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PORT 202: Reading and Writing Portuguese Fall 2023
Apresentação É com muita alegria que apresento este pequeno livro que contém contos escritos por estudantes de Port 202 durante o trimestre do FALL de 2023, na Northwestern University. Durante esse trimestre, os estudantes escreveram diversos tipos de textos, tanto em seus blogs, como na atividade em aula. Bons escritores são, principalmente, bons leitores. Para escrever bem, é necessário ler textos e “ler o mundo” ao redor. A leitura transforma leitores em escritores, que oferecem momentos de lazer e ponderação. Os textos aqui apresentados seguem uma linha do “surreal”. E têm, como ponto de partida, a leitura e a discussão de contos de autores brasileiros renomados. Lemos “A Caçada” de Lygia Fagundes Telles, “A Máquina Extraviada” de J.J. Veiga, e “O Arquivo” de Victor Giudice, entre outras leituras inspirativas. A própria vivência dos estudantes está refletida em seus contos, que trazem a atuação de um objeto de uso comum a uma experiência “incomum”. Este livro abarca o produto final de discussão, interação e reflexão da interferência do “surreal” sobre personagens em situações extraordinárias. Dois aspectos transcendem a simples leitura dos contos a seguir: cada história tem um “book trailer” composto pelo estudante-escritor, uma forma bem original de incentivar a leitura da narrativa. E, a capa do livro, bem como a capa de cada história têm algo de “surreal”: foram feitas através de inteligência artificial. Com isso, a arte visual, criada por uma máquina segundo instruções do escritor, coaduna-se perfeitamente com o propósito desta obra. Jacob Morlock, estudante de Jornalismo, Estudos Internacionais e Português, em seu texto “A Caixa Encantada” descreve a influência de uma caixa de música sobre um profissional em carreira emergente. Caixas de música trazem uma magia em si. O que pode propor essa caixa musical ao ambicioso jovem ? Maria Virgínia Lorenzo Errazquin, estudante de Sociologia, Estudos Internacionais e Português, em seu conto “O Espelho”, coloca a mulher que acaba de completar quarenta anos face a um misterioso espelho, que é lindamente ornamentado, mas também atormentador. Como a mulher reage face à conscientização de si mesma ao completar uma nova etapa em sua vida? Isabella Costa, estudante de Jornalismo, com Certificado em Marketing e Comunicação, em sua história “O Brilho da Melodia” conecta, por meio de um CD, o passado e o presente de uma cidade do interior dos Estados Unidos. Um Compact Disk, tão desejado em décadas anteriores, perdeu o seu valor por ter sido substituído tecnologicamente, por outras formas de propagar Música. Como poderia renascer e transformar toda uma cidade? Arianna Ray, estudante de Doutorado em História da Arte, escreveu o conto “A Poltrona”. Objetos, como uma larga poltrona de veludo verde, nos proporcionam conforto, bem-estar, mas também podem gerar conflitos entre o que ser, o que fazer, por onde seguir. Como a poltrona pode modificar o sentimento e as atitudes do protagonista? Todos os contos vão levar o leitor a refletir profundamente sobre trajetórias de vida, decisões e momentos de conflito, alegria ou prazer. O livro traz o “surreal” para a nossa realidade do dia a dia, pelas nossas escolhas, decisões, alegrias ou prazer. Parabéns aos excelentes escritores! E boa leitura a todos. Ana C Thomé Williams Professora de Port 202 e Diretora do Programa de Português da Northwestern University
Índice Click on the titles of the stories for a Book Trailer Clique no título das histórias para assistir ao Book Trailer
A Caixa Encantada ..................................................................................................................... 3 Jacob Morlock
O Espelho ...................................................................................................................................8 Maria Virginia Lorenzo Errazquin
