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crise ecológica e socioambiental
from Revista Universidade e Sociedade nº 72
by ANDES-SN | Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
o capital, ao buscar alternativas para a superação da crise ambiental, o faz de maneira que, contraditoriamente, combina soluções ambientalmente sustentáveis com a continuidade de dinâmicas destrutivas. Medidas como a ecoeficiência e agriculturas sustentáveis, por exemplo, são combinadas ao processo de valorização em diferentes escalas e localidades: agricultura de precisão, agroecologia e uso intensivo de agrotóxicos convivem sob as determinações do valor. A novidade é que, enquanto a produção ambientalmente destrutiva já estava constituída como produção capitalista, a produção sustentável representa uma nova fronteira para a expansão do capital, o que, a nosso ver, tem a potencialidade de constituí-la como tendência contra-arrestante à crise do capital em geral. Enfim, todo um movimento determinado pelo valor e não pelo ambiente.
Isso porque, ao descrever essa capacidade de superar limites, mas também de colocá-los em níveis con- traditoriamente mais profundos, Marx anota que “a produção capitalista tende constantemente a superar esses limites que lhe são imanentes, porém, consegue isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela esses mesmos limites, em escala ainda mais formidável. O verdadeiro obstáculo à produção capitalista é o próprio capital” (MARX, 2017, p. 289; grifos nossos). Essa dinâmica se repete, conforme nosso entendimento, com relação à crise ambiental.
Há uma clara vinculação entre a dinâmica expansiva do capital na agricultura e a ruptura metabólica. É que a expansão tem como consequência a expulsão da população rural em direção às cidades, o que, em longo prazo, leva ao aprofundamento da falha metabólica. O avanço capitalista no campo radicaliza, portanto, aquela separação entre campo e cidade que está na base da ruptura que impede o retorno dos nutrientes ao solo.
Para aprofundar essa compreensão, entretanto, precisaremos investigar as alternativas postas pelo capital à crise ambiental sob a determinação do valor.
A análise a seguir reforça que as condições naturais devam ser identificadas historicamente – num contexto sociotécnico temporal e espacialmente localizado – como limites ou potencialidades a partir do fundamento da produção capitalista: a valorização. O que não quer dizer, pelo contrário, que o contexto sociotécnico – no caso, aquele do capitalismo – teria a capacidade de manipular de modo absoluto as condições naturais. A ênfase aqui será na compreensão das condições naturais – e na sua conceituação como vantagem ou obstáculo –, tendo por referência a determinação expansiva do valor, mas sem desconsiderar a historicidade na qual ela opera. Por exemplo, uma vantagem natural que, em um primeiro momento, favorece o capitalismo, pode revelar-se um obstáculo em um prazo mais dilatado: “o exemplo mais simples é o de uma abundância natural ou maior fecundidade favorecer a acumulação do capital, até o momento em que esta mesma abundância satura o mercado consumidor e sobrevém a fase de contração na acumulação do capital” (MONTIBELLER-FILHO, 2001, p. 198).
Reforçando o caráter desigual e combinado da dinâmica capitalista na sua relação com a natureza, temos que, “se olharmos para o desenvolvimento desigual combinado ao longo do tempo, em um local, as condições naturais que impedem o desenvolvimento econômico de uma região em um determinado momento podem ‘salvar’ recursos naturais naquela região para posterior descoberta e/ou utilização” (RUDy, 1994, p. 103).
Tais situações podem ser exemplificadas pela exploração de petróleo em locais que anteriormente eram restringidos devido aos elevados custos de produção. Esses locais são preteridos por aqueles cujos custos de produção são mais baixos e, assim, acabam sendo mantidos inexplorados. Tal situação pode alterar-se por meio do barateamento dos custos produtivos decorrentes do desenvolvimento tecnológico ou mesmo devido ao esgotamento daqueles locais de exploração mais fácil, ainda que os custos de produção mantenham-se elevados. É que, nessa situação, o preço do petróleo também se eleva de tal maneira que passa a permitir a exploração lucrativa mesmo que os custos não baixem. Nesse caso, um obstáculo inicial converteu-se em uma vantagem com o passar do tempo.
