alemães não tinham como escapar. Ou recuavam ou morriam.


No meu primeiro ataque, ficamos em uma baixada, com uma tela na frente. Quando deitávamos, dava pra sentir e escutar as balas passando. Ficávamos deitados igual a lagartos. Eu nunca fui atingido, mas as balas passavam a um palmo da gente. Nesse dia, depois da meia noite, começou a nevar na Itália. Em Monte Castelo onze brasileiros ficaram presos na neve, sendo que só vimos os corpos quando a neve baixou, no início da primavera. Foi nesse período também que iniciamos a batalha de Montese, mas a de Monte Castelo, se comparada, foi a mais sangrenta. PI - De que forma os soldados ficavam informados sobre o andamento da guerra? Como era a feita a comunicação? Vocês tinham acesso as cartas de familiares? Francisco - Não sabíamos nada do que acontecia na guerra. Da família, eu recebia cartas, mas era tudo controlado pelos americanos. Eram dois aviões pequenos que levavam cartas todos os dias do Brasil para a Itália e da Itália para o Brasil. Na época não havia jornais como os de hoje, somente alguns folhetos que eram distribuídos entre os soldados, que continham informações sobre a guerra. Mas, como cada dia acontecia algo novo, sempre estava desatualizado. Ainda não existiam os rádios comunicadores, então a comunicação era feita por cabos. Grandes rolos de fios que os soldados iam passando nas trincheiras. Quando caía uma granada, o fio se rompia, daí tínhamos que consertar.

PI - O senhor lembra se matou algum soldado alemão? Francisco - Em uma patrulha noturna eu atirei em um inimigo, ele ficou ferido e morreu logo depois de chegar na enfermaria. Isso fazia parte do nosso trabalho na guerra. Era difícil de enxergar quando combatíamos à noite. Os alemães eram sacanas. Colocavam minas por baixo de corpo de soldados, para que, quando alguém tirasse, tudo explodisse. Nas portas, a mesma coisa. Se não tinha espaço para passar, nem tentávamos. Era certo que havia algo que iria explodir quando a porta fosse aberta. Um brasileiro ficou cego dos dois olhos quando abriu uma caneta que achou em uma batalha. Ela explodiu no momento em que o soldado abria para ver o que continha. Um amigo de Quaraí tinha uma moto no Brasil, e, quando ele viu uma na Itália, tentou ligar. Havia uma bomba no motor e ela explodiu enquanto o soldado tentava ligar. PI - E a medalha que o senhor recebeu durante a guerra? Francisco - Ainda quando estava na Itália, fiquei sabendo que tinha ganho uma medalha de Cruz de Combate de Primeira Classe, a mais importante da FEB. Ganhei pela minha bravura, em um episódio que tentei salvar dois soldados e um sargento, todos brasileiros, após um ataque de granadas. Eu tirei os dois do local e me escondi. O sargento resistiu, mas ficou totalmente surdo. Já os ferimentos dos soldados eram maiores, e eles não aguentaram.

A vida pós-guerra Depois que retornou ao Brasil, Pértile foi convidado para continuar no Exército Brasileiro, mas recusou, atitude da qual se diz arrependido. Ele voltou para São Valentim e ficou trabalhando cerca de um ano junto à família, no período de readaptação. Virou caminhoneiro e levava cargas de madeira até a cidade de Getúlio Vargas. Exerceu a profissão por mais 15 anos. Posteriormente, passou em um concurso federal, tendo se aposentado como motorista concursado. Foi nesse meio tempo também que Pértile encontrou Rosa Cobalchini, com a qual casou e teve uma única filha. Hoje ele se dedica à família, à propriedade e também a dar palestras em escolas da região, para que os estudantes sintam com maior intensidade e demonstrem mais interesse pela História, ouvindo de alguém que esteve lá sobre o que aconteceu no período da guerra. Pértile é recebido diversas vezes ao ano no 6º Batalhão de Comunicações (BCOM), em Bento Gonçalves, sendo que até hoje participa do desfile cívico de 7 de Setembro. “Alguns amigos meus nem lembram de momentos da guerra. Eu lembro porque eu falo sempre e mantenho vivo esse pedaço da história.”

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Como, igual ao entrevistado, também sou natural de Bento Gonçalves, cresci escutando que a cidade tinha um morador que havia combatido na Segunda Guerra Mundial. O interesse ficou maior quando Pértile foi realizar uma palestra na escola em que eu estudava, quando estava no Ensino

Médio. Poder escutar como foi o combate através de um ex-fuzileiro e não ter que ler alguma enciclopédia é um privilégio de poucos, principalmente se pensarmos que restam apenas alguns deles no Brasil. A ideia de registrar as memórias desse homem foi justamente para que elas não

se perdessem no tempo, para que ficassem registradas na fala de alguém que realmente esteve no front, que passou noites sem dormir, que comeu comida suja, que passou dias molhado pela lama, com o intuito de ajudar arduamente a Força Expedicionária Brasileira na conquista da batalha.

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Cem anos de paixão em azul e branco Memórias de torcedores do Cruzeiro e do Zequinha resgatam momentos marcantes dos “primos pobres” da capital gaúcha TEXTO: Emerson Ribeiro l FOTOS: Henrique Standt

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em Grêmio, nem Internacional. No ano de 1913, Porto Alegre conheceu o São José e o Cruzeiro, criados respectivamente em 24 de maio e 14 de julho. Estão longe de ter o mesmo prestígio da dupla Gre-Nal, mas continuam a contribuir na construção da história do futebol gaúcho. “Cruzeirense não, sou cruzeirista” O relato de torcedores como Luiz Carlos de Aragão, aposentado e presidente do Cruzeiro entre 1989 e 1990, rememora alguns dos feitos do clube porto-alegrense. Aragão, um simpático senhor de 83 anos, mas com a vitalidade de um homem com metade de sua idade, não é torcedor cruzeirense. “Sou cru-ze-i-ris-ta! Cruzeirense é lá pelas bandas de Minas Gerais”, responde, explicativo, sempre com um sorriso no rosto. Os olhos de Aragão já viram momentos memoráveis e personagens marcantes do futebol, como Pelé e Garrincha. Mas o Cruzeiro também teve grandes nomes que Aragão recorda com um brilho no olhar. Em especial a dupla Flamini e Lombardini, um italiano e outro argentino. Em 1945, o Cruzeiro foi pioneiro no Estado em contratar um técnico estrangeiro, o húngaro Emerich Hirchl, responsável pela vinda da dupla de atletas internacionais. “Mas o Flamini era um craque, ele incomodava mesmo. Para tirar a bola do pé dele, precisava ser bom”, lembra. Avançando um pouco mais no tempo, em novembro de 1953, o Cruzeiro partiu para a Europa, era o primeiro time gaúcho a atravessar o Oceano Atlântico. Aragão diz que não pôde acompanhar o time, fala o que seus amigos contaram sobre o principal jogo da viagem. Desembarcando em Madrid, na Espanha, a delegação alviazul

precisava imediatamente encontrar adversários para financiar a excursão. “Então surgiu a proposta. Vocês não querem jogar contra o Real Madrid? Vamos jogar com o Real Madrid, sim. E o Cruzeiro foi a campo e empatou em 0 a 0 com o tal de Real Madrid”, diz Aragão, admirado. Se Aragão não estava em Madrid, estava na arquibancada do Fortim da Baixada no chamado “Gre-Cruz Inacabado”, um dos duelos mais polêmicos entre o Grêmio e Cruzeiro. Era final da década de 1940, período Pós-Segunda Guerra Mundial. O jogo estava em 1 a 1, faltavam aproximadamente 15 minutos para o término da partida quando o juiz assinalou pênalti para o Cruzeiro. “Terminou o jogo? Foi suspenso... Deu uma briga desgraçada para não baterem o pênalti”, conta. Desse dia, Aragão guarda uma amarga lembrança. “Levei um soco na cara, não sei de quem. Caí no banhado que tinha atrás da arquibancada e acabei perdendo um dente nisso”, diz. Aragão nutria o desejo de ser piloto de avião na época e estava prestes a fazer um exame para tornar-se oficial da Força Aérea Brasileira (FAB). Não fosse o resultado do soco naquele dia – a perda do dente –, Aragão poderia ter alçado sonhos mais altos, mas não necessariamente melhores. “De três colegas que fizeram o exame, dois já morreram. Quem sabe no primeiro voo eu também morresse, hein? Vai ver foi um alerta”, resigna-se. Mas o jogo que foi suspenso precisava de um ponto final. Como começar? Em um novo dia, com portões abertos para a torcida e bola na marca do pênalti. O jogador do Cruzeiro bateu, porém o estádio veio abaixo com a defesa do arqueiro tricolor, que espalmou a bola para escanteio. “Mas teve o escanteio ainda, aí o Cruzeiro bateu o tiro de canto e fez o gol”, lembra antes de cair em gargalhadas. “Quase que não termina o jogo de novo”, conclui, en-

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À esquerda, Valter e Flávio, pai e filho, torcedores do Zequinha. À direita, Aragão, torcedor cruzeirista

quanto ainda recupera-se dos risos. Ao contrário do Grêmio no “GreCruz Inacabado”, Aragão não tem problema com o final, encara a velhice com naturalidade. “Esse é o caminho natural e inevitável, então é bobagem ficar se preocupando com isso,” explica. Aragão até já escolheu a bandeira do Cruzeiro que será estendida sobre o seu caixão. E seu repouso eterno será no Cemitério João XXIII, exato lugar que abrigava o Estádio da Montanha, a primeira casa do Cruzeiro. torcedor DO São José antes mesmo de nascer Ao contrário dos primos ricos, Grêmio e Internacional, o Esporte Clube São José não tem muitos troféus nas prateleiras, nem muitos torcedores. Mas, então, como esse clube ultrapassou um século? A resposta é até óbvia: amor ao futebol. Esse fator fez o clube que foi fundado por um grupo de estudantes do Colégio São José, daí seu nome, permanecer até hoje de portas abertas. E pessoas como Flávio Pinheiro de Abreu explicam porque esse time se mantém geração após geração. Presidente do Zequinha, Flávio, 58 anos, estabeleceu uma ligação com o clube antes mesmo de nascer. Ele revela que um dia perguntou ao pai exata42

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mente quando passou a frequentar as dependências do Estádio Passo D’Areia, o reduto do clube desde a década de 1940. “Na gestação da tua mãe, respondeu o pai. “Tenho até hoje fotos minhas, com três e quatro aninhos dentro do campo do São José”, relatou Flávio enquanto aguardava o início da última partida do Zequinha no Campeonato Gaúcho de 2013. O clube da Capital iria enfrentar o Veranópolis em poucos minutos e, dependendo do resultado da partida, a equipe alviazul poderia ser rebaixada para a Divisão de Acesso. Apesar de estar com os nervos à flor da pele, Abreu conseguiu falar um pouco sobre alguns eventos marcantes no clube. “Quem sabe assim o tempo passa mais rápido”, justificou. “Estou louco para que essa partida comece logo, para terminar com isso de uma vez”, disse, enquanto conferia os ponteiros do relógio. Nascido e criado no bairro IAPI, bem próximo ao endereço do São José, na Zona Norte, Abreu conta que o pai, Seu Valter, que ainda é vivo e tem 85 anos, ironicamente não visitava o estádio por conta do futebol. A paixão do Seu Valter era outra. Ele adorava jogar bolão. Por mais que o futebol tenha destaque no Zequinha, o clube acolhe para além das quatro linhas de cal outras atividades, esportivas e sociais. Essa característica faz o clube ser frequentado não apenas em dias de jogos por pessoas como Seu Valter. Mas a paixão do filho do Seu Valter é o futebol mesmo. Quando criança, via todos os treinos do time depois da aula. E, aos oito anos, Flávio presenciou um dos seus jogos mais marcantes. Antes do confronto, o adversário já havia derrotado o Zequinha por 1 a 0 em pleno Passo D’Areia. O time da Capital precisa-

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va derrotar o Santa Cruz no Estádio dos Plátanos para ascender à elite do Estadual. “Me lembro como se fosse ontem, ganhamos lá por 1 a 0. Na prorrogação, marcamos mais dois”, contou. O artilheiro da partida foi João Alberto, atacante responsável por todos os gols do duelo. Falando em jogadores, um dos grandes orgulhos do presidente é ter visto o meio-campista Ênio Andrade retornar ao Zequinha para jogar suas últimas partidas antes de pendurar as chuteiras e dar o pontapé inicial na carreira como treinador no próprio São José. “Canhoto, batia falta, pênalti, era um mestre. Realmente, um dos melhores jogadores que já vi atuar”, conta. Mas nem tudo é um mar de rosas. Flávio lembra que era comum na década de 1980 o time viajar para jogos no Interior do Rio Grande do Sul de Kombi ou van. “Uma vez, tínhamos que ir para São Borja. Durante a viagem, os jogadores desciam do veículo e percorriam parte do trajeto a pé para fazer algum trabalho físico”, explicou o presidente. Dessa forma, os efeitos do longo trajeto foram driblados pela comissão técnica. “Chegando lá, ainda vencemos por 1 a 0.” E o último jogo do Zequinha no Gauchão deste ano? Terminou sem bola na rede, placar que garantiu a comemoração da torcida alviazul e a manutenção do clube na Primeira Divisão. Como o Cruzeiro e o São José, há tantos outros clubes que não são mirados pelos holofotes da imprensa, mas têm muito para contar. São histórias, muitas delas sem ponto final, que seguem às margens do conhecimento, esvanecendo-se nas poeiras do tempo. O caminho para mudar essa realidade? Escrever, escrever e escrever... Registrar esses fatos. Eis uma singela maneira de driblar o tempo.


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A proposta inicial era trabalhar com quatro clubes na reportagem. Ledo equívoco. Já tive dificuldades homéricas para contar as histórias de apenas dois personagens. Então, preciso obrigatoriamente fazer menção aqui aos dois outros clubes do Rio Grande do Sul que completam 100 anos em 2013: Juventude e Santa Cruz. E seguiu-se a reportagem sobre os “primos pobres” da Capital, sempre ofuscados pela influência forte de Grêmio e Internacional. À medida que fui conhecendo mais a fundo os clubes, fiquei surpreso com a riqueza de detalhes, curiosidades e histórias singulares que esses times guardam. Por outro lado, lamento a falta de interesse da imprensa por equipes como o Cruzeiro e o Zequinha. Muitos fatos jamais virão à tona novamente, pois estão arquivados somente na memória de torcedores como Aragão e Flávio. Acredito que um dos deveres dos Jornalismo é preservar a nossa história, não apenas no futebol. E, nessa condição, senti uma ponta de orgulho de resgatar um pouco de algo que poderia se perder no tempo.

Acima, arquibancadas remanescentes do Estádio da Montanha, atualmente Cemitério João XXIII. À direita, camarotes do Estádio Estrelão, segunda casa do Cruzeiro

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Na carona do Fusca Adorado por diferentes gerações, modelo não cai no esquecimento

TEXTO: André R. Herzer l FOTOS: André Pereira e Marília Dias

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inconfundível ronco do motor denuncia que ele está por perto, as curvas redondas não deixam dúvidas: é um Fusca. O veículo - porquê Fusca não é carro, Fusca é Fusca não é fabricado há mais de 15 anos no Brasil, mas ainda pode ser facilmente encontrado rodando pelas ruas e rodovias brasileiras. O veículo produzido pela Volkswagen no mundo todo até 2003 é um ícone conhecido pela sua valentia. Quem, na década de 1970, não tinha tanto interesse no Fusca era Dinarte Fagundes de Moraes, hoje com 80 anos. Porém, ele acabou se rendendo aos encantos do simpático veículo. Talvez por interferência do destino, mas mais pela sorte de um amigo, Dinarte adquiriu um Fusca. Explica-se: um amigo do aposentado na época ganhou um TL, carro também fabricado pela Volkwagen, e continuou pagando um consórcio afim de receber o Fusca. No final, Dinarte pagou ao amigo e ficou com o Fusca 1300L, ano 1976 e modelo 1977. Isso explica por que o contrato de compra do veículo mantido intacto pelo aposentado está no nome do amigo. Retirado com a quilometragem zerada na concessionária Gravel, de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, o Fusca amarelado entrou na vida do aposentado para nunca mais sair. Desconfiado no início, hoje Dinarte só tem elogios para o arrojado veículo da Volkswagen. “Não me arrependo de ter comprado esse Fusca. Nunca vi um carro tão bom”, afirma. Também pudera, em mais de 35 anos juntos, o Fusca nunca deu problemas para Dinarte. O interior do veículo mantêm-se original, assim como a chave (4). Destaque para o rádio (2) que possui o nome da marca fabricante do Fusca escrito no seu dial e também para o bem conservado manual do proprietário (1). Outra coisa que chama a atenção é a logomarca (3) da concessionária ainda exposta na parte traseira do Fusca, algo raro de se ver.

