O Islã e a formação da Europa — de 570 a 1215
O Islã e a formação da Europa — de 570 a 1215 David Levering Lewis
Tradução de Ana Ban
Título original em inglês: God’s crucible — Islam and the making of Europe, 570 to 1215. Copyright © 2008 David Levering Lewis. Publicado mediante acordo com o autor. Amarilys é um selo editorial Manole. Este livro contempla as regras do Novo Acordo Ortográfico. Preparação, revisão e diagramação Depto. editorial da Editora Manole Capa Thereza Almeida O trecho transcrito de A canção de Rolando foi traduzido da versão em inglês, com introdução e notas de Glyn Burgess. Penguin Classics, 1990. Copyright © Glyn Burgess. Reproduzido com a permissão da Penguin Books Ltd. O trecho transcrito de “A batalha do Alfuente” foi traduzido de Medieval Iberia: readings from Christian, Muslim, and Jewish sources. Olivia R. Constable, ed. University of Pennsylvania Press, 1997. Reproduzido com a permissão da Universidade da Pensilvânia. Imagens da capa: Erich Lessing/Art Resource (fotografia), NY; Réunion des Musées Nationaux/Art Resource, NY (pintura). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lewis, David Levering O Islã e a formação da Europa, de 570 a 1215/ David Levering Lewis; tradução de Ana Ban. — Barueri: Amarilys, 2010. Título original: God’s crucible: Islam and the making of Europe, 570 to 1215 Bibliografia ISBN 978-85-204-2793-4 1. Civilização medieval 2. Europa — Civilização — Influência islâmica 3. Europa — História — 476-1492 I. Título. 09-08759
CDD-940.1
Índices para catálogo sistemático: 1. Idade Média: Europa: Influência islâmica: História 940.1
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Para Marissa
Sumário
Lista de ilustrações ix Lista de mapas xi Cronologia xiii Notas sobre a escolha de termos xix Prefácio xxi 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14.
As superpotências 1 “Os árabes estão chegando!” 29 “Jihad!” 59 O califado cooptado e o jihad claudicante 89 O ano 711 110 Juntando os cacos depois de Roma 145 O mito de Poitiers 170 Queda e ascensão dos omíadas 196 A salvação dos papas 222 Um império de força e fé 237 Jihads carolíngios: Roncesvalles e Saxônia 266 A Grande Mesquita 284 A primeira Europa, em resumo 299 Equilíbrio — delicado e condenado 322
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15. Desequilíbrio — a vingança de Pelayo 352 16. Transmissão de conhecimento, repúdio ao racionalismo: Averroés e Maimônides 388 Agradecimentos 401 Notas 405 Glossário 443 Genealogias 453 Referências bibliográficas 458 Créditos das figuras 468 Índice remissivo 469 Sobre o autor 483
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em que eu me desse conta na época, a ideia deste livro germinou há um quarto de século, em Cartum. Uma ambiciosa bolsa de pesquisa de três meses, partindo do sul da Califórnia no verão de 1982, levou-me de Paris a Istambul, passando pela República do Djibuti, Etiópia, Sudão e Egito. O tempo que passei na capital sudanesa, pouco menos de um mês, foi aproveitado com a leitura de antigos arquivos de inteligência do exército britânico a respeito das atividades dos fundamentalistas muçulmanos, que tinham detido o avanço do Império Britânico no leste da África durante a maior parte de uma década, depois de 1885. Para a surpresa da Inglaterra vitoriana e para o regozijo não disfarçado da Europa continental, os dervixes esfarrapados do “mensageiro de Alá” (al-Mahdi) e de “o Sucessor” (al-Khalifah) mantiveram longe o império mais poderoso do mundo. A história do Sudão sob o regime mahdista compreende uma grande porção de The race to Fashoda: European colonialism and African resistance in the scramble for Africa [A corrida a Fashoda: o colonialismo europeu e a resistência africana na disputa pela África, 1989], livro escrito em parte como fruto de minha visita proveitosa a Cartum em 1982. Quatro anos depois, a secular República do Sudão desapareceu com a chegada de extremistas sunitas que, liderados por descendentes ideológicos dos mahdistas, subiram ao poder. Pouco tempo depois de eu voltar para casa, já havia indícios definitivos do que estava reservado para aquela república. No dia 8 de setembro de 1983, em desrespeito à Constituição estabelecida havia dez anos no país, um governo belicoso cortejou o apoio xxi
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de fundamentalistas islâmicos, ao tentar impor a Sharia à população nacional dividida entre muçulmanos, ao norte, e animistas e cristãos, ao sul. Com o passar dos anos, a experiência de ter observado o poder e a atração do fundamentalismo islâmico em Cartum (ainda que apenas do meu ponto de vista lateral) começou a se firmar como atitude de defesa cada vez mais insistente — ainda mais quando pareceu ficar razoavelmente certo que o império modernizador supremo do século XX, os Estados Unidos, caminhava em rota de colisão com o Islã como um sonâmbulo, em situação similar à ocorrida com a Grã-Bretanha no final do século XIX. A lógica desse confronto tão dispendioso me parecia tão transparente quanto os ataques em série aos símbolos e instrumentos do poder norteamericano que se deram no Oriente Médio e na África Oriental na década de 1990. Para um historiador, pensar no presente significa refletir sobre o passado no presente. Conhecer algo a respeito da presença notável de setecentos anos do Islã na Europa é contemplar uma fatia da história que pode parecer afastada demais no tempo para tratar das inquietações do nosso presente pós-moderno — apesar de o mundo islâmico hoje ter uma relação com a Europa e os Estados Unidos parecida com a que o mundo cristão em frangalhos já teve com o islâmico, altamente avançado. No entanto, é nessa longa e desgastante saga de papéis culturais invertidos e de hegemonias políticas viradas de cabeça para baixo que podemos discernir muitas das causas para a história conturbada que está se desenvolvendo no século XXI. No início do século VIII, os árabes fomentaram uma das maiores revoluções de poder, religião, cultura e riqueza na história da Idade das Trevas da Europa. Eles permaneceriam ali até o final do século XV e, durante boa parte desse período — até aproximadamente o início do século XII —, o Islã em al-Andalus (a Espanha muçulmana) foi, de modo geral, tolerante do ponto de vista religioso e, acima de tudo, contava com força econômica. O avanço árabe além dos Pirineus cessou já no fim do século I europeu, mas não no folclore e na história do Ocidente, em razão das campanhas militares cristãs bem-sucedidas. O jihad a leste dos Pirineus no final fracassou em virtude de uma revolução no âmbito do mundo do Islã (Dar al-Islam). O Islã e a formação da Europa, de 570 a 1215 dá alma à história nascida a partir dessa ocupação épica do que os árabes chamavam de “o grande território” (al-Ard al-Kabirah), uma das perdas mais significativas da história mundial e
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certamente a que acarretou mais consequências desde a queda do Império Romano Ocidental. Tanto que tudo o que ocorreu depois disso ocorreu por causa disso. A batalha de Poitiers, que interceptou o Islã quando este contornava os Pirineus, em 732, e o martírio de Rolando e de seus companheiros, quase meio século depois em Roncesvalles (Roncevaux), foram acontecimentos de consolidação e de comemoração da identidade emergente do povo chamado de “europense” pela primeira vez por um sacerdote espanhol desconhecido do século VIII. O Islã e a formação da Europa apresenta uma perspectiva raramente abordada pelos estudiosos em relação ao longo período de convivência islâmico-cristã na Europa. Sob essa perspectiva, a batalha de Poitiers e A canção de Rolando são momentos fundamentais na criação de uma Europa atrasada do ponto de vista econômico, balcanizada e fratricida que, ao se definir pela oposição ao Islã, transformou em virtudes a aristocracia hereditária, a intolerância religiosa persecutória, o partidarismo cultural e a guerra perpétua. O massacre em Roncesvalles deu ao “Ocidente” um herói icônico que personificava a supremacia casta e o valor marcial irrestrito: Rolando é um protótipo do caubói norte-americano do século VIII. Poitiers e Roncesvalles alimentaram a ideologia da Guerra Santa e, com o tempo, da arrogância nacional para conter o avanço do Islã. A maior parte da história é indiscutivelmente escrita pelos vencedores; no entanto, “vencer” em Poitiers na verdade significou que os níveis econômicos, científicos e culturais que os europeus atingiram no século XIII poderiam, quase com certeza, ter sido alcançados mais de três séculos antes de eles terem sido incluídos no império mundial muçulmano. Com poucas exceções, o famoso pronunciamento de Edward Gibbon influenciou os julgamentos de valor reproduzidos pelos historiadores no que diz respeito ao desfecho desejável da disputa entre essas duas ordens mundiais. O grande historiador do século XVIII sentiu um calafrio ao elaborar sua famosa ideia do que poderia ter se seguido à vitória árabe em Poitiers: “Talvez a interpretação do Corão hoje fosse ensinada nas instituições de educação de Oxford e seus púlpitos talvez apresentassem ao povo circuncidado a santidade e a verdade da revelação de Maomé”.1 Deixando o julgamento de valores históricos de lado, as conquistas culturais, científicas e técnicas que ocorreram a leste da barreira de montanhas
