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A crise ecológica e socioambiental
from Revista Universidade e Sociedade nº 72
by ANDES-SN | Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
ria; ii) promoveremos uma análise teórica do conceito de acumulação originária permanente aplicado ao contexto rural brasileiro, pelo qual o violento processo de expansão das fronteiras capitalistas atropela o modo de vida campesino por meio da despossessão; iii) para então revisarmos como se davam as relações de trabalho no sul e sudeste do Pará durante a Ditadura Empresarial-Militar, desde os movimentos migratórios e ocupação na região transamazônica, passando pelos modos de lida com a terra no Polígono dos Castanhais, a expansão do agronegócio e da mineração, os primeiros episódios de massacres na Amazônia pelas práticas da pistolagem, a organização da Guerrilha do Araguaia, até os modos de resistência das Ligas Camponesas e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região; iv) isso para que possamos tecer algumas considerações finais.
Perceber a história a partir do referencial dos vencidos e vencidas nos encaminha a uma compreensão holística e dialeticamente conectada com a proposta benjaminiana. Se os vencedores de agora são herdeiros dos de outrora, nada nos impede – e muito pelo contrário, muito há que nos leve – de nos assumir enquanto tributários dos vencidos e vencidas de todos os tempos.
História socioambiental e luta de classes
Pretendemos, como incursão inicial, articular dois campos de formulação aparentemente díspares, invariavelmente trabalhados de forma escandida, mas que, como demonstraremos, guardam uma imbricação necessária, sobretudo como temos em conta a compreensão da realidade capitalista: a história socioambiental e a luta de classes.
Para Marx e Engels (2010, p. 40), no Manifesto Comunista, a luta de classes se expressa nos conflitos econômicos, políticos e ideológicos entre classes cujos interesses são antagônicos e inconciliáveis, um embate entre oprimidos e opressores, que, em suas diversas conformações – ora evidentes, ora escamoteados –, resultou na “transformação revolucionária da sociedade inteira” ou na “destruição das duas classes em conflito”.
Na sociedade capitalista, este conflito direto é protagonizado pela burguesia e o proletariado – composta, desde marcos objetivos, pelo componente social sujeito ao assalariamento –, muito embora os interesses da burguesia também se antagonizem com outras parcelas da população, bem como com classes trabalhadoras diversas. É o caso último do campesinato, que, em suas diversas frações – inclusive, em parte, sujeitas à proletarização –, encontra na sanha expansiva do capital de mercadorização de tudo um elemento estrutural que interdita a perpetuação de modos de vida diversos, pautados na lida direta posta pela posse da terra.
A compreensão que dimana da obra dos fundadores do materialismo histórico e dialético, de que a história se expressa na luta de classes, merece, a partir de anseios políticos específicos, preocupações particulares daqueles e daquelas que se alinham com essa matriz teórica e prática, sobretudo ante o reconhecimento das necessárias relações de poder manifestas em toda sociedade de classes.
De acordo com Walter Benjamin (1994, p. 223225), em suas Teses sobre o Conceito de História, esse compromisso político posto aos que assumem o materialismo se coloca no papel de “escovar a história a contrapelo”. Ou seja, coloca-se na busca de apreender a história em direção contrária à narrativa triunfalista dos vencedores da ocasião, legatários dos que já venceram um dia. Para o autor, a postura política do materialista histórico deve se comprometer com os vencidos e vencidas da história e, para tanto, portar-se de modo contrário à tempestade do linear progresso, contraface da barbárie, que homogeniza e universaliza o curso dos acontecimentos.
Perceber a história a partir do referencial dos vencidos e vencidas nos encaminha a uma compreensão holística e dialeticamente conectada com a proposta benjaminiana. Se os vencedores de agora são herdeiros dos de outrora, nada nos impede – e muito pelo contrário, muito há que nos leve – de nos assumir enquanto tributários dos vencidos e vencidas de todos os tempos.
Essa compreensão nos move a colocar na ordem do dia e prestar tributo a toda forma de vida que sucumbiu às ganas afirmativas coloniais e imperialistas, que, nos diversos desenhos do desenvolvimento do modo de produção capitalista, sobretudo em nossa situação dependente e periférica latino-americana, fizeram sucumbir modos de vida, corpos humanos e riquezas naturais.
