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RODRIGO VULCANO - Araraquara, SP
RODRIGO VULCANO - Araraquara, SP Escritor
Há cartas “E enquanto anoitece, vou Lendo, sossegado e só, As cartas que meu avô Escrevia a minha avó.” (Manuel Bandeira) HÁ CARTAS
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Um envelope antigo, onde as marcas do tempo fizeram morada, reticências perdidas num longínquo amanhã. Assim foi minha primeira descoberta. A mão que causara dor com seu peso e sua estupidez, também já havia empunhado a pena, deixando seus rastros de tinta azul num papel agora quase amarelo. O capricho na caligrafia denunciava o cuidado com a conquista. Pouco provável que a mão trêmula de hoje e a cabeça já cansada recriem uma linha sequer.
De sua boca nunca ouvi doçura ou delicadeza. Como pode tamanho distanciamento do sentimento?
Depois que achei as cartas de meu avô, perguntas como essas não me deixam descansar: ficarei assim? Há algum gene vivo em meu corpo, herança genética que me levará pelos mesmos caminhos?
Guardadas numa pequena caixa embaixo da cama, as cartas, como um tesouro escondido para ser desenterrado, estavam a minha procura. Senti-me um arqueólogo em busca do meu próprio passado. O passado preso numa caixa de madeira, agora solto, pássaros em revoada pela minha mente, meu coração. Procuro-o. Penso nela. Vivo-as. Ah cartas, o que fazem comigo?
Doce como minha avó, não há. A calmaria de um domingo à tarde. Ela é assim, destoante da carranca dura e inviolável dele, como se não sentisse dor ou alegria. Sempre o mesmo tom de voz. Mas ali, naquela carta, pequeno refúgio, havia outro, alguém de sonhos, de palavras como “minha amada”, “eu e você”, “meu coração” e, como Fernando Pessoa adoraria, terminou com “eternamente seu”. Ridículo e poético.
Será que fora belo? Dizem que sim. Ela também. Apesar da idade, poucas rugas nela. Nele, muitas. Se foram belos e estiveram apaixonados, em que momento os caminhos se dividiram, os olhares desviaram do mesmo objetivo?
Talvez só o tempo e as marcas que a vida deixará em meu coração mostrem a verdade. Não somos distantes. Sou mais próximo dela, afinidade pela simpatia.
Lembro-me certa vez de que, num domingo de manhã perdido no tempo, o vi chegar a casa sorrindo. Estava numa alegria tamanha que chamou a atenção de todos. O
motivo, não me recordo. Ficou em mim aquela expressão e contagiou todos a sua volta. Lembro-me agora de ter ouvido dela “Esse é meu marido!”. Algumas coisas fazem sentido agora. Outras, nem tanto.
Guardo com carinho algumas cartas de amores perdidos e acabados. Já fui mais doce, mais ridículo. Não faço mais corações, e sei que eternamente não faz parte de meu vocabulário. Felizes são as cartas. Nelas, o tempo não passa. Gostaria de viver dentro delas. Como um pingo num i.
O que era eterno, virou efêmero.
Que fazem aqui? Ah cartas...