Revista Amazônia Viva ed. 70 / junho de 2017

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REVISTA ENCARTADA NO JORNAL O LIBERAL. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE.

JUNHO 2O17 | EDIÇÃO NO 70 ANO 6 | ISSN 2237-2962

DO AÇAÍ SE APROVEITA ATÉ O

CAROÇO

De móveis reciclados ao tratamento contra o câncer, pesquisadores paraenses encontram alternativas para a destinação final dos resíduos do fruto amazônico, quase sempre descartados a céu aberto no Estado

SAÚDE

Indústria farmacêutica não dá atenção às doenças negligenciadas na Amazônia

CLIMA

Saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris pode ter impactos negativos no Brasil

ARTE

O cantor e compositor Vital Lima fala do seu amor à música em 40 anos de carreira




EDITORIAL

PUBLICAÇÃO MENSAL DELTA PUBLICIDADE - RM GRAPH EDITORA JUNHO 2017 / EDIÇÃO Nº 70 ANO 6 ISSN 2237-2962 Presidente LUCIDÉA BATISTA MAIORANA Presidente Executivo ROMULO MAIORANA JR. Diretor Jurídico RONALDO MAIORANA Diretora Administrativa ROSÂNGELA MAIORANA KZAM Diretora Comercial ROSEMARY MAIORANA NAILANA THIELY

As propriedades físicas e químicas do caroço do açaí despertam a atenção dos pesquisadores da Amazônia

Potencial do caroço do açaí

FELIPE JORGE DE MELO Editor-chefe

Fruto importante para a economia e cultura do Pará, o açaí é um dos alimentos mais consumidos no Estado. Apreciado à moda tradicional, em forma de bebida com farinha d’água, de tapioca e açúcar, ou de maneira “diferentona” aos olhos dos paraenses, quando misturado a produtos como granola, chia, banana e aveia, o açaí já se popularizou na mesa de todas as classes sociais, também fazendo parte de receitas de doces, sorvetes, cremes, pratos sofisticados e até hambúrgueres. Mas, por trás do prazer que o hábito de beber açaí proporciona, existe um problema de ordem pública e ambiental: a destinação final das sementes do fruto, descartadas a céu aberto após a extração da polpa para consumo. Toneladas de caroços são despejadas diariamente em terrenos baldios, nas esquinas das ruas, à beira dos canais ou queimados de forma irregular, gerando, ain-

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SEMENTE VERSÁTIL

da, a poluição do ar. Sem uma coleta pública eficaz voltada para esse tipo de situação, as montanhas de caroços se tornam um problema socioambiental presente no Estado. No entanto, como sempre há uma luz no fim do túnel, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento estão se interessando em encontrar solução para o acúmulo desses resíduos no meio ambiente. E o que antes era lixo agora se torna matéria-prima para novos produtos e até mesmo princípio ativo para o tratamento de doenças. Dessas pesquisas com os caroços de açaí já surgiram projetos de móveis reciclados para as escolas, a produção de carvão vegetal para substituir o carvão mineral na indústria e a aplicação experimental de antioxidantes do extrato das sementes no combate o câncer. Iniciativas que mostram o potencial ainda a ser explorado do soberano açaí.

Diretor Industrial JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO Diretor JOSÉ LUIZ SÁ PEREIRA Conselho editorial RONALDO MAIORANA JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO LÁZARO MORAES REDAÇÃO Jornalista responsável e editor-chefe FELIPE JORGE DE MELO (SRTE-PA 1769) Coordenação geral LUCIANA SARMANHO Editor de arte FILIPE ALVES SANCHES (SRTE-PA 2196) Pesquisador e consultor técnico INOCÊNCIO GORAYEB Colaboraram para esta edição O Liberal, Agência Pará de Notícias, Agência Brasil, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado do Pará, Fundação Cultural do Pará Oficinas do Curro Velho, Embrapa (acervo); Alinne Morais, Ana Laura Carvalho, Ana Paula Mesquita, Carlos Henrique Gondim, Fernanda Martins, Natália Mello, Victor Furtado (reportagem); Fabrício Queiroz (produção); Everaldo Nascimento, Fernando Sette, Tarso Sarraf, Nailana Thiely (fotos); Anderson Araújo, Inocêncio Gorayeb e Thiago Almeida Barros (artigos) André Abreu, J.Bosco, Jocelyn Alencar e Leonardo Nunes (ilustrações); Alexsandro Santos (tratamento de imagem). FOTO DA CAPA Caroços de açaí, por Nailana Thiely AMAZÔNIA VIVA é editada por Delta Publicidade/ RM Graph Ltda. CNPJ (MF) 03.547.690/0001-91. Nire: 15.2.007.1152-3 Inscrição estadual: 158.028-9. Avenida Romulo Maiorana, 2473, Marco - Belém - Pará.

amazoniaviva@orm.com.br

PRODUÇÃO

REALIZAÇÃO


NESTA EDIÇÃO

EDIÇÃO Nº 70 / ANO 6

NAILANA THIELY

32

JUNHO2017

Caroço no laboratório A semente do açaí é objeto de estudo de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento na Amazônia CAPA

ARQUIVO PESSOAL

WIKIMEDIA

EVERALDO NASCIMENTO

SAN MARCELO

28

E MAIS

20

SAÚDE A coordenadora do Pro-

48 40 MÚSICA

O cantor e compositor

IMAGENS

grama de Pós-Graduação

CLIMA

Fotos enviadas pelos

em Saúde na Amazônia da

A decisão de Donald Trump canções eternizadas no

leitores e profissionais co-

UFPA, Marília Brasil Xavier,

de retirar os Estados

repertório paraense,

laboradores da Amazônia

fala sobre as doenças ne-

Unidos do Acordo de Paris,

como “Círios” e “Flor do

Viva mostram a beleza

gligenciadas na Amazônia

tratado acerca do clima

Destino”. Ele completa

amazônica na relação

e que precisam da aten-

global com vários países,

40 anos de carreira com

entre o ser humano e a

ção do poder público e da

incluindo o Brasil, pode se

uma produção vigorosa

natureza.

indústria farmacêutica.

refletir na Amazônia.

ao lado de amigos.

OLHARES NATIVOS

ENTREVISTA

OPINIÃO

PAPO DE ARTISTA

Vital Lima é autor de

4 6 7 11 13 14 15 16 17 18 19 19 44 54 55 57 58

EDITORIAl AS MAIS CURTIDAS PRIMEIRO FOCO TRÊS QUESTÕES ELES SE ACHAM FATO REGISTRADO PERGUNTA-SE EU DISSE APPLICATIVOS CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE DESENHOS NATURALISTAS CONCEITOS AMAZÔNICOS SUSTENTABILIDADE AGENDA FAÇA VOCÊ MESMO BOA HISTÓRIA NOVOS CAMINHOS

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ASMAISCURTIDAS DESTAQUES DAS EDIÇÕES ANTERIORES

FERNANDO SETTE

PANCs Achei muito interessante a entrevista com o pesquisador Sebastião Ribeiro Xavier Júnior sobre PANCs - Plantas Alimentícias Não Convencionais (“Plantas amazônicas são pouco estudadas”, Entrevista, maio de 2017, edição nº 69). A revista Amazônia Viva poderia abordar mais o tema em suas edições. Laura Santos Belém-Pará O poder das plantas amazônicas se expressa não somente no campo da medicina popular,

NA RUA, NA CHUVA, EM BELÉM...

mas também na gastronomia, como se viu em

A foto do solitário cachorro andando na chuva foi a mais curtida no Instagram da revista na edição passada. Clique do fotógrafo Fernando Sette.

recente matéria publicada nesta excelente revista. Maria do Carmo Cabral CHRIS MUENZER / WIKIMEDIA

Belém-Pará

HEMOPA Parabéns à reportagem “Alerta Vermelho” (Capa, maio de 2017, edição nº 69) sobre a necessidade das doações de sangue para o Hemopa. Matéria sensível com a causa, sem deixar de ser informativo e imparcial. Sem contar que as fotos mostraram um Hemopa que eu não conhecia. Aníbal Leão Belém-Pará É sempre oportuno falar de ação e solidarieNA TORCIDA PELO PEIXE-BOI

A matéria sobre os peixes-bois que deixaram a lista das espécies em perigo de extinção foi a mais curtida e compartilhada em nosso Facebook, em maio.

dade e a matéria sobre a necessidade de abastecer o banco de sangue do Hemopa constantemente nos convida a sermos mais solícitos com nossa própria gente. Eu já sou doador e busco sempre arregimentar mais voluntários para o Hemopa.

TARSO SARRAF

Maycon José Belém-Pará

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para o endereço: Avenida Romulo USE UM LEITOR DE QR CODE PARA ACESSAR A EDIÇÃO DIGITAL DE MAIO

Maiorana, 2473, Marco, Belém - Pará, CEP 66 093-000 ou FAX: 3216-1143.


TEXTOS VICTOR FURTADO E ALINNE MORAIS

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PRIMEIROFOCO

O QUE É NOTÍCIA NA AMAZÔNIA

Unidades de Conservação em risco MEDIDAS PROVISÓRIAS DO GOVERNO FEDERAL REDUZEM DRASTICAMENTE ÁREAS, COMO A FLONA DO JAMANXIM, NO SUDOESTE PARAENSE, ONDE A BIODIVERSIDADE ESTÁ PROTEGIDA POR LEI. PÁGINA 8 E 9

SAÚDE

PROTEÇÃO

Sequenciamento genético do caramujo do gênero Biomphalaria pode ajudar na erradicação da esquistossomose, a “barriga d’água”. PÁG.11

O Parque Estadual do Utinga será o novo lar de 13 ararajubas. No local, elas passarão por tratamento antes de voltar à natureza. PÁG.12

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PRIMEIRO FOCO

FLORESTAS EM PERIGO NA AMAZÔNIA Quatro unidades de conservação (UCs), no sudoeste do Pará, estão ameaçadas por decisões do governo federal e do Congresso Nacional: Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, Parque Nacional (Parna) do Jamanxim - são duas unidades diferentes com nomes parecidos -, Reserva Biológica (Rebio) Nascentes de Serra do Cachimbo e Floresta Nacional (Flona) de Itaituba II. Quase 1,2 milhão de hectares serão retirados dessas unidades para se tornarem áreas de preservação ambiental (APA). Uma nota técnica do Instituto Socioambiental (ISA) critica as mudanças, acompanhando as críticas do próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA). Apesar do nome, as APAs não garantem a mesma proteção às áreas verdes que uma unidade de conservação. As áreas de preservação podem, com algumas regras, serem privatizadas, regularizadas, vendidas, desmatadas em formato de “corte-raso” e serem exploradas em diversas atividades econômicas. Algumas delas costumam demandar muito espaço e devastar bastante, com ações da agropecuária, projetos de mineração e usinas hidrelétricas. Essa é uma das preocupações do ISA descritas na nota técnica. Essas mudanças foram propostas nas medidas provisórias 756 e 758, ambas aprovadas em dezembro de 2016, com redações alteradas pelos projetos de lei de conversão (PLV) 4 e 5, ambos deste ano. Os textos também cancelam a ampliação do Parna Rio Novo. A MP 756 ainda afeta uma UC de Santa Catarina, o Parque Nacional São Joaquim, que pode ter 10,4 mil hectares

(aproximadamente 20% do território atual) transformados numa APA também. A UC também terá um novo nome: Parna da Serra Catarinense. As UCs no Pará estão ao longo da BR-163. Foram projetos criados como compensação pela construção da rodovia federal e impactos causados pelo trânsito de veículos. Eram parte do chamado “BR-163 Sustentável”. A única unidade mais antiga é a Flona de Itaituba II, criada em 1998. Com a fiscalização insuficiente, desigualdades sociais, conflitos fundiários e política de segurança pública mais repressiva e remediadora que preventiva, essas UCs sofrem com os mesmos problemas que muitas terras paraenses. Por exemplo: conflitos agrários, grilagem de terras, desmatamento ilegal, tráfico de terras e exploração indevida de minérios e madeira. Entre 2008 e 2016, a Polícia Federal fez várias operações de combate às irregularidades e crimes ambientais nas UCs, como a “Boi Pirata”, a “Rios Voadores” e a “Castanheira”. Ou seja, essas unidades de conservação, teoricamente protegidas no papel, na prática, já são muito prejudicadas. O Parna do Jamanxim foi criado em 2006, com um território de 859 mil hectares. Em 2016, o território foi ampliado para 910 mil hectares, através da MP 758/2016. A proposta do PLV 5 é de que o parque tenha o total de 515 mil. É quase a metade a menos. Nas áreas que podem ser convertidas, há 52 cadastros de propriedades, 356 projetos de mineração e previsão de quatro empreendimento hidrelétricos. A proposta é que sejam criadas as APAs Rio Branco e Carapuça. A Flona do Trairão receberá 71 mil hectares,

VERDE PRA QUE TE QUERO Conheça as características das Unidades de Conservação ameaçadas pelas medidas provisórias do governo federal

Parna do Jamanxim Criação: 2006 Território: 859 mil hectares Como fica com as MPs e PLVs: 515 mil hectares Novas áreas: APA Rio Branco, APA Carapuça e Flona do Trairão Dados das futuras APAs: quatro propriedades e dois processos minerários na APA Rio Branco ; 30 propriedades e um processo minerário na APA Carapuça

Flona de Itaituba II Criação: 1998 Território: 412 mil hectares Como fica com as MPs e PLVs: 243 mil hectares Nova área: APA Trairão Dados da futura APA: três propriedades, 18 processos minerário sobre a APA Trairão

Flona do Jamanxim Criação: 2006 Território: 1,3 milhão de hectares. Como fica com as MPs e PLVs: 815 mil hectares Nova área: APA Jamanxim, com 486 mil hectares Dados da futura APA: 179 propriedades, 85 processos minerários

