PA R Q U E E N G E N H O D ` Á G U A Analee Sasso TGI-I
PA R Q U E E N G E N H O D ` Á G U A
Capa: Engenho D’água - Ilhabela,SP 2017
Professor CAP Joubert Lancha Orientador Paulo Fujioka Analee Torres Sasso Universidade de São Paulo, 2017
Caderno TGI - I Graduação Arquitetura e Urbanismo IAU - USP Instituto de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo
Sumário Venho do mato Reflexões e motivações
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Lugar Caracterização Comunidades tradicionais caiçaras Congada de São Benedito Fazenda Engenho D’água
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Programa e Propostas
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PROPOSTA
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Referências
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Bibliografia
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O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia, O Tejo tem grandes navios E navega nele ainda, Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, A memória das naus. O Tejo desce de Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia. Pelo Tejo vai-se para o Mundo. Para além do Tejo há a América E a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além Do rio da minha aldeia. O rio da minha aldeia não faz pensar em nada Quem está ao pé dele está só ao pé dele. “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa
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Venho do mato
Reflexões e motivações
É muito difícil explicar para as pessoas o que é ser de uma ilha. Porque existe um momento da sua vida que você descobre que a porção de terra que você ocupa é infinitesimal menor do que o continente, onde a maioria da humanidade mora. Acho que em parte o que atrai as pessoas para Ilhabela, e que atraiu minha família, é a mística dessa pequena porção de terra, não muito habitada em meio ao mundo moderno onde tudo é ocupado por cidade. Em Ilhabela é ao contrário. Tudo é mato. Quando tinha 6 anos mudei de casa, fui para um bairro que naquele momento era muito recente, e minha casa era uma das poucas da rua. A rua era de terra, e só o que tinha por todos os lados era mato. Era comum aparecerem em casa todo tipo de animal: cobras, lagartos, tucanos, maritacas, e até tatu. Meus primos e eu exploramos cada canto da Cocaia. E isso inclui o mato. Para o desespero na nossa vó, nos enfiávamos nos matos, nas picadas abertas que davam no rio que cruzava o bairro. Ir descobrindo o caminho no meio da mata pela primeira vez envolve uma mistura de muito medo de alguém aparecer e te matar e a excitação da descoberta de um lugar que parece ter visto poucas pessoas. Com o tempo você cria intimidade com o mato, aprende a achar o caminho e se orientar, aprende a não ficar só olhando pra baixo com medo de pisar em alguma cobra. Scooby,Primos & Analee - Ilhabela, SP - 1993
Viver tão distante de lá fez com que eu colocasse essas experiências em perspectiva. Cresci em um meio que já era extinto para a maioria das pessoas, e isso moldou minha relação com a natureza, com a terra debaixo das unhas, o rio cheio de pedras, o sol suave entre as árvores em dezembro, a fruta madura no pé... Sempre me senti deslocada na vida, quando ando por São Carlos, nas suas quadras tão racionais sinto falta dos dias quentes de verão e do rio gelado do meu bairro. Ilhabela é esse lugar que para quem vem no verão a passeio é exótico e misterioso, com suas belas praias e cachoeiras. Mas para mim é outra coisa: é minha casa, minha terra, onde eu conheço cada montanha, o canto de cada pássaro, o cheiro da chuva chegando, o barulho das maritacas fazendo ninho no forro do meu quarto, os pitus beliscando meu pé no rio... Espero com esse trabalho traduzir minha imensa reverência à natureza, na forma de ancestralidade. A mata virgem é o início da nossa história como humanidade, não estamos dissociados, foi uma grande jornada de lá até nossas cidades, e todos os atores que cumpriram seu papel e permitiram ser possível que estejamos aqui hoje merecem ser reverenciados. Só pude estabelecer tal relação com a natureza e as coisas que vieram anterior à mim, não através de leitura, ou que alguém tenha me ensinado, e sim por conta das experiências que vive, não só nos matos, mas em outros âmbitos de ancestralidade.