Caracterizando mais precisamente os fundamentos contraditórios da relação capital-natureza, é preciso verificá-la a partir tanto do capital quanto da na- tureza. Analisada a partir do capital, seu fundamento é a produção de valor, sendo, por isso, uma relação na qual o capital é o sujeito que objetiva justamente garantir que esse fundamento se realize. Para o capital, seria uma enorme vantagem se ele pudesse impor unilateralmente sua diretiva de valorização sobre a natureza, o que efetivamente não ocorre por determinações da própria natureza – que se destaque, a título de exemplo, a continuada obsessão do capital em adequar, ou melhor, forçar os ritmos naturais aos ritmos da valorização – e também em decorrência das condições sociotécnicas do momento histórico. Assim, concentrando-nos no segundo elemento da relação, a natureza, verificamos que, no limite, ela não se submete inteira e absolutamente às determinações do capital, posto que a história natural antecede e certamente sucederá a história humana. Como afirmava Lukács (2013): “por meio do trabalho efetiva-se um progressivo afastamento das barreiras naturais, cujas vinculações com os seres humanos são, porém, inelimináveis”.
Nos elementos estudados a seguir, nossa análise estará, portanto, concentrada não na condição de limite do recurso ou condição natural, mas sim na forma que tais elementos naturais se inserem na dinâmica do valor. Assim, eles podem ser captados a partir da condição que assumem para o capital, ora como obstáculo, ora como potencialidade para a valorização. Essa compreensão busca apreender a dinâmica contraditória do capital em seu movimento efetivo, além de apreender as tendências e contratendências ali atuantes.
Iniciemos verificando as contradições da relação capital-natureza, articulando-as à lógica expansiva do capital e às tendências aí operantes a partir da compreensão dessa relação como metabolismo entre humanidade e natureza. Na obra A ecologia de Marx, Foster (2011) destaca do pensador alemão o conceito de metabolismo (Stoffwechesel) para definir o processo de trabalho como a relação entre o homem e a natureza. Segundo Marx, citado por Foster, esse metabolismo é “um processo entre o homem e a natureza, um processo pelo qual o homem, através de suas próprias ações, medeia, regula e controla o metabolismo entre ele mesmo e a natureza” (MARX apud FOSTER, 2011, p. 201). Porém, com o advento e a consolidação do modo de produção capitalista, ocorre uma crescente ruptura ou falha (rift) nesse metabolismo socioambiental, sendo a separação antagonista entre cidade e campo a mais evidente confirmação dessa ruptura. O argumento básico para a discussão sobre a falha metabólica encontra-se no Livro I de O Capital:
Com a predominância sempre crescente da população urbana, amontoada em grandes centros pela produção capitalista, esta, por um lado, acumula a força motriz histórica da sociedade e, por outro lado, desvirtua o metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o retorno ao solo daqueles elementos que lhe são constitutivos e foram consumidos pelo homem sob forma de alimentos e vestimentas, retorno que é a eterna condição natural da permanente do solo (MARX, 2013, p. 573).
Há uma clara vinculação entre a dinâmica expansiva do capital na agricultura e a ruptura metabólica. É que a expansão tem como consequência a expulsão da população rural em direção às cidades, o que, em longo prazo, leva ao aprofundamento da falha metabólica. O avanço capitalista no campo radicaliza, portanto, aquela separação entre campo e cidade que está na base da ruptura que impede o retorno dos nutrientes ao solo. Prova dessa ruptura é a escalada crescente de quimificação da agricultura, que, no decorrer do século XX e chegando aos dias atuais, marca claramente a dependência da agricultura ao petróleo e seus derivados – dependência essa que ainda não era perceptível para Marx naquele momento histórico como é hoje –, bem como sua crescente artificialização.