Rebio Nascentes de Serra do Cachimbo Criação: 2009 Território: 342 mil hectares. Como ficará com as MPs e PLVs: 164 mil hectares Nova área: APA Vale do XV Dados da futura APA: 32 registros de propriedades, 17 processos minerários

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IMAGENS: PUBLICDOMAINPICTURES.NET


O TAMANHO DO PROBLEMA 1,2 milhão

de hectares desprotegidos

O Projeto de Lei de Conversão 4 propõe que 486 mil hectares da Floresta Nacional do Jamanxim sejam destinados à criação da Área de Proteção Ambiental Jamanxim. A área total da floresta, hoje, é de quase 1,3 milhão de hectares e passaria a ter 815 mil hectares.

mas esses continuarão protegidos. Toda a UC conecta as bacias do Tapajós e do Xingu, que Unidades de Conservação também estão ameaçadas. paraenses alteradas Dos 412 mil hectares da Flona de Itaituba II, 169 mil serão destinados à criação da APA do desmatamento ilegal Trairão. O ISA aponta uma na Amazônia estão nessas áreas questão ainda mais sensível: o PLV 5 cria um conflito com a sobreposição da terra sobre a terra indígena da tribo Sawré do desmatamento recente foi na Muybu, do povo Munduruku. Flona do Jamanxim O PLV 4 propõe que 486 mil hectares da Flona Jamanxim sejam destinados à criação da APA Jamanxim. A área total da área original da Rebio Nascentes de da floresta, hoje, é de quase 1,3 Serra do Cachimbo milhão de hectares e passaria a serão perdidos. O maior impacto proporcional ter 815 mil hectares. Nas áreas que se pretende alterar, há 338 cadastros de propriedades, 355 processos minerários e três pepropriedades beneficiadas quenas hidrelétricas operando. Contudo, há o projeto para mais uma hidrelétrica. processos minerários beneficiados Em torno de 68% do desmatamento recente em UCs da Amazônia, como aponta o hectares seriam suficientes para regularização Ministério do Meio Ambiente das terras na Flona do Jamanxim, ao invés de 486 (MMA), ocorreu na região onde mil hectares, que acabarão beneficiando não só se propõem as mudanças por proprietários antigos, mas grileiros recentes. PLVs. Do total, 38% foi na Flona do Jamanxim. A floresta foi a do território da futura APA Rio Branco mais desmatada do País, entre (Parna do Jamanxim) está íntegro 2012 e 2015, chegando a perder

Quatro

68,48% 38%

52%

458 713

90 mil

100%

FONTES: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL E MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE

AGÊNCIA PARÁ

REDUÇÃO DA FLORESTA

9,2 mil hectares de floresta em apenas um ano. Criada em 2009, a Rebio Nascentes de Serra do Cachimbo tinha 342 mil hectares. Com a criação da APA Vale do XV, perderá 178 mil hectares. O PLV 4 prevê a alteração de reserva biológica para parque nacional. Em termos de proteção, não há alteração significativa, pois a área continua pública e protegida. No entanto, pode abrir brechas para PLVs futuros que retirem mais espaço do eventual Parna Nascentes de Serra do Cachimbo. Na área constam 68 registros de propriedades. Há dois projetos de mineração que incidem sobre a área de onde será a APA Vale do XV. Já existem duas pequenas hidrelétricas em operação. Na avaliação do ISA, a criação dessas APAs apenas legitima crimes ambientais e ocupação ilegal de terras; beneficia agentes financeiros de interesse de pessoas no governo federal e no Congresso; potencializa conflitos agrários; e reforça atividades de exploração ilegal, como garimpos e fazendas, onde hoje se concentram muitos trabalhadores em condições análogas à escravidão. JUNHO DE 2017

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DAVI ALVES / AGÊNCIA PARÁ

PRIMEIRO FOCO

Uma potoca sobre a Amazônia RESPIRAR É PRECISO

O oxigênio produzido pelas árvores na Amazônia ajuda a suprir o próprio ecossistema na região, sobrando quase nada para o restante do planeta

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Na edição anterior, trouxemos a brincadeira das nove verdades e uma mentira sobre a Amazônia. Como prometido, eis a resposta: a Amazônia como “pulmão do mundo” é uma das maiores falácias da história. Mas calma. Ainda tem muito a se explicar sobre isso. O papel do pulmão no corpo humano, para que se entenda onde está o erro, é levar oxigênio ao sangue e eliminar o dióxido de carbono. Quando vegetais consomem gás carbônico e produzem oxigênio, através da fotossíntese, é como se o mundo fosse o sangue e recebesse o oxigênio. Por isso, as JUNHO DE 2017

plantas são tão importantes para o planeta. Porém, o oxigênio produzido pelas árvores amazônicas é quase o suficiente para o próprio ecossistema. Quase. O que não quer dizer que a Amazônia não contribua com a geração de oxigênio para o mundo. Apenas não sobra tanto quanto se pensa. Vale lembrar ainda que se a Amazônia consome quase todo o oxigênio produzido, é para manter o ecossistema com a maior biodiversidade da Terra. Por sinal, esse era um dos papos de rocha da brincadeira da edição de maio.

Qualquer alteração na quantidade de áreas verdes pode significar mudanças drásticas para várias espécies de seres vivos. Em torno de 55% do oxigênio do mundo vem das algas, que também fazem fotossíntese, consomem dióxido de carbono e liberam o gás vital. Logo, por analogia, os oceanos é que deveriam ser chamados de “pulmão do mundo”. Contudo, isso não anula a necessidade de preservar as florestas, que hoje abrigam 70% das espécies vivas da Terra. Na natureza, tudo tem um papel para o equilíbrio global.


TRÊSQUESTÕES

SEQUENCIAMENTO GENÉTICO

DNA do caramujo pode erradicar a esquistossomose

Sobre os resíduos sólidos na região O tratamento do lixo na Amazônia é deficitário. É o que aponta o pesquisador Paulo Pinho, no

forma, os mecanismos de resistência do caramujo ao parasita podem ser explorados geneticamente graças às informações geradas pelo trabalho”, explica ele. O trabalho “Análise do genoma do caramujo de água doce Biomphalaria que transmite a esquistossomose” foi publicado na revista Nature. A pesquisa durou quase uma década para ser concluída. Durante a coleta de dados, os pesquisadores isolaram um caramujo encontrado em Minas Gerais como base para o estudo. A expectativa dos pesquisadores é que as informações descobertas possam ajudar a erradicar a esquistossomose até 2025, ano que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estipulou para eliminar a doença do mundo. Segundo a OMS, mais de 240 milhões de pessoas estão infectadas pela doença e outras 700 milhões vivem em áreas de risco.

livro “A Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos na Amazônia Brasileira”, recém-lançado. Para ele, entre as principais falhas do tratamento do lixo estão a falta de coleta de seletiva e desleixo com lixo eletrônico. Por fim, a ineficácia ou inexistência de educação ambiental.

ARQUIVO PESSOAL

Para combater a esquistossomose, doença parasitária transmitida pelo caramujo Biomphalaria (foto abaixo), cientistas do mundo inteiro, incluindo brasileiros, se reuniram para realizar um estudo sobre o sequenciamento do DNA do caramujo transmissor da doença. Durante a pesquisa, foi descoberto que o genoma do animal é similar ao humano. O sequenciamento levantou ainda informações de base que podem permitir o bloqueio do parasita Schistosoma mansoni, causador da doença. Segundo Guilherme Oliveira, biologista molecular, pesquisador do Instituto Tecnológico Vale (ITV) de Belém e um dos coautores do trabalho, os resultados do estudo foram muito importantes para ajudar no combate a doença. “Um exemplo do estudo é que moléculas quimiorreceptoras que o caramujo usa para se deslocar no ambiente podem ser bloqueadas e inviabilizar a sua sobrevivência. Da mesma

RESPOSTAS QUE VÃO DIRETO AO PONTO

Quais as principais falhas do tratamento de resíduos sólidos na Amazônia? É um processo no qual o tratamento é uma das etapas. A principal falha no processo é a falta de prioridades das lideranças políticas. Nenhum problema de ordem pública será resolvido se não for uma decisão política e pública. Em relação ao tratamento, aponto a ausência de planos de gestão, que adotem tratamentos adequados para nossa realidade. Qual o papel da população no agravamento e solução do problema? A população não é chamada para discutir as questões públicas. E aí não se sente corresponsável. O entrave principal é que ela não sabe das suas responsabilidades na gestão dos resíduos. A população deve discutir e apontar caminhos de uma forma transparente, ajudando a resolver os problemas. Quais experiências, com base em outros países, pode ser aplicado na região? Tive a oportunidade de visitar 45 países e morei em três deles. A lição principal é que não podemos importar soluções prontas. Primeiro, precisamos envolver a população. Segundo, capacitar os recursos humanos responsáveis pela gestão dos resíduos sólidos, principalmente técnicos municipais. Finalmente, elaborar planos de gestão de resíduos sólidos, como diREPRODUÇÃO

minuir consumo, aumentar o reaproveitamento de recicláveis e destinação correta de resíduos.

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M

R

U o N o R


PRIMEIRO FOCO

CHRIS MUENZER / WIKIMEDIA

BATOM

FEITO DE BACURI Pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) desenvolveram um batom com gordura do bacuri, fruta típica da Amazônia. O produto foi apresentado na FCE Cosmetique, evento de tecnologia para a indústria cosmética na América Latina, em São Paulo. Com o batom, os pesquisadores querem estimular o desenvolvimento e o consumo de produtos ecologicamente corretos.

ANINGA

CONTRA O AEDES Para combater o mosquito Aedes aegypti, Cristine Amarante, pesquisadora da Coordenação de Ciências da Terra e Ecologia do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), desenvolveu um larvicida e repelente à base da planta aninga, encontrada em igapós da Amazônia. O experimento científico teve como base o conhecimento dos ribeirinhos, que apontavam uma possível ação repelente da planta em relação ao mosquito.

FEBRE AMARELA

RISCO AOS MACACOS O surto de febre amarela silvestre no Brasil vem atingindo diversas regiões onde vivem alguns dos primatas mais ameaçados de extinção. Segundo especialistas, a expansão da doença pode acelerar o desaparecimento dessas espécies em um curto período de tempo. Até agora, de acordo com o Ministério da Saúde, quase 5,5 mil macacos morreram por suspeita de febre amarela desde o início do surto.

ISOPRENO

FLORESTA Medições aéreas feitas no espaço da campanha científica Green Ocean Amazon Experiment (GOAmazon) revelaram que a floresta amazônica emite pelo menos três vezes mais isopreno do que estimavam os cientistas. Segundo eles, a substância química interfere no balanço de gases de efeito estufa na atmosfera.A descoberta, de acordo com eles, explica uma série de questões antes não compreendidas na floresta. 12 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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FAUNA

Parque do Utinga será novo lar de ararajubas O Parque Estadual do Utinga será o novo lar de 13 ararajubas, ave de médio porte considerada vulnerável de extinção. O local será usado para recuperação dos animais antes que eles sejam soltos na natureza, além de ajudar na preservação da espécie. Os novos moradores devem chegar ao parque ainda neste mês. Para receber essa população, o lugar está sendo adaptado com viveiros de reabilitação. Por causa da sua beleza, a ave é alvo comum de caçadores. Os esforços de conservação do animal no Parque Estadual do Utinga são para garantir a continuidade da espécie, que já não era mais encontrada na natureza da Região Metropolitana de Belém. Por meio do programa de recuperação, feito pelo Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-bio) e a Fundação Lymington,

de São Paulo, as ararajubas devem ser reintroduzidas em seu habitat. O Parque do Utinga deve ser o primeiro local a receber as aves. As ararajubas vão permanecer no lar temporário por quatro meses. Durante esse período elas serão cuidadas por especialistas para que se adaptem ao meio onde serão soltas. Para a reintrodução na natureza as aves devem estar em boas condições de saúde, com bom desempenho de voo e capazes de se alimentarem sozinhas. Após a soltura, começará a segunda etapa do projeto: o monitoramento que irá acompanhar e avaliar a sobrevivência dos pássaros ao seu novo habitat. Esta etapa deve durar cerca de um ano. Se o projeto for concluído com sucesso, os especialistas afirmam que em breve os céus de Belém vão ganhar um colorido adicional com as ararajubas.


CESAR FAVACHO

CELSO LOBO / DIVULGAÇÃO

ELESSEACHAM POR QUE MIMETISMO É UMA COISA NATURAL

MOSTRA

Só na redinha...

O registro do rio Caruparu, em Santa Izabel do Pará, feito pelas lentes do paraense Celso Lobo, foi destaque no “II Salão de Arte Brasileira”. A mostra foi realizada em Liechtenstein, um principado localizado no centro da Europa que fica entre a Áustria e a Suíça. A exposição apresentou ao público do exterior uma parte das belezas da Amazônia por meio do trabalho do fotógrafo. Esta é a segunda vez que Celso leva registros feitos em solo paraense para o exterior. Em outubro do ano passado, ele teve suas imagens incluídas na exposição “Alvorecer no Atalaia no Carrossel do Louvre”, na França. Para Celso Lobo, o II Salão de Arte Brasileira é muito importante para divulgar as belezas do Pará e da Amazônia além de ajudar a fomentar o turismo da região Norte.