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Se meus avós não tivessem largado tudo para trás na Paraíba para tentar uma vida melhor em São Paulo eu não estaria aqui, escrevendo esse caderno. O passado nos molda todos os dias, mesmo que não saibamos que passado é esse. Assim considero que a experiência do espaço, da cênica, da paisagem, do momento, do ambiente, é maior que tudo, maior que a arquitetura, maior do que grandiosos monumentos, só a experiência pode te aproximar realmente de algo. Essa experiência é a relação individual que cada pessoa vai construir com o espaço, baseada na sua própria bagagem e vivência. E é isso que vai eventualmente se tornar memória cristalizada. Entre muitas das coisas que um arquiteto pode oferecer ao mundo está essa construção de um ambiente que proporcione uma experiência sensível. Algo que não possa ser experimento através de planta, corte, fachada ou renderizações. Algo que é preciso realmente estar presente e ser vivido. Espero criar outro tipo de relação com o tempo anterior à nós mesmos. Afinal, desaprendemos a nos relacionar com o passado de uma forma pessoal, apenas usamos recortes de uma grande historiografia construída, não temos raízes, não sabemos de onde viemos, não sabemos para onde vamos. Quando o passado estava na tradição oral a relação que se estabelecia era completamente distinta. Com a modernidade instaurada em nosso cotidiano seguimos apenas uma historiografia oficial, curada minuciosamente, mas que não nos diz nada sobre quem somos e de onde viemos.
Caminhante sobre o mar de névoa Caspar David Friedrich,1818
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“A ativação da memória [...] nestes tempos de transformações e de aceleração da história, diante da perspectiva da perda, do esquecimento, configura-se como uma necessidade premente de reconstrução da própria identidade do indivíduo no seio da nascente sociedade de massa “ (ALMEIDA, 2009, p.40) É fundamental exaltar o valor da visão histórica não como se tratando de um olhar passivo e apático para o passado, mas o olhar holístico, que percebe correlações entre passado e presente. “A história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função das suas necessidades atuais. É em função da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em função do presente: assim se poderia definir a função social da história” (Febvre apud Le Goff, p. 438, 1949) E a organização do espaço na forma de arquitetura e cidade é apenas um subproduto dessa equação vida, gente, tempo e espaço. É a consequência última no espaço e tempo de gerações que deixam sua história escrita no traçado das ruas, no contorno das paisagens, no mapa da cidade. Assim a construção do olhar crítico sobre o passado muito difere de orientar a produção contemporânea para o historicismo ou saudosismo. Tal olhar crítico é substancial no vislumbre de novas possibilidades quanto à arquitetura e cidade. A construção da historiografia do lugar está também em sua dimensão de memória. Esta se dá à escala humana, à escala de cada indivíduo, na constituição de sua identidade em associação com o tempo e espaço.
“um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade de coerência de uma pessoa de um grupo em sua reconstrução de si” (Pollak, p.204,1992)
Quanto a constituição da memória através do espaço, ou seja edifícios e cidades Maria Lucia Bressan nos fala sobre esta relação através de sua análise de Ruskin: “...o que vale dizer, a história. É na longa duração, com a passagem do tempo, que a arquitetura vai se impregnando da vida e dos valores humanos; daí a importância de construir edifícios duráveis, e de preservar aqueles que chegaram até nós. “(Bressan,p.27,2008)
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Logo o despertar da memória urbana latente pode ser interpretado como uma das possíveis respostas às cidades contemporâneas: “É justamente a afirmação do projeto do presente, em concomitância com a conservação do passado, que sugere a necessidade de extrapolar os limites da investigação no campo específico do restauro, para relacioná-la com a compreensão da produção arquitetônica contemporânea naqueles pontos de tangência e de convergência entre esses dois níveis de abordagem.”(Almeida, 2009) Em Setembro de 2009 em conferência Rem Koolhaas nos dá uma nova perspectiva sobre a conservação, em sua perspectiva coloca em questionamento a produção pósmoderna, de Aprendendo com Las Vegas aos dias atuais “Estamos vivendo um momento incrivelmente emocionante e um pouco absurdo, ou seja, que a preservação está nos ultrapassando.Talvez podemos ser os primeiros a realmente experimentar o momento em que a preservação não é mais uma atividade retroativa, mas se torna uma atividade perspectiva.” (Koolhaas, 2009) . A imagem do arquiteto como demiurgo é sem dúvida um dos maiores equívocos na conformação deste ator urbano. Seu papel está muito mais próximo de um vassalo do espaço e tempo. Alguém que deva fornecer humildemente à humanidade lampejos de técnica aliados à teoria, na esperança última de que se conformem boas relações com os espaços. É ainda por seu status de vassalo que cabe ao arquiteto e urbanista organizar um olhar sobre o passado das cidades. A história sempre estará lantente ao traçado da cidade, porém cabe à este agente de organização espacial e temporal, trazer para o tempo e espaço presente relações que outrora ali habitaram. É através da inscrição do presente em um contexto de passado que a densidade de apropriações se amplifica. Ou seja, ao ganhar memória viva no presente que a apropriação do lugar se dará.
