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BALTIMORE e o Vampiro ————

Mike Mignola & Christopher Golden

Tradução: Otavio Albuquerque


PRELÚDIO

REQUIEM ————

“Era uma vez vinte e cinco soldadinhos de chumbo, todos irmãos, pois todos eram crias de uma mesma colher de chumbo.” – O Valente Soldado de Chumbo Hans Christian Andersen



E

m uma fria noite de outono, sob um céu negro despido de estrelas e sem lua, o capitão Henry Baltimore apanha seu rifle, fita o sombrio abismo do campo de batalha e sabe, dentro de sua alma, que estas são as câmaras de tortura do inferno, certo de que a perdição o aguarda poucos passos à frente. Ele pára apoiado em um joelho, tentando ouvir, porém o único som audível vem do gélido vento outonal que traz consigo um fedor de morte e ruína. Baltimore acena para os homens que o seguem descobrindo caminhos em meio ao negrume e então se arrasta até uma pequena elevação que poderia ser um monte de lama remexida pela guerra... ou um amontoado de corpos. Ele se ajoelha atrás da barragem; na verdade, uma inocente pilha de terra revolvida na escavação de uma trincheira. Mas Baltimore não sente alívio algum por essa descoberta, exceto pelo fato deste pequeno morro oferecer melhor proteção do que um monte de cadáveres. Balas atravessam carne putrefeita muito mais fácil do que terra dura. No meio da noite, apenas um lunático tentaria cruzar a devastada terra de ninguém que separa seu batalhão dos campos hessianos. A tundra revirada está repleta de trincheiras úmidas, lamacentas e cravejada de corpos já sem vida. Fardos de arame farpado se estendem como enormes serpentes pelo campo. No entanto, o termo lunático lhes caía bem. O comandante do batalhão ordenou que alguém atravessasse aquele sinistro caminho no escuro para atacar os inimigos em seu próprio território. O desespero exigia isso. Sem alguma reviravolta do destino, trazida pelos deuses ou pelos homens, ao amanhecer eles estariam em uma situação tenebrosa. A missão foi entregue ao capitão Baltimore. Ele liderou seu pelotão quarenta e cinco metros adentro da terra de ninguém, para longe da segurança do acampamento, para fora da floresta, que agora parecia ter ficado muito distante. Adiante, restam ainda ao me-


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nos quatro vezes essa distância até que eles alcancem uma cobertura razoável. Os hessianos estão acampados nos densos bosques no lado oposto do campo de batalha. Baltimore sabe que está nos confins do mundo. O que mais explicaria o pavor que se esgueira no vazio de seu peito e envolve sua alma? Ele deve estar nas fronteiras do inferno, pois não consegue vislumbrar solo mais distante de sua família e do conforto de seu lar. Mas é essa a natureza da guerra. Tornar-se um soldado, derramar sangue e abater as almas dos homens em nome da fé ou da pátria, significa viajar para tão longe de casa que esta mesma se torna uma memória tão distante e querida quanto a inocência. Ele sente saudade dessas duas coisas, mesmo finalmente percebendo – apenas agora, apenas aqui – que, para ele, ambas se perderam para sempre. Quando garoto, ele ficava em seu quarto nos dias de chuva para brincar com seus soldadinhos de chumbo, separando-os em exércitos inimigos e fazendo-os trucidar uns aos outros no campo de batalha de seu cobertor. Mas soldadinhos de chumbo não sangram. Eles voltam para sua caixa e sobrevivem para guerrear no dia seguinte. Soldados de carne e osso também acabam em caixas, mas feitas de madeira mais pesada. Baltimore já viu soldados demais sangrarem e acabarem em pedaços nessas caixas. O medo corre por suas veias agora, dificultando seus movimentos. A morte o espera naquele terreno destroçado e ele não tem vontade alguma de encontrá-la. Seus ossos ardem com um calafrio causado mais pelo terror e pela angústia do que pelo ar de novembro, e ele mal consegue respirar. Ele ergue sua mão e sinaliza para seus homens, primeiro para a esquerda, depois para a direita. Em duas linhas,