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que delimitava a Europa, naquele momento dando início a seu despertar, foram estimuladas e facilitadas, de modo indispensável, pelo conhecimento que fluía em volume cada vez maior de al-Andalus. Durante cerca de 75 anos, mesmo depois da queda da Toledo muçulmana em 1085, houve um “veranico” de colaboração cruzada entre as ideologias cristã, muçulmana e judaica — aquilo que os contemporâneos chamaram de convivencia — apesar do fanatismo muçulmano e católico redobrado. A linha de produção de Toledo transmitiu a maior parte do que Paris, Colônia, Pádua e Roma sabiam a respeito de Aristóteles e Platão, Euclides e Galeno, dos “números hindus” e da astronomia árabe. Essa narrativa de simbiose terminou depois da segunda década do século XIII. A glorificada convivencia foi levada ao esquecimento pelos guerreiros santos muçulmanos e cristãos, que gritavam, respectivamente, “Deus é grande!” (“Allahu akbar”) e “Santiago, o matador de mouros!” (“Santiago Matamoros!”). Àquela altura, a civilização excepcional que tinha sido conduzida pelos emires omíadas e pelos califas de Córdoba durante 275 anos já não passava de uma mera lembrança terna dos mouriscos da Espanha e de um elemento desprezado pelos cristãos do país. Os contornos principais dessa história traçam a ascensão, durante séculos a partir de então, da ignorância tranquilizadora para ambas as partes e do vício em guerra como substitutos das complexidades da coexistência. O Islã e a formação da Europa é, como já dito, produto de algo que ocorreu há muito tempo, da inspiração tardia advinda de uma viagem de pesquisa à África. Por acaso, fiz as primeiras anotações de campo deste livro no dia 11 de setembro em Rabat, no Marrocos, o primeiro dia da minha bolsa de pesquisa topográfica.2 O ano era 2001. Naquela ocasião eu pensei, naquele dia perturbador, como ainda penso, que desfechos históricos grandiosos são com muito mais frequência contingenciais, não inevitáveis, e que, se for assim, então é necessário que todos nós, em um momento de interação global acentuada, resistamos às escatologias das simplificações culturais e políticas. Apesar de o arco dos meus interesses profissionais sempre ter sido eclético, poderia afirmar que existe certa lógica em seu delineamento. Desde Martin Luther King Jr. e Alfred Dreyfus aos progenitores do Renascimento do Harlem e aos líderes que retardaram temporariamente a luta imperial pela África, até chegar ao espetacular W. E. B. Du Bois, a
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preocupação central sempre foi a análise crítica, e portanto solidária, de vidas que exemplificam — de modo único ou em algum tipo de combinação — a coragem ou a integridade, o intelecto ou a maquinação frente à injustiça, à exclusão religiosa e à pilhagem organizada. O Islã e a formação da Europa, como relato da ascensão e do declínio de uma civilização na Europa (apesar de não exatamente uma civilização europeia), incorpora essas preocupações em profusão. David Levering Lewis Nova York e Milan, estado de Nova York, EUA, 2007
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Islã ascendeu quando Roma caiu. Por que e como isso aconteceu é a introdução necessária de O Islã e a formação da Europa: porque nos primeiros anos do século VII da Era Comum o caminho se abriu muito para que o Islã conquistasse o mundo; como em um piscar de olhos os árabes realizaram a maior revolução de poder, religião, cultura e riqueza da história — e tudo isso fez da Europa a Europa. Os historiadores têm uma infinidade de relatórios de autópsia para explicar a ascensão e a queda do Império Romano. Mas nenhum deles usa o poder explanatório 1
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da morte para explicar a desventura imperial do Irã.1 A Roma greco-latina e o Irã persa eram impérios que se espelhavam em sua expansão militar, criação de leis, realizações culturais, construção de estradas e exuberância arquitetônica — universos em expansão cuja violência nos pontos de contato se assemelhava ao encontro explosivo entre a matéria e a antimatéria. A competição de sete séculos entre eles foi um caso de sístole-diástole entre armas, instituições e culturas, da qual quase todos os povos da Ásia Menor foram obrigados a participar. As exceções notáveis foram os árabes que viviam no escaldante Hejaz, ao longo do litoral do mar Vermelho, na península Arábica e no platô vasto e vazio do Najd, a leste. Essas tribos semitas permaneceram, em sua maior parte, fora do radar geopolítico das duas superpotências que dominavam o Crescente Fértil. A maioria das tribos do interior da península Arábica, cujas caravanas que saíam de cidadezinhas de oásis chegavam até a Jordânia ao norte e até o Iêmen ao sul, conseguiu escapar de ser sugada pelos imensos furacões imperiais da região até o final do século VI. Seus membros eram espectadores remotos que desempenhavam, na melhor das hipóteses, papel marginal no Crescente Fértil, o arco que se ergue a partir das terras a leste do litoral do Mediterrâneo e corta o Egito, a Palestina, a Síria, um pedaço da Turquia e desce até o golfo Pérsico, atravessando o Irã. Mas eles estavam próximos o suficiente para tomar elementos emprestados de duas grandes civilizações em guerra constante. Com o tempo, essas guerras estafantes possibilitariam a ascendência militar improvável dos seminômades de um canto da Arábia. Esse povo ocupou com velocidade incrível um dos lugares de maior destaque da história — mas só depois de as duas superpotências da Ásia Menor se exaurirem em destruição prolongada e mútua. No papel de espectadoras fascinadas do que foi, de fato, a maior rivalidade destrutiva da história, as tribos do coração da Arábia se viram de posse de um dos bilhetes premiados da história e se tornaram protagonistas, quase automaticamente, de uma nova rivalidade. Não é possível observar a ascensão islâmica ao poder sem traçar o fim inexorável dessas duas superpotências. A paz entre Roma e o Irã foi mais uma interrupção do que uma situação normal de negócios. Ocasionalmente, por necessidade, houve comércio entre eles. O Irã bloqueava as rotas terrestres para a Ásia. Roma mandava no Mediterrâneo. As classes altas de
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Roma e do Irã estavam ocupadas demais lutando entre si e consolidando conquistas territoriais para prestar muita atenção uma na outra até um século e meio antes do nascimento do messias cristão. Em 146 AEC, Roma atacava com vigor a capital de um inimigo mortal no norte da África e jogava sal nas plantações vizinhas, como que para imbuir de significado abjeto a determinação da paz imposta aos cartaginenses. “Antes da destruição de Cartago, o povo e o Senado de Roma governavam em conjunto a República, de maneira pacífica e com moderação”, iria se lamentar o historiador Salústio cerca de oitenta anos depois. “Mas, quando a mente das pessoas foi livrada daquele pavor, caprichos e arrogância, surgiram naturalmente vícios criados pela prosperidade.”2 Fixada no lado africano do Mediterrâneo daquele momento, a cidade-Estado Roma marchou com botas de legionário em direção à Ásia Menor, para conquistar o status de império mundial.3 Pouco mais de cinquenta anos depois, as forças de fronteira do Império Iraniano, relativamente novo, depararam-se com os romanos avançando Mesopotâmia adentro, a partir de seu posto litorâneo no norte da África. Latinos e iranianos não travaram nenhuma batalha de importância nesse primeiro contato na Mesopotâmia, “o território entre os rios [Tigre e Eufrates]”. O povo parto do Irã estava ocupado reclamando os territórios perdidos depois da destruição do superestado aquemênida — criado por Ciro, o Grande — por Alexandre, o Grande, em 332 AEC. 4 Ao avaliar com prudência o tamanho do novo Império Iraniano, limitado a oeste pelo Eufrates, a leste pelo Indo e ao norte pelo Oxus, os romanos fizeram uma pausa em seu avanço. Mitrídates II (123-88 AEC), o lendário formador do império da Pártia, obtinha uma sequência de conquistas. Seu perfil hirsuto e com olho de águia em uma moeda antiga de 2,2 mil anos, saída da prensa real de Selêucia, a capital da Pártia, captura a imagem arquetípica de um senhor do universo. Com a porção oriental de Irã, Armênia, Turquia e Azerbaijão, partes da Síria e do atual Iraque, na época subjugados ou funcionando como satélites subservientes e respeitosos, Mitrídates tinha todo o direito de se apropriar do antigo título persa de shahanshah (“rei dos reis”). Ao medir a vasta massa territorial de Mitrídates, Estrabão, o grande geógrafo grego, descobriria um pouco mais tarde que os partos governavam tantos territórios e tantos povos que tinham se tornado, “de certo modo, rivais dos romanos”.5
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Ambas as potências concordaram formalmente, em 96 AEC, que, a princípio, o rio Eufrates seria sua fronteira comum. Nesse ínterim, os generais romanos cobraram um favor do Senado ao dividir Cleópatra, o Egito, a Palestina e a Síria entre si. A primeira guerra romano-iraniana finalmente começou 43 anos depois, pouco antes de Júlio César e Pompeu mergulharem a República Romana na guerra civil e na autocracia semihereditária. Marco Licínio Crasso tomou para si a tarefa de romper o acordo territorial. A riqueza de Crasso em escravos, minas de prata e imóveis o transformou no cidadão mais abastado de Roma. Suas práticas imobiliárias conferiram ao termo queima de estoque seu significado específico. Os proprietários tinham boas razões para temer a perda de suas propriedades por incêndios criminosos se recusassem uma oferta de Crasso. Os empréstimos feitos por ele deram a Júlio César meios para concorrer com as manobras políticas e militares de seu rival, Pompeu. Seu papel na repressão da rebelião dos escravos de Espártaco foi provavelmente tão importante quanto ele afirmava ter sido. Os senadores, agradecidos, concederam a ele o título de cônsul e então, subornados por denários, elevaram Crasso ao alto posto de triúnviro — um dos três governantes, ao lado de Pompeu e César — da República. Cada um dos senhores do triunvirato reservou para si uma grande porção do mundo conhecido: Pompeu ficou com a Espanha; César tomou a Gália; Crasso pegou a Síria.6 A intenção de Crasso era que a Síria fosse seu trampolim para a glória militar fácil e até mesmo para a obtenção de mais riquezas. Na primavera de 53 AEC, ele fez com que suas sete legiões (44 mil homens) atravessassem o Eufrates e entrassem na Pártia. Ele tinha modos severos, físico esbelto e saúde excelente para um homem na casa dos 60 anos, mas faltava-lhe verdadeira experiência militar em campo. O massacre e a crucificação de setenta mil escravos rebeldes o deixaram lamentavelmente despreparado para enfrentar um inimigo em seu próprio terreno, na paisagem escaldante e exposta do que é hoje o oeste da Turquia. Quando os arqueiros a cavalo do comandante parto local atacaram em Carrhae (perto da atual Harã), a disciplinada infantaria romana formou quadrados e ergueu seus escudos para executar a formação clássica da tartaruga enquanto onda após onda mortal de flechas partas chovia sobre eles. Além de os arqueiros contarem com corporação parta a camelo (provavelmente servida por auxiliares árabes) para garantir suas provisões, a