Não é um paneiro ou um matapi feito de talas de guarimã. Trata-se do casulo de uma espécie de mariposa, Urodus sp., da família Urodidae, um dos mais bonitos e interessantes da ordem Lepidoptera. As larvas das espécies dessa família, quando estão no último estágio, constroem cestos pendurados em uma folha e depois empupam dentro deles. Nesses espaços sofrem a metamorfose e depois de alguns dias a mariposa adulta eclode e sai pela abertura no final do cesto, que tem o objetivo de proteger a pupa, que é inativa, do ataque de predadores e parasitas, além de parecer com uma teia de aranha. As espécies de Urodidae que constroem os cestos geralmente habitam regiões com clima muito chuvoso e quente, como o da Amazônia. O casulo telado permite que a água escorra e não encha o local, o que afogaria a pupa, pois ela respira o oxigênio do ar através de pequenos espiráculos nos segmentos do corpo. A pupa também não corre o risco de sofrer com o calor excessivo porque sempre está aerada. O longo cordão que pendura o cesto ajuda a proteger a pupa do ataque de formigas e é provável que a teia tenha cerdas ou substâncias urticantes. A natureza é surpreendente e essa é uma evolução de caracteres e comportamento bemsucedida. Isso possibilita que os demais exemplares da espécie se desenvolvem promovendo a passagem entre gerações por milhares de anos em ambiente relativamente hostil e perigoso. Por INOCÊNCIO GORAYEB

Fotógrafo leva imagens da Amazônia para Europa O fotógrafo conta ainda que, em contato com Maria dos Anjos, curadora do Salão, ele foi convidado a enviar cinco fotografias e a do rio Caraparu foi escolhida. Ele acredita que o registro foi selecionado pela sua singularidade e pela beleza da paisagem que é mostrada na foto. “Acredito que pelo tema do evento e pela singularidade que entrega ao olhar de quem é de fora e não tem essa vivência de cruzar rios e igapós em uma canoa”, diz. A exposição aconteceu em Vaduz, capital de Liechtenstein, um dos menores, porém mais ricos países do mundo. Além do fotógrafo Celso Lobo, o francês Bruno Pellerin, que reside em Belém, também levou a fotografia amazônica ao salão. Ao todo, 60 artistas, entre fotógrafos, pintores e escultores, participaram da mostra.

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• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 13


FATO REGISTRADO

Galpão de peões TEXTO E FOTO INOCÊNCIO GORAYEB

As décadas de 60, 70 e 80 foram marcadas pelos grandes projetos que se instalaram na região amazônica. Entre eles estão a construção de usinas hidrelétricas como Tucuruí e Balbina, os projetos de exploração mineral como Carajás, Trombetas e Albras/Alunorte, além de monoculturas para produção de celulose de papel como a Jari Florestal e a abertura de grandes estradas como a Transamazônica. Esses projetos faziam parte de políticas do governo federal para o desenvolvimento e integração da Amazônia. Também atendiam a indústria de alumínio gerada pelas jazidas de bauxita e por outros interesses de grandes grupos. Todos eles prometiam grandes benefícios econômicos e desenvolvimento para região com abertura de milhares de empregos e de cadeias produtivas baseadas na exploração e be14 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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neficiamento dos recursos naturais. Promoveram grande migração de pessoas vindas de todos os estados do Brasil e causaram grandes impactos sociais e ambientais na região. O início destes grandes projetos sempre atraíram trabalhadores para os ofícios mais pesados de abertura e desbravamento dos ambientes florestados e desabitados para montagem das infraestruturas básicas. Geralmente não existiam serviços públicos mínimos para atender as pessoas, como moradia e hospedagem dignas, serviços de saúde, de polícia, saneamento e educação para os que vieram. Nas primeiras fases outros profissionais mais especializados foram, na maioria, trazidos de fora e os benefícios de emprego não foram alcançados como anunciava a política de “desenvolvimento”. Nas fases subsequentes um nú-

mero elevado de pessoas foram demitidas e ficavam fora dos muros dos projetos, desempregados e em condições difíceis de vida, criando cidades que foram chamadas de beiradões, à modelo do projeto Jarí. Aos poucos, o sonho foi se acabando. A construção da UHE-Tucuruí, por exemplo, quebrou todos os recordes mundiais de terraplenagem. Foram exigidos 50.223.188 m³ de escavações, 41.600.000 m³ de aterro e 6.000.000 m³ de concreto. A foto apresentada acima mostra aqueles tempos e ilustra as condições que os “peões” eram mantidos em galpões abertos ao lado das matas, cobertos com telhados de alumínio ou de fibrocimento, sem forro. Os problemas com as altas temperaturas, com o ataque de insetos e transmissores de doenças, com as condições de saneamento e com outros fatores certamente foram muitos.


PERGUNTA-SE É PRECISO ESCLARECER MITOS E VERDADES

REDUÇÃO

Brasil perde 20% dos manguezais em 17 anos O Brasil perdeu 20% da área de manguezais em 17 anos. Boa parte do ecossistema foi destruído pela expansão urbana. Os dados são da segunda coleção de mapas do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil (MapBiomas), feito pelo Observatório do Clima em colaboração com 18 instituições. A pesquisa mostra que, no Paraná, os manguezais diminuíram 23%. Na Bahia, a redução foi 21%, enquanto em Alagoas foi de 14%. Essa diminuição da área de mangue é ligada a uma série de fatores, mas, de acordo com os pesquisadores, a expansão urbana se destaca. “Principalmente ocupação imobiliária, tanto causada pelo crescimento do turismo, a instalação de novos resorts, hotéis, pousadas como também pela ocupação das comuni-

Comer muito à noite provoca pesadelos? Esse é um conceito difundido, principalmente, na TV. Muitos filmes, novelas e séries abordam a questão. No entanto, trata-se apenas de mito. A professora Tayana Vago, do curso de Nutrição da Faculdade Maurício de Nassau, observa que há relação entre a comida e a qualidade do sono. Quanto a dar os bons sonhos ou os piores pesadelos não há qualquer ligação. “Não há evidências científicas a respeito dessa relação. Comer muito próximo do horário de dormir ou comer e deitar logo em seguida pode refletir em desconforto gastrointestinal ou comprometimento do processo digestivo”, explica Tayana. Claro que quanto mais tarde, mais lento será o metabolismo. E quanto mais comida, ou mais pesada for a carga de alimento, mais difícil será a digestão. O corpo vai demorar mais a descansar de fato e o cérebro ficará processando ainda muitas informações: desde o prazer da comida até a digestão em si. Por fim, o ideal é não exagerar na comida antes de dormir e ter um tempo para digerir tudo. Isso garante uma digestão mais adequada e um sono menos agitado.

dades”, explica José Ulisses Santos, analista ambiental e chefe substituto da área de Proteção Ambiental Costa dos Corais de Alagoas e Pernambuco. O mangue contribui para o desenvolvimento de inúmeras espécies marinhas. De acordo com os especialistas, cerca de 70 a 80% dos peixes, crustáceos e moluscos que a população consome precisam do bioma em alguma fase da vida. Sem o mangue, eles explicam que várias animais podem sumir. Entre eles está o peixe-boi, que frequenta o mangue pra procriar, se alimentar e beber água doce. “Se não forem tomadas medidas urgentes, essas espécies que vivem diretamente em volta do mangue podem ser totalmente afetadas”, alerta Fernanda Niemeyer, veterinária do Centro de Pesquisas do Nordeste (Cepene).

DAVE DYET / FREEIMAGES

ASCOM / SEMAS

INUNDAÇÃO

AMAZÔNIA Um novo estudo publicado na Science Advance sugere que grande parte da floresta amazônica já foi inundada pelo mar do Caribe. De acordo com os pesquisadores, o fenômeno aconteceu duas vezes e há mais de 10 milhões de anos. Eles explicam que isso possibilitou a criação de um cur to mar interior

MANDE A SUA PERGUNTA Envie perguntas instigantes sobre hábitos, costumes e fenômenos da região amazônica para o e-mail: amazoniaviva@orm.com.br

que impulsionou a evolução de novas espécies. JUNHO DE 2017

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EU DISSE

“O preconceito mais difícil de lidar é com o velado. O escancarado já está ali, o velado vem fantasiado de ‘tá tudo bem, é só uma brincadeira’.” Karol Conka, cantora, em entrevista a Pedro Bial, sobre as formas de preconceito que ainda permeiam a sociedade. DIVULGAÇÃO

“O Brasil tem algo meio desafinado, e isso também faz parte do seu encanto” Caetano Veloso, em entrevista ao El País, sobre a situação nacional política e economia.

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“A mensagem é simples: o trem da sustentabilidade deixou a estação. Entre nele ou fique para trás.” António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre a participação dos países nos acordos climáticos.

“Estou seguro que nosso tempo será lembrado como uma era de mimados e ressentidos” Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha e comentarista da Cultura, sobre a sociedade atual.


APPLICATIVOS BOAS IDEIAS NUM TOQUE DE DEDOS

“É preciso lutar para que o sistema democrático se aprimore e para que os escândalos de corrupção sejam esclarecidos” Tite, técnico da seleção brasileira, sobre o atual cenário político do Brasil. DIVULGAÇÃO

RESPONSA O usuário pode encontrar locais, iniciativas e grupos que adotam e fomentam práticas de responsabilidade na produção e consumo. Economia solidária, consumo responsável, agroecologia, co-

“Nunca vim à Amazônia. Fiquei em êxtase assim que cheguei. O céu reflete no rio, parece um mar. A natureza aqui é mais forte que qualquer outra coisa” Isis Valverde, atriz sobre a experiência de passar uns dias na região amazônica, onde esteve para gravar a novela “A Força do Querer”.

operativas de trabalho, feiras orgânicas e hortas comunitárias são algumas das iniciativas que o app permite interagir coletivamente. Gratuito para Android.

MUDAMOS + App gratuito para iOS e Android que traz uma “caixa de ferramentas” criada para entender, participar e construir soluções de forma democrática sobre a política brasileira. Há propostas de projetos de leis, acompanhamento de projetos no setor legislativo, monitoramento de recursos. O objetivo dos desenvolvedores é criar um debate informado e transparente com a participação de pessoas de vários setores da sociedade.

PROTEJA BRASIL Feito para facilitar denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Nesse app, gratuito para Android e iOS, é possível obter telefones e endereços de delegacias, conselhos tutelares e outras instituições do sistema de garantia de direitos próximos nas capitais brasileiras. Para os usuários que estão fora das capitais e no exterior do país, são oferecidas informações sobre como denunciar casos como, por exemplo, por meio das embaixadas brasileiras. FONTES: PLAY STORE E ITUNES

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CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE

O galo-da-serra TEXTO E FOTO FERNANDO CARVALHO

Apesar do nome, o galo-da-serra (Rupicola rupicola) não é parente dos galos. Ele é mais próximo de aves conhecidas como araponga, anambé e capitão-do-mato, que fazem parte da família Cotingidae. A ave possui esse nome porque apresenta uma crista de penas. Os machos são predominantemente alaranjados e muito atraentes visualmente. As fêmeas, por outro lado, são marrons. Esta é uma das espécies preferidas dos observadores de aves e fotógrafos, que vêm de todas as partes do mundo para a Amazônia em busca do galo-da-serra. Um dos locais mais visitados pelos que buscam essa ave é o município de Presidente Figueiredo, no Amazonas. Por isso, na sede do lugar existem vários espaços com pinturas sobre a ave. No local há ainda um grande monumento na praça central dedicado a espécie. 18 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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A espécie pode ser encontrada do extremo norte do Brasil, em lugares como Amazonas, Pará e Roraima, até as regiões sul e sudoeste da Guiana e sul da Venezuela, além do Suriname, Guiana Francesa e leste da Colômbia. A ave chega a medir até 28 centímetros de comprimento e habita as florestas escarpadas entrecortadas por igarapés e pequenos cursos d´água. O ritual para a escolha dos pares é um espetáculo extraordinário. Na época reprodutiva os machos se agregam. As arenas, local onde eles se apresentam, são compostas por pequenas clareiras que são abertas involuntariamente por esses animais durante as exibições individuais. Os machos descem para as clareiras onde são feitos os cortejos. Não ocorre exibição de mais de uma ave ao mesmo tempo. As fêmeas aparecem de surpresa e a presença delas determina o ritmo de

atividade dos machos. O macho que se apresenta, salta alternadamente em círculo, em sentido horário, emitindo fortes chamados e exibe as penas da cauda para a fêmea que o assiste. Quando ela “simpatiza” com o macho que se exibe, rapidamente desce até a clareira e é copulada por ele em fração de segundos. A dieta do galo-da-serra é principalmente a base de frutas, mas inclui insetos e pequenos vertebrados, principalmente na alimentação dos filhotes no ninho. Os predadores naturais da ave são diversas espécies de gaviões, onças-pintadas, suçuaranas, jaguatiricas, jiboias e o próprio homem. A espécie é alvo fácil de predadores terrestres quando está no solo da mata cortejando fêmeas. Já predadores aéreos, como os gaviões, costumam atacá-la nas imediações das arenas.


DESENHOS NATURALISTAS

CONCEITOSAMAZÔNICOS O VOCABULÁRIO REGIONAL É UM PATRIMÔNIO

Muyrakytãs e a origem asiática João Barbosa Rodrigues foi um engenheiro naturalista e botânico brasileiro. Em 1889, escreveu o livro “O Muyrakytã. Estudo da origem asiática da civilização do Amazonas dos tempos pré-históricos”. Na obra, ele trata os Muy ra k y tãs como amuletos asiáticos deixados em solo americano por imigrantes, subjugados e aprisionados pelos povos Káras, que conquistaram o Novo Mundo. João Barbosa diz que suas pesquisas se passaram em uma época que ninguém no Brasil conhecia arque olog ic a mente o muyrakytã, ou suspeitava que no País houvesse jade, ou ainda que as “pedras das Amazonas fossem oriundas da Ásia, como base para propor que a origem das civilizações amazônicas foram de povos asiáticos.” Ele publicou vários artigos sobre sua teoria desde 1872, como no Jornal do Commercio. O estudioso informou ainda que o muyrak y tã é um amuleto ou talismã feito de uma rocha duríssima, a nefrite.