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eles correm adiante, flanqueando sua posição pelos dois lados. Seus movimentos são um mero sussurro em meio à escuridão, mas, para Baltimore, soam alto demais. Conforme os soldados se aproximam, ele pode ouvir a suave cadência das botas contra o chão duro e grunhidos profundos de homens amargos cansados de matar. Eles tomam forma entre as trevas: figuras equipadas com os capacetes achatados das forças aliadas e rifles em punho. Mais próximo a Baltimore está o sargento Tomlin, que segura o rifle em seus braços como um bebê recém-nascido. O céu noturno parece baixo por causa das nuvens volumosas. Apenas uma mísera réstia de luz vaza pelos céus. Os olhos de Tomlin cintilam na escuridão e, agora que ele está perto, Baltimore percebe a urgência em seu rosto. Sua pele se retorce de medo e seu peito dói com o martelar de seu coração. Baltimore nunca foi um covarde, mas por um momento ele hesita, no pior lugar imaginável para uma pausa como essa. Sem outra escolha, ele acena com a cabeça, ergue sua mão e sinaliza novamente. Formas enegrecidas cruzam o campo. Baltimore e o sargento Tomlin se separam, circundam o morro lamacento e, mesmo a essa distância, o sargento parece pouco mais que uma mancha escura de sombra em movimento. Baltimore agarra seu rifle com tanta força que suas mãos doem. Suas pernas parecem ter vontade própria, carregando-o pelo terreno arrebentado. Ele quase tropeça sobre um soldado morto, cujo corpo fora tão violentamente calcinado que agora é impossível saber se ele era aliado ou inimigo. O rosto do homem escorreu como cera derretida. – Meu Deus – murmura Baltimore­ para a noite. Tomlin se apressa pela esquerda para encontrar seu destacamento enquanto Baltimore desvia o olhar do cadáver para se juntar ao grupo pela direita. Suaves lamentos e o leve farfalhar da lona e do algodão de seus

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uniformes podem ser ouvidos pela linha onde o grupo de Tomlin se reúne, embora a noite já tivesse mergulhado seus corpos na escuridão. Agachado, Baltimore se esgueira pelo solo acidentado, enquanto seus homens seguem pelos lados. Ele ergue uma das mãos e olha à sua volta procurando Norwich, o cabo que leva o alicate, e o encontra logo ao seu lado com as hastes da ferramenta despontando de seu alforje. Um de cada vez, eles se aproximam do arame farpado, um confuso emaranhado da altura de um homem. Baltimore se ajoelha e faz um sinal para o cabo Norwich. O soldado entrega seu rifle ao companheiro ao lado e puxa o alicate de seu alforje. Com agilidade e o máximo de silêncio possível, Norwich começa a cortar os fios. Mais adiante, o destacamento de Tomlin irá fazer o mesmo. Baltimore se levanta e tenta olhar para o outro lado do campo de batalha através da muralha de escuridão. As árvores mais próximas do descampado são como listras de sombra contra as trevas mais profundas da floresta. Norwich havia chegado à metade do rolo de quase dois metros de arame farpado. Nos pontos onde ele já abrira caminho, o arame se retorceu para trás como a carne em volta de um ferimento. Norwich secciona um arame que chicoteia para trás e corta seu rosto, rasgando sua carne. O cabo solta um profundo gemido, larga o alicate e traz a mão ao rosto, sem soltar um grito ou impropério. Baltimore se apressa pela abertura no arame farpado. Faz um sinal para o soldado que está com o rifle de Norwich e juntos os dois o arrastam pelas pernas para fora dali. Os olhos do cabo estão arregalados pela dor e por uma profunda fúria desorientada. O sangue deixa rastros negros por seu rosto, vazando pela mão pressionada contra a ferida. Baltimore acena com a cabeça para Norwich aprovando seu esforço para se manter em silêncio. Em seguida, gesticula para o soldado que o ajudou a puxar o cabo para fora dos arames, um comando silencioso para que pegue o alicate e continue o trabalho. Ele hesita por um instante, como se

