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crise ecológica e socioambiental
from Revista Universidade e Sociedade nº 72
by ANDES-SN | Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
Marx analisou a grande crise ambiental de sua época – o declive da fertilidade dos solos na Inglaterra e na Europa – e identificou sua fonte como uma ruptura causada pelo capitalismo, o que ele denominou de “metabolismo universal da natureza”. Assim como Foster mostrou, esse conceito de ruptura da “fenda metabólica” nos oferece um marco indispensável para a compreensão das atuais crises ecológicas.
Essa importante consideração sobre a análise ecológica na obra de Marx, entretanto, precisa ser fundamentada na crítica às determinações que tornam a ruptura metabólica uma consequência do movimento do capital, bem como das formas que o capitalismo busca contornar tal ruptura, o que se manifesta na ecologização do capital. Portanto, a crítica que apresentaremos, tendo por referencial parte da obra madura de Marx, é uma crítica aos fundamentos últimos da ecologização do capital.
Nesse sentido de formulação da crítica à ecologização do capital, devemos relacioná-la, ainda, à determinação para que o capital precise ecologizar-se para continuar a ser capital. Ou seja, é preciso identificar que essa determinação decorre da crise ambiental, colocada como obstáculo (e como oportunidade, na linguagem mainstream) à valorização do capital. Para uma compreensão aprofundada da crise ambiental, é prudente que consideremos brevemente a dinâmica das crises na sociedade capitalista, o que será feito na seção seguinte. Referenciados em Marx (2017), verificamos que as crises capitalistas são imanentes ao metabolismo da forma social e configuram-se como uma tendência.
Antes de avançarmos em uma breve análise das crises capitalistas, cabe uma pequena observação sobre a dinâmica exapansiva-destrutiva do capital. É preciso ter claro que a superação da crise ambiental vincula-se, necessariamente, à superação dos obstáculos à valorização, mesmo que isso implique em aprofundamento das dinâmicas destrutivas – o que nos leva a concluir que um meio ambiente amplamente devastado pode advir da continuidade dessas dinâmicas e, ainda assim, o capital continuar a valorizar-se. Como afirma Postone (2018, p. 20):
O capitalismo está destruindo o planeta. Mas isso não implica que haja um limite natural ao capital. O capitalismo pode continuar e terminar com nada, terminar destruindo o mundo. Mas isso não é um limite. [...] O sonho do capital é a infinitude. O planeta, entretanto, é limitado. Mas isso não significa que o capital não continuará a destruí-lo. Ele o fará, a menos que seja impedido. Não acredito que existam limites, e então tudo se desmorona. Há limites, e as coisas tornam-se cada vez piores.
Nessa linha, mais exatamente, o foco analítico aqui proposto é aquele colocado concretamente pelo movimento do capital em relação à crise ambiental, ou seja, a relação entre crise ambiental e o valor ou como o capital atua na crise ambiental de modo a conformar os obstáculos em fronteiras expansivas para a valorização. Esse foco na relação entre crise ambiental e valor não nos leva a desconsiderar a dinâmica ambientalmente destrutiva que caracteriza todo esse movimento – “O capitalismo está destruindo o planeta. Mas isso não implica que haja um limite natural ao capital”, na citação logo acima. O que se pretende, portanto, é identificar como o capital busca superar os obstáculos ambientais ao valor – a crise ambiental – por meio de sua ecologização. O que não nos leva a desconsiderar que a ecologização do capital não derroga definitivamente a destruição ambiental e que apenas a superação dessa forma social permitirá a efetivação de relações coevolutivas entre sociedade e natureza.
Valor, mais-valor e preço de produção: expansão e crise do capital
Ao analisar os fundamentos mais elementares do modo de produção capitalista a partir da compreensão da mercadoria como unidade contraditória de valor de uso e valor, Marx (2013) revela o caráter necessariamente expansivo do capital. Tratando, desde o início, da sociedade capitalista como aquela na qual toda riqueza aparece sob a forma mercantil, Marx destaca (Livro I de O Capital) que a troca torna social a totalidade dos trabalhos privados por meio do valor – cuja substância é o trabalho abstrato e cuja medida é dada pelo tempo de trabalho socialmente necessário.