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habilidade dos arqueiros em atirar flechas por cima do ombro (“o lançamento parto”), sempre que a cavalaria de Crasso forçava uma retirada temporária, acabou com a disposição dos romanos. O comandante parto, conhecido pela história apenas por sua relação com o clã Suren-Pahlavi, calculou o ataque de seus catafractários (cavalaria fortemente armada) para o momento de maior fatiga e confusão entre os romanos. A carnificina foi terrível, e Crasso foi morto enquanto tentava se render. Cerca de trinta mil sobreviventes foram conduzidos a uma vida inteira de escravidão e de trabalhos forçados na bela rede de estradas da Pártia. A derrota e o insulto a seu triúnviro humilharam e enfureceram os romanos. Marco Licínio Crasso tinha inaugurado a mais longa guerra da história entre duas superpotências. Na grande galeria de insensatez e arrogância que o historiador Edward Gibbon apresenta para a nossa reflexão, a batalha de Carrhae é um caso exemplar. “O conflito entre Roma e a Pérsia se prolongou da morte de Crasso ao reino de Heráclio [o imperador]”, escreveu ele. “Essa experiência de setecentos anos poderia ter convencido as nações rivais sobre a impossibilidade de obter conquistas além dos limites fatais do Tigre e do Eufrates.”7 Duzentos e cinquenta anos depois, a Roma Imperial e o Irã Imperial ainda brigavam entre si, apesar de a paz por vezes se instalar e de, frequentemente, se distraírem em guerras com outros povos. No vaivém quase sem interrupção de conquistas e derrotas durante o século II EC, a cavalaria pesada dos partos invadiu a Armênia romana, e Marco Aurélio (g. 121-80 EC), o mais sábio e último dos “cinco bons imperadores”, enviou legiões para pisotear os catafractários em 164 EC e capturar Ctesifonte, a majestosa capital do Irã, a cerca de quarenta quilômetros ao norte do local onde fica a Bagdá atual. Após pouco mais de trinta anos, outro shahanshah iraniano, Artabano, mesmo com seu formidável exército de elefantes, não conseguiu expulsar Roma da Mesopotâmia, e a derrota teve proporção tão humilhante que causou o fim da dinastia parta. Com as grandes quantidades de ouro e prata tiradas do inimigo, Roma pôde adiar a crise econômica causada pelos déficits hemorrágicos de sua balança comercial por três décadas. O último shahanshah parto foi tirado de cena depois de a dinastia ter incluído 43 monarcas durante quase quatrocentos anos, por vezes espetaculares.8 Então, durante o que os romanos passaram a chamar de “a grande crise”, no terceiro século cristão, os novos governantes sassânidas do Irã sacudi-
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ram o Império Latino Romano em suas bases já enfraquecidas. A cavalaria armada e a infantaria bem disciplinada dos persas formavam provavelmente a melhor máquina militar do mundo. Em rápida sucessão, os exércitos de Sapor I (g. 241-72 EC) rebaixaram três imperadores e suas legiões. Setenta mil legionários capturados foram colocados para trabalhar por toda a extensão do império, construindo estradas, cavando canais e erguendo a cidade de Veh-Andiokh-Shabuhr (“a melhor Antioquia de Sapor”), o futuro berço da produção cultural e científica dos sassânidas. Mas, além de dois generais terem sido vencidos em batalhas e depois mortos, um terceiro, Públio Licínio Valeriano (g. 253-60), foi capturado perto de Edessa, no sudeste da Turquia. Um imperador ser capturado vivo em batalha contra um inimigo estrangeiro era uma afronta a tudo que ser Romanita significava, uma calamidade incompatível com a ideologia romana da invencibilidade conferida por ordem divina. O captor de Valeriano infligiu a ele um castigo que, aos olhos dos iranianos, deve ter parecido uma vingança fantástica: Sapor I usou o imperador capturado como escabelo humano. O grande monumento do rei, entalhado em ruínas varridas pela areia em Naqsh-i Rustan, perto da antiga Persépolis, no sul do Irã, é visível até hoje.9 Sapor, altivo, olha para baixo, montado em seu cavalo, enquanto Valeriano, com ar de súplica, vai atrás, a pé. Sapor representava a perspectiva imperiosa a partir da qual sucessivos governantes sassânidas olharam para os romanos durante o restante do século III, crucial para o Império Romano. Cem anos depois de Sapor humilhar os romanos, o imperador conhecido como Juliano, o Apóstata, incentivava seus legionários, demonstrando ressentimento absoluto pela arrogância persa, a aniquilar “uma nação das mais maliciosas, em cujas lâminas de espada o sangue de nossos camaradas ainda nem secou”.10 Mas, antes que o império pudesse enfrentar os sassânidas com eficiência, precisava desesperadamente de reformas políticas e estabilidade econômica. No começo, os romanos demoraram a se recuperar de seu mergulho na anarquia, da degradação de sua moeda e da guerra civil entre os chamados imperadores militares, mas o Estado romano passaria depois por uma retomada radical. Um soldado grego se revelou exceção extraordinária nesse período. Diocleciano (g. 284-305) eliminou seus concorrentes, dividiu o império ao meio, em Ocidental e Oriental, com cada uma das partes governada por uma tetrarquia, e lançou
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um número recorde de éditos transformadores. No papel, a tetrarquia de Diocleciano foi uma solução elegante à instabilidade política que gerara cerca de vinte imperadores e impostores na metade desse número em anos: ele e Maximiliano, seu camarada de armas, no papel de imperadores seniores (Augusti) reinavam sobre o Oriente e o Ocidente, respectivamente, com dois imperadores subalternos (Cesari) que ascendiam à posição de Augustus quando os imperadores seniores morriam. Milão se tornou a capital administrativa do Império Ocidental. A cidade de Spalato, na Croácia, serviu de capital para a metade Oriental de Diocleciano. Muito antes do fim de seu governo, o lamentoso Diocleciano assistiu aos augusti e cesari devorando-se uns aos outros. Poderes autocráticos conferidos aos imperadores fizeram com que o mote sagrado senatus populusque romanum (“o senado e o povo de Roma”) mal valesse o mármore em que estava entalhado. Como o próprio Diocleciano tinha se proclamado um deus, havia sofrimento notável entre os cristãos do império, por sua relutância em acatar a alegação. Éditos imperiais fixaram preços e congelaram profissões comerciais e burocráticas fundamentais em perpetuação hereditária. Um sistema de taxação de confisco que financiava a vasta burocracia transferiu a riqueza plebeia e equestre remanescente à fatia mais alta da classe patrícia e à máquina militar. A força militar do império, já extensa, passou de trinta legiões com 300 mil soldados de infantaria para um total de 435 mil homens.11 O grande inovador imperial até chegou a estabelecer um período de paz de trinta anos com o Irã. Apesar de a economia de mercado e a base agrícola estarem seriamente enfraquecidas — de modo que o fato se tornaria aparente mais para o fim do século seguinte —, a Roma do século III conseguiu sobreviver a cerca de sessenta anos de provocações iranianas, mesmo enquanto tribos germânicas rompiam repetidamente as defesas nos rios Reno e Danúbio. O império retardou o dilúvio bárbaro durante certo tempo. As opções dos imperadores, tanto do Oriente como do Ocidente, raramente eram claras, em geral se tratando de uma escolha de Hobson — havia legiões suficientes para acuar o Irã na Armênia, na Macedônia e na Mesopotâmia, mas existia o risco de que as guarnições exploradas ao máximo talvez não conseguissem defender as linhas fronteiriças (limes) do Reno e do alto Danúbio contra os bárbaros. O jogo de contenção falhou desastrosamente no
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verão de 378 EC. Pressionadas pelo movimento populacional colossal que eclodira na Ásia três anos antes, as tribos germânicas na Trácia (Bulgária), ao longo do baixo Danúbio, requisitavam com desespero permissão para penetrar no extremo leste do império. Valêncio (g. 364-78), o imperador oriental, assentiu, mas com cautela. Mais preocupado com o avanço sassânida na Armênia, sob a liderança de Sapor II, o Grande (g. 309-79), Valêncio reagiu com lentidão quando os godos rebeldes — acompanhados por outras tribos que também fugiam do enxame assassino asiático — subjugaram os administradores imperiais e levaram destruição a boa parte da Trácia. Com todas as legiões do oriente disponíveis, Valêncio finalmente chegou aos Bálcãs onde, na primeira semana de agosto de 378, perdeu a vida e dois terços de seu exército em Adrianópolis. Amiano Marcelino, historiador dessa época crepuscular, lamentou que os godos tivessem sido “a ruína do mundo romano”.12 No desfecho do século V, o Ocidente Latino já tinha saído da competição imperial havia muito tempo. O sucessor de Diocleciano, Constantino, o Grande (g. 306-37), não só manteve o império dividido como também chegou a replicar a Cidade Eterna na forma de Constantinopla, na antiga colônia grega de Bizâncio, uma localização estratégica para o Danúbio e o Eufrates. A metade ocidental do império dual, institucionalizado formalmente por Constantino em 325 EC e governado em conjunto por Roma e Constantinopla, chegou ao fim de modo degradante em 476, quase exatamente cem anos após o fracasso em Adrianópolis. No outono daquele ano, um guerreiro germânico romanizado, um brutamontes chamado Odoacro (cunhado de Átila, o Huno), ordenou ao imperador-menino, Rômulo Augústulo, que abandonasse a Cidade Eterna. Uma data para o início da Idade das Trevas na Europa tão boa quanto qualquer outra pode ser o dia em que Rômulo Augústulo partiu sem reclamar e se aposentou, recebendo pensão, em Constantinopla.13 Pouco menos de um século antes de Odoacro ter transferido a sede imperial ocidental, o último imperador que governou o Império Romano unificado tinha promulgado um édito religioso de importância mundial extraordinária. Teodósio I finalizou o triunfo ecumênico de uma ideologia que se difundira continuamente a partir das classes mais baixas do mundo romano. Apesar de o Édito de Milão de Constantino ter legalizado o
