ARTENAUTAS: UM PERFIL DE INTERVENÇÃO-MARTINS & ALEXANDRINO 2014 (atual)

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ARTENAUTAS: UM PERFIL DE INTERVENÇÃO PARA ANIMADORES E ARTE-EDUCADORES

Amílcar Martins e Teresa Alexandrino

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ARTENAUTAS: UM PERFIL DE INTERVENÇÃO PARA ANIMADORES E ARTE-EDUCADORES 1 Amílcar Martins, Universidade Aberta, CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação Teresa Alexandrino, Colégio Internacional de Vilamoura RESUMO: A ideia de busca e caraterização de um perfil de intervenção para animadores e arteeducadores, através da criação de uma matriz inspirada no ArteNauta (Viajante através da Arte), tem sido desenvolvida nos últimos anos pelos autores deste texto, em contextos de formação de Arte-Educadores e/ou de Artistas com abertura e interesse pela Educação, entendida esta numa perspetiva lato sensu de cidadania transformadora. Neste ensaio são descritas as componentes do perfil formativo do ArteNauta, visando as suas competências e capacidades de intervenção, através da modulação e harmonização em contexto de várias das suas componentes: Arte-Viajante; Arte-Contador; ArteBrincador; Arte-Animador; Arte-Educador; Arte-Curador; Arte-Investigador. PALAVRAS-CHAVE: ARTE; EDUCAÇÃO; ARTENAUTA; ARTE-VIAJANTE; ARTE-CONTADOR; ARTE-BRINCADOR; ARTE-ANIMADOR; CURADOR; ARTE-INVESTIGADOR

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ARTE-EDUCADOR;

ARTE-

Ensaio baseado na experiência e no seguinte documento atualizado em 2017: MARTINS, Amílcar e ALEXANDRINO, Teresa (2014). “ArteNautas: Um Perfil de Intervenção para Animadores e ArteEducadores”. In PEREIRA, José Dantas, VIEITES, Manuel Francisco e LOPES, Marcelino de Sousa (Coords). As Artes na Educação, pp 245-252. Chaves: INTERVENÇÃO – Associação para a Promoção e Divulgação Cultural. ISBN 978-989-97571-6-5


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Para Martins (1998; 2002 e 2009; 2008; 2009a; 2009b; 2009c; 2011) e Martins e Macara (2011), a Educação é entendida numa ótica artística, pedagógica e didática que deverá proporcionar Viagens em busca de experiências capazes de detonar a fruição e leituras do mundo, às quais se potenciam a atribuição de sentidos e de significados. Assim, as Aprendizagens induzidas por práticas de leituras do mundo cartografadas através de Viagens corresponderão, em parte, ao processo e ao resultado das aquisições mais tangíveis e ou mais misteriosas, mais duradoiras e mais transferíveis que são construídas e transformadas pela pessoa que se torna viajante. As Viagens, enquanto adn identitário de práticas educativas, desenvolvem-se e acrescentam-se ao ser pessoa viajante, quiçá contaminando-a e contagiando-a enquanto ser individual e social. As Viagens são, afinal, matéria-prima sempre renovada que expande e liberta novas representações sobre o mundo sensível, novas representações do mundo imaginário, novas representações do mundo reinventado, novas representações sobre o conhecimento, ele próprio em Viagem para se tornar outro. As Viagens alimentam-se com novos e velhos elementos de pensamento que permitirão à pessoa desenvolverse e estruturar-se com uma visão do mundo integradora, holística e, naturalmente, privilegiando as dimensões pessoal e social, artística e cultural, ambiental e científica, tecnológica e, até, ficcional e utópica. Martins entende as Viagens enquanto dispositivos reais e/ou metafóricos proporcionadores de Aprendizagens. Elas insinuam-se como embrião nuclear de uma pedagogia das artes expansiva e criadora. É com as Viagens e com a aventura das descobertas, com o detonar do gosto e da prática do questionamento livre e progressivo que elas desencadeiam, com a observação do novo que elas incorporam e interpelam, com a pesquisa aliada à problematização de novos universos a apreender, que estaremos em face de ler e de ganhar mais mundos dentro de nós, quer sejamos arte-educadores, artistas, professores e educadores. Ou, ainda, quer sejamos eternos aprendentes e descobridores, reinventores de representações do mundo com epicentro expansivo no domínio das artes.