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na esperança de que a ordem fosse para algum outro soldado, e então se arrasta relutante para dentro dos arames e pega o alicate do chão. Uma figura indefinida de manchas negras e acinzentadas se aproxima, emergindo entre o amontoado de soldados que aguardam. Ela tira seu capacete achatado e Baltimore reconhece o médico, Stockton. O homem enfia a mão em uma bolsa que traz presa ao ombro e retira uma pequena caixa de primeiros socorros. Com rapidez, enquanto o esquálido soldado corta fio após fio do arame, abrindo uma trilha entre os rolos farpados, Stockton limpa a ferida de Norwich e espalha uma pomada coagulante sobre ela. Não há nada mais a ser feito. Pela localização do corte, ficaria muito difícil fazer uma atadura ali no campo. Stockton dá uma última olhada no corte, mas no escuro é impossível perceber maiores detalhes. O médico faz um sinal de positivo para o capitão Baltimore e segue agachado até se juntar aos soldados que aguardam a ordem para prosseguir. Uma silhueta escura usando um capacete como aquele de Mercúrio, porém sem asas, entrega-lhe seu rifle. O esquálido soldado emerge dos arames, abaixado. Ele havia terminado o trabalho que Norwich começara. Agora, eles têm um caminho aberto. Fazendo uma careta, Norwich se levanta e pega o alicate para guardá-lo em seu alforje. Ele e o soldado disparam um olhar de expectativa para seu capitão. Baltimore acena para que sigam adiante. O soldado Macintosh assume a ponta. Baltimore não teria como confundir a silhueta daquele gigantesco brutamonte. O capitão se junta aos seus homens como o quinto da fila enquanto eles atravessam com pressa o buraco aberto entre o emaranhado de arame farpado. Ao saírem do outro lado, eles se espalham, fazendo uma fileira ao longo da parte interna da parede de arames. Baltimore examina o campo de batalha esburacado e destruído logo à frente. O vento fica mais forte. Ele estremece enquanto um calafrio atravessa seu uniforme e se embrenha em seus ossos.

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A menos de três metros à frente fica uma trincheira que se abre como um corte talhado na terra. A escuridão naquele fosso faz a noite parecer clara. Pela esquerda, o destacamento de Tomlin já deve ter atravessado, completando o pelotão. Eles esperarão suas ordens, como se houvesse alguma outra escolha possível além de seguir em frente, descendo pela trincheira e saindo pelo outro lado. Baltimore ergue sua mão para comandar o avanço. Em rápida sucessão, três suaves estouros perfuram a noite, seguidos por um estranho assovio que acaba quando três sinalizadores explodem em um clarão sobre o campo de batalha, cobrindo todo o cenário com uma berrante luz branca que destaca com perfeição de detalhes todos os cadáveres, trincheiras e tufos de grama arrancados. O pelotão fica preso na faixa de terra entre o arame farpado e a trincheira, completamente exposto. O pavor e o medo se transformam em gelo puro nas veias de Baltimore­, fazendo-o petrificar, com as pernas fixas no chão, como um de seus soldadinhos de chumbo, com os pés presos a uma base de metal. Ele havia falhado com seu país e os homens atrás dele. Seu olhar segue os sinalizadores enquanto eles atingem o ápice de seus arcos e parecem pairar por um instante como anjos nas alturas.

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A três ou seis metros à direita, um de seus homens pragueja. A voz parece estar a quilômetros dali. E eles bem que poderiam estar separados por tais distâncias, todos eles, pois na hora da morte, todo homem está sozinho. Banhado pela luz branca, Baltimore olha para baixo enquanto a trincheira fervilha em movimento. Os hessianos, que os esperavam em uma emboscada, levantam-se erguendo seus rifles e metralhadoras para colocálos em mira. Soldadinhos de chumbo não conseguem se mexer. Eles ficam parados, a postos, com seus rifles em punho, mas é preciso a mão de uma criança para fazê-los enfrentar seus inimigos. O campo de batalha é um pesado cobertor listrado em dois tons de azul, enrugado e dobrado, formando colinas por onde os soldadinhos de chumbo deverão marchar. A guerra tem uma trégua. Ela respira com uma leve brisa de primavera que invade o quarto. O garoto foi embora. Aliados e inimigos continuam congelados à espera. A força maior que move a todos eles os abandonou no meio desta cena e o terror toma conta do soldadinho de chumbo. Paralisado, só lhe resta esperar pelo recomeço da batalha. Assim que o garoto retornar, seu destino será decidido. Talvez ele sobreviva, talvez não, mas é a incerteza que o consome. A janela do quarto está levemente aberta, deixando aquele ar primaveril rodopiar e revolver pelo ambiente. A luz do sol demarca um comprido retângulo no chão, entrecortado pelo quarteto de cruzes da vidraça. O riso de crianças é trazido pela brisa. O garoto está lá fora, brincando com os outros, enquanto naquele cobertor de listras azuis, o destino de dois exércitos de chumbo continua na berlinda. Se ao menos o garoto voltasse, se ao menos Henry brincasse com eles e trouxesse­ seu riso para o quarto, o soldadinho de chumbo iria saber que tudo ficaria bem. Com o garoto aqui dentro, há calor e alegria. Há segurança. Mas neste momento petrificado, qualquer coisa pode acontecer.