Problemas mecânicos só com o setor de direção e a embreagem, que precisaram ser feitos. Este ano o motor do veículo também passou por reparos pela primeira vez. Esses poucos problemas não são indicativos apenas de uma veículo resistente, mas também de um dono zeloso que nunca permitiu uma revisão feita na quilometragem errada. Assim como o motor, a lataria do Fusca de Dinarte também precisava de alguns reparos. Por isso o aposentado buscou uma chapeação que foi indicada por conhecidos. Ao deixar o Fusca no local, ficou apreensivo. “Ele nunca pousou fora de casa, e o local era de se desconfiar. Fiquei com medo de que roubassem meu Fusca, que levassem embora o motor”, releva o aposentado, que até hoje cobre o seu Volkswagen com um pano quando ele está na garagem para que os gatos não arranhem a lataria. A preocupação era tanta que Dinarte chegou a ficar sem dormir direito durante as noites em que seu Fusca estava fora. Também pudera, já eram 180 mil quilômetros feitos juntos e alguns bons anos. “Este Fusca é mais velho do que meus netos”, calcula. Hoje em dia, Dinarte utiliza o veículo apenas para ir ao mercado ou a lugares próximos de casa, além do costumeiro “banho de sol” que o veículo ganha nos fins de semana quando fica parado no pátio durante o dia e não guardado na garagem como no resto da semana. Mas o Fusca 1300L do aposentado já teve tempos áureos rodando pela BR-101, indo para a praia com toda a família dentro. “Metíamos cinco pessoas dentro do Fusca e íamos para Cidreira”, recorda. Além disso, era comum que, pelo menos uma vez ao mês, ele rodasse até Osório. Já foram feitas propostas pelo Fusca de Dinarte, até mesmo de colecionadores, porém o aposentado não pensa em vendê-lo. “Este é um Fusca original e bom. Hoje não tenho condições de dirigir um carro novo”, pondera.

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PAIXÃO DE JOVENS Quem também prefere o Fusca aos carros novos são os jovens Rodrigo Kaspary e Nicholas Kayser, ambos com 20 anos. Nicko, como Nicholas é conhecido, começou a se interessar pelo modelo aos 17 anos por influência de um colega de trabalho. Ainda menor de idade, foi a um encontro de Fuscas pela primeira vez, e a paixão foi tanta que três meses depois ele estava comprando um. Três semanas depois de adquirir o modelo, Nicko já estava indo com seu próprio veículo para um encontro de Fuscas em Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha. Desse encontro, Nicko guarda duas memórias: seu Fusca acabou tendo um problema ainda no caminho – quando foi comprado faziam cinco anos que ele não era ligado – e teve que ser rebocado por um amigo na ida e na volta. A outra é mais grave. “Acabei indo sem a carteira. Eu sabia que era errado, mas mesmo assim fui”, admite e depois sorri, ao lembrar do sermão que teve que ouvir do pai quando voltou para casa. Terceiro dono do Fusca 1200 vermelho, ano 1964 e modelo 1964, Nicko diz que é bonito ver o reconhecimento que as pessoas dão ao seu veículo. “Tem uns que perguntam se está a venda, mas nem troco ideia sobre valor, porque não existe”, afirma. O jovem modificou seu Fusca para se adequar ao estilo Hood Ride, ou Rat Look, que dá destaque à pintura desgastada e a outras modificações na parte externa do veículo. “Por dentro eu mantenho ele original, só modifico por fora”, explica e exemplifica: “mudei as suspensões, as rodas e o rebaixei”. As modificações feitas por Ni-

Piga (acima) diz que comprou seu Fusca por influência do amigo Nicko (abaixo) 46

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cko no seu Fusca, em parceria com os amigos da garagem que possuem – a Ratitude – rendeu ao seu Volkswagen o título de destaque na categoria Rat Look no encontro de Fuscas de Bento Gonçalves do ano passado. A resposta de Piga, apelido de Rodrigo, para a pergunta “De onde surgiu sua paixão pelos Fuscas?” é: “Culpa do Nicko”. Piga também iniciou seu interesse pelo popular modelo da Volkswagen aos 17 anos. Porém, diferente de Nicko, Rodrigo prefere manter o seu Fusca amarelo, ano e modelo de 1973, o mais original possível. Além da utilidade, ele vê nos gastos com manutenção do Fusca uma vantagem. “Tu conserta tudo nele com um martelo e arame”, brinca. Apesar disso, ele e sua namorada, Andressa Kaspary, 19 anos, já ficaram empenhados algumas vezes nas viagens que fizeram. Em uma delas, o fato de que o Fusca estava estacionado em uma descida fez com que ele pegasse no tranco, outra vez o pai de Piga precisou ir ao encontro do filho para rebocar o Fusca. Num terceiro momento, foi um pneu furado que atrapalhou a viagem. Sem contar as estradas pelas quais passavam que se pareciam com trilhas de jipe. “É admirável ver o que o Fusca aguenta”, admite Andressa, que aprecia o modelo há muito tempo – seu pai possuía um quando ela era pequena. Piga lembra que a história do Fusca também é interessante. Vai desde a criação do Volkswagen com um pedido do ditador alemão Adolf Hitler por um automóvel popular até a uma lei proposta em 1993 pelo então presidente Itamar Franco, que fez com que o Fusca voltasse a ser fabricado por mais três anos depois de ficar desde 1986 sem ser fabricado no Brasil. Apesar da idade avançada do Fusca – o primeiro carro a ser fabricado pela Volkswagen no Brasil –, o modelo nunca foi esquecido e mantêm-se na memória de muitos brasileiros.

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Acredito que grande parte dos brasileiros com mais de 20 anos já andou pelo menos uma vez na vida de Fusca. O popular veículo da Volkswagen não é produzido no Brasil há mais de 15 anos, no entanto ainda é encontrado facilmente nas estradas. O assunto dessa edição da Primeira Impressão – a Memória –, me deu a chance de falar desse veículo que nunca foi esquecido pelo brasileiro e que deve fazer parte da história de muitos deles. Com isso pude conhecer a história de um senhor bem-humorado que há 37 anos retirou um Fusca amarelo da concessionária e até hoje o mantêm em bom estado de conservação. Também tive a oportunidade de contar a história de dois jovens amigos apaixonados pelo Fusca. A fidelidade com o modelo é tanta que os jovens criaram com outros amigos uma pequena oficina onde eles trabalham nos seus Volkswagens, como o Fusca, a Kombi e a Variant. Fazer esta pauta foi gratificante pelas histórias que conheci e também prazerosa por poder falar um pouco deste antigo modelo do qual sou fã.

André Pereira

O Fusca amarelo acompanha Dinarte desde 1976

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O gênio gaúcho das máquinas voadoras 48

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A música que honra parte da história do Rio Grande do Sul escondida na cidade de Pelotas TEXTO: Lucas Steinmetz l FOTOS: ANDRÉ PEREIRA

“Satolep noite, no meio de uma guerra civil...”

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Após criar o F1 nos porões de casa (foto à direita), Joquim foi até o Rio de Janeiro a bordo do sucessor, o F2

ssim inicia um dos maiores sucessos da carreira do músico Vitor Ramil. A Narrativa conta a história de Joquim, o louco de chapéu azul que passava muito frio e lutava pelo sonho de ter seu próprio avião. Na canção, o inventor de projetos fantásticos estampava no peito seus ideais e morreu por eles. Após enfrentar poderosos da política na década de 1930, gritando aos quatro cantos suas teorias em meio à repressão – pois seu projeto fora recusado para beneficiar figurões anônimos – foi assassinado com quatro tiros em uma emboscada. Mas nem todos conhecem o Joquim da vida real. Nasceu em Pelotas – que escrita de trás para frente torna-se a cidade fictícia Satolep, de Ramil – no ano de 1909. Seu nome era Joaquim da Costa Fonseca Filho. A casa em frente ao Theatro Guarany, onde cresceu, ainda existe no número 516 da Rua Gonçalves Chaves, no centro da cidade. E foi no porão que a oficina foi montada e seus aviões criaram vida. Da sua descendência, aos 62 anos, é Joaquim da Costa Fonseca Neto quem guarda as memórias e fotografias. Hoje administra a fábrica de surdinas Guarany, fundada pelo pai. Não era o sonho de Joquim, mas foi o que aconteceu após ser impedido de produzir os aviões. Muita semelhança existe entre a realidade e a canção. Mas a arte não se chamaria arte se fosse uma cópia exata da verdade. Alguns realmente o julgavam louco. Na década de 1930, quem declararia sano um homem de 26 anos na intenção de construir, sozinho, um avião? O chapéu

azul é fictício, mas a fraqueza perante o frio pelotense não é. Sempre com muitas roupas e muitas cobertas, Joquim via no inverno um inimigo invisível, assim como descreve a música. Com apenas a quinta série do primário, ninguém entendia o dom para invenções de Joquim. “Ele nasceu assim. Tem pessoas que nascem assim. Quando construiu o primeiro avião, tinha 26 anos de idade. De dia ele trabalhava numa oficina de carros. À noite, construía o avião. Fazia os cálculos do jeito dele e sem recurso”, conta o filho. “Com 20 anos ele fez uma lancha. Ele fazia tudo. Nos anos 1930 pegou um carro, cortou ao meio e criou um ônibus. Na minha juventude eu andava no carro. Um dia eu perdi a chave da tampa do tanque. Eu disse pra pegar uma tampa nova e ele disse ‘não, vamos fazer uma chave’. Ele pegou uma chapinha de cobre, uma lima e começou a desenhar os dentes e fez a chave. Ele era muito teimoso, tudo ele queria fazer.” Em 1935 atingiu o nau da loucura no mar das ideias. Desenhou seus projetos e do porão nasceu o primeiro avião, batizado de F1. O F1 foi feito para que Joquim descobrisse se teria realmente a capaci-

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O herdeiro de Joquim, Joaquim Fonseca Neto, guarda legado do pai em fotografias e documentos e segue administrando a fábrica de surdinas

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dade de criar uma máquina voadora. Desfilou pelos céus locais, brilhando aos olhos dos incrédulos. Percebendo sua capacidade, deu o próximo passo. Com projeto mais elaborado, desmontou o F1 para dar vida ao F2, que teria espaço para duas pessoas. Com o F2 montado, foi buscar homologação do avião no Rio de Janeiro. Sua esposa teve de ir de navio, pois não existia autorização para que houvesse um passageiro extra no avião. Em uma viagem que durou quatro horas, incluindo escalas, Joquim chegou ao Rio de Janeiro em voo perfeito. Todos os testes foram feitos, e o avião foi aprovado. Com homologação, voltou com a esposa – dessa vez como passageira do F2 – para Pelotas. O PROJETO MAIS AMBICIOSO O sonho do pelotense com ideias malucas seguiu em frente com o projeto do F3, um avião para ser feito em tiragem industrial e ser colocado no mercado. Na sua busca mais ambiciosa que se encontra o desfecho de história de Joquim e a porta que Vitor Ramil encontrou para torná-lo um revolucionário político na ficção. O filho de Joquim compara o impasse da criação do F3 com os conflitos burocráticos que atrasaram em mais de três décadas a existência do aeromóvel em Porto Alegre. Anos e anos. “A logística brasileira é muito cara, mas tem muita influência externa. ‘Forças ocultas’, como diria Jânio Quadros.” Joquim teve seu projeto recusado e, em 1941, recebeu uma carta em inglês jus50

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tificando o motivo. “Dizia que os aviões feitos no Brasil não seriam homologados para voar, porque a madeira do Brasil não é própria para isso. Desde aí, ele nunca mais pôde fazer avião. Imagina! A melhor madeira no mundo está no Brasil!”, diz Joaquim. Com o projeto recusado, Joquim começou a abrir a boca contra os governantes e querer explicações sobre os porquês do Brasil não poder fabricar aviões. Algumas vezes, chegou perto de ser preso por subversão. Conseguiu evitar a cadeia graças a alguns amigos influentes que o ajudaram. Na ficção de Ramil, este foi o motivo da emboscada que matou Joquim com quatro tiros. Na realidade de Joaquim da Costa Fonseca Filho, o desfecho é menos trágico e guarda até hoje um pedaço da memória do Rio Grande do Sul que muitos não conhecem. “Ele resolveu fazer surdinas, porque proibiram de fazer avião, como é proibido até hoje no Brasil”, conta o único filho que continuou na administração da empresa e possui em funcionamento, até hoje, uma das máquinas criadas pelo pai. “Ele viveu uma vida desregrada, sem horário pra nada. Bebia de tudo, comia de tudo e não estava nem aí! Era um homem grande e forte.” Satolep perdeu Joquim em 1968, aos 58 anos. Vítima de um enfarte, o gênio pelotense das máquinas voadoras perdeu o medo do frio e deixou para trás um legado que saiu do interior do Estado para o infinito através do som da música.

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Definitivamente, me descobri alguém que prefere se aprofundar nas histórias. Hard News nunca foi meu forte e este foi o selo que determinou essa característica de uma vez por todas. Confesso que o cansaço foi algo abismal. São aproximadamente 400 km entre Tramandaí, onde moro, e Pelotas. Nunca tinha visitado a cidade, e essa é a mágica que me faz brilhar os olhos no jornalismo... Tudo que se conhece e aprende “por acidente” na profissão. Saímos de casa cedo da manhã, eu e meu pai para revezarmos o volante, e paramos em Gravataí para pegar o fotógrafo André. De lá, uma longa, entediante e cara estrada. Sim, cara. Abusivos oitenta reais apenas em pedágios. Ao fim do dia, suor válido. Fui à Pelotas por causa de uma música. Descobri um pedaço da história rio-grandense com uma riqueza que nunca me passaria pela cabeça. Fui bem recebido, bem atendido, conheci a verdade por trás da arte que eu admirava e vi que às vezes, por incrível que pareça, a realidade consegue ser mais bela do que sua “poetização”. Conheci o filho de Joquim e toquei nas invenções das quais ouvi falar enquanto crescia através da música. Mais maravilhado do que eu, estava meu pai, que cresceu naquela cidade e não a visitava havia 20 anos. Cansou! Mas de que adianta estar o tempo todo descansado e não viver? A vida foi feita para ser vivida, não para dormir.


A realidade em meio à poesia de ramil Em destaque, os versos da canção do músico gaúcho Vitor Ramil que foram reais na vida de Joaquim da Costa Fonseca Filho

Satolep noite No meio de uma guerra civil O luar na janela não deixava a baronesa dormir A voz da voz de Caruso ecoava no teatro vazio Aqui nessa hora é que ele nasceu, segundo o que contaram pra mim Joquim era o mais novo, antes dele havia seis irmãos Cresceu o filho bizarro com o bizarro dom da invenção Louco, Joquim louco. O louco do chapéu azul Todos falavam e todos sabiam quando o cara aprontava mais uma Muito cedo, ele foi expulso de alguns colégios E jurou: “Nessa lama eu não me afundo mais” Reformou uma pequena oficina com a grana que ganhara vendendo velhas invenções Levou pra lá seus livros, seus projetos, sua cama e muitas roupas de lã Sempre com frio, fazia de tudo pra matar esse inimigo invisível A vida ia veloz nessa casa no fim do fundo da América do Sul O gênio e suas máquinas incríveis que nem mesmo Julio Verne sonhou Os olhos do jovem profeta vendo coisas que só ontem fui ver Uma eterna inquietude e virtuosa revolta conduziam o libertário Dezembro de 1937, uma noite antes de sair Chamou a mulher e os filhos e disse: “Se eu sumir procurem logo por mim” E não sei bem onde foi, só sei que teria gritado a uma pequena multidão “Ao porco tirano e sua lei hedionda, nosso cuspe e o nosso desprezo!” No meio da madrugada, sozinho, ele foi preso por homens estranhos Embarcaram num navio escuro e de manhã foram pra capital

Uns dias mais tarde, cansado e com frio, Joquim queria saber onde estava E num ar de cigarros de uns lábios de cobra, ele ouviu: “Estás onde vais morrer” Jogado numa cela obscura entre o começo do inferno e o fim do céu Foi assim que, depois de muitas histórias, a mulher enfim o encontrou E ele ainda ficou ali por mais dois anos, sempre um homem livre apesar da escravidão As grades, o frio, mas novos projetos, entre eles um avião O mundo ardia na guerra quando Joquim louco saiu da prisão Os guardas queimaram os projetos e os livros, e ele apenas riu, e se foi Em Satolep alternou o trabalho com longas horas sob o sol Num quarto de vidro, no terraço da casa, lendo Artaud, Rimbaud, Breton No início dos anos 50 ele sobrevoava o Laranjal Num avião construído apenas das lembranças do que escrevera na prisão E decidido a fazer outros, outros e outros, Joquim foi ao Rio de Janeiro Aos orgãos certos, os competentes de coisa nenhuma, tirar um licença O sujeito lá responsável por essas coisas, lhe disse: “Está tudo certo, tudo muito bem O avião é surpreendente, eu já vi, mas a licença não depende só de mim” E a coisa assim ficou por vários meses, o grande tolo lambendo o mofo das gravatas Na luz esquecida das salas de espera, o louco e seu chapéu

É muito dinheiro, muita pressão, nem Deus conseguiria” E o louco cansado, o gênio humilhado, voou de volta pra casa No final de longa crise depressiva, ele raspou completamente a cabeça E voltou à velha forma com a força triplicada por tudo o que passou Louco, Joquim louco. O louco do chapéu azul Todos falavam e todos sabiam que o cara não se entregava Deflagrou uma furiosa campanha de denúncias e protestos contra os poderosos Jogou livros e panfletos do avião, foi implacável em discursos notáveis Uma noite incendiaram sua casa e lhe deram quatro tiros Do meio da rua ele viu as balas chegando lentamente Os assassinos fugiram num carro que, como eles, nunca se encontrou Joquim cambaleou ferido alguns instantes e acabou caído no meio-fio Ao amigo que veio ajudá-lo, falou: “Me dê apenas mais um tiro por favor Olha pra mim, não há nada mais triste que um homem morrendo de frio” Joquim, Joquim Nau da loucura no mar das idéias Joquim, Joquim Quem eram esses canalhas Que vieram acabar contigo?