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Nos últimos anos, e particularmente no contexto da formação de ArteEducadores, ampliámos este conceito do ArteNauta numa complexa articulação de sete categorias assim designadas: ArteNauta = Arte-Viajante + Arte-Contador + Arte-Brincador; Arte-Animador + Arte-Educador + Arte-Curador + Arte-Investigador Vejamos em detalhe cada um destes atributos do ArteNauta.

ARTE-VIAJANTE 2

O Arte-Viajante é aquele que se desloca. É aquele que progride nos espaços levando a arte encavalitada na Viagem. É aquele que se disponibiliza para apreender o novo que se lhe depara. É aquele que se reconstrói e se expande através da Viagem que desencadeia a ativação dos mecanismos da sensibilidade perante o que encontra em redor, o que se apresenta diferente. Para Michel Onfray (2009) a Viagem é comparada com um ritual de passagem com três andamentos. Num primeiro andamento, a da pré-Viagem, ou do momento préliminar da Viagem, trata-se de imaginar o devir, preparar esse devir, construí-lo, ampliá-lo e intensificar o desejo da Viagem. Esta é perspetivada em devir, visualizada, imaginada, construída no espaço mental do “telão interior” do cinema imaginário. Trata-se, portanto, de 2

ArteNauta sob o Signo do Dragão. Esta criação de Teresa Alexandrino foi utilizada como iconografia apelativa e identitária em várias iniciativas relacionadas com a viagem de apreensão da cultura chinesa (ou luso-chinesa), com foco no contexto de Macau-China. Uma das suas aplicações teve expressão na narrativa O Fascínio do Oriente sob o Signo do Oriente. Ver http://issuu.com/amilcarmartins1/docs/macau


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uma projeção sobre o devir, para um lugar que terá uma identidade própria e que importará ser apreendido e mesmo vivenciado antes da partida. A atitude de pesquisador será, portanto, uma vertente fundamental onde se tece o conhecimento do lugar e das pessoas desse lugar. As suas motivações, forma de vida, crenças e representações do mundo são, para o Arte-Viajante, absolutamente fundamentais. Trata-se de planear a Viagem. Torná-la existência com sentidos para as pessoas que compõem e vivem o território, o lugar, e que lhe dão alma. Trata-se de cartografar, mapear, o território da Viagem. Mas também criar as empatias e uma real vontade de conhecer as pessoas do lugar. E, porventura, emprestar-lhe mesmo uma dimensão ficcional e utópica de uma existência num outro plano. O plano da utopia da Viagem assumidamente desejada. O ciclo da partida da Viagem tem o momento existência. O “aqui e agora” da Viagem dá lugar ao período liminar. É o espaço e o tempo do envolvimento direto com os lugares e as pessoas que contextualizam o acontecer da Viagem tornada realidade vivenciada. É neste sentido que as residências artísticas, enquanto modalidades de organização de processos de aprendizagem, baseados na descoberta, manifestam virtualidades da maior relevância formativa. Trata-se da Viagem como epicentro de um lugar para onde convergem os viajantes. E é nesse lugar, de facto, que se abre o espírito à revelação dos processos otimais de apreensão do que ali acontece. A sala de aula é aquele lugar onde acontece a interatividade que junta o importante com o suposto menos importante, mas onde tudo se revela potencialmente relevante. Com a sala de aula da Viagem regressa-se à Grécia Antiga e à educação da Escola de Atenas. Viaja-se pela polis para libertar o pensamento e ampliar os níveis de expansão do que acontecia perante os sentidos e se lhe poderia nomear e atribuir significados. Significados que derivavam do ato de filosofar, ou seja de colocar questões ao mundo. Regressa-se à revitalização da “idade dos porquês” com a Viagem. E os filósofos gregos, Platão e Aristóteles, trazem-nos esse sinal da relevância de construir uma educação perguntadora, baseada na vitalidade da observação dos lugares e das pessoas. O diferente da Viagem é que ela suscita perguntas. E essas perguntas são o cerne do aprender como desejo. O ciclo do regresso a casa, da pós-Viagem, reenvia-nos o sinal do aconchego do já conhecido. Pratica-se, então, o 3º andamento do ritual