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Qualquer coisa mesmo. O soldadinho de chumbo não consegue se mexer. Um novo som invade o quarto. Uma gargalhada áspera e bruta. Não é o sinal da alegria de uma criança. Ela não vem do verdejante dia de primavera lá fora, mas de uma prateleira no alto da parede. Ela vem de uma caixa de madeira com as laterais pintadas e entalhadas com rostos de palhaços galhofeiros. Uma manivela desponta em um lado da caixa, inerte. Mas algo está se movendo dentro dela. Em seu interior, o medonho boneco se ajeita e podem-se ouvir as batidas de sua cabeça de madeira contra as paredes da caixa. O tilintar de uma música alegre e metálica atinge três notas, mas a manivela não se move. A gargalhada irrompe mais uma vez, um bramido áspero e entrecortado, e o soldadinho compreende que há algo a se temer ainda mais do que perder a própria vida, mais do que perder a guerra... Os disparos cortam o ar, um bramido áspero e entrecortado. O pelotão é apenas um amontoado de silhuetas contra o brilhante e pálido plano de fundo. Os angelicais sinalizadores descem flutuando languidamente, sendo levados pela brisa outonal. A luz deles começa a tremular quase que em ritmo com os tiros, transformando o massacre dos homens de Baltimore em uma grotesca sucessão estroboscópica de imagens, um tétrico espetáculo de luzes e sombras. Gritos de dor e morte se erguem por toda a sua volta. Baltimore se vira para a esquerda e vê o sargento Tomlin e outro homem cambaleando para trás como marionetes em uma dança de balas e sangue. Eles são empurrados contra o arame farpado e se debatem contra ele, rasgando seus membros a cada movimento. Sangrando. Morrendo. À direita, o soldado esquálido está parado, como se em estado de alerta, com o topo de seu crânio arrancado e um horrendo buraco onde seu nariz deveria estar. É um ferimento de bala. Mesmo morto, ele ainda agarra seu rifle e marcha três passos à frente antes de tombar trincheira adentro sobre os hessianos que o abateram.

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O soldadinho de chumbo não consegue se mexer. Baltimore não percebe que foi atingido até sentir o sangue morno escorrendo pela sua coxa e sua perna esquerda fraquejar. Ele nem sequer ergue seu rifle enquanto cai na tentativa de se escorar. A arma continua firme em suas mãos, um mero pedaço inútil de metal. Uma nova rajada de disparos irrompe da trincheira. E enquanto rodopia, caindo, ele vê os rostos dos soldados hessianos cobertos de lama como camuflagem, carregando seus rifles e suas pesadas metralhadoras­

com munição. Conforme os sinalizadores começam a esmaecer, ele avista os homens de seu pelotão correndo em sua direção; Stockton e o avantajado Macintosh se posicionando em volta de seu capitão. Eles devolvem os disparos, mas as dez balas no pente de seus rifles não serão o bastante. Baltimore cai. O soldadinho de chumbo não consegue ver, mas ainda pode ouvir a abrupta e insinuante gargalhada da criatura dentro da caixa entalhada, o escabroso palhaço. O som é como o de alguma máquina terrível, uma fábrica demoníaca. Ele sabe que lá em sua prateleira, naquela caixa, o palhaço ainda está se revirando, satisfeito, esperando uma oportunidade para saltar. O que ele fará depois disso, o soldadinho de chumbo não sabe. Mas ele teme o momento em que ouvirá o claro e estridente ruído metálico da manivela sendo girada, pois saberá então que o palhaço está prestes a ser solto. Por enquanto, apenas a gargalhada já é horrenda o bastante. E então ela pára.