O valor, diferentemente do valor de uso, que pode ser qualitativamente diferenciado, só é passível de ser quantitativamente comensurado em uma relação de troca. Ou seja, se no intercâmbio de meros valores de uso são confrontadas qualidades distintas que podem atender também a distintas necessidades, na troca são comensuradas quantidades de algo que é igual a si mesmo em essência, isto é, trabalho abstrato, valor. Sendo assim, não há sentido em trocar quantidades iguais de algo que é essencialmente e qualitativamente igual, ou seja, valor. Essa troca tem, portanto, uma determinação lógica – identificada desde o primeiro capítulo da obra máxima marxiana –, que aponta necessariamente para a expansão: trocar um quantum de valor só faz sentido se da troca resultar um valor a mais. É por objetivar esse valor a mais, um valor que se valoriza, que o capital revela-se necessariamente expansivo. Está aí a determinação da lógica imanente expansiva do capital, cuja compreensão deve ser aprofundada e historicizada, já que logicamente demonstrada, como se fará a seguir.
Antes, porém, ainda que em termos bastante abstratos, a exposição marxiana deixa claro que, no contexto de uma produção anarquicamente crescente, a elevação da produtividade é um imperativo para que o produtor/capitalista privado possa garantir ou ampliar sua participação na riqueza social. Contraditoriamente, o mesmo movimento de elevação da produtividade que possibilita a ampliação da participação do produtor/capitalista na riqueza social será determinante, na sua sequência, para o nivelamento dessa participação com os demais produtores, renovando a necessidade de retomada continuada da elevação da produtividade. Em termos mais exatos:
A peculiaridade dessa dinâmica – e isso é o crucial – é o seu treadmill effect. O incremento da produtividade aumenta a quantidade de valor produzido por unidade de tempo – até essa produtividade se tornar generalizada; nesse ponto, a magnitude do valor produzido nesse período de tempo, por causa da sua determinação temporal abstrata e geral, volta ao nível anterior. Isso resulta em uma nova determinação da hora de trabalho social em um novo nível de produtividade. [...] Esse treadmill effect implica, mesmo no nível lógico abstrato do problema magnitude do valor – em outras palavras, antes da introdução da categoria do mais-valor e da relação entre trabalho assalariado e capital –, uma sociedade direcionalmente dinâmica, na qual se buscam níveis de produtividade cada vez maiores (POSTONE, 2014, p. 333-334).
Essa dinâmica expansiva avança e fica mais clara quando, sem deixar a análise abstrata realizada por Marx nos capítulos iniciais de O Capital, investiga-se a relação que o capital estabelece com a força de trabalho historicamente tornada mercadoria. Ela concretiza a lógica expansiva de duas formas: a primeira é que a força de trabalho é a única mercadoria que, ao ter seu valor de uso efetivado no processo produtivo, é capaz de criar um valor a mais, que, previamente e sem sua efetiva participação, não existiria. Em segundo lugar, porque a elevação da produtividade da força de trabalho franqueia ao capitalista que a contrata a ampliação de sua própria participação na riqueza social, agora na condição de mais-valor – que se desdobra, em momentos mais adiante na obra marxiana, no mais-valor extraordinário. E a complexidade/ concreticidade dessa dinâmica expansiva evidencia-se ainda mais quando, considerando-se a totalidade do movimento do capital – o que implica em incluir a análise desenvolvida no Livro III de O Capital –, a lógica expansiva revela-se na transformação dos valores em preço de produção (MARX, 2017).
O valor, diferentemente do valor de uso que pode ser qualitativamente diferenciado, só é passível de ser quantitativamente comensurado em uma relação de troca. Ou seja, se no intercâmbio de meros valores de uso são confrontadas qualidades distintas que podem atender também a distintas necessidades, na troca são comensuradas quantidades de algo que é igual a si mesmo em essência, isto é, trabalho abstrato, valor.