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de passagem. Regressa-se para casa para fechar um ciclo, afinal abrindo-se a mundivivência, como matéria-prima do ato de aprender. José Eduardo Agualusa (2013), no seu livro A Vida no Céu, trata exatamente de uma Viagem que se expande no espaço emergente da terra e que ascende desta. É o espaço do céu. Agualusa define este céu, no seu “Dicionário filosófico do mundo flutuante para uso de nefelibatas amadores”, como, “Céu: todo o território onde a vida é mais leve do que o ar. Para os mais velhos, um lugar desprovido de passado, como existir um canto de uma ave, sem que exista a ave. O lugar para onde ascendem os sonhos, inclusive os maus.” Ora, o autor não esquece que a Viagem se faz com um sentido de enriquecimento e até de transcendência humana: “Viagem: todo o movimento de aproximação de uma pessoa a outra”. Há, portanto, neste pensar da aproximação humana o grande desafio da Viagem. A Viagem é o dispositivo humano que nos humaniza e nos devolve o mundo em mais completude na sua diversidade. Teremos então que incluir no desafio da Viagem as pessoas, o outro, a sua cultura, o seu pensar, as suas festas, as suas aspirações e mundivivências. Viajamos para deixar que o mundo entre por nós adentro. A este propósito, Luís de Camões, grande viajante, nos Lusíadas, alude para este querer mais mundo dentro dele: “ O mundo todo abarco e nada aperto.” Já Fernando Pessoa nos traz um outro testemunho sobre a Viagem: “(...) Trago dentro do meu coração como um cofre que se não pode fechar de cheio todos os lugares onde estive. E tudo isso que é tanto É pouco para o que eu quero.” A cultura portuguesa que se referencia como ter dado “novos mundos ao mundo”, oxigenou-se e expandiu com a linha do horizonte do verbo “ir” e da Viagem como objeto de desejo. Desejo que será objeto ele próprio do sonho. Sonho que se transforma em objeto de estudo. Sonho


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como experimentação e território de Viagem. É, de facto, a Viagem que se apresenta, no espectro português de sempre, como o elemento de mediação e de crescimento humano, porventura mais pujante. Viaja-se para se ser mais. Viaja-se para realizar sonhos, expandir sonhos e construir o devir no presente “aqui e agora”. É por isso que importa ligar a Arte à Viagem. Porque a Arte é, para o viajante, o território tangível que interpela a profundidade do sentir e do ser. Construímos então este sentido de cartografar a ligação do ArteViajante nos processos de aprendizagens. Aprender será, então, potenciar-se e dar sentido ao Viajar. E Viajar é darmos mundo ao mundo que já conhecemos, tornando-nos outros.

ARTE-CONTADOR 3

O Arte-Viajante desemboca naturalmente no Arte-Contador. É a Viagem, a sua locomoção como processo de relação dinâmica entre o centro de gravidade do corpo e a terra, o céu e o vento, ou mesmo a utopia que fica para além destes elementos. A matéria-prima da Viagem constrói memórias, realidades que são revisitadas com o Arte-Contador, o qual as reconstrói no seu imaginário para as devolver numa construção retroativa, de balanço, de encontro, prosseguindo também deste modo a dar cor à Viagem que empreendeu. Nesta perspectiva teremos então uma qualidade do Viajante que se amplia nas memórias. Memórias que dão vida a discursos, episódios, recreações, ocultações mesmo. A Viagem alimenta os mecanismos do imaginário e do Contar. Conta-se o que existiu, o que foi observado e 3