O Brilho da Melodia................................................................................................................. 11 Isabella Costa
A Poltrona ................................................................................................................................ 15 Arianna Ray
Biografia dos autores ................................................................................................................ 20
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A Caixa Encantada Jacob Morlock
Os dias de trabalho de Paulo eram consumidos pela agitação do mundo corporativo. Como gerente de marketing em uma empresa de tecnologia, seus dias eram preenchidos com reuniões, prazos e um fluxo constante de e-mails. No entanto, o mundo corporativo, com suas estruturas rígidas e cubículos frios, sempre o deixava ansioso por algo mais. Foi em uma quarta-feira mundana, enquanto limpava a sala bagunçada em seu local de trabalho, que sua vida tomou um rumo inesperado. Enquanto revirava caixas empoeiradas de documentos antigos, sua mão esbarrou em algo inesperado. Era uma pequena caixa de música de madeira, ricamente esculpida, escondida em um canto esquecido. A curiosidade dominou Paulo, e com cuidado, ele pegou a caixa de música, tirando a poeira. Decidiu levá-la para casa devido à incrível arte, antecipando o mistério que ela escondia. Ao colocar a caixa de música na mesa de sua sala de estar, ele não pôde deixar de se perguntar sobre os segredos que ela poderia ter. Algumas horas se passaram desde que Paulo trouxe a caixa de música para casa. Ele estava sentado na sua sala de estar, a caixa descansando silenciosamente sobre a mesa à sua frente. Seu trabalho exigia muito dele, e a corrida incessante pelo sucesso frequentemente se transformava em um fardo implacável. De repente, sem qualquer aviso, uma melodia encantadoramente encheu a sala. A música que saiu da caixa era como nada que Paulo já tivesse ouvido. Naquele momento, ele viu uma caixa de música que parecia ter vida própria. O que mais esse pequeno objeto guardava? E qual era o significado da música que produzia? Paulo não pôde resistir à compulsão, um desejo forte que brotou dentro dele. Sem compreender completamente por quê, ele fez silenciosamente um desejo."Que minha carreira deslanche, que meu nome seja conhecido e meu trabalho celebrado acima de tudo."sussurrava Paulo. O que Paulo não sabia era que a caixa de música tinha o poder de realizar seu desejo. Cansado das emoções que a música havia despertado, Paulo foi se deitar com a caixa de música ainda à vista na sala de estar. Na manhã seguinte, ele se levantou, fez sua rotina matinal e se vestiu para o trabalho. Quando ele chegou no trabalho, sua caixa de e-mails estava cheia de oportunidades e elogios. Ele foi cercado por colegas e superiores, todos ansiosos para trabalhar com ele e ouvir suas ideias brilhantes. Reuniões que antes o sobrecarregavam agora eram ocasiões em que ele brilhava. Sua carreira
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deslanchou a uma velocidade incrível. Ele foi promovido a diretor de marketing, e sua fama se espalhou pela indústria. Ele começou a dar palestras em conferências de marketing e até escreveu um livro de sucesso. À medida que os meses passavam, Paulo continuava a prosperar em sua vida profissional. Numa tarde ensolarada, enquanto almoçava em seu restaurante favorito, Paulo notou algo incomum. O alegre canto dos pássaros parecia formar uma melodia harmoniosa. Paulo observou que os outros clientes no restaurante não pareciam notar a melodia. Sem que ele soubesse, a melodia também estava sutilmente ressoando na caixa de música em sua estante em casa, de alguma forma aparecendo no mundo. Enquanto ele estava dirigindo e ouvindo a canção dos pássaros, o motor de seu carro repentinamente parou, deixando-o encalhado ao lado da estrada. A música parecia desvanecer à medida que ele tentava reiniciar