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O tempo passa, embora o soldadinho não saiba quanto. Ele sente a fria e irredutível pressão de seus camaradas ao seu redor; braços e pernas de chumbo abaixo e acima dele. Eles estão de volta à caixa, é claro. O garoto os recolheu e os guardou até que lhe bata mais uma vez a vontade de uma nova guerra. Para o garoto, tudo é tão simples, tão inocente. Voltar à caixa é um conforto. É um tanto sufocante, de fato, já que ele está contorcido aqui, de costas, com suas pernas esticadas para cima e todos esses outros homens de chumbo sobre ele, espetando seus rifles contra seu corpo. Mas a caixa é segura. Não há inimigos aqui. Os dois exércitos se unem. Irmãos de chumbo. É um lugar seguro. Até agradável. Ou ao menos seria, não fosse pelo frio da noite e a dor que irradia de sua coxa onde a bala o atingiu, e pelo fedor de sangue e podridão. Começa a chover. Dentro da caixa... chuva... A chuva fria o desperta. Gélidas gotas caem pelo seu rosto e Baltimore percebe o subir e descer de seu peito. Ele está respirando, o que significa que ainda não morreu. O odor metálico de sangue impregna o ar; a chuva não consegue dissipá-lo. Suas pálpebras estremecem e ele desvia seu olhar tentando entender onde está e como veio parar ali. Outros aromas assaltam suas narinas agora; o rico perfume de terra molhada, o espesso odor de corpos sujos. A dor lateja em sua perna esquerda como se alguém estivesse cravando uma baioneta em sua carne. Talvez tenha sido isso, até mais que a chuva fria, que o tenha acordado. Baltimore respira com dificuldade. Ele está deitado em um ângulo onde suas pernas ficam erguidas e sua cabeça pende para trás. Seus pensamentos estão lentos, como se tivesse bebido uísque demais e acordado no meio da noite, ainda longe da sobriedade. Sua mente está amortecida e confusa. Por que é tão difícil respirar? A escuridão ainda predomina; ele não ficou desmaiado por tempo suficiente para que a alvorada chegasse. Ainda assim, enquanto reluta contra a desorientação que ameaça puxá-lo de volta ao limbo, Baltimore percebe­

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que a escuridão não é tão completa quanto antes. Figuras negras amontoam-se sobre ele. Algo frio, úmido e duro toca seu rosto. Ele está deitado sobre uma série de pequenos calombos e sulcos que parecem um amontoado de pedras. Em meio à confusão de seu cérebro, a verdade vagueia pelos seus pensamentos e um suspiro de desespero escapa de seus lábios. Ele está em uma vala cheia de ­cadáveres, suas roupas encharcadas pelo sangue e a chuva gelada. As pedras sob seu corpo são os cotovelos e joelhos salientes dos soldados que o seguiram até a morte. Ele tenta se acomodar, forçando a cabeça para cima e é recompensado com uma explosão de dor em sua perna baleada. Mas agora ele pode ver que o peso em seu peito que tanto dificultava sua respiração tem um rosto. Sob a penumbra da noite chuvosa, ele consegue ver o talho na bochecha do cabo Norwich. O cadáver o encara com olhos imóveis e baços. A dor lanceta sua perna novamente, e ele tenta imaginar a extensão de seus ferimentos. Baltimore pisca e se ajeita, apoiando-se nos mortos à sua volta. O esforço faz sua cabeça girar e ele pára por um momento para que a sensação se vá. Ele perdeu uma grande quantidade de sangue. Ele refreia o impulso de gritar por socorro. Não há como saber se ainda resta alguém vivo neste campo de batalha, mas caso haja, parece-lhe muito mais provável que sejam hessianos do que soldados aliados. E se alguém do seu batalhão o ouvir? Caso mandem algum soldado na tentativa de resgatá-lo, os hessianos o trucidariam também. Imagens de seus homens sendo massacrados cintilam em sua mente e o peso da culpa é tamanho que ameaça enterrá-lo ainda mais fundo neste buraco. Ele havia congelado, incapaz de ajudar. Não que fosse fazer diferença. Uma arma a mais não os salvaria; estes homens cujo sangue encharca o solo. Agora, ele deseja apenas que não houvesse acordado, para assim evitar a angústia da mordaz clareza de seu fracasso.