Um dia alguém lhe mandou um bilhete decisivo E, claro, não assinou embaixo “Desiste”, estava escrito, “Muitos outros já tentaram e deram com os burros n’água

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Música: Joquim Autor: Vitor Ramil

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Observe atentamente as imagens destas duas páginas durante 15 segundos. Depois, vire a página e tente descobrir qual a imagem que está faltando. FOTOS: Clara Állyegra Petter

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Com as fotos agora em posições diferentes, você conseguiu identificar qual está faltando?

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VIDA DE PESCADOR A HISTÓRIA de Seu Nelson, um homem que há 50 anos vive da pesca TEXTO: Eduardo Friedrich l FOTOS: Leticia Aroldi

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sol brilha solitário em meio ao céu límpido de uma fria tarde de domingo. Como paisagem, uma lagoa que reflete nas suas ondulações o imenso círculo de luz oriundo do astro-mor. Mais ao fundo, uma rodovia e dois morros cobertos pela floresta virgem completam a cena. À beira da lagoa, o junco verdejante. Um pouco mais a frente, em terra firme, um barco de madeira virado. Sobre ele, encontra-se sentado um casal, homem e mulher lado a lado. Ele, cabelos brancos arrepiados, casaco verde. Ela, cabelos curtos e grisalhos, camisa vermelha e casaco preto. Ambos sorriem para a moça que se prepara para tirar uma foto. Enquanto esperam pelo clique da fotógrafa, o senhor de cabelos brancos dispara: “Quando a gente era mais novo, era ‘vem cá, meu amor’. Hoje, é ‘vai pra lá, véia’”. A brincadeira, feita por Seu Nelson, é uma das tantas que, ainda que pelo 58

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conteúdo pareça contraditório, demonstram a cumplicidade do casal. Casados há 48 anos, Frida Rost Müller, 70 anos, e Elmídio Nelsion Müller, 71, se acostumaram a fazer uso do bom humor para encarar as dificuldades que encontram vivendo da pesca. Ele, na profissão desde 1966. Ela, aposentada como agricultora. Seu Nelson pesca desde jovem, por influência do pai. Já Dona Frida abandonou a lavoura como forma de negócio quando casou e, a partir de então, acompanha o marido nas pescarias. Os dois moram nas terras que Dona Frida herdou dos pais e que pertencem a sua família há mais de cem anos, localizadas na Ilha da Pinguela, em Osório, com acesso no km 76 da BR-101. Tudo por ali foi feito pelo casal com as próprias mãos. A casa em que moram, o galpão onde acontecem as festas promovidas por Seu Nelson, a “gaiola” – veículo de madeira cons-

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truído artesanalmente – com motor de fusca. Atualmente, Dona Frida está pintando as paredes da casa. Só pediu ajuda ao genro para pintar o teto, já que sua coluna não permite mais fazer tudo sozinha. A justificativa para tanto esforço? “A gente faz porque é pra gente mesmo.” O casal também cria gado, porcos e galinhas e planta para consumo próprio. Mesmo aposentados e com tantas coisas a fazer, os dois não abandonam as redes. Na última pescaria, ficaram acampados por 18 dias, junto com um casal de amigos. Voltavam para casa apenas para colocar o peixe no freezer, quando acabava o gelo. Para Seu Nelson, a pesca hoje é mais que uma profissão, é quase um hobby. A alegria com que contam a história de suas vidas explica como superaram as durezas que enfrentam muitos daqueles que dependem da pesca artesanal para viver. Por exemplo, há pou-


Dona Frida e Seu Nelson, casados há 48 anos, vivem da pesca desde 1965. Onde moram, tudo foi construído por eles: a casa, o galpão e a “gaiola”, um pequeno veículo tracionado por um motor de Fusca

co mais de dois anos, Seu Nelson teve o seu barco roubado. Adquirido graças a um financiamento pago em cinco anos, o Frinel – mistura de Frida e Nelson – foi levado menos de um mês depois de quitado. Na época, Seu Nelson pensou em desistir. Estava prestes a vender o material que lhe restara da profissão – motores para barco, redes de pesca, entre outras coisas. Mas graças a um dos seus irmãos, foi impedido de parar. Aceitando o empréstimo que lhe foi oferecido, Seu Nelson comprou o barco que tem até hoje. Em homenagem ao que fora furtado, decidiu manter o mesmo nome: Frinel II. Mas não somente o barco foi roubado. Também a casa do casal já foi arrombada quando Dona Frida e Seu Nelson não estavam. Os assaltantes levaram uma roçadeira e as redes de pesca. Além deles, os vizinhos também já foram vítimas de furto. Como a ilha

fica distante do centro da cidade, dificilmente alguém percebe quando está acontecendo um assalto. Além dos problemas que o próprio ser humano gera, o casal de pescadores tem de superar também as dificuldades que a natureza lhes impõe. Tal dificuldade fica evidente na irregularidade da produção nas pescarias. Em uma lagoa de propriedade particular, onde pagam R$ 120 para passarem a noite pescando, Seu Nelson já conseguiu o suficiente para pagar quatro noites e ainda receber troco. Em compensação, na última vez que esteve na mesma lagoa, em duas noites pescou o equivalente a R$ 230 – ou seja, R$ 10 de prejuízo, sem contar outros gastos (como gasolina para o motor do barco). VIDA AMEAÇADA Não bastassem tais adversidades, a pesca ainda obriga o pescador a ser

sempre o mais prudente possível. Em duas oportunidades em que não foi cuidadoso, Seu Nelson teve a sua vida ameaçada. A primeira delas, há mais de cinquenta anos. Seu Nelson, então com 20 anos, acompanhado do irmão, um ano mais novo, decidiu recolher os espinhéis – espécie de aparelho de pesca que consiste numa corda ao longo da qual são fixadas linhas com anzóis. Sem avisar ao seu pai e ignorando as condições do tempo, que já dava mostras do temporal que se armava com raios e trovões, os dois irmãos subiram em um caíque – embarcação de madeira - e adentraram na lagoa da Pinguela. Haviam tirado da água metade dos espinhéis quando a tempestade teve início. Seu Nelson e o irmão não enxergavam mais que alguns metros além da embarcação, tamanho o ímpeto da chuva. O pai dos rapazes, ao descobrir que ambos estavam na água, correu até o porto. Não vendo o caíque nem

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os filhos, sentou-se e começou a rezar. Graças ao vigor da juventude, os dois tocaram o barco para terra firme. Com uma das mãos, cada um dos rapazes segurava uma taquara, impulsionando o caíque para frente. Já com a outra mão, tiravam a água que invadia a embarcação, utilizando-se de canecas. Atracaram o barco a considerável distância do local de onde haviam saído. Deixando o caíque, voltaram ao porto onde seu pai ainda os esperava. Seu Nelson relembra que, ao encontrar os dois filhos, o pai esbravejou: “Vocês não conhecem nada! Vão morrer na água!”. A réplica veio no tom bem-humorado que ainda hoje caracteriza a fala de Seu Nelson: “Mas a gente tá vivo”. 60

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A segunda vez em que Seu Nelson se viu em apuros aconteceu há menos tempo. O dia era 7 de setembro de 2000. Por volta das 8h, Seu Nelson acompanhou um de seus sobrinhos e um amigo em uma pescaria na lagoa dos Patos. Estavam os três no meio da lagoa, tirando as redes da água, quando perceberam que a popa do 0barco começou a afundar. O sobrinho de Seu Nelson esquecera-se de fechar o tampão na parte de trás da embarcação. Tal tampão serve para tirar a água do barco enquanto este se movimenta. Mas, quando se encontra parado, o que era uma saída passa a servir de entrada para água. Agravava a situação o fato de o motor se encontrar na parte traseira

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da embarcação. Não havia mais o que ser feito; o barco estava fadado a afundar. Dos três pescadores, apenas Seu Nelson usava colete salva-vidas. Um deles, inclusive, estava de botas, o que atrapalharia para nadar, diminuindo as chances de sobrevivência. Seu Nelson relembra: “Aquele dia eu achei que iam morrer os três. Eles iam tentar se salvar, e eu ia tentar salvar eles. Iam acabar morrendo os três”. Por uma questão de sorte, no local em que se encontravam os três pescadores, existia uma espécie de banco de areia. O barco afundou, mas a água não ultrapassou a altura do peito dos homens. “Parece que foi Deus que levantou o chão”, acredita Seu Nelson. Apesar do risco de afogamento não


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preocupar mais, havia ainda outro fator que ameaçava suas vidas. Era setembro, final de inverno, e a água estava gelada. Seu Nelson, portador do único colete salva-vidas, prontificou-se a nadar até a costa e chamar ajuda. Munidos de um sinalizador, os outros dois pescadores ficaram onde o barco afundara, movimentando-se constantemente, a fim de evitar uma possível hipotermia. Em meio ao caminho de volta à costa, Seu Nelson encontrou o barco de um amigo. Com a ajuda do dono do barco, voltou e salvou os outros dois náufragos. Durante o resto do dia, os pescadores trabalharam no resgate do barco afundado. Para arrastá-lo de volta à terra firme, foi utilizada uma corda

com mais de mil metros de comprimento para amarrar a embarcação à traseira de um carro. Puxaram-na até um ponto em que conseguiram equilibrá-la e tiraram parte da água que tinha dentro. A partir daí, esvaziaram completamente a embarcação e conseguiram retirá-la da lagoa. O sol já vai se escondendo atrás dos morros, sinal que indica o fim de uma agradável tarde de outono. Em frente à casa, dois filhotes de cachorro correm e brincam em meios as galinhas criadas soltas pelo pátio. Antes de partir, pergunto se, apesar de todas as dificuldades, Seu Nelson pensa em parar de pescar um dia. Ele não hesita: “Só vou parar no dia em que não puder mais”.

Em uma palestra na Unisinos, o jornalista Alexandre De Santi disse algo que me marcou. Segundo ele, uma das melhores coisas na profissão de jornalista é, em determinadas matérias, não se saber para onde se vai e quem se vai conhecer. Nem sempre é possível prever onde estará a notícia. Pensando nisso, resolvi não optar pelo assunto que mais chamasse a minha atenção durante a escolha das pautas para a revista. Deixaria que “a pauta me escolhesse”. Quase todas as pautas já haviam sido escolhidas. Das restantes, eu não tinha ideia de qual poderia fazer. Foi então que a colega sentada atrás de mim sugeriu: “Por que não pegamos as histórias de pescador?”. Não hesitei: ergui minha mão e segui a sugestão. Era àquilo que De Santi se referia. Eu não tinha ideia de como faria a reportagem. E também nunca havia visto a colega que dera a sugestão. Começava, literalmente, do zero. Sinceramente, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Somente assim pude conhecer lugares novos e belíssimos, sem contar as pessoas maravilhosas. Além do simpático casal de pescadores, conheci uma de suas filhas e o seu marido e dois dos seus netos. Ainda conheci a Letícia (responsável pelas fotos desta matéria), seu namorado e uma parte da sua família em um excelente almoço de domingo (destaque para a vó Deja e as histórias da sua vida). Infelizmente, não foi possível falar de tudo o que Seu Nelson e Dona Frida me contaram. Ficou de fora, por exemplo, o desejo do Seu Nelson de que a geração de pescadores na família acabe nele próprio. Desejo este que o neto Eduardo, de 8 anos, já dá mostras de que pode não atender. Enfim, são sugestões que ficam para uma próxima matéria. Sugestões que, como já disse De Santi, não se sabe certo para onde nos levarão.

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Nico van Diem

Benjamin Earwicker

Loredana Bejerita

Helene Souza

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MEMÓRIA SENSORIAL

gosto de infância AS LEMBRANÇAS ativadaS pelos cinco sentidos humanos

TEXTO: Larissa Azevedo l FOTOS: Priscila gomes E STOCK.XCHNG

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m simples cheiro é capaz de remeter a inúmeras lembranças e experiências amortecidas no inconsciente. A melodia de uma música ou o gosto de uma comida tem o poder de nos fazer lembrar de um acontecimento que há muito passou e deixou saudade. Menos de um segundo e aquela sensação acaba tocando em algum lugar dentro de nós, nos fazendo lembrar de momentos bons e outros nem tão bons assim. Isso acontece por causa de um fenômeno que ocorre no nosso cérebro, que faz com que circunstâncias fiquem marcadas na memória e sejam ativadas quando, por exemplo, essas sensações são sentidas. Ou seja, o cheiro de uma substância fica associado a algo que armazenamos e, quando o sentimos novamente, nos lembramos daquela situação vivida. A Ciência define isso como Memória Sensorial, ou seja, a capacidade que o

cérebro tem de reter pequenas e grandes informações que chegam até ele através dos cinco sentidos básicos: audição, olfato, visão, tato e paladar. Segundo Eduardo Rodrigues, neurologista chefe do Hospital Centenário, de São Leopoldo, a memória sensorial é o registro inicial das informações, e ocorre nos primeiros segundos em que as coisas são percebidas graças às informações detectadas pelos órgãos sensoriais. “Esse registro inicial ocorre em regiões perceptivas do cérebro, tais como o córtex occipital para a visão, o córtex temporal para a audição, e o córtex parietal, no caso do tato”, explica. “Isso daqui tem cheiro de infância”, diz a estudante de medicina de 23 anos, Paola Rabaioli, quando sente o cheiro de erva cidreira. “Isso lembra quando eu era criança e a minha avó fazia chá para mim antes de dormir. Que saudade dela!” Em apenas uma provocação, ela lembra de

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FOTOS ARQUIVO PESSOAL

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todo o contexto da sua infância, quando esperava a semana inteira para ficar na casa da avó nos sábados. O mesmo acontece com a estudante de publicidade e propaganda Laura Pita, de 22 anos. “Quando eu era pequena, minha prima mais velha morava em Caxias do Sul. Quando ela vinha me visitar, me enfeitava e me arrumava para passearmos. Ela sempre passava em mim o mesmo perfume, e toda vez que eu sinto o cheiro dele me lembro dela e de como era divertido quando ela vinha.” A memória humana é capaz de realizar uma rica variedade de operações. De um lado, permite identificar e classificar sons, sinais, cheiros, gostos e sensações. De outro, é capaz de reter e manipular informações adquiridas durante a vida. Consiste em um conjunto de procedimentos que permite manipular e compreender o mundo, levando em conta o contexto atual e as experiências individuais. Esses procedimen-

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tos envolvem mecanismos de codificação, retenção e recuperação. Cada sentido corresponde a uma parcela do desenvolvimento humano, ou seja, a Memória Sensorial não funciona apenas para nos fazer lembrar de cenas que vivemos, mas também compreende em auxiliar na formação do ser humano. Quando um dos sentidos falha, pode acarretar problemas. Quem tem dificuldade, por exemplo, na memória visual, ou fotográfica, como é chamada popularmente, pode ter problemas para aprender a escrever. Deficiência em algum grau de audição pode acarretar problemas para aprender a falar, ou na aprendizagem, para fixar informações que lhe são ditas. Um dos principais fatores que diferencia a Memória Sensorial dos outros tipos de memória é que esse sistema funciona em menos de dois segundos. Esta pequena janela de tempo é mais do que suficiente para que o cérebro processe, analise e interprete a mensagem. Se o cérebro conseguir caracterizar a informação como importante, ela fica retida permanentemente. As irmãs Julia e Natália Dörr nasceram em Panambi, região central do Rio Grande do Sul. Lá elas passaram a primeira parte da infância e de onde guardam muitas lembranças. “Eu era muito pequena quando saímos de lá. Tinha sete anos quando nos mudamos, mas me lembro fortemente da casa em que morávamos. As escadas da parte de trás eram de pedra e rodeadas de flores. Lembro que sentava lá para brincar com a nossa cachorrinha. Lembro tão bem que às vezes ainda sonho com o lugar. O cheiro da grama, o vento no rosto e os casacos que tínhamos que usar por cau-

sa do frio”, relembra Júlia. “Nossos avós moravam lá também e eu não esqueço do cheiro do porão da casa deles. Não consigo nem identificar exatamente o que era, mas eu consigo lembrar que tinha a ver com comidas e ervas naturais. Para mim, aquele cheiro é apenas daquele lugar”, conta Natália. Segundo o neurologista Rodrigues, dentre todos os sentidos, o mais forte para armazenas informações é o olfato. “Quando ligado às emoções, é o mais eficaz de todos os sentidos, isto porque está intimamente conectado ao sistema nervoso central, diretamente associado aos estados emocionais.” O aroma é também muito importante para o ser humano, pois possuímos a chamada ‘memória olfativa’, que nos capacita para associar aromas a situações vividas anteriormente. Quando se sente novamente um mesmo aroma, é possível reviver as emoções de certas experiências. “Os aromas exalados têm a propriedade de despertar o nosso inconsciente coletivo, presente em nossa mente mais profunda”. A estudante de fisioterapia Bruna Rossi, 22 anos, tem fortes memórias visuais. Em uma das viagens que fez com a família para a Europa, uma das cenas que mais lhe marcou foi na França. “Eu lembro da sensação que tive quando era nove e meia da noite em Paris, meus pés doíam de tanto caminhar e o céu ainda estava claro, como se fosse cinco da tarde. Senti como se o dia tivesse sido muito bem aproveitado.” Até hoje ela se lembra com clareza do final de dia em uma das cidades mais românticas do mundo. Quanto mais sentidos forem aguçados no momento em que o fato acontece, maior vai ser a intensidade e a clareza da lembrança.