o carro, mas sem sucesso. Paulo foi obrigado a chamar um mecânico que rebocou seu carro e depois o consertou. Além disso, a vida de Paulo parecia estar voltando à boa sorte e ele parou de pensar na misteriosa caixa de música. Algumas semanas depois, quando Paulo estava a caminho da casa dos seus pais, a melodia sinistra chegou até ele através do som dos sinos da igreja a tocar. Os sinos raramente tocavam uma melodia, mas naquele dia produziram esse som tão familiar. Quando chegou à casa dos seus pais, notou um silêncio estranho, os pais do Paulo estavam angustiados, lidando com uma falha elétrica súbita e grave que tinha mergulhado a casa na escuridão.A situação era perigosa e, enquanto lutavam para encontrar uma solução, a ansiedade de Paulo intensificou-se. Enquanto tentava ajudar os seus pais, não conseguia evitar a sensação de que esses eventos perturbadores estavam de alguma forma ligados à música. Enquanto estava no escuro, o pai de Paulo tropeçou e bateu com a cabeça. Ele foi levado ao hospital e entrou em coma. Paulo se sentiu culpado, pois para ele estava claro que as forças misteriosas dentro da caixa de música o estavam punindo por sua ganância e necessidade de ter sucesso no trabalho. Por que outra razão ele ouviria a melodia da caixa de música junto com cada infortúnio? Paulo chegou à conclusão de que a música e a melodia traziam consigo o infortúnio para aqueles que ele conhecia e até o mundo ao seu redor. O canto dos pássaros, os sinos da igreja, mensageiros dos eventos perturbadores que se desenrolaram. Paulo não suportou mais o peso da paranoia. Decidiu enfrentar a misteriosa caixa de música. Sentou-se diante dela, com o coração
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cheio de incerteza, e, com máxima concentração, fez um último desejo: silenciar a música e encerrar a sequência de desastres que haviam destruído sua vida. O mundo pareceu prender a respiração, como se estivesse antecipando o resultado. Paulo abriu os olhos e foi dormir sem saber se seu desejo seria atendido. Paulo acordou com uma sensação de expectativa. Os sons da caixa de música não existiam mais. Na verdade, a caixa não estava em lugar nenhum. Paulo foi para o trabalho e, ao longo do dia, viu sua vida de sucesso desmoronar. Paulo se viu separado de seus amigos e colegas. As ligações telefônicas e os e-mails que costumavam chegar foram substituídos pelo silêncio. As promoções que ele havia conquistado foram retiradas e os contratos que ele havia conseguido se desfizeram. A conta bancária de Paulo diminuiu e ele foi forçado a vender seus pertences e seu grande apartamento, esse foi o preço que teve de pagar para pôr fim a esses eventos perigosos e proteger as pessoas ao seu redor. Custou-lhe tudo, mas ele se livrou da caixa de música de uma vez por todas. Paulo pode ter perdido tudo o que a caixa de música lhe proporcionava, mas ganhou paz de espírito. Paulo recebeu uma boa notícia esse dia : seu pai havia acordado e estava bem. Embora nunca tenha recuperado sua antiga posição na empresa, Paulo viu o que era realmente importante: sua família Em meio aos acontecimentos tumultuosos na vida de Paulo, ele se viu diante de uma decisão difícil: deveria compartilhar com alguém sobre a misteriosa caixa de música? O peso de seu segredo estava se tornando insuportável, e ele ansiava por orientação. Uma noite, ele decidiu visitar sua velha amiga Maria, uma mulher sábia conhecida por ter uma compreensão natural do sobrenatural. Enquanto compartilhava os acontecimentos estranhos e o poder da caixa de música com ela, os olhos de Maria se arregalaram de fascinação. Ela explicou que objetos místicos desse tipo frequentemente vinham com um custo e que sua magia podia ser imprevisível. Ela se ofereceu para ajudá-lo a entender os mistérios de seu passado e presente, e juntos, embarcaram em uma jornada para explorar como melhorar sua vida com base nas experiências e lições que ele havia adquirido.