ArteNauta Limiano. Esta criação de Teresa Alexandrino foi utilizada como iconografia identitária do evento A Viagem do ArteNauta: Contadores de Histórias e Criatividade, organizado por Amílcar Martins, Catarina Lima e Amílcar Martins, numa iniciativa do CLA – Centro Local de Aprendizagem da Universidade Aberta e o CEMRI – Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais. O evento teve lugar em Ponte de Lima de 17 a 22 de outubro 2011. Ver http://issuu.com/clapontedelima/docs/programa_a_viagem_do_artenauta__17_a_29_de_outubro


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daquele outro modo assim sentido. Conta-se para reinventar o mundo, partindo de fragmentos de Viagens e lugares reais ou diametralmente prenhos de utopias. Tece-se, deste modo, o Arte-Contador. Histórias para contar, sim. Todos temos histórias de vida para contar. Contamo-las todos os dias a quem nos está próximo. Às vezes somente a quem estabelecemos intimidade. São as histórias dos segredos que queremos partilhar. Outras vezes contamo-las, à volta de cenários do que pode vir a ser e a acontecer. Reinventamos as nossas próprias histórias de vida, ao fazê-las chegar a outros com os enfoques e as omissões que escolhemos. E são assim as narrativas de vida, às quais juntamos fragmentos e enfoques que, por uma razão ou por outra, nos interessam fazer crer. Todo o ser humano é contador de histórias, sim. Socializamo-nos através delas, alternando e interagindo na função de contador e na de escutador, tornando-nos, deste modo, culturalmente enraizados, viajantes, livres! Somos HistóriaNautas! Tornamo-nos ArteNautas! In Martins, Amílcar (2011), “Prefácio”, in Histórias da Ajudaris’11: Pequenos gestos, Grandes corações. Porto: Associação Ajudaris.

ARTE-BRINCADOR

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O Arte-Brincador valoriza o ato de brincar como epicentro de pertença e de descoberta do mundo. Brincar como tesouro especial partilhado, corrente que flui espontaneamente do oceano amniótico da casa-mãe do ser humano. Brincar é lugar de todos, presença vivificadora do projeto 4

O ArteNauta Brincador foi dado à luz por Teresa Alexandrino, no Encontro Arte e Educação com os ArteNautas do Brincar, em 2014, para a residência artística realizada no Museu do Brincar, em Vagos, Aveiro, pelo Mestrado em Arte e Educação da Universidade Aberta.


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renovador e de resgate da criança que em nós habita e quer permanecer. Brincar é território e rota da viagem pelos labirintos do imaginário que se exercitam. Brincar é espaço-tempo “aqui e agora” que ensaia o jogo da vida que é renovada todos os dias para reinvenção do mundo. Brincar em vários tempos com tempo. Brincar a sério mesmo, ao longo da vida, com a diversidade de suas narrativas sempre renascentes. Deleitamo-nos com os brinquedos, convidativos e sedutores, tocando memórias, palavras, gestos, vontades, tantas histórias de prazer e de luz. Somos brincadores e brincantes, guardamos em nós as fantásticas possibilidades que se expressam ao longo da vida, através da natureza genuína e vital do homo ludens. É este brincar pujante de ludicidade que nos habita e que constitui um modo naturalmente livre de explorar o mundo, de vivenciá-lo, de sensibilizarmo-nos dele, de aventurarmo-nos nele, de o conhecermos e de o atualizarmos. Por isso habitamo-lo e reconstruímo-lo sempre ao longo da vida: Não deixamos de brincar porque envelhecemos. Envelhecemos porque deixamos de brincar. Georges Bernard Shaw

ARTE-ANIMADOR 5

Animador será então aquele que se tece em permanência. Que dá vida e alma a uma ideia, a uma proposta, a uma concretização performativa num lugar e num tempo determinado. Arte-Animador será então aquele que integra as suas avenidas de expressão numa relação comunicacional privilegiada com a Arte, com o ambiente e com os outros.