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Frio. Baltimore está com tanto frio. Uma dormência sonolenta o ataca. O silêncio é melhor. Mais seguro. Ele já perdeu sangue demais, com certeza. A morte não deve estar longe. Mas ele não quer morrer nesta vala. Controlando sua respiração, tentando limpar sua mente, Baltimore se empurra para cima, agarrando-se nos mortos ao redor. Seu uniforme estala com o sangue seco. A dor corta sua perna e ele se inclina para o lado. Sua cabeça se apóia contra as costas de um soldado morto. Ele toma fôlego mais uma vez. Precisa fazer força para manter seus olhos abertos. Sua boca está seca e ele pode sentir o torpor lhe puxando, mas estica seu braço esquerdo entre dois corpos, um deles o pobre Norwich­, e empurra o corpo do cabo morto para o lado. Ele já consegue ver o céu. A gélida chuva salpica seu rosto e o ajuda a manter a consciência. Ar fresco, frio e tonificante preenche seus pulmões. Pesadas nuvens ainda se estendem pelo céu noturno, mas com algumas fendas por onde ele pode ver a turva luz das estrelas e, ao leste, o horizonte já começa a se iluminar. Se ao menos pudesse se livrar desse emaranhado de homens mortos, ele poderia se deitar tranqüilamente sobre a terra devastada. Se permanecer parado, talvez a dor não seja tão forte e ele poderá deixar seus olhos se fecharem e se entregar àquele sono eterno. Ele se pergunta se viverá o bastante para ver o sol nascer, e espera que sim. Os mortos parecem se fechar em volta dele como se não quisessem soltá-lo. Uma pulsação frenética o atravessa e Baltimore se move. Ele puxa sua perna boa para baixo de si, apóia-se mais uma vez nos cadáveres e tenta se erguer. Cerrando os dentes, faz com que o grito que a dor empurra garganta acima saia como um mero gemido. Ele não consegue sentir sua perna esquerda do joelho para baixo, mas na parte de trás de sua coxa sente o morno gotejar de sangue fresco e isso o perturba. Suas mãos tateiam, tentando agarrar alguma coisa. Ele abre caminho entre pernas e braços, seu corpo trêmulo pelo esforço. Um borrão recobre seus pensamentos mais uma vez, mas Baltimore fica consciente o bastante para desviar os olhos dos rostos dos mortos. Quanto mais ele os toca, mais sente seus fantasmas à sua volta. Espectros acusadores parecem flutuar às margens do seu campo de visão.

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– Sinto muito – balbucia ele. A dor em sua perna é como uma marretada nos ossos que o esmaga enquanto ele se agarra à parede da vala e, com sua perna boa, usa a montanha de corpos para escalar. Ele emerge da vala por uma escada feita de seus próprios soldados abatidos. Ele tenta fechar os olhos para fugir da dor ofuscante, pensando a princípio que é a chuva o que embaça sua visão. O negro torpor o envolve em um abraço... ...e mais uma vez, a chuva fria o desperta. Por um instante, ele fica lá, estatelado, incapaz de se mover, e se pergunta se os hessianos o teriam visto sair da vala. Ele não ouviu qualquer grito, sussurro ou som de passos e, então, conclui que não foi avistado... ou que realmente está sozinho. A muralha de arame farpado se avulta à sua esquerda. Alguns homens de seu pelotão estão pendurados nos fios, crucificados, deformados e crivados de tiros. Um de seus homens foi degolado, talvez para pôr fim à sua angústia, ou apenas para silenciar suas derradeiras súplicas. Tomando um fôlego profundo, Baltimore tenta se virar. A escuridão vagueia pelos cantos de seus olhos e, quando ele os abre novamente, o horizonte está um pouco mais claro. A alvorada se aproxima a cada vez que ele desfalece. Ele se deita para contemplar o horizonte ao leste, esperando pelo sol. Esperando pela morte. Porém... há figuras no céu. Ele pisca mais uma vez. Seus pensamentos são suaves, revestidos de algodão. A neblina fica mais densa. Suas pálpebras tremulam, mas ele tenta mantê-las abertas, observando o céu, imaginando se as figuras lá no alto são meras alucinações ou manchas em seus olhos, mas elas não desaparecem. E elas se movem. Elas voam.

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Pipas. São pipas, como as que ele empinava quando criança, mas com rabiolas menores. As pipas circundam, pairam e deslizam pelo ar assim que chegam mais para baixo, tremulando sobre o campo de batalha... sobre os mortos. A chuva gelada escorre pelo seu rosto e pescoço preenchendo as órbitas de seus olhos, fazendo-o piscar novamente. Uma estranha sensação de paz o domina. Quando sua consciência retorna, Baltimore olha para o céu. As nuvens de tempestade ainda estão escuras, mas nas fendas entre elas, as estrelas já se apagaram quase por completo. O horizonte ganhou um belo matiz azul escuro; o índigo que promete a manhã. Mas ainda não. Um farfalhar chega até ele atravessando o campo devastado e ele se lembra abruptamente das pipas. Ele deixa sua cabeça pender para a direita. Algo está se movendo na vala. Mais de uma coisa. Asas negras arqueiam-se para o alto, banhadas pela chuva. O som é de couro se debatendo. Não são pássaros então. Alguma outra coisa. A dor em sua perna já se esvaiu em grande parte, assim como qualquer­ outra sensação. A dormência naquele ponto parece estar se espalhando. Ele já nem sente mais frio. O barulho volta... ele rola sua cabeça para a esquerda. Uma das criaturas se empoleira nos rolos de arame farpado entre dois dos soldados mortos. Suas asas flexíveis parecem longas demais para seu corpo. Ela inclina a cabeça contra um dos soldados e seu peso a faz balançar no arame enquanto seu crânio dardeja pelo cadáver, analisando-o mais de perto.