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Maria e Paulo exploravam as complexidades de sua jornada de autoconhecimento, compartilhavam histórias de suas vidas passadas, riam juntos e exploravam a beleza da amizade de longa data. Maria o incentivou a redescobrir seu amor pela música, um talento que Paulo havia deixado de lado anos atrás devido às pressões do trabalho. Juntos, passaram horas tocando e compondo canções, encontrando nessa melodia uma forma de expressar as emoções que Paulo tinha guardado por tanto tempo. Essas novas perspectivas e a reavivada paixão pela música ajudaram Paulo a encontrar uma sensação de equilíbrio e significado em sua vida. Com o passar dos dias, Paulo aprendeu a redescobrir o valor das coisas simples e a reconstruir sua vida do zero.
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O Espelho
Maria Virginia Lorenzo Errazquin O relógio indicava meia-noite. Portanto, o aniversário da mulher já tinha terminado. Todos seus amigos e companheiros de trabalho celebraram seus 40 anos, mas ela não parecia feliz. Vestindo roupas de festa, eles brincaram e dançaram por todo o apartamento até às dez. Deixaram a sala de jantar e a sala de espera cheias de lixo. Todos os presentes ficaram na mesinha da cozinha, mas nenhum a tinha surpreendido: muitas roupas para o trabalho e coisas para a cozinha. Nada novo. Depois de organizar a casa, a mulher foi a seu quarto, entrou na cama e ficou ali, sentada, refletindo e observando sua vida. O que tinha acontecido? 40 anos de vida, mas a mulher não se sentia orgulhosa. Seus olhos inspecionavam o quarto até que encontraram uma coisa estranha; alguém tinha deixado uma pequena caixinha debaixo da poltrona na quina do cômodo. Rapidamente, a mulher levantou-se da cama e correu à poltrona. Com suas duas mãos, a mulher pegou a caixinha e a despedaçou em dois segundos. Dentro dela, a mulher encontrou um pequeno espelho dourado. O espelho era a coisa mais bonita que a mulher tinha visto: redondinho, com moldura de ouro e sete rosas douradas. As rosas eram as flores favoritas da mulher. Mas, na moldura, todas tinham tamanhos diferentes; ela tinha a impressão de que cada rosa era única. Ornamentavam todo o espelho. A mulher não podia parar de olhar a beleza das pétalas. Ficou ali, examinando cuidadosamente os detalhes do presente, hipnotizada pela beleza da moldura. Embora o exterior do espelho refletisse beleza e juventude, o interior lhe era perturbador; o reflexo da mulher lhe recordava que a sua juventude já tinha terminado, e prontamente chegaria à terceira idade. A mulher desejava recuperar a firme pele de seus 20 anos e a visão dos 15. Lembrou-se do corpo malhado que tinha tido aos 25 e do preenchimento labial que tinha realizado em seu aniversário passado. Cansada, a mulher deixou o espelho junto a sua cama e dormiu. Sonhou com as rosas maravilhosas na moldura do presente. Imaginou um campo cheio dessas flores douradas, e seu corpo perfeito dançando entre elas.