Dizem que no passado, no lago Yacyuaruã, as amazonas se reuniam em certas épocas do ano, em determinadas fases da lua, e depois de dias de observação faziam uma festa dedicada a ela. No fim da festa, quando as águas estavam límpidas, todas as amazonas se lançavam ao lago e iam ao fundo receber das mãos da mãe dos muyrakytãs os mesmos objetos com as formas que desejavam. Eles eram moles, mas em contato com o ar endureciam. Rodrigues constatou que as propriedades dos muyrakytãs são as mesmas do amuleto asiático; que sua origem é descon hecida na Amazônia; e, que as fábulas filiam-se a Ásia. As rochas de onde se originam o amuleto não existem na Amazônia, no Brasil e na América do Sul. As únicas figuras apresentadas em seu livro são de outro amuleto que se pendura no pescoço, feito de argila. As figuras que o ornamentam são simbólicas da cultura asiática, pintado em branco e preto representando os princípios do Yang e do Yin. Por INOCÊNCIO GORAYEB

Coque Coque são termos conhecidos nos dicionários referente a um tipo de penteado muito popular que pode criar um visual sofisticado ou apenas ser uma opção para os dias mais quentes. O penteado ainda é prático para evitar com que os cabelos fiquem esvoaçando. É arrumado com o cabelo atrás da cabeça, enrolado em espiral e preso com grampos, elásticos ou rede de tecido telado. Existem vários tipos de coques, como coque versátil, lateral, bagunçado e outros. Os coques podem ser valorizados com presilhas, pedrarias, tiaras metálicas, dreads de lã, fitas e outros enfeites. Em Mineralogia, o coque é um tipo de combustível derivado da hulha, uma substância dura acinzentada obtida quando o carvão betuminoso é aquecido em forno fechado. Ela contém em torno de 80% a 90% de carbono e é dura e porosa. Entretanto, na região amazônica, o termo coque é um golpe aplicado na cabeça de alguém com os nós dos dedos, entre falanges. O termo também é conhecido como cascudo, carolo ou cocorote. Esse ato, no passado, foi muito aplicado para punir as crianças nas escolas, mas atualmente é um crime de agressão física inaceitável. Por INOCÊNCIO GORAYEB

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OLHARES NATIVOS

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Caminhos de capoeira e matagais Os caminhos do amazônida sempre passam por vastas capoeiras. Muitas são as matas que aliviam o calor do Sol na faixa equatorial da região. O caboclo passa pelas trilhas todos os dias, às vezes acompanhado de um parceiro fiel nos matagais rurais. FOTO: FERNANDO SETTE JUNHO DE 2017

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OLHARES NATIVOS

Pai Francisco ou Amo?

“Mamãe, este é o Pai Francisco ou o Amo do Boi Bumbá? Não, filho, acho que é o Pajé, porque ele carrega este chapéu bem enfeitado colorido de penas e missangas. Ele vai comandando tudo e é acompanhado pelos índios, índias e caboclos. Esse boi é meu, mamãe?” FOTO: SAN MARCELO

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Tambor aberto

Cadê o miolo? Tá dançando. Esse é o boi. O miolo tá dentro dele. Esse boi dança bonito, mas é por causa dos músicos que engatam esse ritmo forte, batido no tambor aberto, com um contra tempo que sacode a gente. FOTO: SAN MARCELO

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OLHARES NATIVOS

Orla de Icoaraci

Na baía as paisagens são belas nas margens do Guajará, com céu de um azul aguado salpicado de nuvens esparsas, cúmulos e nimbos matizados pelos raios dourados do crepúsculo vespertino. As matas contornam o cenário calmo de águas barrentas prateadas. Calma, preguiçosa, pensativa essa paisagem. FOTO: JAQUELINE MESQUITA

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Rasgam o tapete verde

As plantas aquáticas da beira dos rios e lagos formam bancos flutuantes que se espraiam na superfície, aproveitando a energia solar. O verde domina, mas aqui e acolá algumas flores rasgam o tapete e complementam a beleza da paisagem. FOTO: SUZETE MONTALVÃO

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OLHARES NATIVOS

Paneiro no Ver-o-Peso

Apesar dos avanços tecnológicos de beneficiamento de derivados do petróleo, no Pará, ainda são utilizadas as fibras e tecidos vegetais. Lindos paneiros e rasas são utilizados para o transporte e acondicionamento de produtos da fauna e da flora, e emprestam um pouquinho de seu cheiro de mato. Isso mantém aquele charme das cidades ribeirinhas, caboclas e florestais. FOTO: BRUNO CARACHESTI

Envie as suas fotos para a seção Olhares Nativos 26 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Para participar da seção “Olhares Nativos” da revista Amazônia Viva basta enviar fotos com temática amazônica para o e-mail amazoniaviva@orm.com.br acompanhadas pelo nome completo do autor, número de identidade e uma breve informação sobre o contexto do registro fotográfico. As imagens devem ser autorais e com resolução de no mínimo 300 dpi. A publicação das fotos tem fins meramente de divulgação de trabalhos profissionais ou amadores, não implicando em qualquer tipo de remuneração aos autores. Participe!


OPINIÃO, IDENTIDADE, INICIATIVAS E SOLUÇÕES NAILANA THIELY

IDEIASVERDES

Carvão de açaí

CAROÇO DO FRUTO AMAZÔNICO É CONVERTIDO EM OUTROS PRODUTOS DE FORMA SUSTENTÁVEL

PÁGINA 32

SAÚDE

CLIMA

A médica Marília Brasil Xavier comenta sobre a atenção necessária e urgente sobre as doenças negligenciadas na Amazônia. PÁG.28

Decisão do presidente dos EUA, Donald Trump, de retirar seu país do Acordo de Paris pode impactar negativamente regiões, como a Amazônia. PÁG.40


ENTREVISTA

E

xistem no Brasil – e, em especial, na Amazônia – um rol de doenças que recebem pouca atenção por parte da indústria farmacêutica, por um motivo cruel, que segue a lógica do mercado: os remédios para estas enfermidades dão pouco lucro aos laboratórios. Elas são chamadas de “doenças negligenciadas” e ocorrem em regiões pobres do mundo todo. Trabalhando há mais de 30 anos no estudo dessas enfermidades, a médica Marília Brasil Xavier conhece bem essa realidade. Especialista em dermatologia, infectologia e saúde coletiva, com doutorado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), ela coordena o Programa de Pós-Graduação em Saúde na Amazônia, oferecido pelo Núcleo de Medicina Tropical da UFPA, em parceria com a Universidade do Estado do Pará (Uepa), além de lecionar na graduação, mestrado e doutorado nas duas instituições. Na entrevista a seguir, Marília Brasil Xavier detalha quais são essas doenças negligenciadas, suas características e o que precisa ser feito para combatê-las. 28 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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“Temos uma população invisível na Amazônia” COORDENADORA DO NÚCLEO DE MEDICINA TROPICAL DA UFPA, A MÉDICA MARÍLIA BRASIL XAVIER CHAMA A ATENÇÃO PARA AS DOENÇAS NEGLIGENCIADAS NA AMAZÔNIA, QUE PRECISAM DE INVESTIMENTOS URGENTES DO PODER PÚBLICO E DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA TEXTO CARLOS HENRIQUE GONDIM FOTO EVERALDO NASCIMENTO


DOSE DE BOM SENSO

O que são as doenças negligenciadas? Hoje a gente trabalha com um conceito de territorialidade, mas elas continuam com um ponto em comum: são doenças da pobreza, em que as pessoas são invisíveis. No Brasil, nós temos as nossas prioridades em relação às doenças negligenciadas, que são dengue, doença de Chagas, esquistossomose, febre amarela, hanseníase, hantavirose, leishmaniose, malária, raiva, tracoma e tuberculose. Algumas doenças estão emergindo e em determinadas áreas também se tornam negligenciadas. Existem outras classificações, no Brasil, que incluem as hepatites, por exemplo. São doenças que assumem uma característica especial conforme o Estado do nosso país. São doenças que se a gente tivesse um investimento maior na pesquisa de medicamentos, diagnósticos e de gestão pública, nós poderíamos controlá-las. Como surgiu esse conceito? O conceito de doenças negligencia-

RODRIGO VALLADARES / FREEIMAGES

O Brasil, principalmente a Amazônia, carece de medicamentos para tratar doenças, como a febre amarela, que só possui vacina. Poder público e indústria farmacêutica precisam negociar a produção de remédios no país.

das começou na década de 1970, com a Fundação Rockfeller, nos Estados Unidos. Ela observou que havia doenças globais com pouco investimento em pesquisa biomédica para o tratamento e diagnóstico delas. Eles consideraram doenças que tinham prevalência no mundo todo e tinham essa carência de pesquisa. Esse foi o conceito inicial. A partir dessa ideia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se uniu à própria fundação e à Medicina Sem Fronteiras para combater essas doenças. Aí, acabou tomando uma dimensão maior. Eles foram consideradas doenças que eram negligenciadas pela indústria farmacêutica e observou-se que elas se distribuíam nas regiões mais carentes do mundo, em países que não estavam desenvolvidos ou estavam em desenvolvimento. E, no final, observou-se então que são doenças resultantes da pobreza. Então, o conceito foi evoluindo. Antes a gente achava que essas doenças poderiam ser definidas para o mundo todo. Mas foi se observando que cada país tem as suas próprias doenças negligenciadas.

“A indústria farmacêutica não quer pesquisar medicamentos para essas doenças, porque não é rentável. A indústria não investe nessas doenças. Elas têm um ponto em comum que é a pobreza.”

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ENTREVISTA

Quais são as principais falhas no combate a essas doenças? São três. A primeira é considerada falha de ciência. Quando você não tem o conhecimento suficiente para combatê-las, um exame para fazer um diagnóstico, um remédio eficiente para combater. Existe outra falha que é a de mercado: existe o medicamento, existe vacina, mas o custo deles é muito alto e não chega à população que precisa. Ou pode ser o contrário: a indústria farmacêutica não quer mais produzir porque é muito barato para ela. Isso aconteceu com alguns remédios, como a anfotericina B, que é um remédio que a gente usava para leishmaniose e que estava em falta. E outra falha grave é a falha de saúde pública. Muitas vezes você tem o conhecimento, tem o medicamento, que nem é caro, mas a gestão da saúde pública faz com que a população não tenha acesso. Então, algumas populações são excluídas desse processo? Se nós formos considerar o caso da Amazônia, nós temos uma população invisível aqui, que é a população do campesinato. Não só a população indígena, mas também os não indígenas, que se distribuem ao longo dos rios da Amazônia, os afrodescendentes e aqueles que estão no processo de migração interna. Essas populações têm dificuldade de ter acesso à saúde. Se não tiver uma gestão eficiente, voltada para programas específicos dessas doenças, que já têm medicamento e o diagnóstico, nós vamos ter altos coeficientes de incidência dessas doenças, como é o caso da hanseníase. Nós precisamos sanar as falhas de gestão no nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Nós temos muitos desafios. A Amazônia, nessa sua diversidade ambiental, cultural, socioeconômica, é muito complexa para lidar com a saúde, tanto no âmbito da pesquisa, quanto da assistência e da educação. Como combater essas falhas? Falha de ciência você tem que combater com pesquisa, em instituições, em universidades, em institutos de pesquisa. Falha de 30 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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APOSTAR NA CIÊNCIA

A médica Marília Brasil Xavier afirma que as falhas na produção de Ciência devem ser combatidas com investimentos em pesquisas


mercado tem que combater negociando. Se o país tem uma indústria farmacêutica que não quer produzir remédio para uma doença negligenciada, o próprio Estado tem que negociar com ela, porque é de interesse da saúde pública. Ou então como o Brasil fez, que foi uma coisa boa em determinadas doenças. Nós temos alguns medicamentos e vacinas que são produzidos na Fiocruz, em Manguinhos (RJ), para combater a história de depender da indústria farmacêutica. Esse é um exemplo positivo. Mas nós temos falta de muitos outros medicamentos que precisam ser negociados com a indústria farmacêutica. Por que os grandes laboratórios não investem em pesquisa para essas doenças? A indústria farmacêutica não quer pesquisar medicamentos para essas doenças, porque não é rentável. A indústria não investe nessas doenças. Elas têm um ponto em comum que é a pobreza. É impressionante quando você faz uma comparação entre o que ela produz de medicamentos para o câncer, que tem um investimento muito alto, inclusive no que a gente chama de cosmecêutica, como filtro solar, mas medicamentos para determinadas doenças têm menos investimento para a pesquisa. Por isso que elas têm esse nome. O meio ambiente também exerce influência na ocorrência dessas doenças negligenciadas? Sim, ao lado disso, tem a questão do meio ambiente. A gente costuma chamar de ecologia da saúde. É uma visão ecológica expandida que a gente precisa ter, tanto de meio ambiente natural quanto na inserção social desses indivíduos. Por exemplo, nós fizemos uma pesquisa sobre a correlação entre o índice pluviométrico, o desmatamento e os casos de leishmaniose. E apresentou uma correlação positiva. A doença ocorre mais conforme o período do ano em que mais chove. As mudanças climáticas favorecem o desenvolvimento dos vetores. Por exemplo, doenças que são transmitidas por mosquitos. A gente percebe também que essas populações que estão próximas a áreas de desmatamento são mais vulneráveis. Nós somos um povo da floresta - não uma população urbana. Temos um cenário em que precisa ter o desenvolvimento de uma pesquisa diferenciada e integrada ao sistema de saúde.