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ArteNauta Animador. Esta criação de Teresa Alexandrino foi utilizada como iconografia identitária de vários eventos.


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Todavia, a Arte para o Animador é, também, potenciada pelas artes performativas servidas pelos instrumentos vitais do corpo, da voz e dos outros. O Arte-Animador privilegia muitas vezes as suas próprias criações espontâneas, como forma de atuar para audiências e/ou para se relacionar com públicos específicos. Há nele a inspiração arquetípica que ecoa, ainda, da matriz do animador e artista popular do saltimbanco italiano, que era, afinal, um nómada e viajante no período medieval do sul da europa. É este hálito vital do saltimbanco, com o seu perfil de envolvência e de capacidade de reagir aos momentos, de tocar as populações com quem se relaciona na Viagem, que alegra as gentes para as ajudar a desenvolver uma trajetória, um caminho a vivenciar e a acrescentar-se nele, num contexto sócio-cultural e ambiental determinado, nessa vida que se anima com/para os outros.

ARTE-EDUCADOR 6

Arte-Educador é o perfil que evoca o diálogo mais detonador de esperança e de capacidade interventiva no espaço educativo stricto sensu ou lato sensu. No livro Didática das Expressões, Martins (2002, 2009) elenca alguns dos itens decisivos do que considera ser a génese de um discurso dialógico entre a Arte-Educação, por vezes também apelidada de Educação pela Arte, ou mais correntemente de Educação Artística. Martins sustenta a função do educador e do professor associando-os, tal como sugeriram os filósofos gregos, com uma função de maiêutica, o que significará de parteira.

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ArteNauta Educador. Esta criação de Teresa Alexandrino foi utilizada como iconografia identitária de vários eventos.


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Educar é ajudar o ser a ser. Ou é, também, construir os apoios essenciais de orientação pedagógica e didática que suscite a libertação das potencialidades do ser, ajudando-o a transformá-las em capacidades, competências, valores, atitudes, comportamentos e, sobretudo, modos de ler o mundo. Os ingredientes preconizados por Martins (1998, 2002, 2009) recaem na dimensão da escolha de uma pedagogia de situação filiada em Gisèle Barret (1986a; 1986b), que privilegia a otimização e gestão das variáveis da situação: – – – – –

o meio (privado – público); o professor (pessoa – função); o grupo (indivíduo – sociedade); o espaço-tempo (aqui e agora); o conteúdo (programado e imprevisto). Martins (1998: 143).

Já o filósofo José Gil (2004) interpela a sociedade portuguesa, mas também as pessoas individualmente de per se, através do conceito de “inscrição”. Para o autor importa impregnar a educação e as práticas dos processos sociais de estabelecimento e fixação dos estilos e das tendências com que se vive a sociedade. A “inscrição” corresponde à afirmação dos discursos, dos gestos e das palavras, capazes de evidenciar o que se pensa. Pensar é, portanto, um ato de liberdade e de expansão criadora do ser e estar em sociedade. E a educação, impregnada dos valores do prazer, da liberdade, da criatividade, de cidadania e da inscrição do pensar, representam uma responsabilidade imensa neste percurso educativo do ser e estar como transformadores da própria existência. A Arte-Educação será então um dispositivo refletor de expansão e de interdisciplinaridade, interculturalidade, mas também de um pensar transdisciplinar do ser social que somos, do ser espiritual e transcendental que implica a nossa existência. A este propósito, Augusto Boal afirmava: Para ser cidadão não basta viver em sociedade. É preciso transformá-la! Este remeter para um ativo de cidadania solidária e transformadora, constituirá, certamente, um dos grandes desafios da compreensão e do


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envolvimento das práticas do Arte-Educador dirigidas para os perfis de competências e as aprendizagens. Diz-me e eu esquecerei Ensina-me e eu lembrar-me-ei Envolve-me e eu aprenderei (provérbio chinês)

ARTE-CURADOR 7

Fazemos migrar o conceito de Arte-Curador para o nosso território de busca de um perfil otimal de ArteNauta. A função do curador está ligada àquele que cura, àquele que é cuidador. O curador/cuidador seleciona, resgata e preserva os objetos e espaços que a sociedade, por uma qualquer razão a que atribuiu valor, determinará mantê-los em condições especiais. Trata-se, portanto, de alguém que tem que curar, tem que escolher criteriosamente, tem que estar atento às estratégias de gestão mobilizando as suas amplas e diversas responsabilidades e competências.