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Na manhã seguinte, a mulher acordou, foi ao banheiro, se viu no espelho e gritou de medo. O que era essa mulher? A pele parecia tão frágil quanto porcelana. Os olhos eram do tamanho de duas laranjas. O corpo tinha forma de triângulo. E os lábios eram como salsichas. O que tinha acontecido? Era como se fosse uma caricatura feita por um artista da rua. Procurou seu novo espelho para observar seu rosto mas já não estava junto à cama. Buscou e buscou, mas a mulher não o encontrou: o bonito espelho tinha desaparecido de seu apartamento. Quando chegou ao trabalho, seus companheiros começaram a fofocar e rir pela transformação da mulher. A sua transformação era tudo o que tinha desejado, mas não era feliz. Decidiu ficar no seu escritório a última hora, pois não queria ser vista pelos companheiros de trabalho. Às nove da noite, a mulher entrou em seu carro e partiu para o seu apartamento. No caminho, a mulher lembrou-se do espelho, e das flores mágicas que lhe inspiraram a lembrança da sua juventude. Lembrou-se da cor dourada, e da beleza da moldura. Era revitalizante. De repente, os sons do exterior do carro se aquietaram. A mulher fechou os olhos e imaginou brincando no campo de flores douradas na moldura do espelho, recuperando a sua juventude e os melhores tempos para seu corpo. Brincando entre rosa e rosa, a mulher era feliz. Embora seu reflexo a perseguia, ela escapava na moldura do espelho onde se sentia protegida. Só desejava ser uma rosa a mais, e ficar na moldura o resto de sua vida. A mulher se perdeu em sua imaginação. Seus olhos ficaram fechados, sonhando em seu mundo. Imaginou e imaginou, até que uma luz a acordou. O som do impacto contra a parede de seu edifício foi o último que a mulher ouviu. A mulher nunca mais voltou a sua casa. Quando a sua família visitou o seu apartamento em busca de seus pertences, encontraram o espelho na cama, onde, no seu aniversário, a mulher tinha ficado sentada, refletindo e observando sua vida. Sua mãe pegou o espelho e leu uma pequena escritura que dizia: “Propriedade da Princesa Diana do País de Gales.” Hipnotizada pela beleza do espelho, ela decide ficar com ele. Mas o espelho já não era o mesmo. Uma nova flor surgiu na moldura de ouro. Maior do que as outras, a oitava flor ficaria nos campos dourados pela eternidade.
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O Brilho da Melodia Isabella Costa
Em uma pequena cidade no subúrbio americano, um lugar que no passado era conhecido pela vida noturna, os bailes, as músicas e a cultura jovem, teve um período em que só restava uma sensação de tristeza. A atmosfera vibrante era a marca registrada da cidade, porém, as ruas, que antes eram movimentadas, cheias de vida e gargalhadas, viraram quietas e quase sem movimento algum. Os bares e salas de bailes icônicos fecharam e os eventos culturais viraram inexistentes. Até parecia que o tempo tinha desacelerado na cidade. Anos atrás, durante um dos bailes, ocorreu um terrível acidente. Uma das lâmpadas causou um curto-circuito que fez com que o espaço pegasse fogo. As chamas rapidamente se espalharam e logo saíram do controle, gradualmente atingindo as construções vizinhas. Felizmente as pessoas conseguiram escapar das chamas e não houve vítimas fatais, mas o fogo acabou com o centro da cidadezinha poque a maioria das casas eram feitas de madeira. Uma fumaça cinza acobertou a cidade que ficou deserta por dias. A cidade foi aos poucos sendo reconstruída, mas a memória do desastre permanecia, ecoando na arquitetura reinventada e nas histórias contadas pelos cidadãos. Apesar da determinação da comunidade em se reerguer, uma mudança drástica surgiu com a intervenção do prefeito. Decretou-se uma nova lei, uma proibição radical: todos os bares e casas de baile seriam banidos e tocar música seria ilegal. Encontros festivos, música e qualquer objeto remetendo a festividades foram proibidos pois foi determinado que eram catalisadores de possíveis desastres futuros. A cidade então mergulhou em um silêncio ensurdecedor. Para manter a cidade viva, o divertimento precisava morrer. Além disso, com o passar dos anos as grandes cidades urbanas vizinhas foram crescendo. À medida que estas cidades urbanas cresciam, ofereciam mais oportunidades profissionais e muitos jovens, querendo começar suas carreiras, partiram da pequena cidade em busca de seus sonhos. Isso levou a uma segunda mudança significativa na cidade, pois deixou para trás somente uma comunidade de pessoas mais velhas. 12