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cristianismo em 313 EC, concedendo à seita forte posição semelhante à de seus concorrentes politeístas e dualistas, o novo monoteísmo finalmente se transformou na fé oficial do Império Romano com o decreto de Teodósio em 380. Esse desfecho não poderia ter sido tomado como certo, de maneira alguma, mesmo 25 anos antes. O mitraísmo ainda era a crença preferida em muitas das legiões. O maniqueísmo exercia forte atração no Oriente. Famílias poderosas e antigas de senadores lutavam com bravura para preservar os templos pagãos e manter as festas religiosas e os jogos no Coliseu. A última esperança de salvar o que acreditavam ser a alma de sua civilização da metástase cristã veio com o reinado breve, porém brilhante, do imperador-filósofo Juliano, o Apóstata (g. 361-63). Até ser morto em uma retirada de seu exército de um cerco mal-sucedido à capital iraniana, a política de restauração pagã do Apóstata reuniu adeptos do platonismo e do politeísmo da Britânia até o Bósforo. Teodósio, além de colocar fim a qualquer tolerância pública aos antigos ídolos e diversões (chegou a abolir os Jogos Olímpicos em 393), transformou o cristianismo na única crença legítima em 391 e procurou implantar de maneira definitiva a essência do dogma cristão ortodoxo no império.14 Apesar dos pronunciamentos fundamentais do Concílio de Niceia em 325 EC, muitas mentes gregas ágeis tinham continuado a confundir e separar o grau da divindade de Jesus na Santa Trindade. Havia os nestorianos, encontrados em grandes números na Síria e no Iraque, que insistiam na ideia de que o messias cristão possuía duas naturezas independentes, humana e divina. Os monofisistas ou coptas no Egito e em outras áreas do norte da África afirmavam que a natureza de Cristo era divina de modo singular. Por mais obscuros que tais desmembramentos ontológicos parecessem quando expressados em grego, nada poderia ter importado mais para setenta milhões de almas que buscavam a salvação em Cristo, e Teodósio determinara com muita clareza, em 380 EC, que o Credo Niceno significava exatamente e apenas aquilo que ele tinha dito: as duas naturezas do Filho eram da mesma (homoousion) “substância” que a do Pai. Ainda assim, as percepções ontológicas dos arianos, dos monofisistas, dos nestorianos e dos adeptos de outras seitas concorreriam com a doutrina católica ortodoxa durante os séculos seguintes. Apesar de a confusão cristológica persistir, os decretos imperiais de Teodósio determinaram a primazia do
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cristianismo nos Impérios Romanos do Ocidente e do Oriente.15 Com essa providência, os imperadores transformaram a rivalidade entre os Impérios Romano e Iraniano por glória, território, mão de obra escrava e riquezas em um conflito ideológico pelo monopólio da revelação da verdade.
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o outro lado do Eufrates, além do deserto sírio e passando pelas montanhas armênias, homens e mulheres cultos se animavam por outra fé — muito mais antiga e mais serena em sua ordenação divina. O credo estabelecido do Estado sassânida foi a primeira religião revelada do mundo, um monoteísmo de 1.400 anos com fortes correntes dualistas que, de vez em quando, se avolumavam e se transformavam em tsunamis teológicos que davam forma a contornos de credos por toda a Ásia Menor. Presente no nascimento da Era Axial — o período decisivo que se estendeu de 800 a 200 AEC, quando as grandes religiões do mundo surgiram —, o zoroastrismo surgiu dos ensinamentos de um sacerdote ariano, Zaratustra (latinizado como Zoroastro), o primeiro messias da história. Zaratustra (“aquele que possui camelos”) viveu no alto das montanhas da antiga Báctria, em algum lugar a noroeste de onde hoje fica o Afeganistão, em uma época indeterminada — em qualquer momento entre 1200 e 600 AEC, sendo mais provável no início desse período. Esse vidente de 30 anos teve as primeiras visões conhecidas do mito da criação, de um apocalipse do fim dos tempos e da promessa do julgamento pessoal e da vida eterna após a morte, quando o criador não criado da luz, Aúra-Masda, vencesse a escuridão e o mal de Angra Mainyu. Acredita-se que Zaratustra mandasse seus fiéis rezarem em pé cinco vezes por dia na presença do fogo, símbolo de pureza, criação e iluminação. Na visão apocalíptica de Zaratustra, o Dia do Julgamento (Frashokereti) chegaria no final do tempo linear (não cíclico, como nas religiões do Egito, da Grécia, da Índia e de Roma), e o crente caminharia pela ponte da morte enquanto suas ações eram pesadas e sua vida após a morte, decidida.16 Não é surpresa o fato de as elites religiosas e políticas do Irã partirem do princípio de que, do ponto de vista ético e intelectual, sua fé era superior ao judaísmo, religião que era sua contemporânea mais próxima,
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e ao monoteísmo dos romanos, que chegou depois. Dario, o Grande, louvava o fogo sagrado de Aúra-Masda. Representantes da dinastia parta entoavam os cânticos sagrados (Gathas) compostos pelo próprio Zaratustra. Shahanshahs sassânidas rezavam em pé cinco vezes por dia e exaltavam os valores austeros das escrituras sagradas (Avesta); o sacerdócio cheio de poder mantinha os templos do fogo sagrado iluminados e conduzia as sete festas comunais prescritas — todas com intuito de servir como argamassa da casta dominante e controle dos plebeus.17 Imperiosas, racistas e capazes de enormes crueldades, as classes dominantes também eram mestres na política da tolerância religiosa — até certo ponto. Sapor I, determinado a fazer todo o possível para minar o inimigo, incentivou os judeus e os cristãos que ainda sofriam perseguições na segunda metade do século III a abandonar o subjugo romano e se instalar em seu império, mediante o pagamento de impostos. Demorou mais meio século até que os reis sassânidas fossem capazes de distinguir entre seus súditos cristãos aqueles para os quais a Igreja ortodoxa imperial não apresentava o menor apelo. Os nestorianos passaram no teste sassânida de lealdade; os monofisistas, não necessariamente. Dali por diante, a crença dos povos passou a ser julgada a partir de perspectivas não zoroatristas e não cristãs. Com o início do século V, os dois impérios mundiais, o Greco-Latino e o Iraniano, encontraram-se ao longo da divisa mesopotâmica como adversários religiosos: a Roma cristã contra o Irã zoroastrista. Quando um egípcio observador, um comerciante transformado em monge, escreveu suas memórias no final do século VI, o texto exsudava o virtuoso imperialismo cristão que era típico da época. “O império dos romanos assim faz parte do Reino do Senhor Cristo”, escreveu Cosmas, “tendo em vista que ele transcende qualquer outro poder (...) e permanecerá inconquistável até a consumação final (...)”. Integrantes de ordens monásticas se espalharam pela Ásia Menor e a África: sacerdotes nestorianos carregavam sua versão do cristianismo pela Rota da Seda, até a China, e os homens santos monofisistas levavam o evangelho não corrompido de Cristo Nilo acima. Se o estado de espírito desse mundo cristão sectário hoje parece separado da compreensão moderna por um enorme fosso de ciência e razão, pelo menos continua existindo uma ponte de analogia entre os opiáceos teológicos do Império Romano
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Oriental e a panaceia econômica do livre mercado do presente. Ouvir habitantes de Constantinopla do século VI analisando a Santa Trindade é mais ou menos a mesma coisa que ver nova-iorquinos, londrinos, moscovitas ou moradores de Xangai do século XXI dando dicas de compras de ações ou fazendo recomendações de aquisição de imóveis. “Em todo lugar, em residências humildes, nas ruas, no mercado, nas esquinas”, suspirou um visitante estupefato da capital imperial, “se eu peço a conta, a resposta é um comentário a respeito do nascimento da Virgem; se eu pergunto o preço do pão, sou informado de que o Pai é maior do que o Filho; quando desejo saber se o meu banho está pronto, dizem que o Filho foi criado do nada”.18 Sapor II19 ficou pasmo quando o líder da comunidade monofisista se recusou a ordenar que seu povo pagasse um imposto especial, necessário para mais uma guerra contra Roma. Portanto, não é exatamente surpresa o fato de uma fonte sassânida da época relatar a ampla disseminação da crença entre a aristocracia e o clérigo zoroastrista de que “os cristãos eram todos espiões dos romanos. E que nada acontece no reino sem que eles escrevam para seus irmãos que moram [na Roma imperial]”. O mobad (alto sacerdote) do clérigo zoroastrista, Karter ou Kirder, policiava o pensamento religioso e invectivava contra os cristãos. Seus conselhos influenciaram Sapor, que de outro modo era bem tolerante, fazendo com que ele ordenasse a perseguição aos não persas, que durou até o fim de seu governo.20
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em anos depois que o brilho das luzes institucionais e culturais da Europa tinha esmaecido até uma fagulha muito fraca, com o desaparecimento do último César ocidental, Rômulo Augústulo, a fumegante Ásia Menor pegou fogo com uma guerra catastrófica. A morte do grande Justiniano I no inverno de 565, o “último imperador romano” do Império Romano Oriental, marcou o final de quatro décadas de liderança dinâmica e expansão militar contínua, além do início da última fase, suicida, do confronto entre superpotências. O Corpus juris civilis, um compêndio universal de lei civil romana, foi a contribuição de base de Justiniano às regras e regulamentações de bom-senso que chegariam às futuras sociedades ocidentais. Las siete partidas, o código civil do mundo de idioma espanhol feito setecen-