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ArteNauta Curador. Esta criação de Teresa Alexandrino foi utilizada como iconografia identitária de vários eventos, designadamente relacionados com Óbidos. O último deles foi o 1º Manifesto do TEAR – Territórios Artísticos com a Matemática (Óbidos, outubro de 2014).


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ARTE-INVESTIGADOR 8

Não é certamente possível desenvolver um perfil de ArteNauta sem esta dimensão de se encontrar “colada à pele” a ideia da permanência e da competência de Arte-Investigador. É com esta frequência permanente, regular, pulsada no sentido da pesquisa, e procurando responder através desta e das reflexões ligadas aos diversos contextos onde atua o ArteNauta, bem como às problemáticas diversificadas com que, certamente, se deparará, que importa reter esta dimensão. O Arte-Investigador busca soluções, constrói cenários novos, inova e cria realidades que não existiam ainda. O Arte-Investigador é um produtor e criador de conhecimento.

SÍNTESE DAS COMPETÊNCIAS DO ARTENAUTA Preconizamos no perfil do ArteNauta uma integração compreensiva sobre as cosmovisões alargadas a uma ampla abertura ao mundo das diferenças. Serão estas diversas cosmovisões que permitirão alimentar os denominadores comuns e diferenciados dos ArteNautas e dos seus diferentes estilos de atuação e de aprendizagem. 8

ArteNauta Arte-Ciência. Esta criação de Teresa Alexandrino foi utilizada como iconografia identitária de vários eventos, designadamente no evento ArteNautas de Ciência: Um Projeto Criador de Educação (Lisboa, março de 2014).


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Estas cosmovisões de pluralidades expandidas, aludem à esfericidade do nosso mundo. Importa integrar nele a compreensão sobre as diferenças de leitura do mundo e consequentes práticas de atuação das identidades de ArteNautas. Porque, em última análise, são estes perfis e estas práticas que se tornam modeladoras do modo de atuar. Elas marcam os espaços e os fluxos de intervenção e de construção de relações dialógicas com a sociedade. Eis-nos então perante o desafio de intervir face às diferentes populações e grupos com as habilidades e as competências que permitirão aumentar os graus de pertinência, de fecundidade e de validade, num contexto inspirado por uma pedagogia de situação. Encavalitada numa pedagogia de situação ajustada ao momento e às populações com que se atua, relembramos o que atrás desenvolvemos sobre os ingredientes vitais do perfil de ArteNautas: • O ArteNauta é um Arte-Viajante – porque a Viagem alimenta o que de mais desafiador e profundo inventámos para aprender. Afinal a Viagem cartografa uma trajetória que deverá ser vivida nas suas três fases: (i)

a fase pré-liminar da Viagem com ativação do desejo na direção dos espaços novos, e as populações outras a quem nos dirigimos e com quem atuamos;

(ii)

a fase liminar da Viagem que coloca o epicentro numa ecologia do lugar e das pessoas;

(iii)

a fase-pós-liminar que valoriza o regresso a casa e a mobilização pós-facto dos recursos capturados e angariados, a memória desses registos e os processos de retroação como fonte de aprendizagens.

• O ArteNauta é um Arte-Contador – A Viagem dá que contar. Exercita o tanto que se deseja contar. Somos HistóriaNautas e Contadores de Histórias. E esta é, seguramente, uma das mais importantes modalidades de construir o desejo de nos ligarmos à realização do real reconstruído, à ficção, à utopia, ao sonho, ao devir.