“Nós somos um povo da floresta - não uma população urbana. Temos um cenário em que precisa ter o desenvolvimento de uma pesquisa diferenciada e integrada ao sistema de saúde.” Todas essas doenças têm cura? Todas, não. Nem todas têm medicamento. Hanseníase, leishmaniose e tuberculose têm medicamento. Às vezes, a disponibilidade deles é relativa, de vez em quando tem uma falta, mas no geral está disponível. Mas febre amarela, por exemplo, não tem um medicamento para tratamento. É um vírus que não tem como tratar. A gente tem vacina. Dengue também, nós temos as medidas gerais. O paciente recebe medicação de suporte geral. Mas se ela for grave, dependendo do tipo de vírus, tem gente que morre. A gente luta para combater de diversas maneiras. Mas ainda falta investimento para o tratamento das doenças negligenciadas. O mundo poderia pesquisar mais essas doenças e quem sabe nós teríamos o medicamento. Mas o mundo não se interessa, porque elas acometem os pobres. É uma questão financeira. Três bilhões de pessoas no mundo vivem com menos de 2 dólares por dia [menos de R$ 200,00 por mês]. Você consegue imaginar isso? Eles são invisíveis. Do que eles adoecem? É uma questão muito séria. JUNHO DE 2017

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CAPA

NOVO USO

Caroços de açaí que vão para a lata do lixo podem ser convertido de forma sustentável em novos produtos

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Caroço de açaí

RENOVADO PESQUISAS MOSTRAM COMO OS RESÍDUOS DO FRUTO AMAZÔNICO PODEM SER REAPROVEITADOS PELA INDÚSTRIA E EVITAR A POLUIÇÃO DO AMBIENTE TEXTO FERNANDA MARTINS FOTOS NAILANA THIELY

O

s olhos do paraense brilham diante de uma tigela de açaí. Com farinha, peixe frito ou açúcar, ele está na base da alimentação e da cultura local. Porém, a paixão pela polpa do fruto deixa para o poder público e população um problema complexo: as toneladas de caroços, rejeitos do açaí após extração do sumo. Há alguns anos, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento tomaram para si a missão de dar destino proveitoso ao caroço do açaí. De produção de energia limpa a tratamento contra o câncer, passando pela aplicação do rejeito da fabricação de móveis, o potencial da semente faz jus à importância do fruto para a Amazônia. O cenário chega a ser tradicional em Belém. Um breve passeio pelos bairros periféricos da capital revela a dimensão do problema. São montanhas de caroços abandonados à beira de ca-

nais ou dividindo espaço com pedestres pelas calçadas. Graças à abundância de chuvas, muitas chegam a germinar, tornando-se pequenas palmeiras antes de serem fi nalmente retiradas das ruas. A Associação de Batedores de Açaí de Belém estima que existem cerca de dez mil pontos de venda de açaí na Região Metropolitana. A geração diária de caroços chega a expressivas 16 toneladas diariamente. Esses dados levam em conta apenas o consumo em Belém e municípios vizinhos. No Estado inteiro os números sobem para milhares de toneladas ao ano. A nova Política de Resíduos Sólidos desobrigou as prefeituras de fazerem a coleta dos caroços, transferindo a responsabilidade do despejo aos batedores, que muitas vezes encontram dificuldades para dar uma destinação correta ao resíduo. MAIO DE 2017

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Para tentar mudar esse cenário, pesquisadores da Universidade do Estado do Pará (Uepa) buscam alternativas no aproveitamento do caroço do açaí. Uma delas realizada no Laboratório de Madeiras do Centro de Ciências Naturais e Tecnologia (CCNT) e concluída em março deste ano pelas engenheiras florestais Ana Cláudia Batista e Elienara Rodrigues. Orientadas pelo professor doutor em Engenharia de Recursos Naturais Marcelo Raiol a dupla estudou a produção de carvão vegetal de caroço de açaí, utilizando um forno em formato de iglu. “As propriedades termofísicas do carvão vegetal são diferenciadas quando produzidas nesse tipo de forno. O teor de materiais voláteis, de cinzas, de carbono fixo e o teor calorífico apresentam vantagens, o que significa que o carvão de açaí tem qualidade superior aos demais”, observa Elienara. Quando se tem um teor de cinzas menor, o carvão é mais indicado para uso doméstico, industrial e até para a redução do ferro-gusa, matéria-prima do aço. “O minério de ferro é um óxido e precisa ter esse oxigênio retirado para que possa ser beneficiado. O carvão vegetal se coloca em posição de vantagem sobre o mineral por não possuir enxofre. Ao mesmo tempo que faz a redução do minério de ferro, esse carvão também vai produzir energia, o que lhe confere uma ampla gama de aplicações”, acrescenta o professor Raiol. A substituição do carvão mineral, combustível fóssil e finito, é outro objetivo da indústria da mineração. O forno tipo iglu foi escolhido não apenas por ter uma queima mais eficiente, mas também seria de fácil reprodução para interessados em investir no carvão de caroço de açaí. “A construção de um forno iglu é relativamente fácil e requer apenas tijolos e cimento, sendo seu formato geométri34 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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co o responsável por essa queima mais eficiente. A pesquisa feita utilizando um forno acessível se aproxima muito mais da aplicação prática”, avalia Raiol. O alto rendimento do caroço enquanto matéria-prima para carvão também foi observado na pesquisa. “Tivemos a redução de cerca de 20% da massa após a queima, o que revela o resíduo como matéria bastante promissora para esse fim”, comenta Ana Cláudia. Isso significa que as emissões de gases – entre eles a água evaporada – são menores se comparadas a outros tipos de carvão vegetal, além de ter uma queima mais rápida em relação ao principal concorrente. “O eucalipto, por exemplo, é queimado em troncos inteiros. Logo, o caroço, que é bem menor, apresenta um processo com tempo reduzido”, completa. Ainda assim, se aplicado o método científico, as emissões de gases para feitura do carvão de açaí se equiparam às de outros carvões vegetais. Para resolver esse problema, há tecnologia de ponta que pode auxiliar. “Caso se utilize um sistema de lavagem do gás ou de condensação dos fumos, que transformam essas emissões em produtos que podem ser utilizados na indústria farmacêutica. Isso aumenta o custo, mas o carvão pode sim ser produzido de forma verde”, informa o orientador. Originalmente francesa, a técnica já é aplicada em países da Europa. Marcelo Raiol acredita que em no máximo 15 anos será necessário o plantio de espécies exclusivamente para obtenção de carvão vegetal. Neste cenário, o caroço de açaí pode ser um aliado, pois o Pará é produtor, consumidor e exportador nato de açaí. “O consumo de açaí pode responder por uma boa porcentagem de carvão, pois a geração de resíduos é bastante alta. Apesar disso, nem que todo o caroço de açaí paraense virasse carvão, conseguiríamos sustentar, por exemplo, a redução do ferro-gusa em uma planta. Mas seria uma ajuda valiosa”, ressalta Elienara Rodrigues. Em outras palavras, o carvão de açaí teria condições de absorver 100% dos resíduos produzidos no Estado.

A ENERGIA DO CAROÇO

As engenheiras florestais Ana Cláudia Batista e Elienara Rodrigues pesquisam a conversão dos caroços de açaí em carvão vegetal. O aproveitamento das sementes também evita a derrubada e queimada de árvores para a obtenção do carvão.

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Apesar de muito se falar sobre as aplicações industriais do carvão de açaí, o seu uso doméstico também é bastante recomendado, o que transforma a produção em pequena escala do carvão de açaí em um negócio viável. “O próprio batedor pode construir um forno para queimar seus resíduos, aproveitando tudo que o açaí tem para oferecer. O carvão obtido pode ser vendido ou utilizado em quaisquer outras aplicações dentro da propriedade, em substituição a outros tipos de carvão vegetal”, aponta Ana Cláudia Batista. A pesquisa ainda representa os primeiros passos nessa otimização do resíduo, mas já cumpre um de seus objetivos principais. “O despejo do caroço de açaí hoje representa um problema ambiental. O que motivou nossa pesquisa foi conseguir um meio de valorar esse resíduo, para que ele possa ter uma destinação mais adequada e um papel maior na economia do Pará. Ou seja, ele deixa de ser lixo e passa a ser um produto com valor comercial”, diz Elienara Rodrigues.

MÓVEIS RECICLADOS CONSTRUÍDOS COM RESÍDUOS Em Salvaterra, no arquipélago do Marajó, a semente do açaí foi pesquisada sob uma ótica diferente e ganhou outra utilidade. A partir da coleta dos caroços descartados pelos batedores artesanais de açaí do município, a pesquisadora Joseane Gonçalves Rabelo produziu assentos de bancos. A ideia de transformar o resíduo em móveis foi tema do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da egressa de Tecnologia de Alimentos da Uepa. Pouco menos de um quilo do caroço seco e triturado se transforma em um assento de bancos, inicialmente desti36 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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BARATO E SUSTENTÁVEL

A pesquisadora Joseane Gonçalves Rabelo produziu assentos de bancos escolares com caroços descartados pelos batedores artesanais de açaí do município de Salvaterra

nados a escolas públicas rurais do município, frequentadas normalmente por crianças carentes. O trabalho foi orientado pela doutora em Engenharia Agrícola Carmelita de Fátima Amaral Ribeiro, co-orientado por Núbia Santos e auxiliado pelo técnico de laboratório Rosivan Matos. Joseane e Carmelita notaram também em Salvaterra o acúmulo de resíduos gerados pelos batedores artesanais e por não ter nenhum tipo de beneficiamento, os caroços ficam acumulados pelas ruas. “Isso traz poluição. Com o trabalho, a intenção é retirar esses resíduos, que nada mais são do que lixo depositado nas ruas, promovendo mau cheiro, atraindo ratos e gerando uma poluição visual cada vez maior”, diz a orientadora. A produção do móvel se dividiu entra coleta, lavagem e secagem ao Sol dos caroços de açaí, por um período de 25 a 30 dias. Em seguida, o material foi triturado, peneirado, adicionado à cola branca e, posteriormente, colocado em formas e prensado. A prensagem ocorreu no Laboratório de Design do Centro de Ciências Naturais e Tecnologia (CCNT), em Belém. O resultado do processo foi uma chapa de conglomerado, moldada na altura, tamanho e espessura para o assento do banco usado pelas crianças. As pernas foram produzidas a partir da madeira típica da região, a Ananin. O banco foi testado até por adultos, que aprovaram a ideia. Carmelita informa que o material produzido a partir de resíduos agroindustriais de açaí é extremamente resistente. “Eles ficaram prontos em menos de um dia, sendo que tem um tempo a mais de secagem dos materiais para poder montar. O banco mede aproximadamente 40 x 40 cm², já direcionado para as crianças. O material tem flexibilidade, durabilidade e pode ser usado na fabricação de qualquer móvel como mesas, cadeiras, estantes, além JUNHO DE 2017

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de quadros para paredes”, diz a orientadora. Para Joseane Gonçalves, seria um sonho realizado poder produzir o móvel para as crianças em grande escala. Outra utilização que ela prevê para o aglomerado de açaí seria a fabricação de bancos para as praças de Salvaterra. “A maioria dos bancos de concreto nas praças está quebrada, sem falar nos colégios, que muitos não têm. O nosso produto era um que estava no lixo e hoje podemos reaproveitar”, ressalta a pesquisadora.

EXTRATO DO CAROÇO USADO NO COMBATE AO CÂNCER Engana-se quem pensa que o caroço de açaí tem apenas aplicações físicas de sua massa. Os estudantes do último ano de Medicina Vitor Nascimento, Jorge Paixão e Carla Lima decidiram contribuir para a redução do resíduo de forma diferente. Eles testaram a utilização do extrato obtido do caroço do açaí para o tratamento contra o câncer. “Partimos de alguns estudos que apontavam a presença de antioxidantes no extrato em quantidade até superior àquela encontrada na polpa, mas nenhum estudo publicado mostrava aplicação dele. Então, decidimos verificar se este antioxidante conseguiria combater os efeitos neoplásicos em ratos”, resume Jorge. A pesquisa, patrocinada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), começou em 2014, com a professora doutora em Neurociências e Biologia Celular Kátia Kietzer como orientadora. “A ideia de usar o extrato para melhorar o quadro neoplásico em ratos veio da literatura produzida no Laboratório de Morfofisiologia, que trabalha muito com os insumos da Amazônia. A questão da abundância do rejeito foi determinante 38 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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para que escolhêssemos o extrato como tema”, revela Vitor. O extrato do caroço de açaí foi obtido através de uma parceria com o Laboratório de Engenharia Química da Universidade Federal do Pará (UFPA). Após processo de prensagem, chegou-se a um óleo dissolvido em solução alcoólica, com objetivo de preservar suas características. A substância foi então administrada em ratos, por via oral, utilizando a gavagem – método em que o alimento é levado diretamente ao esôfago do animal. “Como o sabor do extrato não é pa-

latável e nós precisávamos controlar a dose ingerida, optamos por essa via de administração”, justifica Carla. Previamente ao início do tratamento, a equipe implantou e cultivou um tumor dentro da barriga de ratos para avaliar os efeitos antineoplásicos do extrato e os dividiu em grupos com e sem a suplementação. “Tivemos o cuidado de criar um tumor (intraperitoneal) forte suficiente, para que a ação do extrato pudesse ser melhor quantificada”, aponta a pesquisadora. O processo inteiro durou um ano.


