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crise ecológica e socioambiental
from Revista Universidade e Sociedade nº 72
by ANDES-SN | Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
capitalistas e latifundiários como um movimento que entende a historicidade do capitalismo, inclusive na agricultura, e a necessidade de superá-lo, notadamente em suas práticas predatórias.
No Brasil, estima-se que 1% dos grandes proprietários de terra monopoliza 43% dos territórios agriculturáveis do país. Esse fato coaduna com a definição de Marx de que “A propriedade fundiária baseia-se no monopólio de certas pessoas sobre porções definidas do globo terrestre como esferas exclusivas de sua vontade privada, com exclusão de todas as outras” (MARX, 2017, p. 676).
É nesse sentido que o MST surge: jorrando esperanças por todos os poros, uma vez que sua luta conflita com o monopólio de certas pessoas sobre a terra e enfrenta a vontade privada ligada ao poder dos detentores de latifúndios. Deve-se destacar também, nesse contexto, o ódio que ele provoca no grande capital, posto que este se apoderou da terra no Brasil e, nos últimos tempos, vislumbra na estratégia do movimento uma ameaça à sua reprodução. A luta, embora contínua, tem se demonstrado muito desigual, até porque os velhos fazendeiros e o Estado somam-se aos esforços do capital com vistas a adotar uma atitude, tática e estratégica, radicalmente inflexível contra os sem-terra e a sua organização social e política. É instrutivo recordar, quanto a essa questão, o grande número de trabalhadoras e trabalhadores sem-terra que, via de regra, tomba no âmbito do embate contra as forças do latifúndio.
No Brasil, estima-se que 1% dos grandes proprietários de terra monopoliza 43% dos territórios agriculturáveis do país.
lucros crescentes. Desnecessário dizer que o emprego de uma retórica modernizante é apenas a cortina de fumaça para desviar a questão do seu verdadeiro fulcro, qual seja: a imagem dantesca do lucro inenarrável às expensas da dilaceração do meio ambiente.
O discurso focado na tecnologia remete-nos, apenas, à tentativa permanente do capital de aniquilar o pequeno produtor e o trabalhador rural, bem como solapar a natureza e vender todo esse descalabro como uma expressão do avanço e do progresso. Marx, no livro I de O Capital, se pronunciou quase que profeticamente a esse respeito:
E todo progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo, pois cada progresso alcançado no aumento da fertilidade do solo por certo período é, ao mesmo tempo, um progresso no esgotamento das fontes duradouras dessa fertilidade (MARX, 2013, p. 573).
Porém, Marx vai mais longe em sua crítica ao capital e às suas incursões cada vez mais constantes na agricultura, engendrando destruição tanto ao trabalhador quanto à terra. Desse modo, ele declara que: “Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social na medida em que solapa os mananciais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador” (MARX, 2013, p. 574).
O problema extrapola os conflitos em torno da bandeira de democratização do usufruto da terra. Passa igualmente pelas disputas, à volta do fundo público. Com efeito, ele transcende essas searas e alcança situações complexas, como a forma em que a terra é trabalhada. As grandes empresas agrícolas usam e abusam dos processos de envenenamento da terra. A substância ideológica do capital, neste caso como em outros, põe-se a serviço do agronegócio e de seus
Nos últimos 20 anos, sobretudo, o uso de organismos geneticamente modificados (OGMS) aumentou negativamente o impacto das novas tecnologias sobre o meio ambiente e a saúde humana, e a agricultura, instrumento indispensável à nutrição humana, vem, de repente, sendo impulsionada no sentido de fazer valer mais os interesses comerciais do que o bem-estar da humanidade. Nesse devir, uma ameaça cresce e empareda as populações tradicionais – indígenas, quilombolas etc. – e a agricultura familiar, ao tempo em que sinaliza para o envenenamento e uma maior concentração da terra. Ademais, quanto mais cresce a produção agrícola, mais a fome se manifesta.
Nesse cenário, onde tudo o que é sólido se desmancha no ar, como diriam Marx e Engels, é preciso “reafirmar o princípio da qualidade de vida, o que significa vida digna para todas as pessoas, com direito à saúde, educação, lazer e, inclusive, ao aces- so a uma alimentação sadia (SAUER, 2010, p. 168).
É por esse motivo que o MST, ao lado da luta pela terra, acresceu ao seu programa a proposta de uma nova estratégia agrícola, centrada inelutavelmente na agroecologia, e desenvolveu essa proposição, destinada a salvar o meio ambiente e assegurar vida digna às pessoas, por dentro do projeto de uma educação do/no campo. Nesse espírito, nascem as escolas do campo, hoje uma marca do movimento.
Nunca será demasiado sublinhar que a luta pela terra segue com centralidade no programa e na estratégia do MST, mas, ao lado dela, inscrevem-se com força as noções de educação do campo como prática pedagógica e a agroecologia como princípio dessa pedagogia. De sorte que a experiência do MST, sobremaneira nos últimos 20 anos, testemunha vivamente a afirmação da tríade terra-educação-agroecologia.