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tos anos depois, e também o Code Napoléon para a Europa pós-feudal, 1.300 anos mais à frente, foram inspirados nos juristas de Justiniano. A esplêndida basílica de Santa Sofia em Constantinopla, o ápice da audácia arquitetônica helenística, foi o legado de tijolos e mármore deixado por Justiniano. O fato de o enorme peso do grande domo ter forçado as paredes da basílica perigosamente para fora até terem sido escoradas por Isidoro de Mileto foi, para alguns, mais um sinal da soberba imperial. “Salomão”, alguém ouviu Justiniano murmurar ao entrar na estrutura finalizada, “Salomão, eu vos superei”.21 O imperador concebeu sua casa de louvor admirável como a corporificação material da Igreja Apostólica, purificada na doutrina contra todos os desvios e obediente a seu augusto imperador. As opiniões dos bispos belicosos de Roma a respeito de tais questões eram consideradas simples conselhos. Monofisistas e nestorianos, que exasperavam Justiniano com suas crenças teimosas e antiéticas em relação à divindade de Jesus, estavam sempre a um decreto de distância da perseguição descarada. Os judeus, aliás, ele perseguia com rigor incomum, forçando-os à conversão e expropriando seus bens. Justiniano tentou fazer com que um dogma servisse para todos os casos ao apoiar o decreto calcedoniano de 451, segundo o qual as duas naturezas de Cristo, divina e humana, na verdade eram uma só. Os desvios persistiam até no âmbito doméstico do império, quando a imperatriz Teodora, a impetuosa filha de um “tratador de ursos do circo”, de acordo com o mordaz Procópio, historiador do regime, foi acusada de reconfortar os monofisistas e conspirar com eles. Os nestorianos, teimosos e certos da essência dualista de Cristo, saíam do Império Romano em números cada vez maiores, tomando a direção do clima confessional mais maleável do Irã. Acima de tudo, este sobrinho de um soldado balcânico analfabeto sonhava com a reconquista, a restauração e a reunificação de Roma, governada a partir do centro do universo, Constantinopla, a maior metrópole do mundo. Se a “longa paz” que Teodósio I estabeleceu com seu par iraniano de vida curta, Sapor III (g. 383-88), tivesse durado mais, Justiniano talvez teria concretizado boa parte de seus planos grandiosos. A paz de vantagens excepcionais tinha durado mais de um século — de 384 a 502 — por causa da confusão causada no Irã no meio do século V por um povo nômade de
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origem obscura do norte da China e da Ásia Central — os eftalitas ou hunos brancos. Quando o século VI se iniciou, porém, o longo período de preocupações internas dos sassânidas finalmente chegou ao fim e, com isso, houve a retomada da guerra pouco antes de Justiniano assumir as vestes púrpuras. Para Justiniano e seus sucessores imediatos, a nêmesis era Khosrau I (g. 53179), talvez o maior entre os representantes da dinastia sassânida, cujo longo reinado e cujas ambições imperiais faziam frente às de Justiniano. Khosrau se opôs, de modo consistente, a cada um dos movimentos de Justiniano durante boa parte do século VI. Em retrospecto, as ambições geopolíticas de Justiniano foram muito mais grandiosas em teoria do que sustentáveis de maneira realista; no entanto, na época, pareciam precisar apenas de força de vontade imperial, subsídios anuais aos persas, alguns poucos empréstimos forçados a mais e uma boa dose de sorte para dar certo. Dois generais, Belisário, leal e descomplicado, e Narses, enfraquecido e cheio de tramoias, serviram a seu imperador com tal genialidade militar que, durante uma ou duas temporadas ilusórias, a Itália e a Hispânia pareciam estar garantidas. Mas o suprimento de bárbaros germânicos não tinha fim. Os iranianos declararam guerra bem quando Belisário poderia ter triunfado de modo decisivo em suas campanhas italianas contra os godos, e o Estado caiu na bancarrota. Depois de quase vinte anos de guerra devastadora, a Itália se transformou em um quase deserto, mas sem paz. Nunca mais os governantes da Segunda Roma se animariam para uma disputa ferrenha com o intuito de reaver o terreno perdido para os bárbaros germânicos por seu império-irmão do ocidente, morto. Operações de resistência anêmica em Ravena e Benevento, na Itália, e guarnições costeiras no sul da Hispânia era o máximo que eles ousavam manter. Belisário tinha conquistado fama no início da carreira ao acabar com os vândalos que atacavam o norte da África, fonte do ganha-pão do império, o que garantiu a região por mais duas gerações, até o despertar dos árabes. Mas, no fim, a cobrança de impostos sem dó e o endividamento irrefreado para pagar pelo enorme esforço da restauração imperial comprometeu seriamente a saúde da Segunda Roma.22 Os serviços políticos da imperatriz Teodora foram tão fundamentais quanto os dos generais. A rede de espiões e de agentes da esposa de Justiniano circulava pelos becos escuros e pelas casas de banho de Constantinopla
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para relatar tramoias em desenvolvimento ou fofocas comprometedoras nos mínimos detalhes. A vida no topo era sempre perigosa na maior metrópole do mundo. O Hipódromo, a versão superdimensionada do Coliseu de Roma, abrigava os abomináveis Azuis e Verdes, duas turbas indóceis cheias de atitude política e de intolerância letal em relação a qualquer falta de atenção imperial a seus interesses, alimentação e diversão generosos. Os nervos de aço de Teodora uma vez impediram que o marido abalado fugisse da cidade quando o tumulto regicida do Hipódromo se transformou em turbulência e deixou boa parte da capital em ruínas. Procópio, o historiador que compôs dois relatos sobre a era de Justiniano (um, oficial e favorável; o outro, secreto e maldoso), insultou Teodora acusando-a de ser uma prostituta ardilosa, vinda da parte mais sórdida da cidade. Apesar de não ter nascido entre púrpuras, ela usava as vestes do poder soberano com autoridade consumada. Para obter uma boa noção da astúcia implacável de Teodora, basta dar uma olhada na basílica de São Vital, em Ravena, onde seu retrato fiel ao mesmo tempo seduz e intimida em mosaicos. Para o bem e para o mal, até sua morte, aos 48 anos, poucas decisões importantes foram tomadas no Grande Palácio sem os conselhos ou a aprovação dessa Eva Perón bizantina. Justiniano faleceu cinco anos antes do nascimento do profeta Maomé, de acordo com o que diz o calendário muçulmano. Cinquenta anos depois, a civilização greco-romana de Justiniano (rotulada de “bizantina” por estudiosos do século XIX) estaria presa a uma luta mortal entre superpotências que tornou possível — se não, de fato, inevitável — o transtorno revolucionário que Maomé causou à velha ordem mundial.23 À medida que a transformação cultural do império foi se acelerando sob o comando dos sucessores de Justiniano, o latim foi cedendo terreno gradualmente para o grego como língua principal do governo e dos negócios. “Imperador” acabaria por dar lugar ao helenístico basileus como título imperial. Insanidade, pura má sorte, falência financeira e assassinato atormentaram aqueles que vieram depois de Justiniano. Seu jovem sobrinho e sucessor imediato, Justino II (g. 565-78), sofreu necessariamente com a comparação ao tio ilustre, cuja condução dos assuntos de estado (auxiliada com destreza por Teodora até sua morte) parecia operar a partir de um cálculo preciso de força e sutileza. Justino mostrou-se incapaz de compreender ambos os conceitos.
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O conjunto das desgraças imperiais que se apresentava a Justino era verdadeiramente mortífero: uma nova tribo germânica agressiva (os langobardos ou lombardos) que enxameava para a Itália; os ávaros asiáticos que exigiam subsídios em ouro cada vez maiores; relações incertas com os turcos, que fizeram sua primeira aparição registrada a leste do rio Oxus (Amu Darya); seitas cristãs que brigavam entre si; apelos de cristãos armênios que se rebelavam contra seus governantes zoroastristas iranianos. Os árabes eram mais um empecilho ao comércio do que uma preocupação militar, mas suas depredações eram cada vez mais ousadas. Ataques de beduínos à Síria tinham começado sob o governo de seu tio, e esperava-se de Justino que desse continuidade à política de pagar a quantia de extorsão para mantê-los afastados das rotas comerciais e das comunidades de fronteira do império.24 O império tinha sido esvaziado por três décadas de hostilidades universais e impostos de confisco. Até mesmo a paz com o Irã não tinha ajudado a economia em nada, em razão da grande indenização anual e da realidade de que o Irã continuava exercendo amplo controle sobre o comércio asiático e do oceano Índico. O Irã regulava a ponta oeste da principal rota terrestre, que saía da China e ia até a famosa Torre de Pedra de Tashkurgan, no norte do Afeganistão, onde mercadores persas, gregos e semitas trocavam seus produtos por jade, cravos, sândalo e seda de preço inestimável, que seriam carregados de volta, atravessando o Irã em direção ao oeste, até Palmira e Damasco, na Mesopotâmia. Os conflitos do século VI podiam ter motivação comercial surpreendente, já que naquela época o valor e o volume do comércio intercontinental incentivava os imperadores e shahanshahs a pensar de maneira geopolítica.25 Com o tempo, os gregos poderiam contar com rendimentos robustos dos primeiros ovos de bicho-da-seda levados em segredo por dois monges nestorianos da China para Constantinopla, aproximadamente em 550. Mas as necessidades de Justino eram desesperadamente imediatas.