SAÚDE E MEIO AMBIENTE

Os estudantes de Medicina Vitor Nascimento, Jorge Paixão e Carla Lima pesquisam o uso do extrato do caroço do açaí no tratamento contra o câncer

A análise levou em conta a síndrome caquética – o processo de enfraquecimento do organismo diante da doença, como o emagrecimento excessivo, perda de apetite, entre outros sintomas. Os pesquisadores avaliaram parâmetros bioquímicos nos ratos e o tamanho do tumor. “Na síndrome caquética tem uma coisa que a gente chama de estresse oxidativo, quando as células começam a produzir muitos oxidantes, que são lesivos. Então, nossa proposta era de que os antioxidantes presentes no extrato ajudariam a combater essa reação”, explica Jorge Paixão. A observação dos resultados levou os pesquisadores a conclusões não previstas. “Não encontramos diferenças significativas nos parâmetros bioquímicos e na síndrome caquética em si, mas tivemos uma surpresa ao observarmos a redução na massa tumoral”, diz o pesquisador. “Concluímos que, sob as condições do experimento, que o extrato do caroço teve mais efeito local sobre o tumor do que o efeito sistêmico, que era o esperado diante da análise da literatura”, completa Carla Lima. Trabalho pioneiro com o uso do caroço de açaí, utilizado de forma inédita nessa aplicação, deixou diversas hipóteses a serem exploradas. “Por exemplo, o extrato foi alcoólico. Talvez em outro veículo tivesse outro efeito. É possível ainda que outro meio de aplicação traga novos resultados. Enfim, a nossa pesquisa deixou muitos caminhos que podem ser explorados mais adiante”, pontua Vitor Nascimento. O legado produzido pelos estudantes de Medicina fica para quem prosseguir com esse trabalho. “Nossa contribuição principal foi criar base para outros trabalhos que podem surgir a partir do nosso. O Laboratório de Morfofisiologia possui uma hoje linha de pesquisa na oncologia e na análise de plantas amazônicas. Muita coisa boa ainda pode sair daqui”, conclui Jorge Paixão. JUNHO DE 2017

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OPINIÃO

OPINIÃO

Acordo de Paris: Trump, reações no mundo e na Amazônia

S INOCÊNCIO GORAYEB é mestre e doutor em Entomologia, pós-doutor em sistemática zoológica e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi 40 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

O mundo inteiro está surpreso e discutindo o posicionamento do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar seu país do Acordo de Paris. O documento é um tratado no âmbito da Convenção - Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC - sigla em inglês), que rege medidas de redução de emissão de dióxido de carbono a partir de 2020. O acordo foi negociado durante a COP21, em Paris, e foi aprovado em 12 de dezembro de 2015. O líder da conferência, Laurent Fabius, JUNHO DE 2017

ministro das Relações Exteriores da França, disse que esse plano ambicioso e equilibrado foi um ponto de virada histórica na meta de reduzir o aquecimento global. Alguns problemas decorrentes dessa retirada dos Estados Unidos vêm sendo divulgadas pela imprensa internacional: - Passa a haver um risco real de encorajar todos os outros países a diminuir suas respectivas emissões e romper com o Acordo; - A transição para energias renováveis que estão em franco

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desenvolvimento, como na Alemanha e China, que de modo acelerado vêm diminuindo fortemente os preços, teria uma desaceleração; - Corremos o risco de seguir um caminho diferente. Em vez de trabalhar para alcançar níveis toleráveis de aquecimento global, passamos a buscar níveis perigosos; - Os países que incrementarem suas plataformas energéticas, onde a energia petrolífera continuará dominante, sem controle ou acordo, teriam ganho competitivo em relação aqueles que estiverem investin-


do em mudanças de suas plataformas para energias limpas e renováveis; - Alguns especialistas dizem que a simples retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris pode aumentar em 0,3 graus o aquecimento global, mas especialistas negam isso; - A posição isolacionista dos Estados Unidos abre espaço e criam oportunidades para a liderança da China, tanto nas questões ambientais como em tecnologias de energias renováveis; e a União Europeia e China já estão em reuniões para assumir os espaços deixados pelos norte-americanos. O presidente do Parlamento Europeu, Donald Tusk, explicou que a União Europeia e China reforçam a cooperação em relação ao ambiente e mostram solidariedade com as gerações futuras e responsabilidade em relação a todo o planeta; - O antecessor de Trump, Barack Obama, propôs reduzir as emissões dos Estados Unidos entre 26% e 28% em 2025 em relação aos níveis de 2005. Mas as medidas que pôs em prática para isso já foram suspensas pelo atual presidente, que nestes primeiros meses de mandato assinou 14 ordens executivas destina-

das a desmantelar as propostas de Obama. Trump colocou Scott Pruitt (uma liderança da indústria petrolífera) no comando da influente Agência de Proteção Ambiental. O executivo sempre rejeitou que o homem seja o causador das mudanças climáticas e chegou a processar a agência que agora dirige, seguindo as diretrizes das grandes companhias petrolíferas e elétricas. E recentemente o próprio Trump fez declarações públicas nessa linha de pensamento. Isso tem sido considerado um perigo para o mundo; - O presidente russo, Vladimir Putin, no fórum de São Petersburgo, decidiu valorizar a decisão de Donald Trump. Disse que o Acordo de Paris “ainda não entrou em vigor, que só entrará em 2021”, e garantiu que “ainda temos tempo”. Disse ainda que “se trabalharmos de forma construtiva, podemos chegar a um consenso” e arrematou, em inglês, “don’t worry, be happy” (não se preocupem, sejam felizes). Esse posicionamento aumenta o grau de preocupação, pois a Rússia é um país importante no cenário global, que se alinha ao posicionamento de Trump.

Com o anúncio da retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris várias posições foram divulgadas no sentido de demonstrar que os avanços do Acordo vão continuar apesar da posição de Donald Trump: - Após a decisão polêmica, Trump sugeriu que o tratado climático pudesse ser renegociado incluindo propostas menos ambiciosas. A União Europeia recusou essa perspectiva e insistiu que o Acordo é defi nitivo e que na ausência americana irá lidar diretamente com empresários e governadores para implementar os objetivos do texto; - O comissário europeu para ação climática, o espanhol Miguel Arias Cañete disse: “quando uma nação assina um tratado internacional, precisa cumprir com suas obrigações; não há nada a ser negociado”; - Membros do alto escalão da burocracia europeia sugeriram que vão debater com grandes empresas americanas para cumprir as metas do Acordo de Paris. Empresas como Facebook, Apple, Ford, Microsoft, dentre outras, critica-

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HELY PAMPLONA / ARQUIVO O LIBERAL

TEMPO SECO

Com o enfraquecimento do Acordo de Paris, o aquecimento global ganha força e o aumento da seca em regiões como o Marajó pode ser avassalador


OPINIÃO

OPINIÃO WIKIMEDIA

A FLORESTA EM RISCO

As queimadas e o desmatamento na Amazônia podem chegar a números insustentáveis caso não haja o comprometimento dos governantes com as causas ambientais

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ram a decisão de Trump em demonstração de seu isolamento nacional e global; - A França afirmou que vai dobrar os seus esforços para limitar as emissões de carbono. E seu presidente, recém-eleito, Emmanuel Macron, chamou os jovens de todos os países para irem à França envolver-se em projetos e formação na área de tecnologias de energias renováveis; - O brasileiro Carlos Nobre, pesquisador da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, diz que “China, Japão e Europa não vão perder essa oportunidade de assumir esse enorme vácuo que os Estados Unidos estão deixando com relação a tecnologias limpas; - A ONU foi firme e o secreJUNHO DE 2017

tário geral da entidade, António Gutérres, disse em nota que “continua confiante que cidades, estados e empresas dos Estados Unidos, juntamente com outros países, continuarão a demonstrar visão e liderança, trabalhando para o crescimento econômico resiliente e de baixo carbono que criará empregos de qualidade e mercados para a prosperidade do século XXI”; - Pelo menos quatro estados norte-americanos (Califórnia, Nova York, Oregon e Washington) e cerca de 70 grandes cidades anunciaram que vão ficar fiéis à proposta do Acordo de Paris. As possíveis consequências para a Amazônia da retirada dos

Estados Unidos do Acordo de Paris são comentadas a seguir: - Um grande esforço vem sendo feito, há anos, para diminuir o desmatamento, as queimadas e vários outros crimes ambientais. O resultado desse esforço apareceu nos últimos anos, até 2016, com a diminuição considerável das taxas de desmatamento. Entretanto, a saída dos Estados Unidos do Acordo, pautada pelo discurso retrógrado de Donald Trump, anima os grupos que sempre se beneficiaram desse processo degradante e ilegal. E sabe-se que em todos os lugares onde há comunidades e cidades na Amazônia, a economia, os empregos e as gestões, tanto de empresários como


dos poderes públicos, estão baseados, em certa parte, nesses processos degradantes e ilegais. Os representantes políticos desses grupos têm feito um trabalho forte dentro do Congresso Nacional para diminuir as áreas protegidas para abrir novas frentes de explorações criminosas; esses também são beneficiados, ficando mais fortes com a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris. Muito brevemente podemos ter um grande aumento e novos arcos de desmatamento na Amazônia; - Recursos financeiros de fontes internacionais têm sido captados e aplicados na Amazônia, por ONGs e Instituições de Ensino, Pesquisa e Extensão. Os projetos que são aprovados por estes fundos são direcionados para pesquisas e extensão nas linhas de biodiversidade e conservação. Comunidades tradicionais que mantêm atividades de conservação dos ambientes naturais são apoiadas por estarem conservando as florestas. As pesquisas sobre emissões e as consequências na fauna e flora do aquecimento global também são apoiadas. Esses projetos mantêm um considerável número de empregos diretos e indiretos e promovem um constante processo de Educação Ambiental. Esses recursos certamente serão diminuídos e todos os avanços citados passam a sofrer limitações, prejudicando as pesquisas, as comunidades que prestam serviços ambientais, a infraestrutura física e tecnológica instaladas e os empregos e recursos humanos atuantes; - O intercâmbio intelectual em diversas linhas de Ciência, Tecnologia e Educação tem promovido um grande avanço devido às relações com centros avançados de diversos países. O Brasil e a Amazônia estão bem posicionados nessas relações, mas isso possivelmente será prejudicado e desacelerado em consequência da retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris. O número de jovens em formação em nível de pós-graduação senso stricto, em pós-doutorado e de pesquisadores visitantes trabalhando em parceria com

“O discurso retrógrado de Donald Trump anima os grupos que sempre se beneficiaram do processo degradante e ilegal. E sabe-se que em todos os lugares onde há comunidades e cidades na Amazônia, a economia, os empregos e as gestões, tanto de empresários como dos poderes públicos, estão baseados, em certa parte, nesses processos degradantes e ilegais.” WIKIMEDIA

instituições brasileiras certamente cairá consideravelmente; - O posicionamento de Donald Trump e dos Estados Unidos em relação ao Acordo de Paris, declaração associada à opinião de que o aquecimento global não é causado pelas ações do homem na Terra, e a defesa de plataforma energética baseada no petróleo, sem preocupações e sem controle de diminuição de emissões, atinge a sociedade leiga como um todo. O perigo está na interpretação equivocada e até oportunista e na difusão de que não há consequências sérias em desmatar, queimar; de que não haveria então limites e perigos em explorar os recursos naturais. Consequentemente, os organismos e instâncias de controle ambiental dos poderes públicos e de entidades da sociedade civil terão que fazer um esforço muito maior para controlar as ações degradantes e os crimes ambientais; - Muitos gestores municipais e governadores de estados na Amazônia se posicionaram contra os movimentos de conservação e de controle ambiental, porque eles “estariam atrapalhando a economia local”. A posição de Trump soa como um álibi para que essas posições se justifiquem. - Por onde se anda, nos rios, nas estradas e até nas cidades se faz vista grossa aos crimes ambientais. São poucos os contingentes de profissionais, assim como o orçamento destinados à fiscalização. Tanto a vista grossa deve aumentar, como esses recursos humanos e financeiros devem sofrer contingenciamentos e até cortes em consequência deste momento negativo. Vamos acreditar que o “don’t worry” expressado por Putin seja um indício de que esse posicionamento de Trump seja estratégia momentânea para desviar o foco de outros problemas que ele vem enfrentando. Que muito brevemente ele se recomponha e refaça a posição americana em favor do Acordo de Paris. Mesmo assim as sequelas de sua posição redundarão negativamente em relação aos problemas da natureza. JUNHO DE 2017

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SUSTENTABILIDADE

Um traço da realidade

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hamar a atenção para problemas que são realidade da região amazônica, como desmatamento, acúmulo de lixo, extinção e tráfico de animais, além da poluição dos rios e mares. Esse foi o objetivo do IX Festival Internacional de Humor da Amazônia – Ecologia do Traço, que ocorreu

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durante a XXI Feira Pan-Amazônica do Livro, neste ano. Criado em 2008 pelo cartunista paraense Biratan Porto, o festival se insere no calendário de eventos de humor do Brasil e do mundo. O evento busca estimular e divulgar a produção dos humoristas gráficos, bem como descobrir novos talentos desse

Cartunistas expressam em suas obras a preocupação com os atuais problemas ambientais do planeta TEXTO ANA LAURA CARVALHO

segmento cultural. “Esse festival surgiu para que os cartunistas façam suas críticas a partir do tema Ecologia, que é obrigatório, além da caricatura e cartum livre. Tornou-se um concurso. A cada ano que se passa, a gente se surpreende com a participação de artistas do mundo inteiro”, diz o coordenador do festival.