Nesse último contexto, o da transformação de valores em preços de produção descrito no Livro III, a elevação da produtividade assume a forma de busca pelo lucro extraordinário, aprofundando ainda mais as dinâmicas que ampliam a participação privada na riqueza social e seu posterior nivelamento – o treadmill effect. Em todos esses momentos, que vão cada vez mais do abstrato ao concreto na análise marxia- na, produzir mais em menos tempo é determinante para a ação de cada capital privado, posto que é justamente essa a maneira de ampliar sua participação na riqueza social, que tem a forma valor. Em síntese, essa dinâmica é identificada desde sua consideração lógica na relação de troca até sua manifestação mais explícita na transformação dos valores em preços de produção. Mas, fundamentalmente, tendo por base a historicidade da universalização das relações capitalistas por meio das quais a força de trabalho foi convertida em mercadoria. Nessa totalidade, a concorrência capitalista revela-se tão somente como a disputa a respeito de qual capital privado estará mais apto a realizar em maior escala o mais-valor socialmente produzido e confrontado no mercado por meio do mecanismo dos preços.
Esse movimento sumariamente descrito, entretanto, não aparece dessa forma ao conjunto da sociedade – capitalistas e trabalhadores –, isto é, como uma disputa pela apropriação do mais-valor social. Pelo contrário, a concorrência capitalista aparece como uma concorrência em torno do lucro, daí que seja a taxa média de lucro a determinante para o movimento dos diferentes capitais de ramos menos lucrativos para outros mais lucrativos. Mas esse movimento dos capitais privados não anula ou, muito pelo contrário, determina que a busca imanente pelo aumento da produtividade venha a reduzir progressivamente a proporcionalidade na qual o trabalho vivo produtor de valor comparece no processo de produção mercantil. Em outros termos, produzir mais em menos tempo implica em redução do valor novo criado em cada unidade de mercadoria (POSTONE, 2014).
Esse movimento é vantajoso para o capital privado que o implementa, principalmente aquele que o faz pioneiramente, posto que, na determinação dos preços de produção, a redução do valor por ele incrementada não repercute imediatamente no preço, o que lhe permite realizar um lucro extraordinário. O que a imediaticidade desse movimento não revela é que, por detrás das consciências dos capitalistas, está operando uma redução do valor das mercadorias, tendo em vista a menor incorporação de trabalho vivo por unidade mercantil. Ainda que operando abaixo da superfície aparente, esse movimento acaba, pela força da concorrência entre os mais diversos capitais, por generalizar-se, o que implica necessariamente em uma redução geral da proporção de trabalho vivo incorporado na totalidade das mercadorias produzidas. Tal dinâmica é compensada por uma ampliação permanente na quantidade de mercadorias colocadas no mercado – o que dá mais concreticidade à dinâmica expansiva, inclusive pela incorporação crescente de parcelas da natureza ao processo produtivo. Mas importa reforçar que toda essa expansão da quantidade de mercadorias produzidas no contexto do aumento da produtividade materializa uma redução proporcional do valor que, por seu turno, é refletida em uma queda tendencial da taxa de lucro.
Marx demonstra o caráter tendencial da mencionada taxa de lucro tendo em vista o caráter contraditório do movimento do capital que, determinado pela concorrência entre os diversos capitais, acaba por eliminar progressiva e proporcionalmente do processo produtivo aquele elemento que produz o valor novo: a força de trabalho. É esse movimento abstrato em relação ao mais-valor que se concretiza na tendência de queda da taxa de lucro. Em outros termos, a formulação elementar dessa lei tendencial relaciona-se ao também tendencial aumento da composição orgânica do capital – sinteticamente a proporção entre capital constante (notadamente meios de produção e matérias-primas) e capital variável (a força de trabalho vivo).
Mas a efetivação da lei tendencial da taxa de lucro efetiva-se concretamente conjugada a fatores também tendenciais que obstaculizam a realização da tendência, ou seja, que “as mesmas causas que engendram a tendência à queda da taxa de lucro moderam também a efetivação dessa tendência” (MARX, 2017, p. 275). Na expressão marxiana:
A contradição, expressa de maneira bem genérica, consiste no fato de que o modo de produção capitalista implica uma tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas, abstraindo do valor – e do mais-valor nele incorporado – e também das relações sociais no interior das quais se dá a produção capitalista; por outro lado, esse modo de produção tem como objetivo a conservação do valor de capital existente e sua valorização na máxima medida possível (isto é, o incremento cada vez mais acelerado desse valor). Seu caráter específico orienta-se para o valor de capital existente como meio para a maior valorização possível desse valor. Os métodos pelos quais ela atinge esse objetivo incluem: o decréscimo da taxa de lucro, a desvalorização do capital existente e o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho à custa das forças produtivas já produzidas (MARX, 2017, p. 289).