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• O ArteNauta é um Arte-Brincador – Somos brincadores e brincantes. Guardamos em nós a criança que somos e as fantásticas possibilidades que se expressam ao longo da vida, através da natureza genuína e vital do homo ludens. • O ArteNauta é um Arte-Animador – Animar que nos permite impregnar as ideias da nossa alma, as coisas, os lugares, os objetos que são fonte inspiradora dos nossos processos de Animação. Associando-nos com implicação, com envolvimento e de alma inteira ao que queremos dar luz, as narrativas surgem porque o Arte-Animador é um refletor. • O ArteNauta é um Arte-Educador – Educar é trazer para a ação uma das mais nobres missões do ser humano. Educar com e para a Arte. Revelando-nos como Arte-Educador construímos possibilidades de desenvolvimento de outros pelos territórios das expressões artísticas em diálogo transversal e transdisciplinar com o mundo da ciência, da tecnologia, da matemática, do ambiente e da sustentabilidade, bem como das demais linguagens que nos envolvem e que propiciam tantas vezes o espaço da aventura, da descoberta, da fertilização do imaginário e da criatividade. • O ArteNauta é um Arte-Curador – Curar o que importa modelar no sentido da seleção, da recuperação, da preservação, da gestão das condições otimais de se apresentar a coisa, de se apresentar e fomentar o uso do lugar, do museu, da exposição, talvez mesmo de uma performance e/ou espetáculo. • O ArteNauta é um Arte-Investigador – Sempre! Pelo óbvio enriquecimento de uma trajetória humana e comunitária que se revela na pesquisa em si, mas sobretudo no que ela proporciona aos seus utilizadores. A Arte-Educação do ArteNauta impõe e exige que o Arte-Investigador se exponha, se revele e se aproprie criativamente, criticamente, das propostas que resultam do universo da investigação, da busca e criação do conhecimento.


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Referências bibliográficas e videográficas: AGUALUSA, José Eduardo (2013). A Vida no Céu. Lisboa: Quetzal. BARRET, Gisèle (1986a). Pédagogie de l’expression dramatique. Montréal: Université de Montréal. BARRET, Gisèle (1986b). Essaie sur la pédagogie de la situation en expression. dramatique. Outremont (Québec): Recherche en expression. GIL, José (2008). Portugal, Hoje: O Medo de Existir. 12ª edição. Lisboa: Relógio d’Água. MARTINS, Amílcar (1998). Atividades Dramáticas nos Jardins de Infância Luso-Chineses de Macau. Prefácio de António Nóvoa. Macau: Fundação Macau e Direção dos Serviços de Educação e Juventude. MARTINS, Amílcar (Coord) (2002 e 2009). Didática das Expressões. Lisboa: Universidade Aberta. MARTINS, Amílcar (2008). Arte e Educação: A Magia da Palavra. Lisboa: Universidade Aberta. http://zappiens.pt/Z2787 MARTINS, Amílcar (2009a). Voz e Dicção. Lisboa: Universidade Aberta. https://www.youtube.com/watch?v=TK3aEizLvfY&list=PL5E56D4924FCC6EEB MARTINS, Amílcar (2009b). Arte e Educação: A Magia da Música. Lisboa: Universidade Aberta. http://zappiens.pt/video.php?id=2788 MARTINS, Amílcar (2009c). Arte e Educação: A Magia da Expressão Plástica. Lisboa: Universidade Aberta. http://vimeo.com/93977482 MARTINS, Amílcar (2011). “Prefácio”, in Histórias da Ajudaris’11: Pequenos gestos, Grandes corações. Porto: Associação Ajudaris. MARTINS, Amílcar e MACARA, Ana (2011). Arte e Educação: A Magia da Dança. Lisboa: Universidade Aberta. http://zappiens.pt/Z2786 ONFRAY, Michel (2010). Teoria da Viagem: Uma Poética da Geografia. Lisboa: Quetzal.