“Percebe-se, então, que a memória não aprisiona o indivíduo ao passado, mas o liberta de preconceitos e da padronização imposta, conduzindo ao enfrentamento dos problemas atuais com mais segurança, tornando o grupo social muito mais politizado e comprometido com o bem público. Aí é que entra a importância dos centros de memória, ou instituição-memória, pois ela organiza e racionaliza as memórias perdidas, e não é simplesmente um depósito de memórias vividas pelo grupo social.” (Rodrigues e Machado, 2010)
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É a constituição de um patrimônio, um legado, uma herança deixada de uma geração para outra. É o que firma a relação com o local. Em um mundo aonde a noção de território nacional vem sendo arrasada graças à nova organização globalizada se tem a visão do todo, através da mídia, da comunicação, dos satélites, da internet. E ao ter a noção do todo se olha para o local em busca de uma outra dimensão. “ a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a frequência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender. “ (Santos, p.212, 2006) “ Os temas “memória” e “patrimônio cultural” relacionados entre si configuram uma consciência coletiva de apropriação do passado pelo presente e necessariamente uma perspectiva de transmissão ao futuro, garantida pela idéia de preservação. “(Almeida, p. 42, 2009) “Se a arquitetura é produto tanto da memória como da invenção, então as ações de preservar o antigo e construir o novo não podem ser consideradas antitéticas. É necessário, ao contrário, reconhecer que estratégias de preservação precisam estar absolutamente entrelaçadas com as dinâmicas de inovação.” (Almeida, p. 72, 2009) Então a escolha deste trabalho será através do patrimônio, seja qual for sua natureza, arquitetônico, cultural, natural, criar uma experiência que constitua uma conexão com o lugar e sua herança passada. Possibilitando não só uma afirmação da própria identidade para a população local, mas também um postura de reverência à todos aqueles que passarem por lá.
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“Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”. As cidades invisíveis, Italo Calvino
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Lugar
Caracterização Ilhabela é um arquipélago localizado no litoral norte de São Paulo, à cerca de 200km da capital. Possui área total de 347km² dos quais apenas 52km² correspondem à área do município. Descoberta em 1502 por Américo Vespúcio a ilha era chamada de Maembipe pelos índios tamoios, que significa “local de troca de mercadorias e resgate de prisioneiros”, uma espécie de zona neutra para trocas. Em 1608 chegaram à ilha os primeiros sesmeiros vindos da Vila de Santos, dando início oficial à ocupação urbana, com engenhos de cana. O município de Ilhabela foi fundado oficialmente em 1806 quando se estabelecia no ciclo do café, produzindo extensivas quantias de café em mais de 30 fazendas espalhadas pelas ilhas do arquipélago. A prosperidade cafeeira foi proporcionada pelo solo extremamente fértil fornecido pela mata atlântica, as plantações chegaram à 600 metros de altitude, degradando a mata local. Com o fim do ciclo do café outras culturas foram desenvolvidas na ilha, e no começo do século XX os alambiques começaram a ter força na cidade, que chegou à uma produ;áo anual de 500 mil litros de cachaça. O último engenho a encerrar atividade, em 1980, foi o Leite & Irmãos. Apesar da produção de cachaça na cidade o que propulsionou a economia local foi a exploração turística a partir da década de 60 com instalação do serviço de travessia marítima, sendo o turismo hoje a principal fonte de receita de Ilhabela. Estima-se que a população, de 35.197 habitantes (2005 IBGE), mais que duplica durante a alta temporada (dezembro, janeiro, fevereiro e julho).
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Apesar do desmatamento em decorrência das culturas de cana e café Ilhabela é hoje o município que preserva a maior área de mata atlântica original preservada. Hoje no Brasil restam apenas 12,4% de mata atlântica remanescente, no estado de São Paulo restam 14% da área original.
“A Mata Atlântica é um bioma considerado hotspot por abrigar umas das maiores diversidades biológicas do planeta, com mais de 20 mil espécies de plantas, das quais 40% são endêmicas, ou seja, espécies que não existem em nenhum outro lugar no mundo. É a floresta mais rica do mundo em árvores por unidade de área” (CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 2005).