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Enquanto as entrevistadas contavam suas histórias, todas olhavam para cima, como se estivessem assistindo às próprias lembranças. O sentido que mais marcou a todas elas e que foi mais fácil de cada uma explicar foi o olfato. Todas tinham um cheiro marcante de alguma experiência. Quando eu era criança, meus avós tinham uma casa na praia. Todo verão eu esperava ansiosa para ir com eles e meus primos para passar o final de semana lá. Lembro que todas as manhãs meu avô fazia o café para todo mundo, enquanto minha avó ficava deitada. No cardápio dele tinha omelete com queijo e torradas. Acontece que naquela época não se tinha torradeira elétrica, então ele passava um tempão fazendo o lanche numa torradeira de ferro no fogão mesmo. A mistura do cheiro de queijo derretido queimado e do ferro quente acordava todo mundo nas camas. Até hoje quando sinto esse cheiro me lembro da ansiedade de sair correndo antes de todo mundo para deitar na cama com a minha avó primeiro para esperar o café da manhã ficar pronto.

Laura ainda guarda na memória o cheiro do perfume que sua prima lhe passava (1). Já Paola lembra do cheiro do chá de erva cidreira que sua vó fazia quando ela era criança (2). Bruna tem fortes memórias visuais. Não esquece dos detalhes de sua viagem a Paris (3). E as irmãs Júlia e Natália recordam do cheiro da grama e do porão da casa em Panambi, onde passaram a primeira parte de sua infância (4).

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Com todo o carinho As memórias de um tempo escritas nas dedicatórias TEXTO: Larissa Luvison l FOTOS: Clara Állyegra Petter

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o andar em corredores de uma biblioteca nos deparamos com histórias, títulos, autores e novas aventuras para serem descobertas a cada virar de página. Nos encontramos com a famosa magia do mundo da literatura. Mas quando prestamos mais atenção, podemos encontrar livros com mais de uma narrativa, que contém dedicatórias que também carregam histórias e segredos para serem relevados. Na Biblioteca Pública Castro Alves, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, por meio de corredores, estantes, caixas e mais pilhas de livros, procurei dedicatórias que me levassem a conhecer as pessoas por trás delas. Quando achamos um livro em um sebo, por exemplo, e ali há uma bela dedicatória, já damos asas à imaginação e tentamos criar suposições e inventar histórias. Por isso, desta vez não fiquei na imaginação, fui conhecer o mundo por trás da dedicatória, o que tinha além das carinhosas palavras escritas. No meio desta procura quem me auxiliou foi uma das pessoas que mais conhece os livros da biblioteca. Ao explicar que precisa encontrar histórias com dedicatórias, a bibliotecária Eunice Pigozzo, 49 anos, levou-me para o terceiro andar do prédio. Passei por

um aviso de “acesso restrito aos funcionários” e me deparei com estantes cheias de livros que não estão tombados no acervo. São livros antigos e utilizados em reposição. No meio da procura, Eunice falou que em casa tinha um livro do jeito que eu estava procurando. Ele tinha uma dedicatória de suas amigas e estava guardado desde seus 17 anos. Na véspera do aniversário de Eunice, no dia 23 de dezembro, as amigas chegaram com o presente nas mãos. Pela embalagem, não foi difícil adivinhar o que seria. No alto da capa, com grandes letras, a única coisa que chamava atenção era “Agatha Christie”. Eunice deixou o sorriso lhe tomar a face, havia ganhado um livro se sua escritora favorita, e ali, na primeira página, a dedicatória das amigas. Ao chegar em casa, Eunice notou que o livro apenas tinha o prefácio escrito por Agatha Christie e, na verdade, era de outro autor. “Nunca li aquele livro. Para ser sincera, nem sei o nome dele, mas não quis ler. Acredito que um autor que precise se promover em cima de outro não se garante com sua obra”, comenta. As amigas nunca souberam que do livro ela leu somente a dedicatória que continha felicitações e as assinaturas das amigas. Mesmo assim, ele tem um

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Anastácio Orlikoeski doou um livro em alemão para a Biblioteca Castro Alves, de Bento Gonçalves, que guarda a dedicatória de um grande amigo do passado, Carlos Nureche

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lugar especial na estante, não pelo conteúdo, mas pelo o que ele representa, pelo elo de amizade que a mantém conectada com suas amigas de tantos anos. “Não tenho coragem de jogá-lo fora, ele está lá, vai ficar lá, quem sabe um dia não lerei?”, questiona. Nas prateleiras do último andar da biblioteca Castro Alves, foi possível encontrar o livro alemão Das Geheimnis der Campos – Ein Roman aus Brasilien (O mistério dos campos – Uma romance do Brasil), de Edith Freyse. Ao virar a capa do livro, há uma dedicatória, também escrita em alemão, endereçada à Anastásio Orlikowski. Qual seria a história desses personagens e principalmente o que significa aquele livro? Descobri que Orlikowski, 88 anos, preservou durante longos anos uma biblioteca particular, porém um dia

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resolveu doar os livros que cuidava com tanto carinho. Alguns foram parar na Associação de Artistas Plásticos da Região da Serra Gaúcha, outros na casa de amigos e outros seguiram para a Biblioteca Pública de Bento Gonçalves. Quando ele leu novamente aquela dedicatória, foi como se os anos voltassem e ele estivesse no momento em que ganhou o livro do seu amigo Carlos Nureche, em seu aniversário de 61 anos. O livro era uma raridade da biblioteca do artista plástico. Orlikowski sorriu ao segurá-lo depois de tanto tempo e leu com entusiasmo a dedicatória. Na obra há, na verdade, duas dedicatórias, uma da autora Edith Freyse que dizia: “Senhor Anastásio, com amigáveis recomendações para seu aniversário”. E abaixo, com tinta preta, as palavras do amigo Car-


los Nureche, que trouxe o livro da Alemanha para presentear o amigo. “Ao meu querido amigo e irmão da Schlaraffia, te entrego este livro assinado pessoalmente pela autora para a lembrança de seu 61º aniversário. Com sincero carinho, Carlos Nureche”. A CULTURA ALEMÃ Os livros e a cultura alemã entraram na vida de Orlikowski quando ainda era jovem, residia em Gramado e se apaixonou por uma garota de Bento Gonçalves. Os pais dela foram contra o relacionamento, e a solução foi passar os finais de semana longe de seus olhos atentos. Mas para onde iriam? Um amigo do casal, ao ver a tristeza dos dois por não poderem ficar juntos, ofereceu sua casa em Porto Alegre. Esse amigo era Carlos Nureche. Ao chegar ao local onde poderia namorar, o casal se deparou com uma surpresa. Na residência aconteciam encontros da cultura alemã durante as manhãs de sábado. “O Carlos foi solidário e emprestou a casa, na verdade o porão, para que assim eu pudesse namorar a minha garota. Eu fiquei interessado também nos encontros que aconteciam por lá e pedi para participar”, conta Orlikowski. Os encontros eram reuniões da Congregação Schlaraffia, que tem como objetivo propagar e defender os costumes alemães em todo o mundo. A Schlaraffia foi fundada em 1859, em Praga, capital da hoje República Tcheca, por pessoas ligadas às artes cênicas e que se divertiam debatendo, recitando e cantando. Dedicavam-se em ridicularizar e satirizar a nobreza e o Funcionalismo. O artista plástico ressaltou que o bom humor e o sar-

casmo que deveriam ter para participar da Schlaraffia era o que mais lhe chamava atenção. Ao entrar na organização, Orlikowski adotou o nome de cavaleiro Ritter Quirli-Fax. Seu padrinho foi o amigo Nureche. A cultura alemã uniu ainda mais aquelas duas pessoas. Orlikowski presidiu o reino da Schlaraffia em Porto Alegre durante treze anos e hoje é o membro mais velho da organização, que conta com a presença de cerca de 10 mil homens espalhados por todo mundo. “Duas vezes fui chamado pelo governo alemão para receber honras pelo trabalho que desenvolvi na Schlaraffia, divulgando e propagando a cultura alemã em outros lugares do mundo”, comenta Orlikowski. Segundo o cavaleiro, faz parte de seu trabalho na Schlaraffia também difundir as relíquias alemãs que guardou durante anos, por isso os frequentadores da Biblioteca Pública de Bento Gonçalves poderão encontrar o livro Das Geheimnis der Campos – Ein Roman aus Brasilien em uma estante. “Quando eu morrer, o que iria acontecer com esses livros? Eu não sei. Então é melhor eu doá-los em vida, assim sei para onde vão e o bem que vão fazer para outras pessoas”, finaliza. As obras que recebem uma dedicatória se tornam muito mais que livros, vão além de um enredo principal. Os livros dedicados podem ser guardados em um lugar especial na estante, na cabeceira da cama, até em uma caixa. Podem ainda ser encontrados em uma biblioteca ou talvez em um sebo, fruto de uma doação. Mas certamente eles marcaram um momento especial, e ao cair em novas mãos, encontram ali um novo personagem com suas histórias.

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Ao escolher a pauta da Primeira Impressão, o lugar que me veio em mente foi a Biblioteca Pública Castro Alves de Bento Gonçalves. Sabia que ali encontraria livros antigos e doados e que possivelmente teriam dedicatórias. Quando estava na biblioteca, percebi como era difícil encontrar dedicatórias que fossem legíveis e com pistas de onde poderia encontrar os donos dos livros que as abrigavam. Ao fazer uma seleção de livros, fui a busca de suas histórias. Deparei-me então com algumas dedicatórias e procurei as pessoas que haviam sido presenteadas com os livros. É curioso saber a história por trás de uma história. Quando pegamos um livro com uma dedicatória ficamos curiosos para saber o que há por trás daquelas linhas escritas à mão. O bom do jornalismo é isso, é poder descobrir histórias que ninguém mais sabe e poder trazer isso para as linhas de uma reportagem.

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Esqui sem neve Primeira pista de esqui artificial da América Latina trazia o esporte europeu à Serra Gaúcha TEXTO: Fabrício Romio l FOTOS: JULIANA FREITAS E IZADORA DAZZI

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esmo antes de receber asfalto, a cidade de Garibaldi, no interior gaúcho, já era polo de um dos esportes mais difundidos entre a classe alta europeia. Brasileiros que quisessem sentir a emoção de esquiar não necessitavam mais viajar para países com clima gelado. Com a Pista de Esqui Presidente Médici, a Serra Gaúcha trazia um pedaço da Europa para os brasileiros. Com início das atividades nos anos 70

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1960, a pista de esqui fechou em 2001 por um desentendimento entre a diretoria e o poder público municipal. Abandonado há 12 anos, o terreno, anteriormente um local de divertimento familiar, hoje é ponto de prostituição e de uso de drogas. O mato tomou conta das boas lembranças. Para Agenor Flores, que trabalhou no estabelecimento durante 20 anos como gerente administrativo, ver a pista como está é muito triste. Ele ainda lembra das filas de ônibus, lotados de turistas,

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que vinham para Garibaldi nos finais de semana para conhecer a novidade. Segundo Flores, a ideia para a criação da pista iniciou no velho continente. Tudo partiu de Davi Santini, empresário garibaldense que saiu da cidade para fazer fortuna no Recife (PE). Em viagem de lua-de-mel para a Itália, nos anos 1960, Santini descobriu o esporte e se apaixonou. Aprendeu a esquiar, se tornou instrutor-honorário e decidiu trazer o esporte para o seu país.


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O terreno onde funcionava a estação de esqui, em Garibaldi, hoje é ponto de prostituição e de uso de drogas

Nem a falta de neve, nem o desconhecimento do esporte pela população foram barreiras para o obstinado empresário, que, em viagem à Garibaldi, decidiu trazer a novidade para sua terra natal. Imaginando o projeto de uma pista artificial, utilizada na Europa como treinamento para esquiadores no verão, Santini começou a bolar o plano para implantação do esqui no interior gaúcho. Agenor Flores ainda lembra como foi o processo para implantação da Estação

de Esqui de Garibaldi. “Foi lá por 1967, no Café Lunapark. Ele fez um desafio para o prefeito na época”, conta Flores. “Se vocês me derem 50 anos de isenção de impostos municipais, eu faço uma pista de esqui”, teria dito o empresário naquela noite. A cidade aderiu ao projeto, porém, a prefeitura propôs a redução da isenção para 30 anos. Santini aceitou. O processo de escolha do terreno e do material para a confecção da pista foi trabalhoso. “Ele iniciou com uma peque-

na pista de testes no telhado da casa que possuía na cidade”, recorda Flores. Foram testados diversos materiais para a confecção da pista, sendo escolhido o polietileno, por possuir maior resistência e proporcionar maior velocidade. Os esquis, diferente dos utilizados na neve, não possuíam lâminas, para não estragar a pista. Em 1968, era aberta oficialmente a Pista de Esqui Presidente Médici, a primeira pista artificial da América Latina. Agenor Flores lembra das centenas de tu-

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ristas que iam para Garibaldi nos finais de semana para conhecer a novidade. A estação possuía duas pistas de esqui e contava também com teleférico, tobogã, restaurante panorâmico, com vista para a cidade, além de chalés para hospedagem. Joe Pieta, um dos esquiadores mais conhecidos da época, diz que eles chegavam a alcançar 100 quilômetros por hora na descida. “Era indescritível. Eu nunca vou esquecer a sensação de descer a pista e, depois, no teleférico, ver as outras pessoas esquiando”, comenta Joe, saudoso. Ele conta que começou a esquiar em maio de 1974, aos 13 anos. “Eu já tinha um primo que era esquiador.” Ele havia tentado entrar na Academia Brasileira de Esqui, porém só conseguiu após dois anos de tentativas. Joe lembra que os professores eram os esquiadores mais experientes. A pista era atração principalmente para os jovens da região, que marcavam presença constante em todos os finais de semana. “Quando chovia, a gente ficava frustrado, porque não podíamos esquiar. Outra situação que nos impedia de praticar era quando ficava muito frio, pois a pista aguentava até 0ºC.” A solução para a pista não rachar nesses dias de inverno era cobri-la com uma lona. Joe foi campeão brasileiro de esqui por duas vezes nas Olimpíadas Brasileiras de Esqui. “O Santini criou a competição nos moldes da Europa dos anos 72

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1960”. Os competidores desciam a pista nas categorias velocidade e slalom, de 6, 9 e 15 metros. Nas competições, além dos atletas brasileiros, participavam também esquiadores de outros países, convidados pela organização. “Em agosto, quando era realizado o Campeonato Brasileiro de Esqui, vinham estrangeiros, como Peter Fisher, que foi campeão olímpico alemão, um dos maiores esquiador do mundo.” Joe conta que, como os esquis eram de madeira e não possuíam lâminas, para não estragar a pista, a cada descida eles arredondavam e ficava mais difícil realizar as manobras. “Como o esqui ia desgastando, eu descia apenas uma vez para conhecer o percurso e ficava na minha, passando óleo e deixando os outros descerem. Quando chegava a hora da competição, os meus esquis ainda estavam novos, esse era o segredo para vencer as competições”, explica Joe. Ele conta que a pista era uma espécie de atração para os turistas, que vinham conhecer o parque. Os esquiadores da cidade realizavam manobras e descidas para chamar a atenção do público. “Como os turistas tinham preferência, tinha vezes que, de tanta gente no parque, levávamos mais de uma hora para conseguir um espaço no teleférico para subirmos até a cabeceira da pista”, comenta Joe. O esquiador não se recorda de nenhum acidente grave que tenha aconteci-

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do na época. Mesmo sem usar proteções, teve apenas algumas fraturas, e escoriações. “Os tombos faziam parte. Os turistas até faziam questão que a gente caísse. Conforme o sol e a chuva, a pista angulava e cedia. Às vezes estávamos descendo na boa e o esqui trancava. Fui parar embaixo daquele teleférico várias vezes.” O INÍCIO DO FIM Agenor Flores explica que a Estação de Esqui de Garibaldi durou 33 anos, sendo fechada em 2001 devido a um impasse entre Davi Santini e o poder público do município. Quando a estação foi instalada, o município havia prometido 30 anos de isenção de impostos. Porém, na semana seguinte, quando foram assinar os papéis, perceberam que a legislação permitia apenas que a isenção fosse de dez anos, prorrogados por mais dez e dez. “Passaram-se dez anos, de 1968 a 1978. A segunda isenção foi de 1978 a 1988 e na terceira isenção o prefeito na época, Luiz Carlos Casagrande, decidiu não prorrogar. Aí ficou esta pendência com o município”, explica Flores. Em 2001, em reunião com Santini, o prefeito de Garibaldi tentou cobrar os anos de impostos. “Santini era um homem que pensava rápido, respondeu que não devia nada pra ninguém e retrucou que era a prefeitura que devia para o esqui”, recorda Flores.