Nessa direção, deve-se destacar que a produção de fertilizantes artificiais é extremamente dependente da exploração mineral e do petróleo – fazendo, inclusive, seus preços vincularem-se a esse recurso natural. Essa dependência, no caso do petróleo, é capaz de revelar, além da dinâmica de custos a ela relacionada, outro elemento que deve ser contabilizado: o balanço energético negativo. Isto é, a falha metabólica assume novos e mais acentuados contornos quando consideramos que a produção agrícola artificializada consome mais energia do que produz efetivamente – o fundamento do balanço energético negativo.
Nesse contexto, a natureza vai assumindo uma forma crescente de obstáculo à medida em que o avanço das forças produtivas implica em uma ruptura da relação campo-cidade, natureza-sociedade.
Esse quadro de condições ambientais para a valorização de expansão do capital fica mais detalhado –enquanto vantagens ou obstáculos – quando relacionado à segunda contradição do capital (O’CONNOR, 2002), mais especificamente àquela nas quais as condições ambientais-agrícolas anteriormente vantajosas podem, num prazo mais extenso, converter-se em desvantagens. Nesse caso, a fertilidade natural pode ser inicialmente utilizada de maneira vantajosa, porém, de tal forma que ocasionasse sua degradação – o que se configuraria em uma situação de externalização dos custos – e, quando a degradação venha a atingir um ponto tal no futuro que implique em maiores custos ao capital, este se dirija a novas áreas. Nem sempre essa expansão para novas áreas é possível,
A expansão do capital agrário impacta na elevação da renda fundiária, isto é, no aumento dos custos da terra para o capital, o que, por sua vez, obriga o capitalista a tornar seu uso mais eficiente para que aquela elevação dos custos possa ser compensada ou minimizada tendo em vista o monopólio de porções crescentes do planeta, o que, nesse caso, acarreta a necessidade de o capital realizar maior investimento para recuperar a fertilidade perdida do solo. Enfim, a externalização dos custos torna-se impossível e o capital se depara com os componentes ambientais daquilo que O’Connor (2002) define como segunda contradição (que tem também uma dimensão social), que toma a forma de um limite natural à expansão do capital que foi, contudo, gerado pela própria dinâmica do capital. Aqui misturam-se elementos naturais e sociais, mas com clara prevalência dos sociais, mais exatamente aqueles relacionados ao movimento do capital.
Mas essencialmente ambas as situações – aprofundamento da falha metabólica e incorporação de novas áreas no contexto da segunda contradição –articulam-se e revelam a lógica expansiva espacial do capital que acaba por conduzi-lo em direção a limites naturais cada vez mais dramáticos. Mas, como dito, esses limites naturais só são compreensíveis quando identificados como decorrentes de relações sociais específicas, relações capitalistas. A maior dramaticidade deve ser assim compreendida: a incorporação continuada e crescente de porções da natureza na dinâmica produtiva do capital acaba tornando proporcionalmente cada vez mais importante o monopólio dessas porções naturais. Ou seja, diante da redução das fronteiras de expansão capitalista, o monopólio do solo revela a dimensão predominantemente social – mais exatamente vinculada à valorização – dos chamados limites naturais.
Sendo assim, esse é um obstáculo ambiental socialmente determinado que o capital precisa superar para continuar valorizando-se. Para compreendermos a alternativa que o capital desenvolve para superar esse obstáculo, devemos relacioná-la à discussão sobre a eficiência energética, sobre a qual apresentamos brevíssimo esboço a seguir. Para isso, consideremos as conotações de eficiência energética: entálpica, entrópica e econômica. As duas primeiras conotações referem-se à primeira e à segunda leis da termodinâmica, respectivamente, sendo um cálculo de grandezas da física, isto é, do mundo natural. A terceira, a eficiência econômica, resulta da razão entre insumos e produtos, sendo a mais amplamente utilizada. A lógica da eficiência econômica consiste em “rebaixar o custo de insumos para a obtenção de um dado serviço energético ou aumentar o nível de serviço energético a partir de um nível constante de insumos energéticos” (SÁ BARRETO, 2018, p. 64-65). Ou seja, longe de uma preocupação com as eficiências entálpica ou entrópica, nas quais prevalece uma preocupação ambiental, revela-se que o capital concentra sua preocupação e suas medidas efetivas nos custos econômicos da energia e, portanto, na eficiência econômica (SÁ BARRETO, 2018).