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paz no Oriente Médio era uma guerra conduzida por outros meios. No panteão desaparecido da realeza sassânida, Khosrau I, em sua última década de vida quando Justino subiu ao trono, tinha criado um legado ao mesmo tempo nobre e sanguinário durante seu longo reinado. O nome
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real de Khosrau Anushirvan em pahlavi significava “alma abençoada, justa ou imortal”, no entanto, ele subiu ao trono com as mãos sujas de sangue pela repressão de seu próprio povo. A Era Dourada dos sassânidas começou como uma contrarrevolução antes mesmo que seu progenitor atingisse a dignidade imperial. Nas primeiras décadas do século VI, uma revolução varreu o platô iraniano. Foi tão radical em suas aspirações de nivelamento que prefigurou as paixões igualitárias da Revolução Francesa e o terror econômico da Revolução Bolchevique. O conflito duradouro no século anterior contra os eftalitas tinha minado boa parte da vida e do tesouro do império, e o povo estupefato enxergou na peste (pavorosamente bubônica), na seca e na onda de fome que se seguiram a mão maléfica e aparentemente vencedora do deus zoroastrista Angra Mainyu na batalha cósmica entre o bem e o mal. Ao mesmo tempo, a alta nobreza e o alto clero, ambos isentos do pagamento de impostos, demonstravam a tendência de exagerar a malícia cósmica ao extrair dos camponeses e do povo comum a pouca riqueza que lhes restava.26 O Irã experimentou uma tentativa inspirada de fazer reformas sociais do palácio, que chegou ao clímax e se transformou em uma revolução de nivelamento. Mazdak i Bamdad — nobre iraniano cuja data e local de nascimento exatos no final do século V são desconhecidos — era um asceta carismático que tinha atingido a posição de alto conselheiro em Ctesifonte, a capital monumental do império, onde exerceu influência sem paralelo sobre o pai de Khosrau, Kavadh I (g. 484-524). Mazdak se dedicava ao dualismo igualitário de um profeta persa carismático anterior, Mani (210-76 EC), o sintetizador religioso martirizado cujo credo maniqueísta chegou perto da adoção oficial no final do século III. Ao se deparar com obstáculos da nobreza reacionária a cada curva do caminho (e depois de chegar a ser obrigado a se exilar na Síria por dois anos), Kavadh não tinha mais para onde se voltar e acatou as recomendações de seu conselheiro: programa de paz, extensa reforma tributária, tolhimento do poder dos nobres, deflação do clérigo zoroastrista e programas de bem-estar social que abriram os celeiros imperiais aos pobres. Mazdak considerou as reformas de seu discípulo real apenas como o ponto de partida de uma transformação verdadeira da sociedade, em que o consumo de carne foi abandonado e distinções baseadas em proprieda-
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de privada gradualmente foram extintas pela propriedade comum. O alto conselheiro estava determinado a suscitar medidas sociais temporais que levassem à vitória da Luz sobre a Escuridão no grandioso duelo escatológico. No entanto, com o passar do tempo, sua visão pacífica da boa sociedade se metamorfoseou na ideologia poderosa do masdeísmo, um evangelho radical que encheu a imaginação da classe mais baixa. Durante as guerras longas, violentas e profundamente desestabilizadoras de expulsão dos eftalitas, milhares de camponeses abandonaram o campo em busca da segurança das cidades, formando algo assemelhado a um proletariado urbano. Outros, enlouquecidos pelas cobranças da classe mais alta e pela fome, tomaram as propriedades dos ricos. Grande número de masdeítas participaram de rebeliões na Babilônia, em Ecbatana e em Persépolis, destruindo templos do fogo, tomando propriedades dos ricos e distribuindo mulheres de haréns como propriedade comum. Vários milhares se fixaram em terras que pertenciam aos senhores das grandes propriedades.27 A contrarrevolução também veio de cima. Ninguém sabe o que Mazdak achou da tempestade de fogo de nivelamento do masdeísmo — se ele, assim como Martinho Lutero, enraivecido pelos camponeses alemães que se rebelaram em seu nome, censurou a desobediência civil nos termos mais vis ou se, em vez disso, buscou apaziguar os motivos dos desesperados. Seu patrão imperial se distanciou do movimento à medida que os levantes sociais e as críticas aristocráticas foram ganhando força. Sobrara para Khosrau fazer o trabalho sujo do pai, enforcar Mazdak por volta de 528 e exterminar dezenas de milhares de masdeítas em um massacre de classe organizado, que fez lembrar a derrota da República Romana por Espártaco e seus setenta mil seguidores na última das três grandes rebeliões de escravos de Roma. A silhueta de camponeses enforcados se destacava contra o horizonte e enxames de abutres escureciam o céu. Milhares de pessoas escravizadas foram distribuídas entre as propriedades dos nobres; outras foram enviadas para as galés, as pedreiras ou tiveram morte mais acelerada nas minas; por tudo isso, a nobreza e o clérigo de Khosrau, agradecidos, conferiram a ele o título de Anushirvan. Khosrau I planejou uma contrarrevolução que na verdade cumpriu vários itens essenciais da agenda de Mazdak. Ainda assim, levando em conta que a época dele foi uma era autenticamente dourada, começou com uma
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reação violenta a ideais radicais. Como primeira providência, o shahanshah tinha reorganizado a máquina de guerra sassânida. Uma nova nobreza de serviços forneceu um quadro de oficiais assalariados que suplantou os servos da antiga aristocracia possuidora de terras. Vitórias em série arrebanharam terrenos na Síria, na Armênia, na Capadócia e na Geórgia nos primeiros anos de seu governo, seguidas pelo aumento da disciplina, do moral e do dinheiro.28 O shahanshah financiou essa poderosa máquina de guerra por meio de reajuste radical do sistema tributário imperial, uma reforma imposta à casta eclesiástica saturada e também aos grandes proprietários de terras, ambos anteriormente isentos de pagar impostos. Foi ordenado um levantamento de toda a terra do império, e os títulos só foram revalidados após investigação. Os impostos, coletados a cada três anos, eram enviados diretamente ao tesouro imperial. Os privilégios prolíferos do clero foram enxugados. Vinte e cinco mil postos de sacerdotes assalariados foram criados para cuidar dos templos do fogo, colocando fim aos pedidos insistentes dos religiosos por dinheiro. Reforma tributária, grandes obras públicas, conflitos internos domados e estabelecimento eclesiástico atualizado foram antídotos que tiraram o veneno do corpo político enfermo. O poderoso exército, os servos reais diligentes e, acima de tudo, o clero redimido tinham que obedecer aos mandamentos do Avesta. Por esse motivo elevado, Khosrau ordenou que todos os textos sagrados zoroastristas fossem transcritos do antigo alfabeto avesta de 20 letras para o alfabeto pahlavi, extremamente novo de 46 letras, capaz de dar som a todas as vogais e consoantes. A antiga cidade de Sapor, em Gondeshapur (sua versão de “a melhor Antioquia de Sapor”), sudoeste do Irã, transformou-se em um centro intelectual sans pareil, onde magos zoroastristas, acompanhados por teólogos nestorianos e médicos judeus, estudavam e ensinavam em colaboração. Khosrau patrocinou cátedras na universidade para filósofos neoplatônicos expulsos da venerável Academia de Atenas, fechada a mando de Justiniano. Em Gondeshapur, obras-primas da literatura indiana e grega foram traduzidas para o pahlavi — entre elas o protótipo hindu do Livro das mil e uma noites e o Kalilah e Dimnah, uma coleção de fábulas de animais que serviu como base para parábolas a serem criadas treze séculos depois.29 Nesse ambiente de cultura elevada comparativamente tolerante, a erudição religiosa da comunidade hebraica se sobressaiu de modo sem
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precedentes, já que foi mais ou menos nessa época que o Mixná, codificando normas religiosas e legais, e o Gemará, amplificando e explicando o anterior, foram expandidos e finalmente incorporados ao Talmud babi lônio apodíctico. Uma das peculiaridades consternadoras da história é o fato de que esse ápice na lei e na cátedra hebraica fosse ser celebrado no futuro como conquista notável possibilitada pelo Islã, de tão completa que seria a submersão da cultura elevada dos persas sob o domínio dos árabes. Mais irônico ainda é que o zoroastrismo e seus derivados radicais, o cânone literário indo-persa, a formidável máquina de guerra e a esplêndida burocracia, a universidade de pesquisa arquetípica e o experimento socioeconômico masdeíta teriam sido os esporos de boa parte da ciência, cultura, prática religiosa e organização militar dos islamitas.30 O equilíbrio tinha sido restituído. Como o rei dos reis explicou com muita paciência a seu povo no encerramento de seu reinado glorioso, o progresso “não chega por meio da discussão”, mas sim por pensamentos, palavras e atos em “conformidade total” com o dogma da religião zoroastrista. No entanto, os masdeítas sobreviveram na clandestinidade e em locais remotos durante muitos anos depois do martírio de seu profeta; o masdeísmo sobreviveu muito mais tempo na memória, no mito e nas aspirações incoerentes dos mesopotâmios oprimidos. O fato de as fundações políticas de um dos dois impérios mais poderosos do mundo poderem ter sido abaladas por um movimento igualitário de massa, inspirado por um vidente religioso, foi uma notícia que continuou ressonando duas gerações depois, chegando até o Hejaz, lar de Muhammad ibn ‘Abd Allah ibn ‘Abd al-Muttalib, um pastor árabe pobre de 25 anos, em Meca.31