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Estava iniciada a guerra entre o empresário e a prefeitura. No mês de novembro daquele ano, foi organizada uma reunião com entidades da cidade para tentar apaziguar os ânimos. “A reunião iniciou as 11h30min, e o Santini tinha algumas exigências, como alterar o plano diretor da cidade, a mudança de uma antena que existia nas proximidades da pista, entre outras.” Segundo Flores, a reunião correu bem, e tudo foi acertado. Santini manteve a palavra de continuar com a pista em Garibaldi, e o prefeito decidiu isentar os impostos. “Por volta de 12h15min, Santini me mandou pegar um litro de uísque. Ele ainda comentou que ninguém saía da casa dele sem almoço, o clima estava bom. Foi servido bife à milanesa, peixe e vinhos da Peterlongo”, lembra Flores. Após o almoço, começou a sessão de piadas. Flores conta que na ocasião havia dois jornalistas participando da reunião. Santini teria dito: “Eu saí de Garibaldi, sou colono, tenho orgulho de ser colono, porém os colonos daqui não conseguem sair do chão”. A reunião corria bem até que Santini resolveu falar sobre o brasão da cidade, que possuía flores de lis. “Pra mim, flor de lis é coisa de veado, e quando eu saí daqui não tinha veados na cidade”, teria brincado o empresário. No outro dia, uma manchete no jornal estampava na capa: “Santini ofende a cidade e diz que aqui só tem colono e veado”, recorda Flores. Homem orgulhoso, David Santini teria decidido naquele momento encerrar as atividades do parque. Agenor lembra que a reunião com a equipe para o encerramento das atividades foi rápida, “Ele chegou pra mim e disse que ia fechar a pista e me perguntou se eu teria onde trabalhar. Nós sempre tivemos confiança nele e ele sempre teve confiança em nós. Ele me disse, ‘Agenor, é tu que vive aqui. Eu vou telefonar para o prefeito, já tenho passagem comprada para amanhã. O que eu falei não foi para ofender ninguém’.” A pista de esqui de Garibaldi foi fechada em 2001, deixando esquiadores e os próprios garibaldenses órfãos de um dos maiores atrativos da região.

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A história do esqui sempre me fascinou. Principalmente por não poder ter aproveitado a pista quando era criança. Considerado um dos pontos turísticos mais importantes da Serra Gaúcha na década de 1970, a pista continua a ser motivo de orgulho para os garibaldenses acima de 30 anos, que ainda contam histórias sobre o grande público que a atração trazia para a cidade. Histórias sobre David Santini, o idealizador do esqui, são constantes nas rodas de amigos, principalmente dos mais velhos. Conseguir fontes que de fato viveram a fundo o dia a dia do esqui e que conheceram Santini foi para mim uma tarefa complicada. Como muita gente tinha histórias para compartilhar, filtrar as melhores histórias foi o que provavelmente deu mais trabalho. Toda a reportagem, por menor que seja, ensina algo novo ao jornalista. Com esta matéria, aprendi muito sobre a história da minha cidade, de um dos pontos turísticos de maior importância histórica e sobre uma das figuras folclóricas mais fascinantes da Serra Gaúcha.

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O sentimento que não termina Torcedores vivem, choram e celebram a vida de gigantes adormecidos TEXTO: Luís Francisco Caselani FOTOS: jULIANA DE BRITO E JULIANA FREITAS

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omingo, 16 horas. O horário nobre do futebol brasileiro atrai os mais diversos tipos de torcedores para arquibancadas e sofás. Os olhos de alguns, porém, mantêm-se frios e desinteressados. O jogo ainda lhes agrada, faz parte de suas vidas, mas falta a emoção de ver em campo aquele time que encantou sua infância. São torcedores que sabem que o clube de seus corações deixou de existir, mas também sabem como poucos que nos verdes gramados de suas memórias seus jogadores fardarão e jogarão eternamente. Aos 85 anos de idade, o repórter fotográfico Alceu Feijó ainda lembra com carinho a época em que acompanhava o Football Club Esperança. A equipe alviverde foi fundada em 1914 para representar o bairro de Hamburgo Velho, na ainda inexistente Novo Hamburgo, cidade de origem germânica da região metropolitana de Porto Alegre. O Esperança logo nutriu uma grande rivalidade com o outro clube da cidade, o Novo Hamburgo. Feijó explica que o antagonismo excedia as quatro linhas. “A rivalidade entre os dois times era muito grande, tanto social quanto comercialmente. Os torcedores do Novo Hamburgo não compravam produtos dos curtumes de Hamburgo Velho e vice-versa”, relembra. Feijó se mudou para Novo Hamburgo

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com sua família aos 13 anos. Ele estudava em Porto Alegre durante a semana e passava os sábados e domingos com seus pais. Sua relação com o Esperança começou quando foi convidado a treinar junto com o time juvenil. Feijó assegura que sempre fora um zagueiro voluntarioso. “O futebol não tem mistério. A pessoa ou tem facilidade para jogar com os dois pés, ou então só com o direito ou só com o esquerdo. Eu jogava mal com os dois, mas tinha muita dedicação”, brinca. Sua paixão esperancista não parou mais de crescer. Feijó acompanhava as partidas no estádio do clube, o 10 de Maio, e se tornou jogador profissional e até mesmo presidente do Esperança, chegando a exercer as duas funções ao mesmo tempo. Em uma partida contra o Santa Cruz, disputada fora de casa, ele lembra que os jogadores esperancistas marcaram seis gols, mas o resultado final foi uma amarga derrota por 4 a 2. A equipe conseguiu marcar quatro gols contra, o último deles anotado justamente pelo zagueiropresidente Feijó. “A bola veio em minha direção e eu fui mandá-la para o nosso campo de ataque, mas peguei com o lado do pé e dei um balãozinho no nosso goleiro. Um gol sensacional. Pena que contra”, recorda. Os jogadores do Santa Cruz fizeram questão de abraçá-lo. “Muito obrigado, presidente”, agradeciam.


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Bechelli foi uma das principais fontes para o livro Uma vez para sempre, de Francisco Michielin, sobre a histテウria do Grテェmio Esportivo Renner.

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O Esperança encerrou suas atividades profissionais no final da década de 1960, sem nunca ter se transformado em uma grande força do interior gaúcho. O ponto alto da equipe foi o terceiro lugar no Estadual de 1945, sendo eliminado pelo Pelotas na semifinal. Seus momentos de glórias vêm justamente de embates municipais contra o Novo Hamburgo. Mas, em dias de jogos, o estádio 10 de Maio enchia-se de homens, mulheres e crianças, e só o que importava era o futebol. O Papão de 54 jULIANA DE BRITO JULIANA FREITAS

As histórias do Esperança, de Feijó (acima), e do Renner, de Bechelli, não lhes saem da memória

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Assim como Novo Hamburgo, na década de 1930 Porto Alegre já vivia sua dualidade esportiva. Em seu caso, a rivalidade envolvia o Grêmio e o Internacional. Havia, no entanto, uma grande quantidade de pequenos clubes amadores e semiprofissionais que movimentavam os bairros mais afastados do centro da cidade. Porto Alegre era cheia de campos de futebol, muitos vinculados a empresas e indústrias. Surgiram assim o clube dos ferroviários, o Nacional, o dos eletricitários, o Força e Luz, e o dos industriários, que era o Grêmio Esportivo Renner, entre diversos outros. Esses três conseguiram se profissionalizar, disputando o campeonato metropolitano com a dupla Grenal e os simpáticos Cruzeiro e São José. Inicialmente, o Nacional despontou como a terceira força da capital, mas nunca chegou a se firmar. Com a chegada dos anos 1950, teve início o crescimento do Renner, equipe vinculada à fábrica A. J. Renner, no chamado Quarto Distrito. O time, que tinha sua torcida basicamente de empregados da indústria e seus familiares, ganhou a simpatia dos moradores do bairro, que passaram a tê-lo como um segundo clube. Foi o caso do menino Sérgio Bechelli. Hoje, aos 68 anos, dentista formado e ex-secretário da Saúde do Estado, ele descreve em sua mente detalhes de cada jogo que acompanhou no imponente estádio Tiradentes,

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na Avenida Eduardo. “O estádio do Renner ficava numa localidade em que a tal de Porto Alegre ficava ao nosso redor”, brinca. A sede futebolística do clube ganharia o apelido de Waterloo, em referência ao local da batalha que culminou na derrocada do imperador francês Napoleão Bonaparte. “O estádio tinha esse nome porque quem jogava lá perdia”, explica. Bechelli conta que foi convidado a treinar no Renner aos 7 anos, após virem-no jogando na igreja São Geraldo. Ele pôde acompanhar de perto o surgimento de uma das equipes mais marcantes do futebol gaúcho. Após treinar com o time mirim, Bechelli permanecia na arquibancada para assistir à preparação de seus ídolos para as partidas de finais de semana. Era na companhia deles inclusive que o então menino voltava para casa, conforme recomendação de sua mãe. “Esse foi o futebol da era romântica. Os caras consagrados voltavam a pé e eu voltava com eles.” Em 1954, a equipe do Quarto Distrito chegaria ao seu apogeu. O Renner realizou uma campanha extraordinária, sagrando-se campeão metropolitano sem sofrer sequer uma derrota. Na disputa do título gaúcho, outra taça invicta e a consagração do apelido Papão de 54. “O Internacional era o colorado. O Grêmio era o tricolor. O Renner só depois que foi campeão recebeu o seu epíteto”, conta. Bechelli ainda guarda fotos do time campeão, que tinha como goleador o gaúcho Breno Mello, protagonista cinco anos mais tarde do premiado filme Orfeu do Carnaval. Mas assim como lembra ter comemorado o título nos caminhões da A. J. Renner que desfilavam por Porto Alegre, Bechelli ainda escuta o pranto geral que tomou conta do bairro no dia 10 de março de 1959. Durante uma reunião extraordinária, um conselho formado por sete pessoas decidiu por fechar as portas do clube. “Foi um horror. Eu tinha 14 anos. Meu mundo caiu. O de todos nós. Todos choraram. Os barba-


dos, os jogadores. A gente se sentiu traído”, revela Bechelli. Aquele time de 1954, no entanto, jamais sairá de sua memória. Em Campo Bom, ainda há esperança

A paixão que envolve o futebol é única. A relação que existe entre o torcedor e o time pelo qual canta, sofre e se emociona está em uma dimensão completamente superior a qualquer conexão humana que ele sonhe em possuir. O futebol cria um ambiente no qual o espectador se sente parte integrante de um mundo incrivelmente surreal, onde ele nunca fora tão importante e tão impotente ao mesmo tempo. Talvez seja justamente essa dubiedade de emoções que o torna tão fascinante; essa complexidade construída por histórias rabiscadas a dribles e gols em verdes gramados. O sentimento que envolve o futebol parece mais forte do que tudo, indiferente ao tempo e às nuanças da vida. O que os meninos Alceu, Armin e Sérgio vivenciaram nas arquibancadas certamente influenciou no caráter e no modo com o qual veem o mundo. As paixões que insistiram em deixar suas vidas tornaram-nos fortes para entender que o mundo, para ser belo, necessita não mais do que olhos de crianças, sempre nostálgicos e maravilhados.

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JULIANA FREITAS

O Rio Grande do Sul conta com dezenas de clubes extintos e outras vintenas de agremiações licenciadas do futebol profissional. Algumas dessas ainda sonham com a volta aos gramados. É o caso do 15 de Novembro, sensação na primeira metade de década do século XXI, com a conquista de três vice-campeonatos estaduais frente ao Internacional e uma impensável semifinal de Copa do Brasil em um período de quatro anos. O clube de Campo Bom, cidade da região metropolitana de Porto Alegre, acabou sofrendo do mesmo mal do Renner: a rápida ascensão que culminou em uma brusca queda. Hoje centenário, o 15 de Novembro só foi se profissionalizar em 1994, após a conquista de 14 títulos estaduais amadores. Em 2008, porém, o departamento de futebol profissional precisou ser fechado por razões financeiras. O ex-vice-presidente do clube Armin Blos trabalha agora com um projeto que busca reativar o principal esporte do clube. Atualmente o 15 já reimplantou as categorias de base. Blos está tentando reativar o futebol profissional. Para ele, que jogou desde os juvenis até a equipe principal amadora do tricolor campobonense, seria a chance de oferecer ao clube tudo o que ele lhe proporcionou. “Existe essa relação que eu não gostaria de perder. Por isso que estou com esse projeto para não deixar morrer o futebol. Mas a comunidade esportiva precisa entender que ela precisa dar o seu apoio”, explica. A bem da verdade, o que todos os torcedores desejam não é um clube vencedor pelo qual vibrar. O que eles querem é a chance de canalizar suas emoções para algo que é muito maior do que tudo. Um sentimento que não termina.

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O início de uma vida Da infância à adolescência, A ESCOLA PODE marcar A história DAS PESSOAS TEXTO: Helena Caliari l FOTOS: JÉssica Sobreira E Nathália Mendes

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embro como se fosse hoje. Era 27 de dezembro de 2007, último dia que passaria pelos portões do Colégio Maria Auxiliadora (CMA) como aluna. Foi ao som de Beautiful Day, da banda irlandesa U2, que a minha turma percorreu o corredor; pela última vez iríamos nos sentar nas confortáveis cadeiras vermelhas do Salão de Atos. Eu tinha 16 anos na época e posso dizer: os momentos mais intensos da minha curta vida eu vivenciei lá dentro. Meus pais me matricularam na escola em 1995, quando eu estava prestes a completar quatro anos. Minha mãe já havia estudado lá quando mais nova e achava que era a melhor escola para sua filha estudar. Ela não poderia estar mais certa. Durante os 13 anos em que passei estudando no CMA, todos os professores e coordenadores me conheciam, inclusive a diretora e a vice-diretora. Fato curioso: normalmente as pessoas tendem a não gostar do diretor da escola em que estudam, mas no caso dos alunos do CMA era diferente. Era impossível não gostar da Irmã Adelia Dannus, diretora da instituição entre os anos 1996 a 2004. Enganava-se quem se deixava levar por sua altura: com não mais de 1,50 metros de altura, a doce líder era uma grande administradora e o coração da escola. Mas o que essa relação tão intensa com um aluno significa para a sua formação como indivíduo? Segundo a psicóloga baiana Vanessa Gomes Sandes,

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pós-graduada em clínica em saúde mental, o tipo de memória mais desenvolvido na infância é a operacional. Também conhecida por memória de trabalho, ela auxilia na investigação de processos e atividades cognitivas superiores, como compreensão da linguagem, leitura, aritmética, resolução de problemas e produção da própria consciência. “Dessa forma, pode-se dizer que são os primeiros anos escolares os norteadores do desenvolvimento dos processos de aprendizagem, já que o estudo desse tipo de memória auxilia na compreensão de suas funções e disfunções”, esclarece Vanessa. Formada em pedagogia e bacharel em Inglês, Irmã Adelia traduziu muitos textos para a escola. Segundo ela, a Congregação Notre Dame, à qual pertence, lhe proporcionou inúmeros cursos de formação, em diversas áreas do conhecimento. Por ter sido o rosto da instituição, Adelia é lembrada com frequência por meus amigos, minha família e por mim. Recordo que diversas vezes fui carregada em seus braços ao final das aulas. Suas palavras eram sempre as mesmas: “Olha quem eu tenho aqui: a Helena. Ela vai ficar comigo hoje”, me dava um beijo na testa e me passava para o colo de meu pai. O Colégio Maria Auxiliadora fica no centro da cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. Fundado em março de 1944, passou por vários processos de modernização. As irmãs da congregação vivem em um lugar reservado a


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Quando passei pelo portão de entrada do meu antigo colégio, vários pensamentos me vieram à memória. Meu primeiro comentário para a fotógrafa que me acompanhou àquela visita, Jéssica, foi de que a qualquer momento eu iria chorar, e não deu outra. Assim que encontrei a minha querida ex-diretora, Irmã Adelia Dannus, meus olhos ficaram mareados e fui obrigada a me conter. Naquele momento tive certeza de que havia escolhido esse assunto pois me fazia lembrar o quanto fui feliz ao lado daquela pequena grande mulher. Imediatamente passei a recordar momentos incríveis que vivi naquela instituição de ensino. Foi difícil conseguir selecionar o conteúdo que seria utilizado na reportagem. Foram muitos os entrevistados, mas nenhum me satisfez. Optei por utilizar o texto em primeira pessoa, fazendo com que fluísse o meu texto.

elas no terreno do colégio. Além de confortos como piscina para hidroginástica, área verde para passeio e horta com frutas e verduras, há ainda um asilo reservado às irmãs de mais idade. Somente depois que me formei no Ensino Médio descobri o universo que existe por trás do colégio. “Achei que eu iria morrer e nunca conheceria esse espaço dedicado a vocês”, disse à irmã Adelia. A psicóloga Vanessa explica que outro grande motivo de minha época no colégio ser parte importante na minha memória é porque, na infância, a escola é a extensão da casa, onde a criança tem nos pais figuras de autoridade e exemplos a seguir. “É possível que a criança transfira essas características aos professores, tornando inerente o fato de termos profissionais cada vez mais qualificados nas instituições de ensino, já que atualmente os papéis de educar estão voltados apenas à escola, uma visão deturpada dos pais que estão cada vez mais atarefados com o mundo dos negócios”, explica. Quando estava na terceira série, em 1999, troquei de turma. Foi o ano mais difícil que enfrentei: meu pai havia falecido em um acidente de carro

no final de fevereiro. “Eu lembro o dia em que eu te tirei da sala de aula para dar a notícia. Foi um grande choque. Ele era uma pessoa extremamente dedicada, amorosa. Eu lembro tão bem esse dia. São fatos que marcam”, recorda Adelia. Fiquei três semanas sem comparecer às aulas. Apesar do que havia acontecido, conheci ótimas pessoas naquele ano, muitas das quais permanecem meus amigos. Como sempre fui a mais baixa da turma, era a primeira da fila, seguida pela minha amiga Monica Costa. Aliás, foi assim que nos tornamos unha e carne. Ela foi a minha primeira amiga naquela turma cheia de estranhos. Tivemos várias brigas, como todos os amigos, e sempre voltávamos a nos falar. Como hoje estudamos em lugares diferentes e nossos cursos são distintos, não nos vemos mais com frequência, mas sempre sobra um tempinho para mandar uma mensagem de saudade. Para Vanessa, a presença dos amigos durante o período escolar facilita o desenvolvimento pessoal e comportamental das crianças. “A aderência a grupos e relações de amizade proporcionam a inserção dos seres humanos nas regras e JÉssica Sobreira

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normas de convivência social, fortalecendo sua identidade e autonomia”, explica. Ou seja, o grupo de amigos é essencial para nos tornarmos quem somos. Mais para frente, em 2004, passei a me relacionar com os meus amigos-irmãos Bruno Jurkovski, Cassiano Mendes, Eduardo Castro e Luca Bittarello. O contato que mantemos hoje é complicado, dado que Luca estuda na França e Bruno na Inglaterra, mas sempre damos um jeito de nos reunirmos em aniversários e em suas férias no Brasil. Matamos a saudade, rimos muito e lembramos as besteiras que fazíamos na nossa adolescência no CMA. Todas as vezes em que nos juntamos, o sentimento de nostalgia bate e, por vezes, eu quase choro. Todas essas minhas lembranças são mais fortes, pois divido esses sentimentos com a minha prima-irmã Cynthia Lucas, que estudou no colégio na mesma época que eu, se formando um ano mais tarde. Sempre que nos encontramos, algum assunto relacionado à escola ou ao tempo lá vivido vem à tona. Quando conversamos sobre os nossos futuros filhos, a instituição de ensino escolhida é sempre o Auxiliadora. “Lá eu me sentia em casa”, conta Cynthia, com os olhos cheios d’água.