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o Ho rosa ras l É RIR PARA NÃO CHORAR

Os trabalhos inscritos no IX Festival Internacional de Humor da Amazônia – Ecologia do Traço demonstram a preocupação com o meio ambiente. Os cartuns de Oleksy Kustovsky/ Ucrânia (na página à esquerda), Jota A/ Brasil e Kusat Zaman/ Turquia conquistaram os primeiros lugares no salão paraense

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SUSTENTABILIDADE

HUMOR COM SERIEDADE

Temas como grilagem de terra, subjugação das minorias e aquecimento global são recorrentes nos trabalhos dos cartunistas que buscam despertar a consciência ambiental na sociedade

Neste ano, o salão dispensou uma atenção especial ao tema ecologia, valorizando o talento e o olhar crítico dos cartunistas preocupados com os problemas ligados ao meio ambiente e que afetam o planeta, principalmente a Amazônia. Biratan acredita que, através dos temas, é possível despertar nas pessoas uma reflexão para os problemas ambientais da Amazônia, uma vez que Ecologia se trata das relações entre os seres vivos e o meio ambiente. E essas relações, nos dias atuais, tornaram-se preocupantes. “Os artistas usam desenhos que falam por si. As obras são fáceis de compreender. As críticas aos problemas que nós enfrentamos são nítidas”, explica o coordenador. Vários trabalhos legitimam as ações daqueles que querem ocupar território amazônico unicamente para a exploração, impactando na vegetação, cursos de água, fauna e a população tradicional, indígena e quilombola. Ao mesmo tempo, as obras se utilizam do humor para ressaltar as riquezas e potencialidades presentes no Norte do País. Além da exposição das obras seleciona46 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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das, o salão de humor realizou oficinas sobre cartum e caricatura, além de debates e mesas redondas com artistas convidados, entre eles, Evandro Alves (MG), Lucio Oliveira (PR), André Hippertt (RJ) e Luiz Fernando Carvalho (PA), além do próprio coordenador do evento. Participaram do festival artistas de 42 países, dos continentes europeu, asiático, africano e americano. Foram inscritos um total de 672 trabalhos desenvolvidos em três temas: Ecologia, Cartum Livre e Caricatura. Desse total, 120 foram selecionados pelo júri e estiveram expostos ao público durante os dez dias de realiza-

ção da Feira Pan-Amazônica do Livro. O festival é uma realização da Secretaria de Cultura do Estado (Secult) e Banco da Amazônia. Foram jurados da pré-seleção os cartunistas J.Bosco, Waldez Duarte e André Abreu. O júri de premiação foi composto por André Hippertt (RJ), Biratan Porto (PA), Evandro Alves (MG), Lúcio Oliveira (PR) e Luiz Fernando Carvalho (PA). Os vencedores do IX Festival Internacional de Humor da Amazônia – Ecologia do Traço foram Oleksy Kustovsky, Jota A., Kursat Zaman, DEX, Ulisses, Arashi Foroughi, Santiago e Moro. ARCA DE NOÉ/ EVANDRO ALVES


ARTE, CULTURA E REFLEXÃO ARQUIVO PESSOAL

PENSELIMPO

Cantor do tempo e destino

O MÚSICO VITAL LIMA É AUTOR DE CANÇÕES QUE EXPRESSAM O AMOR DO AMAZÔNIDA POR SUA TERRA PÁGINA 48

FLORA

REDES

O geógrafo e botânico Walter Alberto Egler deixou um vasto trabalho científico sobre as plantas amazônicas. PÁG.52

O jornalista Thiago Barros fala sobre a importância do diálogo entre as populações e os responsáveis pelos grande projetos. PÁG.58

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PAPO DE ARTISTA

Quando a música é vital AUTOR DE CANÇÕES ENRAIZADAS NA CULTURA POPULAR PARAENSE, COMO “FLOR DO DESTINO”, “CÍRIOS” E “TEMPODESTINO”, O CANTOR E COMPOSITOR VITAL LIMA COMPLETA 40 ANOS DE CARREIRA E REVELA SUAS ORIGENS, INFLUÊNCIAS E SUA LIGAÇÃO COM A AMAZÔNIA, MESMO MORANDO LONGE DAQUI. TEXTO NATÁLIA MELLO

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ARQUIVO PESSOAL

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ital Lima despertou para a música ainda menino, embora talvez não soubesse a que lugar essa relação com o universo ilimitado das cadências sonoras lhe levaria. Decerto o violão de sua mãe foi fator principal para que ele enveredasse por esse caminho não só profissional, levando em conta a satisfação pessoal que essa escolha lhe proporcionaria. Nascido no município em São Domingos do Capim, onde morou até os 13 anos, sua infância foi perpassada por algumas lendas do imaginário amazônico, dos feitiços de lendas de boto até o canto dos pássaros urutaís. Também por parte de mãe, era neto de Vital Luiz Porto, músico e regente da banda local. Registradas suas relações e influências inconscientes até então e, por mais que as correntes sanguíneas não possam explicar o amor pela música, um elo começou a se constituir ali. Já em Belém, reencontrou o violão de sua mãe e se deparou com um novo prazer. Oficialmente, foi no 1º Festival de Música e Poesia Universitária que se revelou o que não se poderia prever: Vital Lima, o compositor. De lá para cá, os 40 anos de carreira foram embalados por melodias compostas por ele mesmo e que se tornaram grandes sucessos na voz de outros nomes de peso da Música Popular

Brasileira, como Simone, Marisa Gata Mansa, Emílio Santiago e o amigo de longa data, Nilson Chaves. O caminho trilhado por Vital, suas influências e relações com Belém e o Rio de Janeiro, onde vive até hoje, você confere na entrevista a seguir. Vital, quais momentos consideras mais marcantes na tua trajetória nesses mais de 40 anos de carreira? Do ponto de vista pessoal, há três momentos marcantes: o FEMPUP, o Festival de Música e Poesia Universitária, da UFPA, onde tudo começou, em 1974. Gravar o “Pastores da Noite”, em 1978, foi outro momento muito bacana. Um apanhado da minha parceria musical com o Hermínio Bello de Carvalho, que me abriu portas importantes e foi relançado em CD pela “Biscoito Fino” há cerca de dez anos, acatando sugestão do próprio Hermínio. Outro momento marcante foi o LP “Interior”, que fi z com Nilson Chaves em 1984.

O QUE NÃO TEM FIM

O último disco lançado por Vital Lima, em 2015

Quais as tuas principais influências? Como foi tua infância, o início da carreira, e o desenrolar com tantos projetos com artistas consagrados, como no Projeto Pixinguinha. Meu interesse pela música começa com o fato de minha mãe tocar violão e cantar um repertório de música brasileira bem diverso. Aos 14 anos JUNHO DE 2017

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PAPO DE ARTISTA

conheci o Nilson (Chaves) e o violão passou a ser um companheiro imprescindível em nosso relacionamento. Uma imensa influência foi O Clube da Esquina, álbum que nos apresentou Milton Nascimento, Lô Borges, Wagner Tiso e a música que eles faziam em Minas Gerais. Finalmente, no início de carreira, tive a sorte de chegar junto com o Projeto Pixinguinha e aprendi muito viajando com artistas talentosíssimos, como Antonio Adolfo, Carmélia Alves, Fafá de Belém, Belchior, dentre outros.

“Tenho escrito algumas reflexões em linguagem poética. Gosto de filosofia e ela me empurra para coisas assim, temas que em letra de música ficam muito no superficial. Por não ser um nome de sucesso popular, não me sinto pressionado e faço sem pressa.”

Falando em parceria, o que a amizade e a tua relação musical com Nilson Chaves trouxe para a tua carreira? Nós nos conhecemos na adolescência e juntos descobrimos os compositores que poderíamos ser. Depois desencontramos. A liga voltou a acontecer no lançamento do LP Cheganças (1980) em Brasília. Deu tão certo que, a partir daí, fi zemos muitos shows e participamos de muitos festivais no interior do Rio, São Paulo, Minas e Paraná. Um clipe nosso na internet da canção “Meu primeiro amor”, no programa Som Brasil, é um bom exemplo dessa fase. Quando fui convidado, pelo selo Vison, 1984, para fazer um disco eu falei com eles desse trabalho com o Nilson e mostramos coisas como “Flor do Destino”, “Tempodestino”, que eles amaram, nascendo assim o LP Interior, que foi um tremendo sucesso, inclusive de vendas, principalmente na região amazônica.

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Foste um artista bastante homenageado por amigos de trabalho, como Canto Vital e Simplesmente Vital. Como é receber esse reconhecimento? Para um artista que não frequenta a grande mídia, me surpreende. Sendo honesto, minha carreira tem mais momentos “não” do que “sim”. Em 1987, ainda na efervescência do sucesso de “Interior” eu, que me formara em Fi-

losofia, tentei um concurso público e passei. Fui chamado na primeira leva e me vi dizendo para o Nilson: “Não estou abandonando a música, mas isso vai dificultar as coisas; segue sozinho”. Daí sumi e a Vanja Lima, de saudosa memória, projetou o “Canto Vital”, segundo me disse, por conta da invisibilidade que eu vinha me impondo. Foi uma grande emoção que me motivou a fazer o “Das coisas simples da vida”, em 2005, muito bem recebido pela crítica e que rendeu shows de lançamento, inclusive no Teatro Rival, no Rio. Quando acabei de gravar “O que não tem fi m”, vi como ficou difícil conciliar o auditor da Receita com o artista. Aí vem a Alba Maria e me confi rma o “Simplesmente Vital” em DVD. Sou um bocado tímido e fico sem jeito, mas, ao mesmo tempo, feliz por sentir esse carinho pelas canções que assino, carinho que também é de meus parceiros de DVD, Hermínio (Bello de Carvalho), Nilson (Chaves), Leandro Dias, Arthur Nogueira, Marcelo Sirotheau e Marco Farias. Qual a tua relação com a Amazônia e a cultura da região? Quais elementos estão presentes no teu trabalho? Penso que é uma ligação indissolúvel essa entre você e o seu lugar de nascimento e, como isso envolve afetividade, é impossível que as paisagens, a realidade desse outro Brasil, as peculiaridades de nossa cultura, não se deixem entrever na arte que você faz. Hoje, morando no Rio, consegues manter essa conexão com a cultura paraense? Sim, porque procuro me manter informado e, nesses tempos de redes sociais, no meu perfi l no Facebook, devo ter 70%, pelo menos, de amizades da Região Amazônica, o que me mantém inteirado sobre as transformações culturais e até das mazelas, das administrações, que vão se refletindo no dia a dia das nossas cidades. “O que não tem fim” foi lançado em meio a um universo que exploraste muito o amor. Fala um pouco sobre esse processo de criação do disco.


ARQUIVO PESSOAL

CANTADOR DO AMOR

Vital Lima compõe canções de amor, que, para ele, é um sentimento que define lindamente a humanidade

O amor, penso-o como um sentimento que defi ne lindamente nossa humanidade. A ira, por exemplo, é da ordem do afetivo, mas é capaz de dar um apagão em nossa racionalidade. Quem viu o fi lme argentino “Relatos Selvagens” entenderá o que estou dizendo. O amor, ao contrário, pode nos juntar, unir, nos fazer mais justos, mais compassivos, além de ser uma experiência a qual qualquer ser humano tem acesso. No CD quis ir do amor do cotidiano ao Amor maior, no qual as espiritualidades mais diversas reconhecem a própria ideia de Deus. Quais os teus projetos para o futuro? Tenho escrito algumas reflexões em linguagem poética. Gosto de fi losofia e ela me empurra para coisas assim, temas que em letra de música ficam muito no superficial. Por não ser um nome de sucesso popular, não me sinto pressionado e faço sem pressa. Não sou muito de fazer planos, no máximo tenho um rascunho, fico atento ao entorno e deixo fluir, porque se não temos controle sobre tudo o que acontece em nosso corpo, que dirá em nossa experiência de mundo! JUNHO DE 2017

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MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS

o Geógrafo e a flora amazônica TEXTO ANA PAULA MESQUITA ILUSTRAÇÕES JOCELYN ALENCAR 52 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Walter Alberto Egler 1924-1961


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ientista que dedicou a vida ao estudo da natureza, Walter Alberto Egler foi um geógrafo e botânico preocupado com o desgaste e o mau uso dos recursos naturais. Era um defensor da sustentabilidade e preservação da mata Amazônica que o encantou tanto, que Walter Egler aceitou a proposta de ser diretor do Museu Emílio Goeldi onde desenvolveu e organizou um acervo de amostras de várias espécies de madeira da Amazônia. Carioca, filho de imigrantes europeus, Egler nasceu em 24 de novembro de 1924. O cientista despertou o interesse pela natureza logo que ingressou na graduação de Agronomia estagiando no Conselho Nacional de Geografia, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e, sob orientação do fitogeógrafo canadense Pierre Dansereau, foi auxiliar na montagem do setor biogeografia no IBGE, junto com Alceu Magnanini, Fernando Segadas Viana, Dora Romariz e Edgar Kulmman todos geógrafos e agrônomos pesquisadores. Mas os grandes influenciadores na carreira foram o agrônomo Pierre Dansereau e o geógrafo alemão Leo Waibel, que, na década de 40, estava no Brasil para desenvolver pesquisas sobre colonização, ocupação agrária e biogeografia regional. Com Fernando Segadas foi para o Museu Nacional para criar uma divisão de botânica e biogeografia, porém, alguns problemas institucionais o impediu de prosseguir com este setor. Aos 30 anos, Egler foi convidado por José Cândido de Carvalho para assumir a direção do Museu Paraense Emílio Goeldi. Sua administração durou seis anos. Walter Egler recuperou instalações e o parque zoobiótico, ampliou o acervo, dinamizou a pesquisa com implantações de laboratórios, expandiu a presença de técnicos e pesquisadores e realizou inúmeros trabalhos de campo e

expedições na Amazônia. Nos anos 50, o pesquisador interessou-se pela organização de acervo de madeira no Museu Goeldi. “Criando a base para que, no Pará, estudos sobre as madeiras, do ponto de vista anatômico e de identificação, passassem a ser realizados até os dias atuais”, assim consta informação em um artigo científico dos pesquisadores Cristina Fonseca, Pedro Lisboa e Cláudia Urbinati, intitulado: “A Xiloteca (coleção de Walter A. Egler) do Museu Paraense Emílio Goeldi. A xiloteca, que hoje leva o nome de Egler, segundo consta no artigo científico, foi criada para coletar amostras de madeiras oriundas de uma ou de diferentes regiões. Sendo uma fonte de material importante para auxiliar profissionais de diversas áreas, tanto nacionais quanto estrangeiros, “na solução de problemas taxonômicos, anatômicos, filogenéticos, ecológicos, tecnológicos, silviculturais, de manejo e inventários florestais”, ressaltam os pesquisadores no artigo. Com Walter Egler as pesquisas se intensificaram. Em 1959, iniciou a coleção de madeiras, num total de 80 amostras, oriundas de excursões ao Alto Tapajós, rodovia Belém-Brasília, Marapanim, Marudá e alguns bairros da capital paraense. “A primeira amostra de madeira da coleção foi Panopsis rubescens (Pohl.) Pittier (Proteaceae). Egler, também, realizou várias excursões pela Amazônia para coleta de material botânico”, destacam os pesquisadores. O cientista também foi para o Jari, no Pará, em companhia do professor Howard Irwin, para fazer um levantamento florístico completo de toda a região ao norte do rio Amazonas e não retornou dessa excursão. Walter sofreu um acidente quando sua canoa despencou da queda mais alta da cachoeira do Macacoara. A comunidade científica despediu-se do pesquisador, apaixonado pela natureza, no dia 28 de agosto de 1961 com 37 anos. JUNHO DE 2017

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AGENDA DIOGO VIANNA / ASCOM FCP

DESENHO

O curso “Conversas por meio do Desenho”, com Raimundo Calandrino, ocorre de 20 a 30 de junho, das 15h às 18h, no Sesc Boulevard, no Boulevard Castilhos França, 522/523. O curso oferece aos participantes instrumentos que promovem um olhar sensível para construção de uma poética por meio do desenho. Os interessados em participar podem se inscrever no local. Comerciários pagam uma taxa de R$ 5,00 e os demais de R$ 45,00. Informações no (91) 3224-5305.