Portanto, a análise da crise implica no entendimento da lógica contraditória que preside o movimento do capital que tendencialmente leva à queda da taxa de lucro, mas que, contraditoriamente, carrega em si os elementos que tendem a contrabalançar a direcionalidade desse movimento. É nesse sentido que a lei da queda tendencial da taxa de lucro deve ser compreendida. Marx (2017, p. 271-277) indica as seguintes tendências contra-arrestantes, que apresentamos sinteticamente:
Aumento da exploração da força de trabalho: [...] O grau de exploração do trabalho (a apropriação do mais-trabalho e do mais-valor) aumenta especialmente por meio do prolongamento da jornada de trabalho e da intensificação do trabalho. [...] Barateamento dos elementos do capital constante: [...] o mesmo desenvolvimento que incrementa a massa do capital constante em relação ao capital variável diminui, em consequência da força produtiva aumentada do trabalho, o valor de seus elementos e, assim, impede que o valor do capital constante, embora aumentando permanentemente, o faça na mesma proporção que seu volume material, isto é, que o volume material dos meios de produção postos em movimento pela mesma quantidade de força de trabalho. [...] Superpopulação relativa: [...] a superpopulação relativa é [...], por um lado, a causa de que em muitos ramos da produção seja mantida a subordinação mais ou menos incompleta do trabalho ao capital e de que esta dure mais que o tempo que, à primeira vista, corresponde ao estágio geral do desenvolvimento; isso resulta do barateamento e da grande quantidade dos assalariados disponíveis ou liberados, além da maior resistência que alguns ramos de produção, segundo sua natureza, opõem à transformação do trabalho manual em trabalho mecanizado. [...] Comércio exterior: [...] do mesmo modo, a expansão do comércio exterior, que na infância do modo de produção capitalista constituía a base deste último, converteu-se, no curso de seu progresso, em seu próprio produto, por meio da necessidade interna desse modo de produção, de sua necessidade de um mercado cada vez mais ampliado.
E Marx conclui que a atuação das tendências contra-arrestantes “não derroga a lei, porém enfraquece seus efeitos”. E ele reforça: “é assim que a lei atua apenas como tendência, cujos efeitos só se manifestam claramente sob determinadas circunstâncias e no decorrer de longos períodos” (MARX, 2017, p. 277). Essas observações são importantes para que não se caia num relativismo que coloque em um mesmo patamar a tendência e as contratendências. Afinal, não teria sentido identificar a lei caso as contratendências a anulassem de maneira absoluta. Com isso, Marx, sem assumir qualquer postura de previdente do futuro, denega qualquer relativismo e reforça que as crescentes dificuldades postas pelo movimento contraditório do capital revelam a própria historicidade desse modo de produção.
Crise ambiental: limites ambientais à valorização e ecologização do capital
O presente tópico procura aprofundar o foco analítico já anunciado: os obstáculos ambientais à valorização e a ecologização do capital como forma de superação desses obstáculos sob a determinação do valor – o que não derroga o caráter ambientalmente expansivo-destrutivo do capital. Com isso, estamos apontando: por um lado, que o movimento do capital cria obstáculos ambientais que ameaçam sua valorização; e, por outro, a capacidade do capital em superar os limites colocados por sua própria lógica contraditória com a natureza no que tange à produção continuada de valor, ou seja, tendência e contratendência atuantes na processualidade da crise ambiental sob determinação da valorização. E, como aprofundamento dessa dinâmica, desdobramos que as alternativas postas pelo capital para a superação da crise ambiental teriam a possibilidade de repercutir como tendências contra-arrestantes à crise do próprio capital.
Consideração essa que deve ter seu caráter contraditório, desigual e combinado enfatizado. Ou seja,