Tempos de ginástica Durante todo o meu Ensino Fundamental, fiz parte da equipe de Ginástica Rítmica e Olímpica oferecida no colégio. A atividade física foi sugerida aos meus pais pela minha professora da 1ª série. A ginástica seria uma alternativa para desenvolver a minha concentração. Frequentei assiduamente, por cinco anos, as aulas nas segundas e sextas-feiras. Naquela época, nada era mais importante para mim do que as aulas, competições e os festivais de final de ano. Tanto que, durante o último ano em que participei, minha carga horária se intensificou, passando de duas para doze horas semanais. Todo esse empenho e esforço eram para participar de campeonatos em outras cidades gaúchas, como Caxias do Sul, Santa Maria e Porto Alegre. Sempre voltávamos com as medalhas e troféus de primeiro lugar, o que nos enchia de orgulho. Acreditávamos que poderíamos ser as próximas Daianes dos Santos. O que mais nos motivava eram os Festivais de Ginástica no colégio, realizados no final de cada ano. Eram as famílias das próprias alunas que decoravam

o ginásio para o evento. Foram muitos os temas escolhidos, todos voltados para histórias infantis, tendo como trilha sonora os desenhos da Disney, como A pequena sereia, A Bela e a Fera e Tarzan. Apesar de toda essa magia, ainda lembro as vezes em que convidava minha turma para assistir às minhas apresentações. Pode parecer invenção, mas meus colegas gritavam entusiasticamente meu nome durante os espetáculos. A psicóloga Vanessa explica que as atividades extracurriculares ajudam não apenas na redução do fracasso escolar, como também estimulam o desenvolvimento de hábitos mais saudáveis, aperfeiçoando a capacidade de armazenamento das novas informações. “É interessante perceber as áreas que a criança apresenta maior interesse, e lembrar que o excesso é prejudicial. Assim, evita-se o desgaste físico e emocional”, completa. Hoje, toda vez em que passo em frente ao CMA, essas lembranças me voltam à mente. Vivi momentos intensos no colégio e nunca irei esquecer os dias que passei lá. Fui feliz enquanto estava no CMA, sou feliz agora e serei mais feliz daqui para frente.

FOTOS Nathália Mendes

Irmã Adelia mostra para Helena, pela primeira vez, o espaço na escola onde as freiras residem. A ex-aluna ainda guarda algumas imagens dos colegas de aula. Acima, detalhe do moleton usado por outra ex-aluna, Cynthia


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Um lugar para alimentar AS LEMBRANÇAS Restaurante Dodô, em Osório, permite aos clientes uma viagem no tempo TEXTO: jULIANA lITIVIN l FOTOS: lETÍCIA sILVEIRA E lETÍCIA aROLDI

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ntes de começarmos a entrevista para esta reportagem, Claudiomir Dias Silveira, 44 anos, o Dodô, andava de um lado para o outro no restaurante. Inquieto, ele queria ter certeza de que tudo estava em ordem. Sentada à sua espera, observei o ambiente. Em todos os espaços havia algum objeto que reforçava o clima nostálgico. Claudiomir, junto com os funcionários, arrumava as mesas, as cadeiras e o buffet. Com um olhar atento, certificava-se dos detalhes. Apesar da correria, mantinha o bom humor. Depois de finalizar a organização, reservou um tempo para conversar conosco sobre a história do restaurante. Sorridente, revelou o orgulho pelo o trabalho que realiza. “Simplesmente uma casa diferente.” É assim que o proprietário define o restaurante Dodô. Localizado no morro da Borússia, em Osório, a 100 quilômetros de Porto Alegre, o lugar destaca-se por preservar a memória gastronômica e também por manter uma decoração repleta de antiguidades. “Aqui o pessoal se encontra e se diverte”, afirma. O apelido Dodô é antigo. Claudiomir conta que surgiu com o pai. Domingos virou Dodô. “No passado, as famílias tinham muitos filhos para ajudar na mão de obra da lavoura. Os nomes se repetiam. Então, tinham 30 João, 40 Maria. De qual Maria eu falo? Qual João eu estou falando? Para resolver isso, falava o nome da pessoa e o apelido do pai junto. Por isso, me cha-

mam de Cláudio Dodô, ou apenas Dodô”, explica. O interesse pela culinária caseira e tradicional vem de família. A mãe de origem italiana lhe inspirou. “Comida em abundância, polenta com galinha e queijo, me criei no estilo de mesa cheia.” O pai, além de criar porcos, mantinha um pequeno boteco. Esse já era o início do restaurante Dodô. “Nós tínhamos um boteco e, ao fundo, havia uma cancha de bocha. O pessoal sempre vinha jogar. Minha mãe preparava galinha com polenta para eles. Eu, ainda jovem, percebi que todos elogiavam, dizendo que há tempos não comiam esse tipo de comida. Isso ficou na minha memória.” Foi nesse momento que ele planejou o futuro. “Um dia vou servir essa comida para as pessoas da cidade”, recorda. Natural do morro da Borússia, Claudiomir estudou na zona rural da região. Formou-se em técnico agrícola. À noite, cuidava do negócio da família. Para ele, essas etapas lhe garantiram conhecimento. Em 1984, o boteco começou a mudar. “No início servia pasteis. Eu fazia um laboratório aos domingos servindo comida caseira para pequenos grupos. Queria sentir o que as pessoas achavam.” Como a resposta foi positiva, seguiu com o sonho. Desde então, carregado com a herança familiar, Claudiomir mantém o restaurante no alto do morro. São mais de 30 anos de história. Aos poucos, modificou o ambiente para deixá-lo agradável. Foi aí que teve uma ideia transformadora.

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Apaixonado por coisas antigas e pela preservação da cultura, resolveu decorar o restaurante de forma que o local também mantivesse o clima de recordação. “Se as pessoas gostam de comida do passado, os objetos também vão reforçar essa memória.” Tudo iniciou quando Claudiomir pôs no restaurante alguns itens antigos da família. Interessados, os visitantes começaram a presenteá-lo. Segundo ele, foi uma sequência de colaboradores. “As pessoas queriam fazer parte da decoração do Dodô. São raras as peças que eu compro.” A roda de carreta e o balaio, dispostos perto do buffet, foram os primeiros objetos colocados no restaurante. Claudiomir diz que, além de expor, também tenta encontrar uma utilidade para eles. O recebimento do balaio foi também um dos momentos mais emocionantes para o dono do restaurante. “Perguntei para um colono, compadre do meu pai, se ele queria me vender o balaio. Eu não queria um novo, queria um que tivesse passagem por uma família. Quando perguntei se ele tinha algum para me vender, ele disse que ia me dar o balaio de presente e, ao dizer isso, chorou”, relata. DECORAÇÃO DO PASSADO Atualmente, o restaurante conta com inúmeros objetos antigos. Cada ambiente reserva uma surpresa. Ao lado das mesas, uma estante de madeira abriga máquinas fotográficas, aparelhos televisores de outras épocas, ferros de passar que funcionavam com carvão, máquinas de costura, instrumentos musicais, discos de vinil, telefones. Em outro espaço, um jukebox retrô anima os visitantes. Até nos banheiros, a decoração está presente. São tantos artefatos que Claudiomir já perdeu a conta. “Não sei quantos objetos tem hoje no restaurante. Mas, se tu olhares, em cada canto tem algo diferente.” O carinho com as peças é evidente. Cuidadoso, ele sempre procura algo inusitado para decorar o local, inclusive chupetas e brinquedos esquecidos pelos clientes transformam-se em enfeites. “Tem coisas que eu coloco aqui, que as pessoas nem percebem.” Para

os apaixonados por futebol, há bandeiras do Grêmio e do Internacional, além de pôsteres das torcidas. No Dodô, as peças ficam acessíveis. Qualquer um pode tocá-las. É possível ainda divertir-se com jogos de tempos passados, como varetas, dominó e general. “Quero quebrar a formalidade entre cliente e proprietário. Fico exposto para receber opiniões e críticas. A decoração encanta até mesmo quem trabalha no restaurante. Eliane Rossoni, 38 anos, funcionária há um ano e meio, adora peças antigas. “Os objetos fazem lembrar da tua história, da tua época, da tua vida. Muitos desses artigos que estão aqui, minha avó tinha em casa. Lembro dela colocando carvão dentro do ferro de passar, lembro da máquina de costura.” Moradora da Borússia há 15 anos, Eliane recorda, com carinho, comentários dos visitantes. “A maioria das pessoas que eu atendo fica surpresa com a decoração. Elas dizem que tal peça é da época delas, ou ainda, que sentem saudade daquele tempo.” Para a funcionária, muitos vão ao Dodô atraídos pelo ambiente e também pela localidade, que é considerada um ponto turístico. “A casa é diferente porque une o novo com o velho.” A maior divulgação do restaurante Dodô ocorre por meio do “boca a boca”, ou seja, quem gosta indica para amigos e parentes. Foi assim que aconteceu com Maria Alzira Klein, 58 anos. A moradora de Osório trouxe os tios de Porto Alegre para conhecer o restaurante Dodô. “Não é a primeira vez que venho aqui, voltei porque, além de servir comida caseira, o local se diferencia na decoração. Essas balanças antigas, máquinas de costura remetem ao meu passado. Quero trazer outras pessoas aqui”, assegura. Na mesma mesa de Maria, Louri Manoel Martins, 66 anos, e Reni Manoel Jardim, de 73, divertiam-se jogando dama. “Quem não quer voltar? É um ambiente muito agradável”, garante Louri. Claudiomir sente-se realizado ao promover a troca cultural entre diferentes gerações. “Um senhor de 80 anos vem aqui, pega o bilboquê e joga com o neto de cinco anos. Dessa for-


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ma, o bilboquê está sendo eternizado, por mais uma geração, porque aquela criança daqui a 60 anos dirá que lembra quando veio aqui com o avô e passará essa memória adiante”, comenta emocionado. De mãos dadas, Isolina Barth, 73 anos, e a neta Gabriela Jacobs, oito anos, apreciavam admiradas as prateleiras repletas de antiguidades. “Quero que ela conheça o que fazia parte da história da avó. Cada vez que venho aqui, descubro algo novo. Volto ao passado.” Curiosa, Gabriela fotografava tudo com o tablet. Dessa forma, o antigo e o moderno se deparam. Para Claudiomir, é justamente esse encontro que torna a casa especial. “Fazer as pessoas felizes é a minha maior riqueza. O Dodô é diferente, porque é simples. O bom da festa não é quando tu pões o pé no chão? Então, porque não ir logo para o simples e diferente?”, questiona. O proprietário está cheio de novidades para o restaurante. “Do lado de fora, estou construindo quatro casinhas de cachorro, será o Dodog. Enquanto o dono almoça e se diverte, o cachorro descansa.” Com lágrimas nos olhos, Claudiomir conta que se comove quando clientes lhe agradecem pelo dia em que voltaram a ser crianças. “Não tem preço fazer pessoas que não saem de casa vir aqui. Senhores que entram pela mão, tateando, e tu percebes a emoção no olhar deles. Dessa forma, estamos colaborando com a memória, tanto na comida, quanto nessa opção de jogos e antiguidades que decoram a casa.”

Comandado por Claudiomir, o Restaurante Dodô preserva objetos antigos e se mantém há mais de 30 anos em Osório

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Conheci o restaurante Dodô em fevereiro deste ano, no retorno das férias. Eu e a minha família voltávamos da praia, quando decidimos ir ao morro da Borússia. Almoçamos, por acaso, no Dodô e logo nos encantamos com a decoração do local. Quando o tema memória foi definido pela turma, lembrei-me do lugar. Foi então que, em sete de abril, dia do jornalista,

viajei 100 km para exercer com orgulho o meu ofício. Fomos privilegiados com um domingo ensolarado. Claudiomir, sorridente, nos recepcionou. Ao entrarmos no restaurante, voltamos no tempo. Em cada espaço havia algum objeto antigo, que reforçava a memória. A comida caseira também contribuía com o clima de nostalgia. Durante a conversa com

Claudiomir, notei, no seu olhar, o amor pelo trabalho que realiza. Em vários momentos, ele se emocionou ao dizer o quanto se preocupa em manter um relacionamento próximo com os clientes e o quão gratificante é promover essa troca cultural. O Dodô preza a simplicidade e a memória. A visita ao restaurante me fez reviver as minhas próprias lembranças do passado.

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Jogo dos 7 erros JÉSSICA SOBREIRA

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Você é observador? LETÍCIA SILVEIRA

Observe atentamente a imagem desta página durante 15 segundos. Depois, vire a página e responda as perguntas sobre a foto.

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Você é observador?

Sem voltar para a página anterior, responda:

Quantas chaleiras há na imagem? Tem um rádio na foto? E uma televisão? A lenha está queimando no forno? Há um chapéu de palha? E uma vassoura? Quantos bancos aparecem? O lustre é de madeira? Tem algum objeto verde? Quantos milhos há na foto? Tem uma mesa na imagem? E uma foto na parede? As paredes são de tijolos? Há um machado? Quantas caixas de fósforos há na imagem?