Apesar das restrições severas na cidade, ainda persistiam vestígios que remetiam os tempos de música e agitação. Ocasionalmente, no brechó da cidade se encontra um ou outro vestido de gala desapegado, mas nunca vendidos. Outrora muito usado, mas agora sem propósitos. Também havia resquícios um pouco menos evidentes, como alguns discos de espelho nos lixões, intocados. Em um dos becos da cidade, entre a praça central e o museu local, um velho CD, também há muito tempo esquecido, estava largado no concreto. Quanto mais tempo o disco ficava no chão, mais obvio era que o CD não deixava de ser somente um objeto do passado, inútil no presente. Esta foi a situação da cidade por anos, uma atmosfera pesada e triste onde parecia que até a felicidade foi banida naquele lugar. Não recebiam mais visitantes e a cidade ficava muito deserta porque sem divertimento, muitos preferiam nem sair de casa. Os cidadãos estavam existindo, mas não de fato vivendo. Porém, em uma noite de lua cheia, o velho CD, como se tivesse sido despertado de um longo sono, começou a refletir a luz da lua. Suas ranhuras riscadas e gastas, que uma vez transportaram melodias agora esquecidas, começaram a brilhar com intensidade. Era tão intenso o reflexo que o disco ganhou energia o suficiente pra ser arremessado para o alto. Sobrevoando a cidade, o disco disparou raios de luz em todas as ruas, iluminando a cidadezinha por completo. Ninguém estava entendendo o que estava acontecendo. Que luz era aquela? De onde estava vindo? De repente, o disco voador começou a tremer e tocar uma música animada altíssima. Fazia anos que esse CD não tocava música, o som então ecoou pelas ruas da cidade, cativando e tocando o coração dos residentes que, no passado, passavam a noite em claro dançando nos bailes da cidade. Idosos de todos os cantos da cidade se reuniram no centrinho, todos olharam para cima para ver o CD, que lembrava os discos de espelhos no teto dos bailes. Assim que olharam para o CD foram hipnotizados instantaneamente pela música, a beleza do reflexo da lua e o brilho único do
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disco. Todos começaram a dançar incansavelmente devido ao efeito da hipnotização e só pararam quando amanheceu, pois o disco parou de refletir a luz da lua e o efeito da hipnotização foi interrompido. Até o próprio prefeito não saiu ileso da hipnotização. Era impossível dizer o que estava ecoando mais alto pelas ruas da cidade, a música ou as risadas e gargalhadas dos residentes. Além da música, sorrisos e abraços genuínos marcaram aquela noite. Durante a noite, os cidadãos perceberam que o CD, como eles, estava desesperado para voltar ao tempo da agitação, a vontade era tanta que o CD não aguentou mais permanecer silenciado. Tiveram a oportunidade de relembrar como a vida era antes, e ainda fascinados pela magia do disco, perceberam que não daria para viver sem música e dança. Os cidadãos então emolduraram o disco em uma caixa de acrílico e colocaram em um pedestal na cidade com uma placa que dizia “O disco que nos fez voltar a viver: desgastado pelo tempo, mas ainda brilhante nas melodias”. O prefeito reverteu a lei que bania os bailes, a música e os objetos festivos. Porém, mesmo com a volta dos bailes e bares, durante toda lua cheia, os cidadãos iam ver o disco fazer sua magia: brilhar e tocar músicas até o amanhecer. Isso virou uma tradição da cidade, onde todos iam religiosamente visitar o CD na época de lua cheia porque afinal, independente da nova arquitetura, o que de fato reergueu a cidade foi o CD. Foi devido ao disco que os residentes perceberam que não era necessário esquecer o passado, mas, sim, celebrar e honrar suas histórias. Além da sua magia, o disco também era um consolo para os idosos. Pois o disco fazia com que eles pudessem viver como os tempos passados, e lembrar que fazer o que verdadeiramente os agrada nunca deve ser deixado de lado e esquecido. A cidade voltou a ter uma atmosfera vibrante como sua marca registrada e todos perceberam que na verdade, para manter a cidade viva, era necessário manter o divertimento vivo também.