Então em 1977 é criado o Parque Estadual de Ilhabela PEIb, com o objetivo de preservar a mata atlântica remanescente. O parque é delimitado pala cota altimétrica de 200 m na faixa que compreende o canal entre Ilhabela e São Sebastião, e pela cota altimétrica de 100 m no restante da ilha. Correspondendo à 86% da área insular, e cerca de 300km² de mata atlântica. “Em 1985, foi publicada a Resolução de Tombamento da Serra do Mar e de Paranapiacaba pelo CONDEPHAAT.
Destaca-se “(...) pelo seu grande valor geológico, geomorfológico, hidrológico e paisagístico (condição de banco genético de natureza tropical, dotado de ecossistemas representativos da fauna e da flora), e por funcionar como regulador das qualidades ambientais e dos recursos hídricos da área litorânea e reverso imediato do Planalto Atlântico. A escarpa da Serra do Mar, que serviu no passado de refúgio climático para a floresta úmida de encosta, exibe hoje os últimos remanescentes da cobertura florestal original do Estado de São Paulo, fundamentais para a estabilidade das vertentes de alta declividade aí presentes, sujeitas aos maiores impactos pluviométricos conhecidos no país”.” (PMMA, 2015)
Pintura de Debret datada de 1827 retrata mercado de escravos e pelourinho em Villa Bella da Princesa
A área tombada dentro de Ilhabela corresponde ao Parque Estadual, que em 1992 foi reconhecido pela UNESCO como Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Reforçando o caráter decisivo do parque em preservar a paisagem e a biodiversidade do arquipélago.
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150km de costa, 42 praias, 365 cachoeiras, picos de mais de 1300m de altura, diversas trilhas, santuรกrio de biodiversidade
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Comunidades tradicionais caiçaras Ilhabela abriga atualmente 17 comunidades tradicionais caiçaras na face oceânica do arquipélago. No último levantamento da prefeitura, emm 2014, haviam 833 habitantes nas comunidades. As principais atividades são a pesca e a roça de subesistência.
A população caiçara é resultado da miscigenação de diferentes povos: índios, portugueses, africanos e diversas outras nacionalidade europeias que visitaram Ilhabela durante as navegações. Muitos piratas e corsários visitaram Ilhabela, o arquipélago tem sua costa repleta de naufrágios dos navegantes mal sucedidos. Diversas histórias são contadas sobre tesouros que estariam enterrados. A credibilidade das histórias sobre os tesouros é questionável, mas é inegável a presença de navegantes europeus, ja que muitos caiçaras possuem feições arianas, com olhos azuis e cabelos loiros.
“Atualmente, o Plano Diretor define como Zonas de Interesse Específico – ZIE as áreas ocupadas pelas comunidades tradicionais caiçaras, as áreas de patrimônio histórico-cultural e os sítios arqueológicos. O art 14, parágrafo 1˚ delimita a área na Ilha de São Sebastião como: “(...) limites laterais pelo divisor de águas de cada sub-bacia hidrográfica contígua à praia ou costeira onde se encontram as moradias de cada uma das comunidades até atingir a cota que define o limite do Parque Estadual de Ilhabela” PMMA 2015
A cultura caiçara se manifesta de diversas formas, na arquitetura das casas, na culinária, no falar, no artesanato, nas embarcações e aparatos de pesca, e nas festas religiosas. Das festas religiosas pode-se destacar a festa de Nossa Senhora da Ajuda e Bom Sucesso, padroeira de Ilhabela, A festa de São Benedito, com a tradiicional Congada, a festa de São Pedro, a festa de Santa Verônica e a festa de São João.
Além das cantigas e danças, que são variações do Fandango, baile popular no território paulista. Entre eles estão a Dança do Vilão e o Quebra-Chiquinha
Fundart Ubatuba
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“Soberano Rei de Congo
Encontrei com São Benedito Descendo a sua Igreja Com a sua procissão Com a filha de Maria
Cantando a sua oração
Com seus conguinhos do lado E com sua espada na mão São Benedito a desejar Reino do coração” 22
Congada de São Benedito A congada é uma festividade que se observa em diversos países que tiveram colonização portuguesa com intervenção jesuíta. Original do Congo é um teatro que encena uma batalha entre mouros (muçulmanos) e o reinado de Congo, a época da criação da encenação este havia sido recentemente convertido ao cristianismo. Apesar de ser amplamente distribuída pelo território brasileiro, em cada localidade assume características próprias. É associada às comunidades afrodescendentes brasileiras, e a imagem de São Benedito era associado como protetor dos escravos, obviamente esta figura é uma associação católica do orixá Ossaim do Candomblé. Em Ilhabela a Congada de São Benedito ocorre durante o mês de Maio, sem data específica e com duração de 3 dias. No passado ocorria durante a lua cheia, pois os pescadores não saiam a noite para pescar, a intensa luminosidade da lua permitia que os peixes fugissem das redes de pesca. Entre 1944 e 1956 a congada foi proibida pelos padres dos franciscanos de São Sebastião.