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Isto tudo parece um sonho tão absurdo. Baltimore solta um leve suspiro. A criatura recua e se vira para olhar diretamente para ele. Seus olhos reluzem com uma lúgubre luminescência avermelhada sob a penumbra que precede o amanhecer. As orelhas e o focinho o fazem pensar num morcego, mas a criatura é enorme e medonha. Sua boca escorregadia e enrubescida é cravejada por dentes como longas agulhas prateadas; todos cobertos de sangue. Elas estão devorando os mortos. Enquanto Baltimore pisca mais uma vez, forçando-se a continuar acordado, ele vê a criatura projetar seu focinho para frente e arrancar um naco de carne da garganta do soldado que todos os outros homens chamavam de Topper. Baltimore nunca soube seu nome verdadeiro. A criatura repuxa as mandíbulas mais uma vez e uma tira de pele se descola junto a um talho de carne ensangüentada. Ela sacode sua cabeça e engole sua recompensa.

– Meu Deus – ele murmura. A criatura recua mais uma vez e se vira, fazendo o arame farpado ondular com seu peso. Ela inclina a cabeça e o encara com uma sinistra curiosidade em seus olhos carmesim. As criaturas na vala e em outros pontos do campo de batalha não dão atenção a ele, embevecidos em seu banquete sobre a carniça que um dia foi seu pelotão. Mas esta é a que está mais próxima a Baltimore, e ela realmente se interessou por ele. Ela desce do arame. Toda a névoa que preenchia sua mente se dissipa. Baltimore treme, sua respiração sai em bruscos espasmos. Ele reúne forças para puxar sua perna direita, mas não o bastante para impulsionar sua fuga. Seu rosto enrubesce

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com o calor de seu medo ao passo que, por sobre seu corpo caído, assiste à criatura se arrastar pela terra revolvida e encharcada a passos cambaleantes e desengonçados, avançando contra ele com suas asas dobradas. Se ele gritar, chamará a atenção de todos os outros. Se a criatura o degolar, isso não fará diferença. Mas se ele pudesse matá-la... Seus dedos se fecham como se tivessem vontade própria, desejosos de um rifle. Ele poderia apoiá-lo sobre seu peito para mirar; quase consegue sentir o gatilho sendo puxado, o coice da arma após o disparo. Mas ele está sem seu rifle. A criatura se arrasta pelo chão em uma grotesca e penosa marcha, abrindo suas asas. A chuva os castiga sob um estardalhaço obsceno. Baltimore trava seu olhar naquele ser; sua respiração agora mais curta, mais rápida. Sua mão direita treme com tanta violência que seus dedos retumbam contra a terra. Ela rasteja contra ele a meros centímetros de seu lado esquerdo, de sua coxa, e ele percebe de repente que ela se move com tamanha lentidão apenas para saborear seu medo. A criatura ergue uma garra afiada e se estica. Ela o toca. Baltimore pode ouvir os sons da carne sendo arrancada dos corpos na vala e no campo em volta dele, pode ouvir a chuva fustigando o chão, encharcando as asas daquelas criaturas, mas não consegue desviar a atenção daqueles olhos malignos, iluminados por alguma chama profana. Ela começa a rastejar sobre ele; suas asas quase o acariciando. Suas garras roçam sua pele, seu corpo gelado se esparrama em volta dele como o íntimo afago de uma amante. E então ela arreganha sua fileira de dentes afiados e ele pode ver o sangue que escorre de sua boca e os pequenos pedaços de carne presos entre aquelas agulhas. Ela se inclina para cima pressionando seu corpo contra a virilha de Baltimore. Ao se entreolharem, ele finalmente compreende, hipnotizado por aqueles olhos, que isso não é um animal e sim uma criatura maligna dotada de uma sinistra consciência. Baltimore grita. Enlouquecido, com seus olhos arregalados, ele revira sua cabeça em busca de alguma arma. Na borda da vala, tombada da mão esticada de um