Esse caráter acentuadamente econômico (e, portanto, relacionado ao valor) da eficiência energética pode ser estendido a outras propostas do programa ecológico calcado na chamada ecoeficiência, onde os custos ambientais que não podem mais ser externalizados passam a constar da contabilidade capitalista: custos ambientais convertidos em custos econômicos. Concentremo-nos, entretanto, na relação entre a lógica econômica que preside a eficiência energética e os limites à expansão capitalista a novas áreas rurais e, portanto, à renda fundiária.
A expansão do capital agrário impacta na elevação da renda fundiária, isto é, no aumento dos custos da terra para o capital, o que, por sua vez, obriga o capitalista a tornar seu uso mais eficiente para que aquela elevação dos custos possa ser compensada ou minimizada. Daí que o capital adote medidas que permitam uma utilização mais racional da terra, o que inclui um conjunto de tecnologias que podem ser agrupadas, por exemplo, nas práticas de agricultura de precisão, de biotecnologia genômica e de automação do campo, dentre outras. Com isso, também no uso da terra, a alternativa capitalista para a superação de um dado obstáculo assume uma condição coerente com o programa da ecoeficiência em seu fundamento: a eficiência econômica é o objetivo determinante, isto é, sua dinâmica é determinada pela valorização. Como o foco da atenção capitalista são os elementos econômicos e não aqueles ambientais, as dinâmicas ambientalmente destrutivas continuam a operar. Mas esse é o ponto menos importante para o capital. Desde que contribuam para a superação dos obstáculos ambientais ao valor, tais medidas comporão aquilo que designamos como ecologização do capital.
Considerações finais
Para nossas considerações finais devemos partir desse breve sobrevoo das formas de ecologização do capital, que são fundamentalmente aprofundamentos das dinâmicas de mercadorização da natureza. Esse elemento refere-se à consideração marxiana sobre o papel da natureza no processo de valorização. Ao mencionar que “o trabalho é o pai da riqueza material, como diz William Petty, e a terra é a mãe” (MARX, 2013, p. 121), Marx não desconhece que é o trabalho o criador do novo valor que se materializa na forma de riqueza social da sociedade capitalista: a mercadoria. Sendo assim, a natureza não produz valores novos, mas tão somente formas de renda



No que tange às formas de ecologização aqui sumariadas, e que servem de referência para outras formas de ecologização, temos que todas elas se restringem justamente a modalidades de inserção da natureza nos processos produtivos, sintetizadas no seu uso mais ou menos eficiente, na sua condição de vantagem ou obstáculo, mas fundamentalmente na crescente mercadorização da natureza. Sendo assim, temos que a natureza se configura como vantagem ou obstáculo, como limite ou barreira a ser superada no contexto da dinâmica da valorização, mas de forma subordinada ao valor – como não poderia deixar de sê-lo. É sob a determinação dessa condição que a ecologização do capital atuará na crise relacionada à queda tendencial da taxa de lucro: como contratendência relativa a formas de renda, a ecologização do capital não derroga o limite fundamental da crise do capital, a crescente eliminação proporcional da força de trabalho viva dos processos de valorização.
Essa limitação, contudo, precisa ser compreendida em sua efetividade. Primeiramente, é preciso destacar que a renda – cuja referência na obra marxiana é a renda fundiária estudada do Livro III – não decorre da própria terra, mas que o monopólio da terra permite ao proprietário da terra “apropriar[-se] de sua cota crescente do mais-produto e do mais-valor, cota que aumenta sem sua intervenção” (MARX, 2017, p. 699). Mais exatamente, é parcela do lucro do capitalista agrário que se transforma em renda nas mãos do proprietário fundiário.
Para exemplificar a relação entre renda e lucro,