Os festejos da Congada envolvem a encenação, uma “missa negra”, procissão com a imagem de São Benedito, e a ucharia. Esta última é uma grande refeição comunitária preparada por mulheres das famílias que carregam a tradição da Congada através das gerações. Os alimentos são doados pelos devotos de São Benedito como forma de agradecimento por graças alcançadas. O “papel” das figuras principais dentro da Congada são mantidos dentro das mesmas famílias a gerações. É sem sombra de dúvida a manifestação cultural mais forte em Ilhabela, atraindo a atenção. Como da pesquisadora de folclore Iracema França Lopes Corrêa, Dona Dede, que escreveu o livro “Congada de Ilhabela na Festa de São Benedito”, material referência no assunto.
Também atraiu a atenção da Superintendência de Comunicação Social da Universidade de São Paulo que produziu entre os anos de 2004 e 2011 uma série de 6 filmes documentais a respeito de diversos aspectos da congada, desde a sua encenação, história, origens, as famílias responsáveis por propagar a tradição. Os filmes estão disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=CpCuk441ZCw&t=264s Além de ser uma material riquíssimo é uma bela referência de como registrar o patrimônio intangível.
Congueiros mirins na encenação 2014, acervo pessoal
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“Ele (o monumento) constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos.” Choay, Alegoria do Patrimônio
Fazenda Engenho D’água 1924, Acervo IPHAN
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Fazenda Engenho D’água A Fazenda Engenho D’água foi uma das grandes fazendas produtoras de Ilhabela. Localizada à norte da ilha principal, com a propriedade de 43,5 mil m², as construções centrais, a Casa e a Senzala datam do século XVII e carregam tipologia tipicamente colonial que é observada em outros sítios da região do Vale do Paraíba. A casa principal se constitui de um sobrado de aproximadamente 700m², originalmente em taipa de pilão. Na década de 1930 a propriedade, que compreendia todo o bairro Engenhos D’água, encontrava-se em alto estado de degradação e foi adquirida pela família Gontier, que com apoio do SPHAN a época deu entrada no processo para tombamento da Fazenda. E em fevereiro de 1945 a Fazenda foi tombada patrimônio histórico. Os Gontier se encarregaram da recuperação completa do engenho, com auxílio técnico do SPHAN, executaram um minucioso trabalho para recuperar a casa principal de deixa-la o mais próximo do que havia um dia sido. Vale ressaltar que os autores contemporâneos se posicionam contra essa atuação no patrimônio, tentando reproduzir seu estado anterior. Porém na época essa era a prática adotada e indicada pelo SPHAN, que mais tarde se tornaria o atual IPHAN.
A esquerda imagens de 1924, antes do restauro pela família Gontier, e a direita imagens recentes da edificação central acervo IPHAN/ acervo pessoal
Em 2015 a Prefeitura Municipal concluiu o processo de desapropriação, por R$23 milhões. Fazem parte da propriedade uma pequena represa, dois canais de água, um aqueduto elevado, um engenho de cana de açucar, um alambique de cobre, cinco toneis de madeira amendoim com capacidade de 20 mil litros cada, e um trator e um caminhão, ambos de 1932, os primeiros veículos de Ilhabela.