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A Poltrona Arianna Ray
No dia que o homem viu a poltrona pela primeira vez, ele estava sozinho e preocupado. Sua semana estava sendo horrível na sua opinião. Ele não tinha recebido uma promoção no trabalho, ele tinha se mudado para o novo apartamento, depois do rompimento com a namorada, e ele não podia encontrar seu cobertor favorito da infância. Ele estava caminhando ao mercado das pulgas em um humor terrível, mas ele sabia que a maneira de se sentir melhor era sair para tomar ar fresco. Então era isso que ele estava fazendo lá. Nos anos passados, ele tinha adorado o mercado. Ele poderia passar um fim de semana completo batendo papo com pessoas e perambulando pelos corredores. Mas hoje era um esforço lutar contra seu desespero. Ele escolheu um objetivo: quando ele comprasse uma coisa, ele poderia voltar ao seu apartamento. Mas os sorrisos dos vendedores eram bem grandes e o barulho dos visitantes, esmagador. Ele lutou contra o sentido do desapontamento quando, então, a poltrona apareceu. Estava numa lojinha que ele nunca tinha notado antes. A vendedora era linda mas não tentava falar com ele. Ele achou (e então desistiu do pensamento) que a poltrona havia sussurrado seu nome. A poltrona era grande e de veludo verde. O tecido estava desgastado o suficiente para fazer as almofadas afundarem de modo a envolver o corpo. Ele podia se imaginar descansando seus ossos cansados naquela poltrona depois do trabalho, enrolando-se com um livro para esquecer seus problemas. A poltrona parecia uma promessa. “Ah, você não pode provar a mercadoria. É necessário comprar para provar,” disse a mulher. Ele não percebeu que ele se estava se dirigindo para perto da poltrona. Ele ficou surpreso ao ver que sua mão tinha se estendido para tocar o material. “Desculpe.” Ele queria perguntar por quê. A regra não fazia sentido, mas ele estava um pouco encantado com a beleza da mulher. “Qual é o preço?” ele perguntou em vez disso. 16
O restante do dia foi um atordoamento. Ele não se lembrava como ele tinha chegado à casa com a poltrona. Ele não tinha um carro e a poltrona era tão grande para levar com as mãos. Era como se o tempo tivesse saltado e, então, a poltrona estava no canto da sala de estar. Com a nova energia do sucesso, o homem começou a limpar seu apartamento e desembalar as caixas. Ele passou aspirador nos carpetes e esfregou o chão da cozinha. A música tocava e ele cantarolava junto até que, de repente, a canção parou. No silêncio, ele ouviu de novo seu nome em uma voz suave e aveludada. A cor da poltrona era mais brilhante em um halo da luz. Ele pensou que talvez tivesse ganhado um descanso. E ele se sentou. A poltrona era mais confortável que ele poderia esperar. Todas as dores escaparam do seu corpo. Ele queria chorar pelo alívio que ele não tinha sabido que precisava. Sua cabeça se reclinou. Seus braços caíram. Suas pernas se dobraram. Ele ficou mais contente que quando era criança. Era meio da manhã quando ele se sentou. E, de repente, já era noite. A lavadora emitia incessantemente o som de bipe e ele ficou chocado de não ter notado isso antes. Com um solavanco, ele se levantou e, atrás de suas costas, a poltrona suspirou como se estivesse triste. Na manhã seguinte, ele decidiu beber seu café na poltrona. O sol brilhava e ele se sentia mais feliz que do que nunca. Ele tinha um pouco tempo antes de ir ao trabalho e ele estava contente de meditar na poltrona. A poltrona deu um suspiro de alegria. E, assim, o dia passou sem que o homem se levantasse para comer, tomar banho ou fazer qualquer outra coisa além de sentar-se em supremo conforto. Era a manhã seguinte antes que seu corpo exigiu que ele usasse o banheiro. Ele tinha faltado ao trabalho. Ele nunca faltava ao trabalho. Seu chefe não se sentiria feliz com ele. Ele se recostou na poltrona em desespero. Todos os seus problemas pareciam piores de alguma forma. A poltrona sussurrava para ele que a vida era horrível e que o único lugar em que ele estava seguro era ali, afundando mais e mais em seus braços de veludo. A cada dia que passava, ele se tornava cada vez menos consciente de si mesmo e cada vez mais uma invenção da depressão. Ele nem mesmo notava o sol brilhando pela janela ou o nascer da lua iluminada na