TERREIROS

NO CENTUR

Concurso de quadrilhas juninas ONONo O 14° Concurso Estadual de Quadrilhas Juninas será realizado de 16 de junho a 1º de julho, na praça do Povo, do Centur, na avenida Gentil Bittencourt, 650, Batista Campos. Nesta edição, participam do evento quadrilhas mirins e adultas que prometem animar o público durante o período de São João. Além de se apresentarem, as quadrilhas também disputam vários títulos. Este ano elas concorrem nas categorias Marcador, Miss Caipira, Mulata Cheirosa, Miss Mix Adulta, Miss Simpatia, Esti-

lista, Coreógrafo e outras modalidades. A premiação varia de R$ 2 mil para as dez melhores quadrilhas mirins a R$ 4 mil para as dez melhores equipes de quadrilhas adulta. Durante o evento, a expectativa é que 60 grupos de quadrilhas juninas de Belém e 60 grupos dos demais municípios do Estado se apresentem na categoria adulta. Já na categoria mirim a festa deve contar com 15 grupos da capital e 15 do interior. O concurso de quadrilhas no Centur já é uma tradição no Estado. Todo ano o evento recebe um grande público para conferir as diversas apresentações dos grupos. Além de se divertirem com as danças, os visitantes também encontram barraquinhas de comidas típicas e brincadeiras que fazem parte da tradição junina. Mais informações no site fcp.pa.gov.br.

ECONOMIA CRIATIVA O I Encontro Amazônico de Economia Criativa será realizado nos dias 22 e 23 de junho, no Curro Velho, na rua Professor Nelson Ribeiro, 287, Telégrafo. A programação inicia-se às 9h e segue até às 17 horas durante os dois dias de evento. O encontro tem o objetivo de abrir um grande debate sobre a dinamização e atuação da economia criativa de Belém. Informações e inscrições no site amazoniacriativa.com.

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O Centro Cultural da Justiça Eleitoral do Pará, na rua João Diogo, 254, Campina, recebe a exposição “Nós de Aruanda - Artistas de Terreiro”, do coletivo ligado a artistas de terreiro. A mostra pode ser vista até 21 de junho e apresenta ao público obras que valorizam a cultura de matriz africana.

COSTA AMAZÔNICA Para comemorar os 20 anos do Programa de Estudos Costeiros do Museu Paraense Emílio Goeldi será realizado, de 20 a 24 de junho, o workshop “A Ciência na Costa Amazônica - 20 anos do Programa de Estudos Costeiros”. A programação será no auditório Paulo Cavalcante, no Campus de Pesquisa do Museu, na avenida Perimetral, 1901. O evento contará com palestras, mesas redondas e minicursos. Informações no link sites.google.com/view/pec20anos/ página-inicial.

CONTOS INFANTIS Mãe D’água, Boto, Iara e Matinta Pereira serão os personagens principais da contação de histórias infantis que será realizada no Sesc Boulevard, na Boulevard Castilhos França, 522/523, dia 24 de junho. Quem comanda a programação, que inicia-se às 11 horas, é o contador de histórias e cantor Jeff Moraes. A entrada é franca. Informações no site sesc-pa.com.br.


FAÇA VOCÊ MESMO

Colar de tecido

Para as festas juninas, as Oficinas Curro Velho, da Fundação Cultural do Pará, ensinam a fazer um acessório barato, reciclado, bonito e de quase nenhuma dificuldade de produzir. Servirá para os eventos como parte das roupas ou como brinde. Mesmo depois do período, ainda será possível combinar com os looks do dia a dia. E tudo à base de retalhos de tecidos coloridos. Basta experimentar e brincar com as

cores para obter peças únicas. Apesar de confeccionada como um colar, a peça pode ser usada como pulseira. Antes de iniciar, queime as pontas da corda com o isqueiro para evitar que desfie. O comprimento das tiras de tecido pode variar. A decisão é sua. A espessura e o comprimento da corda de varal que faz a base da peça também podem variar. O produto final pode ser lavado, inclusive à máquina.

Retalhos de tecidos diversos e de várias cores

Do que vamos precisar?

Corda de varal de algodão

Agulha e linha para costura

Tesoura com pontas arredondadas

Isqueiro ou fósforos

Fita métrica

DILMA TEIXEIRA, COORDENADORA DE ARTES VISUAIS OFICINAS CURRO VELHO | LUIZA NEVES, TÉCNICA EM GESTÃO CULTURAL CLAUDINEIA VELOSO, INSTRUTORA | PRISCILLA MACHADO, MODELO | JACK NILSON, FOTOGRAFIAS /AUDIOVISUAL-FCP

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ATENÇÃO: Essa atividade pode ser feita por crianças, desde que acompanhadas por um adulto responsável

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Corte sete pedaços de malha de cores e estampas diversas no tamanho 50 cm de comprimento por 2 cm de largura.

Ao alcançar 8 cm da corda, dobre-a para deixar preparado o fechamento do colar.

Para terminar, passe a ponta da corda na fenda formada no passo 4

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Dê uns pontos com a agulha e a linha para unir a primeira tira de tecido à corda.

Continue enrolando a tira de malha na corda por cima da parte dobrada, unindo a peça com esse movimento.

Dobre novamente e continue o movimento de enrolar a malha na corda. Faça um nó no tecido para fazer o acabamento.

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Agora comece a enrolar o tecido na corda. Esse movimento vai fazer com que a corda fique naturalmente retorcida, conferindo um belo efeito à peça.

Ao concluir a primeira tira de malha, deixe uma sobra e sobreponha a ponta da próxima tira. Continue o movimento de enrolar, repetindo o processo com as outras tiras. Não é necessário costurar.

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Depois de cortar a sobra da malha, costure o tecido à corda para dar acabamento. O colar está pronto para usar!

Para saber mais Quem quiser conhecer mais sobre técnicas artísticas pode se inscrever nas oficinas Curro Velho, da Fundação Cultural do Pará. Crianças a partir de 12 anos podem participar. O Curro Velho fica localizado na rua Professor Nelson Ribeiro, nº 287, esquina com a travessa Djalma Dutra, bairro do Telégrafo. Telefones: (91) 3184-9100 e 3184-9109. 56 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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RECORTE AQUI

FAÇA VOCÊ MESMO


BOA HISTÓRIA

Era breu total. Não, era noite de estrelas e lua cheia. Talvez nem noite fosse ainda e o lusco-fusco estivesse apenas anunciando o Sol indo embora, quem sabe até a hora indicasse o fim da madrugada e o raiar do dia. Não, não era, porque se assim o fosse a lembrança seria de alívio e menos pesada. Ou não, quiçá é isso mesmo, a madrugada. Porém, mais marcado do que tudo, de verdade, era a sensação incômoda e a vista escura, turva, borrada, o cenário indefinível cercado do silêncio quebrado somente pelos ruídos saídos da massa densa e verde e enorme ao redor, como muros de uma prisão ou teias ou, ainda, uma extensa parede mole, viva, movível e, ao mesmo tempo, impenetrável, não pela consistência, mas pelo pavor que dela desprendia com piados, chiados, farfalhos, rastejos, grunhidos, estalos e assovios que ela, a floresta, desprendia e o ameaçavam. Corria sem rumo, sem visão, sem esperar por muito, apenas seguir adiante, porque era o único impulso que o movia. Passou pelas castanheiras e seringueiras, reconheceu embaubais

e as gigantescas samaúmas resignadas e majestosas na penumbra; o cheiro da umidade combinada com o mato, chegou a identificar o fio claro da picada em algumas parte do caminho enquanto os músculos da perna imprimiam a maior força possível nos passos, cada vez mais largos e ritmados. Os pulmões inflavam com naturalidade e ele mordia os lábios para manter a respiração controlada, colava os braços junto às costelas, sem pensar no ato mecânico, inconscientemente protegido e funcional, tal uma máquina, como pequeno trator de carne e ossos rasgando o ar no desespero de estar sendo seguido. Pouco antes da vila, viu as casinhas isoladas e uns candeeiros ainda acesos, recorda. Pensou em desviar o caminho para alcançá-las, receber ajuda, abrigo, apoio, um calma, meu filho, o que aconteceu? Qual o quê! Nem quis saber. O pensamento foi um lampejo apenas, porque o corpo havia assimilado a ordem primária: corra, corra. E ele corria, na carreira mais longa da vida, dando tudo de si, como se da velocidade dependesse a própria existência. E,

LEONARDO NUNES

Travessia

possivelmente, naquela hora amarga, aflita e de dúvida palpável e incômoda, dependia, de fato. Avistou a ponte, justo aquela que evitava mais do que tudo. Apodrecida, reclamona, com rangeres de velha doente, arriscosa pela altura até o chão e as pedras do córrego lá embaixo, nada confiável pelo histórico e as falhas na madeira que enfileiradas há anos formavam a extensa estiva. Quis parar. Pelo cansaço e pelo pavor, porém o corpo havia recebido a tal ordem e o corpo era um general que não atenderia ninguém. Saltou os buracos, esqueceu do tremor na estrutura, atravessou com a coragem de um bandoleiro. Do outro lado, a cabeça controlou todo o resto ajudada pela exaustão e, então, ele pôde contemplar o bicho o espreitando, também estagnado na perseguição na cabeceira da ponte. Alto, bípede, os olhos de fogo, a cabeçorra. Durou uns dois segundos essa eternidade entre o que ia na frente e o que, sabe deus, vinha atrás. Ele só lembra que continuou correndo. Se era dia, noite ou madrugada, não sabe. JUNHO DE 2017

Anderson Araújo

é jornalista e escritor

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NOVOS CAMINHOS

Redes e demandas socioambientais

THIAGO BARROS

é jornalista, mestre em Planejamento do Desenvolvimento Sustentável (NAEA-UFPA) e professor da Universidade da Amazônia @thiagoabarros

No momento em que as populações afetadas por grandes projetos não conseguem dialogar com a sociedade sobre os impactos previstos ou já sofridos a partir da mediação jornalística ou de instrumentos de consulta legais, como as audiências públicas, o uso da internet e redes sociais se apresenta como uma alternativa – tanto para a comunicação quanto como possibilidade de organização e ampliação das ações de movimentos sociais. Quando a atuação de movimentos sociais é reverberada no ambiente virtual, as demandas se enquadram em uma nova configuração, em formato de rede, em busca de um espaço de autonomia que não seja controlado por governos e empresas. Mas a maior parte das organizações sociais desenvolve suas expertises em comunicação ao longo de um processo de amadurecimento que nem sempre é tão acelerado quanto os problemas que combatem. Essa é uma das características de iniciativas oriundas de questões amazônicas e lideranças de determinados grupos, que acabam recorrendo a apoios de instituições mais estruturadas, especialmente do terceiro setor. Em relação às estratégias de divulgação, a representação de problemas provenientes de políticas públicas na Amazônia, as demandas sociais e conceitos de desenvolvimento muitas vezes passam pelo filtro de ONGs ambientalistas internacionais. Grupos de pressão, que antes se concentravam em táticas como mobilizações e protestos, agora aprovei-

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tam as possibilidades oferecidas pelas redes para uma nova formatação de suas ações e, consequentemente, das estratégias e dinâmicas para obtenção de visibilidade e possível intervenção no ciclo de políticas públicas. Essas relações entre grupos e indivíduos possibilitam diferentes formas de construção de significados sobre a questão do desenvolvimento da Amazônia. É cada vez maior a quantidade de intermediários na relação que deveria se estabelecer entre o Estado e a sociedade civil. Eles são admitidos como interlocutores legítimos e representantes de interesses de grupos. Mas estas formas de representação são democráticas? A verbalização de defesas dos direitos é suficiente perante a ausência de representantes efetivos? Este é um debate importante e atual para a região. *** Aproveito o gancho deste artigo para registrar a publicação do livro “Barragens imaginárias - A construção de hidrelétricas pela comunicação” (uma coedição da Editora Insular e Posjor-UFSC), organizado pelo professor Carlos Locatelli, da Universidade Federal de Santa Catarina. Ao todo, foram convidados 23 pesquisadores de 15 universidades do Brasil e do exterior. Contribuí, junto da professora Nírvia Ravena, da Universidade Federal do Pará, com o artigo “Projetos hidrelétricos na Amazônia de FHC a Lula na grande imprensa: opinião matriz de grupos de pressão em momentos de crise energética”.

“A maior parte das organizações sociais desenvolve suas expertises em comunicação ao longo de um processo de amadurecimento que nem sempre é tão acelerado quanto os problemas que combatem”


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