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Fazenda Engenho D’ågua, ao fundo Pico Baepi, o pico mais alto de Ilhabela com 1050 metros de altura
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Fachada Oest
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15m
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Fachada Sul
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15m
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Edificação principal Pa v i m e n t o t é r r e o
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Segundo pavimento
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Ă rea total
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Planta do arquivo IPHAN
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Planta pré-intervenção Gontier
Planta situação atual / pós-intervenção Gontier
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Programa & Proposta O projeto tinha como cerne a Fazenda Engenho D’água, e no primeiro momento do desenvolvimento do trabalho tinha a intenção de integrar a Fazenda a outras edificações históricas que tinha conhecimento que se espalhavam pela ilha. A intenção era criar um sistema urbano de edificações patrimoniais que abrigassem programas que fossem de uso da população ilhabelense, assim a qualificação das edificações criaria o elo entre identidade, patrimônio e memória, gerando apropriação urbana. Porém ao ter contato com um trabalho de inventariamento do patrimônio arquitetônico de Ilhabela, desenvolvido na FAU pela professora Maria Lucia Bressan, me dei conta de que as edificações eram majoritariamente bens privados, que são usados por hotéis e pousados. Concomitantemente ao realizar as leituras da área do entorno da Fazenda me deparei com a faixa de 150m no sentido norte-sul, que se inicia no engenho e vai até o parque estadual, na cota 200m, à 1400m do Engenho sentido oeste-leste, onde não à qualquer ocupação, nem sequer loteamento; o que é bem incomum dentro do perímetro urbano. O que ocorre é que esta faixa é, segundo o plano diretor de Ilhabela, uma Zona de Uso com Alta Restrição: “Zona de Alta Restrição 2 (ZR2) - Compreende as áreas que possuem como características relevos de inclinação predominante acima de 47%, recobertos por floresta ou não, que ocorram nas vertentes voltadas para o Canal de São Sebastião, portanto relativamente próximas aos centros administrativos, culturais e de comércio e serviços, constituindo-se zonas de alta restrição de uso por razões geotécnicas e ecológicas.” PDI, 2015
Além de a faixa ser ZR2 o trecho compreendido entre as cotas 100 e 200 está enquadrado na Zona de Amortecimento definida pelo plano de Manejo do Parque Estadual de Ilhabela. “zona de amortecimento – Entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas às normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos ambientais negativos sobre a unidade, definida por seu plano de Manejo.”
Ainda segundo o PDI: “áreas de interesse ambiental, zona de amortecimento do parque e áreas tombadas pelo CONDEPHAAT - são porções de território com características culturais ou naturais diferenciadas que estruturam a paisagem ou constituem ecossistemas importantes, atribuindo-lhes identidade, com repercussões no município como um todo;” Desta maneira ficou clara que a intervenção deveria ser feita neste sentido, oeste-leste, e não seguindo a costa, sentido norte-sul. Afinal esta faixa atrás do Engenho também compõe a paisagem do local. Se eventualmente fora loteada e ocupada descaracterizaria completamente a paisagem do Engenho. Ou seja, ela também compõe o patrimônio do Engenho, na forma de paisagem e natureza.
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Deste ponto então defini o programa como sendo esta faixa, começando pelo Engenho, subindo até a cota de 100m, onde por providência existe um platô de 1000m², onde então vou instalar um programa de parque unificado com uma edificação para educação ambiental na borda da zona de amortecimento, que possa fazer uso tanto da estrutura do parque quanto da própria zona de amortecimento para suas atividade educacionais.
A conexão entre o Engenho e este Centro de Educação Ambiental (CEA) se dá através de um trajeto construído através desta faixa, subindo os 100m de altura, ao longo de 1000m, com pontos de parada para descanso e contemplação. O programa a ser aplicado nas edificações da Fazenda inicialmente seria para abrigar as oficinais culturais que a Prefeitura Municipal já oferece, especialmente as de dança e música. Contudo para abrigar essas salas de dança e música as intervenções seriam bem agressivas, especialmente na edificação principal, que adquiriu uma tipologia de habitação após o restauro pela família Gontier. Analisando os arquivos do IPHAN a respeito do Engenho fica claro que o estado de degradação do Engenho era devastador, e que a postura da família Gontier de buscar o tombamento, buscar orientação para fazer a recuperação de maneira a resgatar ao máximo o estado inicial da edificação é louvável, é extremamente raro ver a iniciativa privada tão interessada em manter o patrimônio arquitetônico histórico. E a nova divisão do interior da edificação, adaptando-a para residência é mais uma camada histórica do sítio. Ficando clara necessidade de repensar o programa para a Fazenda, então o programa foi redefinido para englobar por completo as questões patrimoniais abordadas neste trabalho. O patrimônio natural, que estará presente no Parque e no CEA, bem como no trajeto de subida, patrimônio arquitetônico e histórico das edificações, e o patrimônio intangível ou imaterial, que apesar de presente na cidade tende a se perder com o tempo e a noção de que a “cultura popular” não seja digna de preservação.