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soldado abatido, ele vê um rifle com sua baioneta reluzindo sob gélidas gotículas de chuva. Com sua última reserva de forças, talvez até sua última fração de vida restante, ele se esforça para se esticar na direção da lâmina. As garras da criatura se enterram em sua carne, rasgando seu uniforme e pendurando-se nele enquanto Baltimore agarra a baioneta pelo cabo do rifle. Sua perna ferida se agita, derramando sangue fresco, mas a dor já é algo desprezível agora. A criatura sibila. Ele dispara sua mão esquerda e agarra a garganta da criatura; teria conseguido cravar a baioneta em seu peito caso ela não tivesse saltado naquele exato momento. As mandíbulas do monstro o perseguem, buscando sua garganta, e ele força a lâmina para o alto, retalhando o horrendo ser pela boca, focinho e sobrancelha. A criatura tomba para longe, debatendo suas asas e se retorcendo no chão. Gritando como animal algum poderia gritar. E então ela se ergue, sacudindo-se em fúria, com sangue jorrando do corte em seu rosto. Seus olhos já não brilham mais avermelhados. Eles são meros orbes vazios e baços; cinzentos e frios como pedra. Ainda assim, ele pode sentir o ódio na criatura, e isso o apavora. A fome abandonou o demônio. Resta-lhe apenas a cólera e o lampejo de sua inteligência adormecida, que agora havia sido despertada. A criatura passa suas garras pelo seu rosto lacerado e espalha respingos de seu próprio sangue pelo campo de batalha. Um largo sorriso malicioso repuxa­seus lábios mutilados, revelando uma fileira de dentes finos e afiados. Ela avança, inclinando-se e agarrando a perna ferida de Baltimore, que arfa com pesar, certo de que aquelas mandíbulas estão prestes a retalhar sua carne. No entanto, com um suave grunhido, a criatura sopra a ferida aberta acima do joelho de Baltimore. Seu hálito sai como uma bruma tão encarnada quanto eram seus olhos, carregada de um fedor mais grotesco que o dos cadáveres e de um calor pútrido e úmido.

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mike mignola & christopher golden

Baltimore agarra sua baioneta com força, mas sente a última fagulha de suas forças esmorecendo. A escuridão vagueia pelos cantos de seus olhos. Mas se ele perder a consciência agora, certamente morrerá.

A criatura joga suas asas para trás e uiva contra o céu nublado como se estivesse clamando por algum antigo deus primitivo. O chão se agita sob Baltimore. Ele o sente estremecer enquanto olha para o animal carniceiro. A criatura se vira para ele, sibilando, e o sangue jorra pelos cortes em seu rosto. Sangue e chuva encharcam a terra sedenta. As outras criaturas se arrastam pela desolação do campo de batalha, convergindo sobre Baltimore. Uma delas levanta vôo, circulando sobre o bando. Ele não consegue gritar. O medo o abala, mas não consegue juntar forças sequer para tremer. Suas pálpebras estão pesadas e sua cabeça cambaleia enquanto ele tenta refrear as trevas que tentam sufocar seus pensamentos. Muita dor. Muito sangue perdido. A morte chegou, e ele receberá de bom grado sua libertação. A criatura sorri enquanto se curva sobre ele; gotículas de sangue salpicam seu peito e seu rosto. Então, ela abre suas asas como um manto e sobe ao céu, pairando noite adentro, negra como uma sombra. Suas asas batem com lânguida elegância enquanto ela sobe cada vez mais. Em silêncio, o resto de seu bando também alça vôo, seguindo a primeira delas, batendo suas largas asas de couro e arrastando seus finos rabos logo atrás. Elas seguem para o oeste, desaparecendo entre as nuvens cinzaescuras.

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baltimore

Momentos depois, o sol aparece no horizonte ao leste, estendendo uma brilhante luz dourada sobre o fúnebre cenário de guerra. O brilho recobre as nuvens com halos matinais e delineia os corpos emaranhados entre o arame farpado e espalhados pelo chão. A escuridão preenche seus olhos, borrando a alvorada, e ele sucumbe enfim ao seu domínio. Deslizando pela inconsciência, o capitão Baltimore sente-se como se estivesse voando. Amortecido e imóvel, mais uma vez o soldadinho de chumbo, ele se deita sobre o amontoado de seus irmãos e sente o reconfortante vazio finalmente o engolir.

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