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Irã atacou o Império Romano Oriental na primavera de 571. Quando Khosrau enfrentou o inimigo romano na última década de seu reinado, comandava aquele que, provavelmente, era o Estado de centralização mais rígida do mundo. A Armênia era o casus belli só esperando para acontecer, um barril de pólvora religioso encravado entre dois impérios. A paz de cinquenta anos entre o Irã e Justiniano proibia expressamente o proselitismo cristão no Império Sassânida. Os iranianos tinham se convencido,
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apesar disso, de que o clero evangelizador dos gregos, com o consentimento de Justino, cada vez mais confuso do ponto de vista mental, trabalhava com determinação na Armênia. A máquina de guerra sassânida era como uma enorme pedra rolando montanha abaixo. Os Imortais eram os melhores entre os testados da nobreza persa: dez mil homens vestidos com armaduras ajustadas ao corpo que transformavam os ataques de cavalaria bem ordenados em uma sólida muralha de cobre reluzente e penas de avestruz tremulando sobre os elmos. Atrás da muralha de cobre ouvia-se o estrondo reverberante dos elefantes equipados, cujo cheiro fazia os cavalos terem ânsias e entrarem em pânico. Além da vantagem numérica e do profissionalismo superior dos sassânidas, havia a ampla simpatia e grande cumplicidade acumulada entre os desafetos religiosos do Império Romano Oriental. Ninguém mostrava mais determinação de se livrar do mando greco-romano do que os judeus, cujo fardo se tornou praticamente insuportável depois que Justiniano implantou sua política de conversão forçada e expropriação de bens imóveis. Para os nestorianos perseguidos, juntamente com grandes números de sofredores pobres e sem poder, a aproximação do kaviani, o estandarte de batalha imponente dos sassânidas — retangular, em ouro, prata e pedras preciosas — suscitava esperanças de dias melhores. Até os monofisistas tinham ficado insatisfeitos sob o domínio de Constantinopla.32 Diante de guerras em diversas regiões e o enorme desperdício de tesouro material e humano na Mesopotâmia, Constantinopla finalmente entrou com pedido de paz em 579, vários meses depois da morte de seu imperador com desequilíbrio mental, Justino II. Então, antes que as negociações pudessem ser finalizadas entre o sucessor de Justino e Khosrau I, o shahanshah morreu de causas naturais no 48o ano de seu extraordinário governo. Três anos depois, o imperador Tibério Constantino, sucessor militar de Justino, capaz porém perdulário, caiu morto entre os contumazes rumores bizantinos de envenenamento. O púrpura imperial foi colocado por cima dos ombros de Maurício (g. 582-602), genro de Tibério Constantino, cauteloso do ponto de vista militar e administrador capacitado, que era orgulhoso demais para pedir um acordo de paz que deixaria o império em posição igual ou pior à que estava no início da guerra. Mais especificamente, seu sogro tinha esgotado o tesouro imperial com desesperados gastos tapa-buraco. Para ganhar tempo, Maurício
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se dedicou ao recondicionamento sistemático do exército, dividindo o império em distritos militares (themes), comandados por prefeitos (strategoi), e escrevendo o Strategikon, um manual que se tornou um clássico militar.33 Assim, as questões permaneceram em estado de impasse durante os vinte anos de seu governo: duas décadas sem paz entre o Império Romano Oriental e o Irã, um período de fomentação de intenções danosas, incidentes e ataques repentinos nas fronteiras, além de pelo menos um confronto importante e hostilidades por afinidade entre satélites. No nono ano de Maurício no trono, ele desautorizou seus conselheiros em uma decisão calculada com muito cuidado que acabou por se comprovar tão desastrosa quanto inteligente por sua objetividade. O neto de 15 anos do próprio Anushirvan apareceu em solo bizantino pedindo asilo e requisitou a ajuda de Constantinopla para reconquistar o trono ancestral. O pai do príncipe tinha sucumbido em um golpe de estado tramado pelo general de posto mais alto do regime, um aristocrata que se gabava de ser descendente dos últimos reis partos. A lógica da usurpação da ditadura do general só poderia significar guerra direta com o Império Romano Oriental. Khosrau II, apelidado de Parvez, “o Vitorioso”, não fazia exatamente jus a seu nome em 590. Maurício abraçou a causa do príncipe, forneceu armas e o pouco ouro que tinha ao exército de lealistas que enxameava para a Síria na condição de que, uma vez no poder, o neto de Khosrau assinaria um tratado de paz perpétua e entregaria a Armênia. A ditadura caiu naquele mesmo ano, e o novo shahanshah, consciencioso e agradecido, colocou fim à guerra com o Império Romano Oriental. De acordo com os termos do tratado de paz generoso de 591, a Armênia persa e a Síria, juntamente a diversas outras cidades importantes, foram devolvidas aos gregos.34
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uando Maurício, do Império Romano Oriental, e Khosrau II concluíram o acordo de paz, em 591, anos de forte rivalidade greco-iraniana desde a morte de Justiniano e Khosrau I tinham alterado para sempre a paisagem social, política e comercial da Arábia. Apenas um ou outro raro conselheiro imperial no Grande Palácio de Constantinopla ou no Palácio Branco de Ctesifonte se preocupava com a situação do interior da península Arábica.
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Naquele tempo, como acontece hoje, figurões das superpotências partiam da prerrogativa de só notar quaisquer consequências colaterais de suas políticas quando bem lhes aprouvesse. No início do século VII, os árabes não chamavam mais a atenção das superpotências do que os africanos subsaarianos no final do século XX. A Arábia pré-islâmica era um lugar atrasado com ligações tênues aos grandes centros da Ásia Menor, na forma de caravanas de camelos e alianças políticas de importância secundária. Então, no último terço do século VI e nos primeiros anos do VII, a Arábia foi sugada para as guerras sem fim do Crescente Fértil. A Persa dos partos e a Roma dos latinos havia muito já não existiam. O Irã sassânida e o Império Romano Oriental davam continuidade a seu nome. Para as tribos do interior árabe, a rivalidade greco-iraniana que grassava em ambas as extremidades de sua península apresentava oportunidades de enriquecimento, influência e migração antes imaginadas apenas pelas mais sagazes entre elas. Claro que migração para as beiradas da Jordânia, da Palestina e da Síria, onde os clãs árabes assimilavam as culturas mais sofisticadas, já ocorria havia séculos. Os sarakenoi, como os gregos chamavam “o povo das barracas” (Saraceni em latim), em épocas mais recentes começaram a exercer maior pressão contra as fronteiras de ambos os impérios. Ataques de beduínos a caravanas e razzias em busca de escravos e pilhagem tinham se acelerado durante o governo de Justiniano. E, em mais uma de suas decisões sempre cheias de princípios, mas de estratégia questionável, Justino II tinha colocado fim ao fornecimento de dinheiro de proteção dos beduínos, o que foi uma provocação. Mas nada fazia com que o sistema militar romano ou iraniano sentisse necessidade de invadir a Arábia propriamente dita, uma massa de areia que tem quase o tamanho de um terço da Europa, em que algumas regiões só viam chuva a cada dez anos e passavam meses e meses assando sob temperaturas de 50oC. Incômodo crescente, os árabes ainda eram considerados um povo atrasado que mal entrava no campo de visão periférico das superpotências, apesar de os mercadores gregos e os importadores persas terem se tornado menos avessos aos riscos de conseguir um bom lucro nas duas pontas da faixa de areia árabe de 1.500 quilômetros de extensão. Os árabes do Hejaz e do vasto Najd observavam enquanto as guerras “por procuração” se desenrolavam a todo vapor a norte e a leste da península, e os conflitos ao sul respingavam para o norte do Iêmen como tinta
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em papel mata-borrão. Os romanos tinham apelidado o Iêmen de Arabia felix (“Arábia feliz”) em virtude de sua topografia aluvial e suas extensões de terra irrigadas pela chuva. Depois de unificado por um Estado árabe poderoso e governado por um rei hebreu conhecido pelos árabes como Dhu Nuwas (“o homem com os cachos pendentes”), o Iêmen foi parcialmente conquistado em 525 EC por um exército etíope do reino de Axum, a casa de força cristã no Chifre da África. Yusuf As ‘as era o nome do homem “com os cachos pendentes” em hebraico. Ele era o herdeiro da dinastia judaica fundadora do grande reino himiarita do Iêmen, que os etíopes axumitas invadiram e subjugaram. Segundo a lenda, Yusuf As ‘as cavalgou em direção ao mar Vermelho, em um ato suicida, depois de perder seu reino. Com seu desaparecimento, um capítulo curioso da dominação judaicoárabe se concluiu no sul da Arábia. Cinquenta anos depois, incentivado pela promessa de Justino II de dinheiro e mão de obra, o vice-rei etíope do Iêmen sentiu-se forte o bastante para expandir seu controle sobre o sul da Arábia. Judeus iemenitas e xeques locais, que tinham atritos com os etíopes monofisistas e lembravam-se da era dourada do homem dos “cachos pendentes”, enviaram apelos urgentes a Ctesifonte, para que agisse antes que fosse tarde demais.35 A guerra chegou aos próprios portões de Meca em 570. O vice-rei etíope, Abraha, aproximou-se com um grande exército e elefantes de guerra, animais nunca antes vistos no deserto. Para plantar o cristianismo bem fundo no solo do Iêmen, os etíopes tinham construído uma igreja grande em San’a, hoje a capital do Iêmen. A intenção era que a igreja se transformasse em grande centro de peregrinação, uma fonte de renda que não sofreria concorrência de Meca. O povo de Meca estremecia atrás de suas frágeis fortificações de varas enquanto as nuvens de areia no deserto marcavam o avanço da hoste etíope com sua cacofonia apavorante. Aquele dia se fixou permanentemente na memória racial e religiosa da Arábia, por meio de uma frase alusiva ao “povo do elefante” que se inscreveu no Corão. Para os árabes, Meca tinha sido poupada de maneira milagrosa, alguns dizem, por um bando de pássaros que a atacou. Na realidade, os habitantes de Meca devem sua sorte à chegada repentina de uma expedição naval sassânida, despachada por Khosrau I para colocar em xeque-mate o poder greco-romano no golfo de Áden. As forças iranianas cercaram os etíopes rapida-