“...a UNESCO ao formular recomendações neste domínio do património veio chamar a atenção que uma expressão do PCI é tão importante como um edifício histórico, procurando ultrapassar a ideia de menorização que, muitas vezes, a dita ― ”cultura popular” esteve sujeita no passado.” CARVALHO, 2008 “A preservação do patrimônio cultural visa, antes de mais nada, a promover, por meio da preservação de práticas culturais e de processos de produção, o exercício da cidadania e uma melhor qualidade de vida para as pessoas no presente.” Patrimônio Cultural Imaterial : para saber mais / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 2012
Dentro desta perspectiva o programa para a Fazenda se estrutura da seguinte forma: na primeira edificação encontra-se um centro de visitantes, para atender todos àqueles que vierem visitar o local, bem como àqueles que irão subir o trajeto até o Parque na cota 100 m. A segunda edificação, a norte da propriedade, por ter dimensões um pouco maiores abrigará um auditório com capacidade para 117 pessoas. A edificação central então abrigará um programa exclusivamente voltado a salvaguarda do patrimonio imaterial, para tanto seguindo as orientações da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (2003), da UNESCO; que indica três etapas a serem seguidas: Identificação, momento que envolve a pesquisa formal para levantamento do que será proposto como patrimônio, Reconhecimento, momento em que o objeto é reconhecido como patrimônio de fato, e Apoio e Fomento, é a etapa onde o que é desenvolvido nas duas etapas anteriores tem chance de se propagar e continuar sendo preservado.
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Sala de estar do andar superior da edificação central, logo após o restauro, cerca de 1945 - Acervo IPHAN
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A produção da canoa de voga, ou canoa bordada é um dos patrimônios imateriais da cultura caiçara. A canoa é esculpida a partir do tronco do guapuruvú Imagem:http://www.fenope.com.br/
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P R O P O S TA
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PLATO COTA 100M
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CENTRO DE VISITANTES
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AUDITÓRIO 117 PESSOAS
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CENTRO DE CONSERVAÇÃODO PATRIMÔNIO IMATERIAL
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ESPAÇO EDUCACIONAL
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E D I F I C A Ç Ã O P R I N C I PA L C E N T R O PA R A P R E S E R V A Ç Ã O D O PAT R I M Ô N I O I M AT E R I A L D E I L H A B E L A O espaço interno da edificação principal é organizado de acordo com a orientação da UNESCO para lidar com o patrimônio imaterial: 1.Identificação_ Espaço voltado a pesquisa; 2.Reconhecimento_Espaço expositivo, para dispor dos produtos identificados através da pesquisa; 3.Apoio e Fomento_Dentro da edificação se dá na forma de acervo;
Ainda que as edificações adjacentes possam ter usos descolados da preservação patrimonial elas compõem um conjunto de apoio à preservação. O centro de visitantes recebendo os visitantes do Engenho e do acervo do patrimônio imaterial; o auditório pode hospedar aulas, seminários, encontros, palestras, discussões e debates à respeito dos temas pesquisados. E o centro educativo é especialmente voltado para educação patrimonial, pois entende-se que a preservação do patrimônio imaterial não deve se manter no espaço institucionalizado de um museu e seu acervo, mas deve ser passado à população, este espaço visa abrigar oficinas para a propagação desses saberes.
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C E N T R O D E V I S I TA N T E S
FLUXO DE VISITANTES
58
1
ACESSO/LOJA DE PRESENTE
2
SANITÁRIO UNIVERSAL
3
SANITÁRIOS
4
BALCÃO INFORMAÇÕES/GUARDA-VOLUMES
5
ESPAÇO EXPOSITÓRIO
2
3
4 1
5
59
AUDITÓRIO
60
1
ACESSO/FOYER
2
SANITÁRIO UNIVERSAL
3
SANITÁRIOS
4
COPA
5
AUDITÓRIO
5
1
2
3 4
61
E S PA Ç O E D U C A I O N A L
62
1
ACESSO
2
SALAS MULTIPLAS
3
ESPAÇO EDUCACIONAL
1
3
2
63
Qunli Stormwater Wetland Park by Turenscape in Harbin, China
Villers Abbey Visitor Center, Belgica
64
Metro Forest Project Prawet District, Bangkok
ReferĂŞncias
Three Projects for Machu Picchu, LLONAZAMORA
Glorup Gods, Dinamarca
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