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CV dos Autores Amílcar Martins é ArteNauta (arte-viajante, arte-contador; arte-brincador; arte-animador, arte-educador, arte-curador, arte-investigador). Ph.D. e M.Ed. em Ciências de Educação, Didática das Artes, pela Universidade de Montreal, Québec, Canadá. Licenciado em Teatro com o curso de Atores e Encenadores pela Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional de Lisboa. É professor auxiliar no Departamento de Educação e Ensino a Distância; coordenador do Mestrado em Arte e Educação (MAE) da Universidade Aberta; investigador no CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação (Polo da UAb). Interessase pela arte e educação; expressão dramática e teatro; dança e música; iconografia artística digital; voz e dicção; narrativas e contação de histórias; literatura de/para crianças; animação e intervenção artística; relações interculturais; perfis de ArteNautas de ação criativa e transformadora. Lecionou, participou e/ou organizou cursos, conferências, seminários, oficinas, tertúlias, master classes, animações, exposições, espetáculos, performances, estágios, residências artísticas, investigações in loco em Portugal, Espanha, França, Angola, Brasil, Canadá, Estados Unidos da América, Filipinas, Japão, Macau-China e outras localidades da República Popular da China, Rússia. Das suas publicações destacam-se os livros: – Didática das Expressões, coord., ed. UAb, 2002 e 2009 – Atividades Dramáticas nos Jardins de Infância Luso-Chineses de Macau, Fundação Macau e Direção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ), 1998. E ainda as séries de filmes (ed. UAb): – Arte e Educação: A Magia da Dança, 2011 (em co-autoria com Ana Macara) http://zappiens.pt/Z2786 – Arte e Educação: A Magia da Música, 2009 http://zappiens.pt/video.php?id=2788 – Arte e Educação: A Magia da Expressão Plástica, 2009 http://vimeo.com/93977482 – Voz e Dicção, 2009 https://www.youtube.com/watch?v=TK3aEizLvfY&list=PL5E56D4924FCC6EEB – Arte e Educação: A Magia da Palavra, 2008 http://zappiens.pt/Z2787

Email: amilcar.martins@uab.pt

Teresa Alexandrino é ArteNauta (arte-viajante, arte-contadora; artebrincadora, arte-animadora, arte-educadora, arte-curadora, arteinvestigadora). Mestre em Arte e Educação pela Universidade Aberta (UAb). Licenciada em Arte e Design pelo IADE, de Lisboa. Tem formação em Filosofia para Crianças. É professora de Arte e Design nos Estudos Ingleses do Colégio Internacional de Vilamoura. É contadora de histórias. Criou múltiplas imagens e iconografias de ArteNautas, enquadrados em projetos de pesquisa no âmbito do Livro, da Mediação e Animação da Leitura, da Arte e da Educação. Participou com os seus ArteNautas e outras ilustrações em várias iniciativas culturais e exposições individuais e coletivas, designadamente em Albufeira, Caldas da Rainha, Funchal, Lisboa, Luanda, Ponta Delgada, Ponte de Lima, Porto, Praia da Vitória, Óbidos, Vagos, Viana do Castelo, Vilamoura, Vila Nova de Foz-Côa, Silves e, ainda, Belém do Pará e Fortaleza do Ceará, estas últimas no Brasil. Criou e dirige o projeto dos CIV Young Storytellers com jovens de várias origens culturais do Colégio Internacional de Vilamoura. Integrou, desde 2011, a comissão organizadora de várias residências artísticas, estágios, seminários e sessões de animação artística e cultural desenvolvidos pelo Mestrado em Arte e Educação (MAE) da UAb, com destaque para Óbidos, Praia da Vitória, Ponte de Lima, Vagos, Vila Nova de Foz-Côa e Silves. Colabora na lecionação do módulo da Expressão Plástica e Artes Visuais da unidade curricular Discursos Artísticos e Contextos Educativos do MAE da UAb.

Email: t_alexandrino@yahoo.com


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