Veja as respostas na página 106 88

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As quatro amigas da foto reuniram-se para falar de suas lembranças do passado. Bruna tem forte memória visual e está logo atrás de Laura. Paola recorda do cheiro do chá de erva cidreira que sua vó fazia. Atrás dela, está Júlia, que ainda lembra da casa onde passou sua infância, em Panambi. Laura, que não está de touca, não esquece das brincadeiras que fazia com sua prima, em Caxias do Sul. Bruna não usa óculos. Quem é quem? Veja as respostas na página 106

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EM ESTEIO, MIGUEL LUZ MANTÉM UM MUSEU COM UM ACERVO PARTICULAR DE TRÊS MIL PEÇAS QUE CONTAM A HISTÓRIA DA CIDADE TEXTO: catiele abreu l FOTOS: henrique lopes e priscila gomes

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s memórias de uma cidade, seus costumes, tradições geralmente estão concentrados em um museu. O local pode abrigar períodos de tempo e contar histórias através de objetos, fotos, documentos. A cidade de Esteio, localizada a 16 quilômetros de Porto Alegre, também possui um museu. O diferencial desta história é como e por quem o museu é mantido. O local possui um acervo particular com cerca de três mil peças. O proprietário é Miguel Luz, diretor do jornal Destaque, publicação local de Esteio. A história da cidade e do jornal caminham juntas há muito tempo. Esteio se tornou município em 1954, e o Destaque foi fundado 13 anos depois. Miguel Luz é natural de Santo Antônio da Patrulha e se mudou para Esteio em 1949. Ele é um senhor tranquilo e receptivo, com ares de avô, diferente da ideia que sem tem de um diretor de jornal, como uma pessoa agitada. Ele pode passar horas coversando sobre o jornal, o museu e sobre Esteio. É a vida dele. Este ambiente parece ser ar para seus pulmões. Na década de 1960, envolvido em

movimentos estudantis e com a imprensa da região, viu a necessidade de criar um veículo de comunicação em Esteio, e foi então, em 1967, que o jornal Destaque foi fundado. Na época, a publicação se chamava O Reco e tinha o formato de revista. Apenas dez anos depois teria o formato de jornal e passaria a ter o nome que possui até hoje. Com a empresa em Esteio, a proximidade de Luz com a cidade aumentava ainda mais. Ele já colecionava peças e documentos históricos, como a ata de emancipação de Esteio. “Eu tenho coisas originais, únicas, que não tem como a Prefeitura ter”, conta. Esta ligação com o município fez com que ele quisesse resgatar a história de Esteio. Foi então que, em 1991, ele fundou o Museu Histórico de Esteio. A ideia de montar o acervo surgiu em 1987, quando o jornal realizou uma exposição fotográfica em parceria com o estúdio Foto Ramos. Entre as peças do museu, hoje estão câmeras fotográficas, máquinas de escrever, móveis, fotos e outros objetos, como a cadeira do primeiro prefeito de Esteio. Esses objetos foram doados para Luz ao longo do tempo por amigos e

pessoas próximas. Muitos talvez fossem parar no lixo e seriam esquecidos. São relíquias que hoje servem para contar a história de Esteio e também do jornal, pois existem câmeras fotográficas e outros objetos que foram utilizados na redação. TRADIÇÕES MANTIDAS A sede do jornal fica no Centro de Esteio, mas a rua é tranquila, diferente da agitação de uma das principais avenidas da cidade, que fica logo ali na esquina. Já na entrada da rua do Destaque, uma figueira grande e pomposa divide a via ao meio, mostrando que, mesmo com o passar do tempo e os avanços da cidade e da população, alguns símbolos e tradições foram mantidos. A rua é um local residencial. Os moradores são vizinhos do jornal Destaque, o que faz com que a relação do veículo com a população e com a cidade fique muito próxima. A sede do jornal é uma casa antiga, que poderia ser facilmente confundida com a de um morador, não fosse a fachada anunciado que ali funciona um veículo de comunicação. O portão sempre aberto durante o expePRISCILA GOMES

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bém foi construída uma sala com capacidade para 60 pessoas onde, após a visita, Luz fala sobre a história de Esteio. “Nós fizemos aqui um auditório com telão. Então as crianças vêm e visitam o museu, a gente traz as crianças aqui para cima e fala com eles, fala da formação do município”, diz o diretor do jornal. O espaço é de visitação pública e tem entrada gratuita. Mesmo assim, nesses mais de 20 anos de existência, o local sempre foi mantido exclusivamente com a receita da empresa, não há colaboração dos órgãos públicos, segundo Luz. O diretor diz que é muito difícil a manutenção. “Eu preciso manter as peças, eu tenho os armários, dá cupim, eu tenho que trocar. A peça fica muito tempo, eu tenho que tirar pra fora, tenho que lubrificar e arrumar”, relata. No final de 2012, Luz decidiu fechar as portas do museu para uma grande reforma. O museu ficava no andar de baixo da casa e, depois da melhoria, vai ficar no andar de cima, em um local de mais fácil acesso. O trabalho também inclui restauração de peças e móveis que estão desgastados pelo tempo. O jornalista do jornal Destaque e co-

laborador do museu Anderson Loureiro conta que os reparos tiveram o objetivo de organizar a visitação no museu e criar um ambiente mais agradável. “A reforma vai mudar a forma de visitar o museu, pois as peças estão organizadas por setores, como comunicação e história da cidade. O novo ambiente também pretende aumentar o número de visitações”, diz. Segundo Anderson, mesmo com todo este acervo, até a reforma, o número de visitas era baixo. “Poucas pessoas sabiam que existia um museu em Esteio”, relata. A expectativa é que agora o número de visitas aumente.

minha oportunidade. Já conhecia a sede do veículo, mas fazia muito tempo que não ia até lá. Algumas coisas mudaram, reformas foram feitas, salas mudaram de lugar. O próprio museu passou por uma reforma, o que dificultou a produção de fotos para a matéria. As entrevistas foram feitas no início de abril, mas apenas na metade de maio os

fotógrafos conseguiram fazer o seu trabalho. Fiquei com um pouco de receio de que não fosse possível fazer as fotos. Tentamos fotografar algumas peças do museu antes da reinauguração, mas não foi possível, pois muitos objetos estavam sendo restaurados. Por fim, conseguimos fazer as fotos depois da inauguração, e o resultado está aí.

A REFORMA A reforma do museu foi concluída no dia 17 de maio, quando foi feita a inauguração oficial. As visitações ao museu são gratuitas, acontecem segundas, quintas e sextas-feiras e devem ser agendadas pelo telefone 34731712. O museu está localizado na sede do jornal Destaque, na Rua Theodomiro Porto da Fonseca, 134, em Esteio.

FOTOS HENRIQUE LOPES

diente convida os visitantes a entrarem sem muita cerimônia. Por dentro, o prédio parece ser um tanto sombrio e tem muitos cômodos, formando quase que um labirinto para quem não o conhece direito. São diversas portas, corredores. À primeira vista, o que se vê é uma recepção e uma porta que leva à redação do jornal, à sala dos diagramadores, à sala do diretor do jornal e a um auditório onde são feitas as palestras para os estudantes. O museu e uma gráfica própria onde o jornal é impresso são mais escondidos para quem não está acostumado com aquele ambiente. Hoje a principal função do museu é atender estudantes de Esteio, que vão fazer pesquisas e também conhecer a história da cidade. “Uma coisa que nos gratifica muito são os trabalhos escolares. O Destaque é uma fonte de informações em todos os sentidos. O que está acontecendo, o que aconteceu há muitos anos, sua formação, sua cultura. Todos esses fatores fazem com o que jornal ajude também os estudantes, ajude as crianças”, orgulha-se. Para melhor receber os alunos, dois funcionários do jornal acompanham a visitação de escolas. Além disso, tam-

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Desde 2006 conhecia o jornal Destaque por conta de uma seleção para uma vaga de estágio da qual participei. Não passei na seleção, nunca fui colaboradora do jornal, mas passei a acompanhar a publicação desde então. Sempre quis fazer algo relacionado ao jornal e ao museu que lá é mantido, e a Primeira Impressão foi

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ABRINDO HISTÓRIAS Seu Machado já dedicou 62 anos dE sua vida À profissão de chaveiro no centro de Porto Alegre TEXTO: Yngrid Lessa l FOTOS: LETÍCIA SILVEIRA

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e segunda a sexta-feira, José Machado, de 78 anos, segue o mesmo ritual. Acorda às 7h, pega o ônibus do bairro Jardim Leopoldina rumo ao centro de Porto Alegre. Depois de cerca de 60 minutos é hora de abrir sua casinha de chaveiro. Subindo a Avenida Borges de Medeiros, no sentido centro-bairro, passando a esquina democrática, chegando na Rua General Andrade de Neves, logo na esquina entre essas duas ruas é possível ver a casinha. Na profissão há mais de meio século, Seu Machado, como é conhecido, trabalha há 35 anos neste mesmo ponto. Entre idas e vindas, inícios e recomeços, sempre teve seu estabelecimento no centro. Influenciado pelo irmão mais velho, que já era chaveiro, Seu Machado começou a aprender o oficio com apenas 14 anos. Desde então, segue na profissão. Com as mãos ásperas de tanto lidar com as limas (tipo de lixa que era usada para moldar as chaves antigamente), ele não se entrega fácil. Dono de um sorriso largo, que encanta a todos, o senhor de cabelos grisalhos

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e de pele negra se diz feliz com a profissão que escolheu. Apenas brinca que a única coisa ruim é não poder usar a aliança de casado, pois ela atrapalha na hora de confeccionar as chaves. Rodeado por chaves, argolinhas de metal, torno e duas máquinas para a confecção das peças, Seu Machado tem ainda dois últimos rituais a fazer antes de iniciar o seu trabalho: acender um incenso e ligar o rádio. Sempre em companhia do seu radinho de pilha, ele nunca se sente sozinho. Escuta diversas músicas durante o dia, assim como algumas notícias da cidade e do trânsito. O trabalho como chaveiro já fez com que ele conseguisse realizar um grande sonho. Casado há mais de 50 anos com Dona Helena, tem apenas uma filha e um neto. E orgulha-se ao dizer que a profissão de chaveiro já pagou toda a graduação e a formatura da filha em pedagogia. Assim como agora paga os estudos do seu neto, de 21 anos, que está cursando Direito. Atendendo de segunda à sexta-feira, das 9h às 18h, Seu Machado não cansa. Sempre ativo, conversa com todo mundo que passa e faz amizade


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fácil. Apesar disso, Seu Machado não bobeia, trabalha muito. Faz de 80 a 100 cópias de chaves por dia. Enquanto trabalha, puxa assunto com os clientes. Fala sobre futebol, clima, imposto de renda, dupla gre-nal entre outros. Colorado de coração, ele conta, todo faceiro, que já jogou no Cruzeiro, na categoria juvenil, quando era mais novo. Assim como gostava de praticar ping-pong. Falando da sua juventude, lembra que serviu no quartel, mas que não gostou de ser mandado, por isso, quando retornou de lá, voltou à profissão de chaveiro. Nessa época ficou responsável por um dos pontos que era do seu irmão mais velho. A partir daí, começou a trabalhar sozinho, por conta própria. No início, além de fazer chaves na hora, colocar fechaduras, trocar miolos, ele também atendia em casa. Dessa época Seu Machado tem muitas lembranças engraçadas. Atualmente, ele não realiza mais este tipo trabalho, 96

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preferiu ficar apenas com a confecção das chaves. Seu Machado tem memória boa. Lembra com facilidade dos sustos e situações inusitadas do início de sua carreira. Em um de seus atendimentos externos, foi realizar apenas a troca de miolo de uma fechadura, coisa simples. Entretanto, levou um baita susto enquanto fazia o serviço. Diz que, ao chegar na casa, logo percebeu que se tratava de uma família militar. Nas paredes havia vários quadros, medalhas e objetos relacionados ao Exército Brasileiro. Achou interessante e continuou com o seu trabalho. “Afinal, era pra isso que eu estava ali”, relembra. Depois do trabalho pronto, quando iria receber o dinheiro da senhora que o tinha chamado, percebeu que alguém estava tentando entrar, mas, como ele tinha trocado o segredo da fechadura, a pessoa do outro lado da porta não conseguiria abrir. Avisou à cliente sobre a tentativa, e ela abriu a porta. Ele lembra que se deparou com um coronel,

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que logo o indagou sobre quem tinha o mandado fazer a troca. Enquanto o casal discutia, tratou de pegar o seu dinheiro com a mulher e ir embora. Hoje em dia, ele acha bem engraçado, mas conta que na época ficou com medo da reação do coronel. Entre situações engraçadas e alegres, ocorreram também fatos ruins. Certa vez, Seu Machado foi chamado para abrir a porta de um apartamento, no centro mesmo. A dona do apartamento em questão era sua cliente, mas quem havia pedido o serviço eram os outros moradores do edifício, pois a senhora que ali morava não estava atendendo a porta. Como de costume, Seu Machado realizou o trabalho e abriu a porta. Ao entrar, percebeu que a cliente, infelizmente, estava morta. ONTEM E HOJE “A primeira coisa que aprendi para ser chaveiro foi comprar as matériasprimas para fazer as chaves”, relembra Seu


Machado. Na época em que iniciou na profissão, em 1951, só existiam dois tipos de chaves, a Doberman e a Yale. Essas peças eram de ferro, pesadas. Para se fazer as cópias, eram utilizados os três tipos de limas: a chata, a triangular e a redonda, para dar formato à peça de metal e assim ficar igualzinha a original. O trabalho demorava, em média, meia hora para ficar pronto. Hoje em dia, em três minutos já é possível realizar a cópia de uma chave. Hoje as chaves são de latão com liga de metal, mais fáceis e mais rápidas de se fazer, porém o serviço ficou mais perigoso. Seu Machado lembra que, quando iniciou, para ter acesso às ferramentas de trabalho era exigido uma carteirinha expedida pela polícia. Essa atestava os bons antecedentes do profissional. “Hoje em dia, qualquer um pode ser chaveiro”, ressalva Seu Machado. A carteirinha em questão era uma segurança tanto para o cliente quanto para o próprio chaveiro. Afinal, isso atestava a sua boa conduta. Atualmente nada disso é pedido. Para ser chaveiro, basta apenas ter dinheiro e fazer um curso para aprender a profissão. Em média, os cursos que ensinam o ofício duram apenas seis meses. Antigamente, para se tornar um bom chaveiro era preciso um ano de estudo. Mesmo assim, Seu Machado continua sentindo orgulho de sua profissã e todos os dias repete o mesmo ritual para fabricar chaves que farão parte da vida de centenas de pessoas.

Antigamente, Seu Machado precisava de meia hora para fazer uma chave, hoje, leva três minutos

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Admiro as pessoas que conseguem escrever de forma literária os seus textos. O que não é o meu caso. Por isso, produzir essa reportagem foi um grande desafio para mim. Tive algumas (muitas) dificuldades no caminho, mas creio que no final consegui superá-las. Talvez alguns não gostem do meu texto, outros gostem, mas o que importa, realmente, foi que pude exercitar

esse gênero que eu nunca tinha trabalhado. Acho que ainda não domino este tipo de escrita, mas podem ter certeza que continuarei tentando aprender. Agradeço ao Seu Machado pelo tempo dedicado a mim e à revista Primeira Impressão. Nosso primeiro contato foi muito bacana. Conversamos mais de duas horas. Ele, de forma simples e de bom humor, me contou

a sua vida, suas histórias profissionais e até suas percepções sobre a vida. Foi um longo e prazeroso papo. Seu Machado, espero ter contato direitinho as suas histórias e memórias como chaveiro. Com certeza deixei alguns acontecimentos de fora, mas espero que o senhor não me leve a mal, mas é muito difícil reduzir uma história de 62 anos em apenas 7 mil caracteres.

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Quatro anos a bordo de um veleiro OS IRMÃOS AUGUSTO E GUSTAVO SCHLIEPER PERCORRERAM 60 MIL QUILÔMETROS COM O VELEIRO CANELA EM MAIS DE 1.500 DIAS TEXTO: Eduardo Saueressig

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equipe do Destino Canela, formada por velejadores naturais da Serra Gaúcha, guardará para sempre lembranças de uma viagem que levou dois irmãos e seus amigos a ficarem mais de quatro anos fora de seu país, de suas casas e longe de suas famílias. A expedição iniciou em 2008. Durante os mais de 1500 dias em que moraram no barco, os irmãos Augusto e Gustavo Schlieper dividiram o espaço com amigos, que, alternadamente, acompanharam o percurso. A idealização do projeto e a primeira parte da viagem contou com a participação de Cláudio Cavalli, 34 anos, que em 2011 deixou o barco para casar com a namorada americana que conheceu na viagem. Com a sua saída, o lugar vago foi ocupado por João Pedro Travi, 24 anos, Leandro ‘’Rasta’’ Brant, 33 anos, e Bruno Corino, 28 anos, que completaram o restante do percurso do Destino Canela, juntamente com Gustavo e Augusto, até sua chegada ao Brasil. Os dois aventureiros percorreram mais de 25 roteiros, em cerca de 60 mil quilômetros. Começando por San Diego, nos Estados Unidos, eles passaram também por países da América Central e da Oceania, África do Sul e a ilha Galápagos, este último destino eleito o melhor pelos velejadores. Ao todo, oito tripulantes passaram pelo veleiro Canela nesta travessia. Os irmãos Schlieper mantiveram um diário de bordo, e Augusto, o comandante do veleiro Canela, pretende transformar a aventura em um livro. Muita gente se pergunta como eles pagaram a viagem, que teve um custo bastante elevado e não divulgado pelos idealizadores do projeto. Eles tinham apoio de quatro empresas da região da Serra Gaúcha e também vendiam camisetas do projeto para ajudar a pagar as despesas. “Duas coisas marcaram demais nossas vidas e teremos sempre guardadas em nossas memórias. Primeiro o fato de por quatro anos estarmos todos os dias juntos, isso


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vai ser difícil de esquecer. Em terra isso não acontece. Outra coisa foi ver o quanto as belezas dos lugares visitados e as pessoas que vivem lá tornam esses lugares realmente especiais. Passamos em lugares lindos e, devido às diferenças culturais, acabamos não curtindo tanto quanto outros, que não eram tão bonitos”, ressalta o comandante do projeto, Augusto Schlieper. O veleiro CANELA O veleiro foi comprado pelos irmãos em San Diego, nos Estados Unidos, em fevereiro de 2008. Em julho do mesmo ano, os velejadores tiveram o primeiro contato com o construtor do barco, o sul-africano Phill Sargent. Chamado inicialmente de Golovan, o veleiro foi usado pela família de Phill para cruzar o Atlântico, subir a Costa Oeste da América Central e chegar a San Diego, quando

a mulher decidiu encerrar a viagem. O barco pesa 15 toneladas, tem 13,2 m de comprimento e largura de 4m. A principal ideia dos aventureiros era, primeiramente, levar o nome de Canela e do Rio Grande do Sul a todos os cantos do mundo. Canela e a Serra Gaúcha são polos turístico. Isso foi feito com material fornecido pela Prefeitura Municipal de Canela e pelo Governo do Estado, que repassaram os materiais aos tripulantes antes da partida. O que mais encantou os velejadores durante este longo percurso foram as belezas naturais que encontraram: “Em toda a viagem, para mim, o lugar que mais marcou foram as ilhas de Galápagos. Elas pertencem ao Equador e têm fama de caras, porém o que descobrimos foi que tudo lá era muito barato”, conta Augusto. Além disso, eles também descobriram que o surf de lá é de primeira classe. Por lá passa gente

do mundo inteiro, participando de trabalho voluntário e estudando a evolução do esporte. Festas também não faltam. “A natureza é diferente de tudo o que já se viu, e, para completar, o povo é super gente fina. Para dar um exemplo, lá um táxi nos deu carona, coisa que raramente aconteceria no Brasil”, lembra Augusto. Gustavo, além da aventura, buscou ajudar a popularizar a prática da vela no Brasil. “Queremos também incentivar a vela em todos os âmbitos. Com a repercussão da viagem, pretendemos chamar a atenção de crianças e adolescentes que ainda estão começando a praticar esportes, para que elas se interessem pelo esporte à vela”, ressalta. A meta inicial era aportar em 43 países, mas houve uma mudança de rota que reduziu o número de destinos para 25, entre países e ilhas. Eles desistiram de subir o Mar Vermelho e arquivo pessoal