Desse modo, seja pela tônica de apropriação, seja pelos horizontes de acumulação, concentração e destruição de riquezas naturais e do trabalho (MARX, 2012), o processo da luta de classes e a afirmação capitalista, em geral, vitima tanto aqueles e aquelas que trabalham no cerne desta ordem, como também outras formas de vida – humanas e não humanas – que acabam sendo sacrificadas sob as rodas do mercado.
Em caminho convergente a essa perspectiva está a abordagem trazida por Razmig Keucheyan (2018) de que a natureza é um campo de batalha, ou seja, um espaço onde a luta de classes se trava, e por ela é diretamente impactada. O autor afirma que, se o capital é uma relação social, esta relação integra a natureza à sua lógica. Logo, a natureza – humana (força de trabalho) e não humana (terra e matérias-primas) – é o objeto de exploração capitalista por excelência. Nesse sentido, de uma análise da luta de classes que não aparte natureza e sociedade, ao contrário do que a ideologia burguesa pretende, decorre o fato de que a exploração da natureza não humana seja proporcional a das classes trabalhadoras (KEUCHEyAN, 2018, p. 19-84).
Em suas profundas formulações sobre as injustiças ambientais, Keucheyan trata fundamentalmente do racismo ambiental na abordagem sobre a espacialização tanto dos conflitos socioambientais quanto das diferenças raciais em suas imbricações de classe. Ele demonstra as formas de produção assimétrica do espaço: enquanto os brancos e europeus têm acesso privilegiado às propriedades naturais básicas (água e fontes energéticas) e às comodidades naturais (lazer, qualidade de vida e excessos), os negros e latinos estão mais expostos em seus territórios pauperizados aos riscos ambientais provocados pelo desenvolvimento capitalista – problemas com saneamento, lixo, intoxicações, insalubridade no trabalho, gentrificação dos espaços e desastres ambientais (KEUCHEyAN, 2018, p. 19-84).
Assim, as desigualdades de classe inerentes ao sistema capitalista são também ecológicas. Os modos de relacionamento entre naturezas humana e não humana são disputados pela burguesia e pelo proletariado, bem como pelas demais classes sociais que compõem a sociedade capitalista. Por isso, a concepção de história comprometida com a tradição dos oprimidos e oprimidas, bem como com a relação entre economia humana e economia da natureza, deve ser uma história ambiental, ou socioambiental, como preferirmos nos referir. Segundo James O’Connor (1997),
A história ambiental é o estudo de como a agência humana molda e modifica a “natureza” e constrói ambientes e configurações espaciais, de como ambientes naturais e culturais permitem ou restringem a atividade material humana e, inversamente, de como a atividade humana permite e restringe o desenvolvimento e a “economia da natureza” (O’CONNOR, 1997, p. 9)3
No caso brasileiro, para Paulo Henrique Martinez (2005), a história ambiental aponta para os sentidos da devastação. Segundo o autor, na divisão internacional do trabalho, durante o sistema colonial português, nos coube o papel de pilhagem sobre o mundo natural em atividades extrativas e agropecuárias que se valiam da escravização da força de trabalho negra e eram direcionadas ao processo de acumulação primitiva de capitais na Europa. Esse papel, que ainda nos cabe, após a independência da administração colonial portuguesa, passou a ser exercido sob outras formas de interferência interna, principalmente pelo imperialismo inglês e, depois, estadunidense.
Não nos parece assim descabidas as percepções de que o processo de afirmação do capital – donde a realidade brasileira sob o neofascismo é exemplo gritante – caminha pari passu sob todas as condições de vida das classes trabalhadoras, afrontando direitos sociais, o meio ambiente e os tímidos saldos democráticos conquistados na última quadra histórica como parte de um movimento articulado e comum de reordenação capitalista (SEFERIAN, 2020).
Essa processualidade, marcada fortemente pela tônica de apropriação sem peias, se engendra pelo processo de acumulação originária permanente. Sobre sua caracterização, bem como seus impactos na luta de classes no campo nos países periféricos, trataremos na próxima seção.