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sala de estar. Uma parte de sua mente sabia que ele deveria partir, que ele adorava caminhar, que ele perdia sua sanidade dentro do apartamento nessa poltrona. Mas a poltrona aquietava o homem cada vez e cada vez ele se tornava mais e mais fraco até que ele não estava certo onde a poltrona começava e seu corpo terminava. Um dia, qual semana, qual mês ele não sabia, sua ex-namorada chegou. Ela tinha telefonado ao homem, mas não tinha recebido uma resposta. Ela tinha uma caixa de seus pertences e, na verdade, ela queria ver o homem porque ela sentia falta dele. Ela bateu na porta e esperava com um coração que estava batendo tão rápido. Ela bateu de novo e de novo uma outra vez. Quando ele ainda não veio à porta, ela olhou pela janela. Mas tudo que ela viu foram algumas caixas de mudança e uma poltrona de veludo verde com pés estranhamente humanos.
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Biografia dos Autores Jacob Morlock is a second-year Journalism and International Studies student at Northwestern University, minoring in Portuguese. In the future he hopes to use his knowledge of Portuguese to study abroad or work in Portuguese speaking countries. Jacob's text talks about the chaos of working life and the danger of letting a job take control of your life. Jacob hopes that through the main character Paulo, readers will learn to be more grateful for what they have especially during difficult times. Click here for Jacob's blog in Portuguese
Maria Virginia Lorenzo Errazquin is a sophomore majoring in Sociology and International Studies and minoring in Portuguese. She was born and raised in Uruguay, in a mixed Spanish-Latino household. She spent her last years of education at UWC South East Asia, Singapore, and became passionate about South East Asian cuisine. She is passionate about development projects and hopes to continue traveling and getting involved in different humanitarian projects around the globe. Virginia was inspired by Netflix’s renowned series The Crown when writing her short story. In the story, the main character suffers from the body-related insecurities that Princess Diana once suffered, and the consequences would be equally dramatic. The story will keep you at the edge of the seat, having a surprising turn at the end. Click here for Viginia's blog in Portuguese
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Isabella Costa is a fourth-year student pursuing a degree in journalism with a certificate in integrated marketing communications. Born and raised in São Paulo, Brazil, she embraces her atypical Brazilian identity, having both Portuguese and English as her first language. Beyond her academic pursuits, Isabella finds joy in dancing ballet and reading a good book. Motivated by F. Scott Fitzgerald's novel "The Great Gatsby" and the Footloose musical, Isabella was inspired to write the "O Brilho da Melodia" story that delves into the significance of enjoying life's simple pleasures. Click here for Isabella's blog in Portuguese
Arianna Ray is a doctoral candidate in the Department of Art History, working on a dissertation entitled "Paper Skin: Printing Blackness and Materializing Race in the Early Modern Dutch Atlantic." She specializes in the study of prints and their materiality, global circulation, and impact in the construction of race and alterity. Prior to coming to Northwestern, she earned her BA from the University of North Carolina at Chapel Hill and her MA from the University of Texas at Austin. Outside of the academic world, she has held positions in a variety of museums, including the Art Institute of Chicago. In her free time, she enjoys running, reading, and going on a good hike. Arianna's story, inspired by her own green velvet armchair, contends with the struggles of mental health and the ease with which we seek comfort in material objects. Click here for Arianna's blog in Portuguese
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