Os irmãos Augusto (segundo à esquerda)e Gustavo (último à direita) tiveram a companhia de vários amigos durante a expedição

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chegar ao Brasil via Europa porque a pirataria perto da Somália estava muito forte. Assim, a rota veio pela África do Sul, e depois diretamente, o Brasil. Em vários momentos, os aventureiros ficaram no mínimo apreensivos. O momento mais tenso, na visão de Gustavo, foi quando passaram por uma mancha enorme branca na água, jamais vista anteriormente por nenhum dos tripulantes. Porém, o maior susto da expedição em quatro anos de viagem foi quando houve o tsunami em Samoa. “Estávamos ancorados em um recife no meio do mar quando recebemos a notícia por mensagem no telefone via satélite: ‘Tsunami na direção de vocês’. Saímos às pressas e não sentimos a onda, mas posso dizer que nunca levantamos a ancora tão rápido”, lembra Gustavo. Para eles, o período mais importante da viagem foi o seu inicio, quando tudo era novo, e eles nem

imaginavam o que encontrariam pela frente: “Estávamos aprendendo como viver esse novo estilo de vida, diferente do que estávamos acostumados. Acho que muita gente desiste no começo, quando os problemas começam a aparecer. Depois que isso passa, é só curtir”, revela Gustavo. Projetos paralelos Durante esses quatro anos de trajeto, os aventureiros ficaram cerca de seis meses em terra na Nova Zelândia trabalhando para angariar fundos para continuar a viagem. Este foi o maior período de pausa. Quando chegavam aos lugares, ficavam em marinas ou em hotéis. Um dos maiores períodos de velejada e surf – três meses – aconteceu entre Bali e o norte da Sumatra. Em setembro de 2010, os velejadores encontraram outro meio de angariar fundos. Os irmãos Schlieper

velejaram com um barco da Nova Zelândia até a cidade de Ensenada, no México, contratados pelo dono da embarcação. Hoje em dia, transportar barcos é um trabalho bastante caro, e falta mão de obra para pilotar as embarcações. Dessa forma, os dois perceberam que podem investir também nessa atividade. Outra curiosidade que o Destino Canela lançou foi o projeto Fauna ao Vento, desenvolvido por um participante da expedição, também de Canela, João Pedro Travi. Formado em biologia, João catalogava as espécies de animais encontrada por eles em todos os lugares que conheciam. Hoje o veleiro Canela permanece ancorado no parque Veleiros do Sul, em Porto Alegre, mas logo deverá tomar o curso da Argentina ou Uruguai, por onde ficará guardado até os irmãos decidirem fazer mais algum aventura.

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Pode parecer um sonho impossível para muitos, mas alguns velejadores de Canela, no Rio Grande do Sul, provaram que é sim possível dar a volta ao mundo, e ainda por cima a bordo de um veleiro. Foram mais de 1.500 dias navegando e trabalhando nos mais diversos países e ilhas espalhados pelo planeta. Em conversa com os participantes da aventura, é possível notar a satisfação por ter conseguido acabar tal jornada e levar o nome da cidade natal de todos aos quatro cantos do mundo. Mesmo sem saber o custo real da viagem, se entende que foi algo bastante elevado. Com apoio de empresas, foi realizado. O que mais me chamou a atenção durante a entrevista foi que todos os viajantes se mostravam surpresos com o tratamento que receberam em diversos países, muitos deles mais pobres que o Brasil, mas onde as pessoas estavam sempre dispostas a ajudar, diferentemente de como é o tratamento dos brasileiros com seus visitantes. Fica desta experiência a sensação de que uma grande viagem pode e com certeza vai ficar marcada na memória de todos que participaram desta aventura. Vendo a história e as fotos, com certeza a vontade de fazer uma viagem, pelo menos parecida, só cresce dentro de nós. PRIMEIRA IMPRESSÃO

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TEUTÔNIA

Memorar e ser memorado Emancipação dO MUNICÍPIO, processo de governador e ESTÁTUA fazem parte das HISTÓRIAS de Elton Klepker TEXTO: Édson Luís Schaeffer l FOTOS: Nathalia Mendes

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diado por uns, parabenizado por outros, ele está na memória dos teutonienses. Em sua memória, o dia 24 de maio de 1981 permanece vivo. Para muitos, uma data qualquer. Para ele e para os teutonienses, um dia com grandes significados. O processo de emancipação de Teutônia, município do interior gaúcho, acompanha as memórias de Elton Klepker, 85 anos, que lembra de tudo como se fosse hoje. A impossibilidade de caminhar, em virtude de uma poliomielite adquirida aos 11 meses de idade, não foi empecilho de realizar o sonho da comunidade teutoniense: emancipar três distritos de Estrela – Canabarro, Languiru e Teutônia – para formar um único município. Ao lembrar esse processo, os olhos de Klepker brilham. “Em 1963, fizemos o primeiro movimento para emancipar os três distritos. Naquele período, houve uma alteração na administração de Estrela, onde, nas eleições, venceu o subprefeito de Bom Retiro do Sul. O candidato contra ele era morador do distrito de Teutônia e era gerente de banco. Em questão de popularidade,

o candidato de Teutônia levava grande vantagem. O povo dos três distritos ficou revoltado com o resultado e decidiu: ‘Vamos emancipar’. A primeira reunião estava superlotada. A população queria criar um novo município”, lembra. Na época, para emancipar uma determinada área, era preciso, num primeiro passo, recolher a assinatura de dois terços da população da área a ser emancipada. Criaram-se subcomissões que ficariam no encargo de recolher as assinaturas. “Uma das subcomissões foi à localidade de Pontes Filho fazer o primeiro ensaio de recolher assinaturas. Chegando numa residência, questionaram onde seria a sede. O líder disse que seria em Teutônia. Os moradores queriam Languiru. O líder rebateu, dizendo que, se não assinassem, eles iriam de cabresto com o novo município, ou seja, assinando ou não, o município seria criado e a sede seria em Teutônia. Um dos moradores sentou a mão na cara do líder, que foi parar no chão.” Após esse episódio, o movimento de emancipação foi sustado na Assembleia Legislativa. “Somente em 1975 reiniciou o movimento. Fui

convidado novamente para liderá-lo e disse para os moradores para tirarmos lição da tentativa anterior e não repetirmos os mesmos erros. Fizemos 21 reuniões entre as lideranças de cada distrito. Foram sete reuniões em Canabarro, sete em Languiru e sete em Teutônia.” Prefeitura na roça Durante as reuniões, as lideranças tiveram uma série de divergências. Cada distrito queria para si a sede do novo município, queria ter o primeiro prefeito. “Chegaram a sugerir traçar uma linha reta entre a Igreja Luterana de Canabarro e a Igreja Luterana de Teutônia. O meio seria a prefeitura. Novamente impasse. A sede seria praticamente em Languiru. No fim, lavrei um termo de compromisso que foi assinado pelas três comissões dos distritos.” No termo de compromisso, foi especificado que o Centro do novo município seria as três áreas urbanas mais a área rural necessária para a sua interligação, que deveria ser urbanizada. E isso se reflete ainda atualmente. O município, que hoje conta com

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CARTOLA 27.272 habitantes, de acordo com o Censo do IBGE 2010, não possui um bairro específico com características de centro, isto é, cada bairro possui o seu centro. Depois disso, foi preciso definir onde seria construída a prefeitura. “O nome do município decidimos dar à Teutônia. A prefeitura, que chamamos de Centro Administrativo, então seria construída na divisa dos distritos de Canabarro e Languiru. Não sabíamos bem as características do terreno. Poderia ser um banhado. Por isso foi definido também que a construção não passasse dos 200 metros da divisa. Por sorte, o terreno coincidiu numa coxilha, um lugar fantástico. Ao redor, tudo roça.” Após todos os trâmites concluídos e divergências resolvidas, foi encaminhado, então, o pedido de emancipação à Assembleia Legislativa, entre 1975 e 1976. No entanto, a emancipação do 233° município gaúcho, Teutônia, somente foi ocorrer em 24 de maio de 1981, quando 66,7% da população dos três distritos disse, em plebiscito, “Sim” à criação do município. Teutônia foi criada pela Lei 7.542, de 5 de outubro do mesmo ano e instalada oficialmente em 31 de janeiro de 1983.

Entrando, em vida, na memória de Teutônia As memórias de Klepker, de certa forma, se fundem com as memórias de Teutônia. E para ser memorado, no início dos anos 1990, surgiu no Centro Administrativo um busto em homenagem a Elton Klepker por ter sido o primeiro prefeito de Teutônia. “A comunidade mandou colocar aquele busto e pagou com o próprio dinheiro. Eu não sabia de nada. Quando vejo, estava lá um busto onde eu usava gravata. Eu nunca usei gravata. Eu preferia a originalidade. Mandei tirar o busto e fazer um novo, que recolocaram dias depois, sem a gravata.” O novo busto foi refeito sem nenhum custo adicional. Klepker relata que, em 1997, nos primeiros dias da nova administração, o busto teria sido derrubado numa manobra involuntária de uma patrola. O busto somente foi ressurgir em 2004, quando foi entregue à Klepker, com muitas partes danificadas. Hoje, se encontra na residência do líder emancipacionista. O busto geralmente é uma homenagem a pessoas falecidas. O fato de ser memorado em vida orgulha Klepker. Mesmo sem busto, ele está na história de Teutônia, seja como líder emancipacionista, seja como primeiro prefeito. Causou muitas divergências, mas defendeu os seus pontos de vista. “Entrei na memória de Teutônia. Com certeza é um orgulho. Mas fui sempre simples, humilde, e não ligo para isso, em ser homenageado. Não fiz outra coisa na vida a não ser trabalhar. E se está relacionado à Teutônia, estou à disposição a qualquer hora, a qualquer momento.”

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Desapropriações e resistências Na primeira eleição para prefeito, Elton Klepker foi escolhido pela população para administrar o município no período de 1983 a 1988, e, consequentemente, executar o que previa o termo de compromisso. “Tive que por em prática o plano que redigi. A prefeitura devia ser construída lá, no meio da roça. Para isso, desapropriei 95 hectares.” As desapropriações causaram uma série de divergências entre o prefeito e os produtores rurais, proprietários das áreas onde seria construído o Centro Administrativo, implantada uma área industrial, além da instalação de outros órgãos públicos. Com isso houve forte resistência. “Eu tinha a lei a meu favor. O del

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sapropriado não tem nada de recurso contra isso. Ele pode apenas reivindicar valores. Com isso, abri a avenida e construí o Centro Administrativo. Fui chamado de ladrão de terras, de Hittler de cavalete. Mas fui firme e não me alterei. Como existia a rodovia ERS-129, fiz a área desapropriada paralela com essa via. Todos os terrenos foram desapropriados em 18% da área total. E não paguei eles em dinheiro, queria que os produtores participassem do desenvolvimento. Foi feito um compromisso onde os produtores recebiam quatro terrenos por hectare desapropriado.” O Centro Administrativo também causou polêmica. Na época, a obra, inspirada na capital federal, Brasília, era considerada grandiosa. Todas as secretarias e demais repartições públicas funcionam num mesmo prédio até hoje. Processo do governador Klepker lembra bem de um fato que ocorreu na sua segunda gestão como prefeito, entre 1993 e 1996: a ação criminal ajuizada pelo então governador do Estado, Alceu Collares. Na visão do governador, Klepker estava tirando o direito de ir e vir dos migrantes que vinham de outros municípios para Teutônia. “O município vinha crescendo a todo vapor. Eu mandava cartas para os prefeitos do norte do Estado para não mandarem colonos para Teutônia sem antes eles virem aqui e tratarem de conseguir um lugar para morar, emprego e escola para os filhos. Não queríamos que eles morassem debaixo da ponte ou em barracos. O governador não entendeu isso.” Ele relembra que as famílias vinham de outros municípios em cima de caminhão-caçamba. “Onde toda essa gente iria morar? Cobrei isso dos outros prefeitos. Não queria que eles entrassem na marginalidade. Mas não mandei ninguém de volta. A prefeitura ajudou como podia”, expõe. Em audiência, Klepker confirmou os fatos, explanando os motivos, ocasionando o arquivamento do processo.


O Centro Administrativo foi construído na primeira administração de Elton Klepker. A sua construção foi inspirada em Brasília e, em cada quadrante, há símbolos que relembram a história de Teutônia

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Encontrar pautas para um assunto pré-determinado não é fácil. O tema “Memórias” pareceu assustador. Mas a curiosidade de entender a origem do município onde nasci, me criei e resido fez surgir a minha pauta. Afinal, falar com Elton Klepker é voltar ao tempo, com memórias e histórias repletas de curiosidades e peculiaridades. O fato de Klepker ter liderado a comissão

emancipacionista de Teutônia o faz também entrar na memória do município. Fazer a entrevista não foi difícil, afinal, como Klepker mesmo diz, “relacionado a Teutônia, estou à disposição a qualquer hora, a qualquer momento.” O difícil foi começar a produção. Em duas horas de entrevista, as memórias de Klepker revelaram as dificuldades da primeira tentativa de emancipação – pois unir três

distritos para formar um único município não é fácil –, a construção da prefeitura em meio a roça, o processo do governador e um busto em vida. Aqui se faz um recorte de apenas parte da vida política de Klepker. Descrever o perfil dele não significa idolatrá-lo, pois a proximidade com ele é apenas profissional, mas sim mostrar que, apesar das dificuldades, não se pode desistir de nossos objetivos.

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R E S P O S TA S DOS JOGOS DE MEMÓRIA l

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br.

Página 86 (7 erros):

ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Gustavo Fischer COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

pi primeira impressão

REDAÇÃO

TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: revistaprimeiraimpressao@gmail.com

Professores-Orientadores

Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia

Alunos-Repórteres

Disciplina de Redação Experimental em Revista André R. Herzer, Augusto Veber, Bibiane Engroff, Catiele Abreu, Diego Appel, Dieverson Colombo, Édson Luís Schaeffer, Eduardo Friedrich, Eduardo Saueressig, Emerson Ribeiro, Fabrício Romio, Helena Caliari, Juliana Litivin, Larissa Azevedo, Larissa Luvison, Lucas Steinmetz, Luciana Marques, Luís Francisco Caselani, Mariana Staudt, Taize Odelli, Thaís Zimmer Martins e Yngrid Lessa MONITORIA: Nádia Strate

Alunos-Fotógrafos

Disciplina de Projeto Experimental em Fotografia Alessandra Fedeski, André Pereira, Caroline Weigel, Clara Állyegra Petter, Greice Nichele, Henrique Lopes, Henrique Standt, Izadora Dazzi, Jaqueline Loreto, Jéssica Sobreira, Jorge Leite, Juliana de Brito, Juliana Freitas, Letícia Aroldi, Letícia Silveira, Lucas Brito de Barros, Marcelo Grisa, Marília Dias, Nathalia Mendes, Priscila Gomes e Sabrina Strack FOTO DE CAPA: Leticia Aroldi e Sabrina Strack

Página 87 (Observação): Quantas chaleiras há na imagem? Tem um rádio na foto? E uma televisão? A lenha está queimando no forno? Há um chapéu de palha? E uma vassoura? Quantos bancos aparecem? O lustre é de madeira? Tem algum objeto verde? Quantos milhos há na foto? Tem uma mesa na imagem? E uma foto na parede? As paredes são de tijolos? Há um machado? Quantas caixas de fósforos há na imagem?

2 Sim Não Sim Sim Não 1 Não Sim 3 Não Sim Sim Sim 1

Página 89 (Quem é quem):

ARTE E PUBLICIDADE

Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado

Paola

Editoração

ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Thaís Furtado SUPERVISÃO TÉCNICA E PROJETO GRÁFICO: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Amanda Heredia e Marcelo Garcia Laura

Anúncios

ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Letícia Rosa SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme página 2 ATENDIMENTO: Jéssie Sarmento Direção de Arte e Arte-Finalização: Fabiano Mello Redação: Gabriel Machado página 117 ATENDIMENTO: Thaís Baracarolo Direção de Arte e Arte-Finalização: Pedro Henriques dos Santos Redação: Morgana Morás e Adriano Andrade CONTRA-CAPA ATENDIMENTO: Thaís Baracarolo Direção de Arte e Arte-Finalização: Rafael Perondi Redação: Gabriel Machado

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Bruna Júlia




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