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mente, que fugiram para Axum pelo mar Vermelho. O Iêmen foi anexado à grandiosa aliança sassânida. Sessenta anos no futuro, grande significado seria atribuído ao fato de que o Ano do Elefante, 570, fosse considerado exatamente o ano do nascimento de Muhammad ibn ‘Abd Allah (o Profeta Maomé) em Meca. Para Edward Gibbon, o animador de torcida do Ocidente, 570 EC representou mais um conjunto de oportunidades perdidas na história. “Se uma potência cristã tivesse sido mantida na Arábia”, refletiu ele, “Maomé teria sido esmagado no próprio berço e a Abissínia teria impedido uma revolução que mudou o estado civil e religioso do mundo”.36 Os estremecimentos políticos, comerciais e religiosos incutidos à Arábia pelas superpotências foram repentinos, acentuados e sem precedentes por sua força. Os elefantes etíopes nos portões de Meca eram praticamente alucinações aparentes da geopolítica das superpotências. Quando a guerra surgiu mais uma vez, em 571, Irã e Roma tentavam fazer com que o jogo chegasse ao fim por meio de batalhas “por procuração” por todo o Crescente Fértil. Esse tipo de cálculo não era exatamente novo. No auge do século, Constantinopla e Ctesifonte tinham criado os reinos lakhmida e gassânida, havia muito esquecidos. O reino lakhmida, uma invenção sassânida que se estendia do golfo Pérsico ao Iraque, era governado pelo Banu37 Lakhm, um clã árabe que lutou mais ou menos ao lado dos iranianos contra os greco-romanos por três gerações. O reino gassânida, uma criação grecoromana governada pelo clã nômade Banu Ghassan, estendia-se ao longo da parte superior da Arábia, do Sinai à interseção do território lakhmida com o que é hoje a Jordânia, o Iraque e a Síria. Os imperadores desconfiavam que seus potentados gassânidas fizessem conluios com os iranianos e que tivessem convicções monofisistas genuínas, o que era quase intolerável. Na primeira década do século VII, Constantinopla pôs fim à liderança gassânida, de modo que vários xeques gassânidas debandaram para o lado do Irã. O reino gassânida, potência considerável que bloqueava o avanço das tribos famintas do Hejaz, quase se desintegrou.38 A lealdade dos governantes do reino lakhmida também começou a ser questionada pelos senhores persas, e o desfecho não intencional foi similar. As consequências foram, em última instância, desastrosas para os Impérios Sassânida e Romano Oriental, e libertadoras para os árabes da península. Por meio de suas próprias ações, os gregos e os iranianos abriram um canal irrestrito até a Síria para os árabes do deserto.
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povo que logo começou a circular por esses canais abertos, criados sem intenção nenhuma pelos greco-romanos e iranianos, vinha da principal cidade do Hejaz. Meca era uma potência econômica. Era a pedra-ímã do al-jahiliyya (“o tempo antes do Islã”), o magneto que atraía milhares de peregrinos do oásis do deserto para a circulação perene e hipnotizante ao redor da Caaba, o altar em formato cúbico que abriga “o grande meteoro negro”. A cidade comercial era dominada pelos coraixitas, a tribo mais poderosa do implacável Hejaz. Qurayza significava “tubarão”, epônimo que, acredita-se, tenha como origem o peixe adotado muito antes como símbolo tribal. Os coraixitas eram tão numerosos que uma pessoa de fora talvez se perguntaria quem não era membro da tribo. Numerosos, sim, mas com toda a certeza nem todos eram iguais. No topo da escala social coraixita estavam clãs imperiosos como a família Umayya (omíadas) ou o clã ‘Abd Shams, a cada ano mais ricos e mais oligopolistas. Eles e seus confederados tinham aprimorado muito a prática mundana de comprar barato para vender caro. Eles acumulavam capital e vendiam cotas de especulação. Desenvolveram procedimentos gerenciais que racionalizaram as operações das caravanas, contratando agentes e escolta armada confiável, além de montar caravançarás bem equipados ao longo das rotas. Otimizaram as vantagens dos cruzamentos na geografia e dos bens imóveis religiosos com um toque de vingança. Esse era um clã que funcionava como cartel comercial, algo novo no âmbito dos negócios de Meca. O surgimento do cartel não tinha sido muito bem aceito pela grosseira simplicidade igualitária que caracterizara a vida árabe, mesmo em Meca, Taif, Iatribe e em outras cidades de bom tamanho, isso sem mencionar sua antítese à democracia do deserto. Desestabilizante e estimulante, a guerra contínua significava comércio e negociações para os Umayya, bem capitalizados e espertos. À medida que o século VII foi se desenrolando, o aumento dos lucros do comércio das caravanas e a renda da antiga tradição das peregrinações à Caaba aceleraram a erosão do equilíbrio social de Meca, criando um ambiente em que a divisão entre os abastados e os depauperados tornou-se tão acentuada quanto o contorno em que a
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luz encontra a sombra da palmeira. Mal se enxergava a mística Caaba por cima das rodas apertadas de barracas e quiosques. A troca e compra de bens e serviços ao redor do local santo até incluía comércio sexual lascivo e animado. A população da cidade sofreu um crescimento súbito, atraindo pessoas aventureiras, inescrupulosas e desafortunadas, que remodelaram e complicaram a paisagem social.39 Muitos dos primeiros crentes do Islã viriam dos pobres e dependentes da cidade, cada vez mais alienados pelo dinheiro novo e a ostentação que o acompanhava entre os coraixitas. Essas pessoas eram as mais marginalizadas, que encontravam conforto na nova mensagem de igualdade em uma nova comunidade de crentes, um ummah de solidariedade e compaixão que acolhia até mesmo os escravos. Dizer, como uma autoridade da época fez, que o Islã “se desenvolveu como resposta ao problema resultante da prosperidade comercial em Meca” parece um tanto fácil demais, mas há muita verdade nisso. Fendas ao longo das linhas de classe causaram inquietação considerável em diversas cidades de caravanas no Hejaz e em outros lugares — em Iatribe e Taif, por exemplo — bem quando a agitação social de Meca começou a se aproximar de seu auge, no fim do século VI. A prosperidade sem precedentes fazia com que a pobreza contumaz parecesse uma miséria cruel e desmerecida — e por acaso essas duas coisas não constituem a condição específica que causou guerras ferrenhas e calamidades? O século se prestou a uma sensação generalizada de “final dos tempos”. Pregadores e videntes, hanifs e kahins, floresceram entre os árabes. Entre os judeus, uma data certa — 4291 no calendário hebreu e 531-32 no cristão — foi fixada (revisada, se necessário) para a chegada do Messias. “Quando se virem reinos lutando entre si”, homens cultos anunciaram entre os judeus, “procurem então os passos do Messias”.40 A certeza escatológica parecia corroborar com a guerra, a fome e a peste que assolavam o Oriente Médio. Parece claro que o século VI foi um daqueles períodos vibrantes, assim como o X, com presságios milenaristas, uma era de expectativas importantíssimas. Algumas das deidades exóticas do Crescente Fértil infiltraram-se até mesmo nas areias do Hejaz. Nestorianos não eram totalmente desconhecidos ali. Templos do fogo zoroastrista queimavam na extremidade nordeste do deserto, em Basra. Abraão e Moisés eram reverenciados em assentamentos de oásis como Khaybar, não tão distantes de Iatribe. Tribos
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de árabes cristãos viviam ao norte. Mani, o aristocrata persa do século III, cujos ensinamentos por pouco não se tornaram a religião oficial do Império Sassânida, deixou de herança ao Oriente Médio um julgamento de presciência surpreendente. “Sabedoria e boas obras têm sido transmitidas em sucessão perfeita de era a era pelos mensageiros de Deus”, disse ele a seus contemporâneos. “Vieram em uma era por meio do profeta chamado Buda na região da Índia, em outra por meio de Zoroastro no território da Pérsia e ainda em outra por meio de Jesus nas terras do Ocidente.” Mani tinha certeza de que essa revelação “constituía uma grande sabedoria tal como não tinha existido em gerações anteriores”. 41 O próximo mensageiro estava prestes a receber uma revelação desse tipo em uma caverna na encosta de uma montanha perto de Meca. No cenário mais amplo da história, na época, Maomé e seu novo credo eram encarnações do clímax mesopotâmico e da nova economia do Hejaz.