O programa do MST: um lugar para a escola do/no campo
Queiroz et al (2023, p. 29-30) escreveram que:
[...] uma das características mais interessantes da sociedade brasileira pós-regime militar autocrático manifesta-se na centralidade da questão agrária cuja luta extrema se traduziu no aparecimento de organizações e de movimentos diametralmente opostos, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem-terra (MST) e da União Democrática Ruralista (UDR). No caso do MST, ao lado da luta pela reforma agrária, levantou-se um programa popular no qual às questões do acesso democrático a terra juntaram-se propostas que trouxeram para o primeiro plano temas como a agroecologia e a educação do campo.
Nessa síntese fica nítido não só o lugar do MST na questão agrária brasileira, mas a inserção das categorias de educação do campo e da agroecologia na plataforma programática do movimento.
A antítese direta do latifúndio no Brasil tem sido o MST. A ideia de que o movimento se restringe aos conflitos em torno da questão agrária mais direta não se sustenta, haja vista que a estratégia dessa organização responde a problemas históricos e conjunturais da sociedade brasileira.
É verdade que podemos tentar passar por cima disso e nos circunscrever ao problema da reforma agrária, tarefa com o qual a organização dos sem-terra se identifica de modo mais direto e urgente. O que faz época na História do Brasil é precisamente a concentração de terra, de um lado, e a expropriação desse direito quando nos remetemos à desmedida massa de deserdados do campo. De fato,
A grande propriedade privada de corte fundiário, a modernização da agricultura sob a égide do capital e, por dentro disso, a lógica do desenvolvimento capitalista a afrontar longas extensões de terra e a produzir migrações desenfreadas, em grandes linhas, tornaram a reforma agrária uma necessidade histórica e uma tarefa por se realizar em regiões como a América Latina, sobretudo, o Brasil (QUEIROZ et al, 2022, p. 207).
No entanto, presentemente, temos que tratar de outras questões que, articuladas à luta pela democratização do acesso à terra, nas circunstâncias inerentes à análise, adquirem corporeidade individualizada. É o caso, por exemplo, da educação do campo. A esse respeito, Queiroz et al (2022, p. 208) são categóricos:
O que nos chama atenção no estado atual das pesquisas que abordam o problema fundiário e, dentro dele, o tema das necessárias transformações agrícolas e agrárias é como, por exemplo, a luta pela terra no Brasil nos últimos tempos tem se articulado fortemente às pautas voltadas para educação. Trata-se da chamada educação do campo.
Nessa perspectiva, o movimento passa a questionar não apenas a estrutura fundiária fortemente concentrada, mas, igualmente, as lacunas na educação tradicional, quando não a ausência pura e simples da oferta de um ensino público condizente voltado às massas camponesas.
Durante muito tempo, no Brasil, a noção de uma escola pública voltada para “o homem do campo” esteve associada à noção de escola rural, que, grosso modo, estava vinculada mais às necessidades e dinâmicas da vida urbana do que propriamente à realidade do campo. De feito, muitas dessas escolas, a sua maioria, estavam localizadas em núcleos urbanos e não em lócus rurais.
Com o sistema antigo de escolas rurais, oferecia-se um ensino que parecia carregar consigo uma ordem de coisas universalmente válida, seja quanto aos métodos, seja quanto ao conteúdo. Nas circunstâncias históricas desse modelo escolar, o conhecimento das comunidades tradicionais, em regra, era menosprezado e a instrução era feita à luz de um formalismo tacanho e alheio às práticas e à concretude do fazer campesino.
Ao longo de grande parte do século XX, esse modelo e seu modo de raciocínio marcaram a paisagem brasileira como uma garantia de que a sociedade e o Estado brasileiro estavam efetivamente conectados à vida rural e aos seus múltiplos processos de totalização histórica. Essa maneira de tratar o problema começou a fazer água no último quarto do século passado, calhando com a rica experiência de lutas e conquistas do MST. Depois de um longo processo de confrontação, que colocou em lados opostos o mo- lidando com uma proposta programática significativamente ampla, em que o movimento dirige-se a toda a sociedade, levantando os seus pleitos sem qualquer demonstração de estreiteza ou superficialidade. vimento dos trabalhadores e das trabalhadoras sem-terra e a ordem do capital e o Estado brasileiro, a reivindicação de um novo tipo de escola, voltado aos povos do campo, adquiriu foro de cidadania. Nascida do conflito de uma nova territorialização do capital e da resistência camponesa, a escola do campo testemunha que, para os camponeses, a história não se resume a um beco sem saída e a luta enfoca não apenas uma dimensão, mas múltiplas dimensões, incluindo a educação e as práticas agrícolas.
Com o sistema antigo de escolas rurais, oferecia-se um ensino que parecia carregar consigo uma ordem de coisas universalmente válida, seja quanto aos métodos, seja quanto ao conteúdo. Nas circunstâncias históricas desse modelo escolar, o conhecimento das comunidades tradicionais, em regra, era menosprezado e a instrução era feita à luz de um formalismo tacanho e alheio às práticas e à concretude do fazer campesino.
Em termos práticos, desde o início da luta do MST, em meados dos anos 1980, os acampamentos traziam consigo forte simbologia e, ao mesmo tempo, uma forma de resistência, com diversos desdobramentos. No imaginário das pessoas ligadas aos conflitos agrários, a consigna “ocupar, resistir, produzir” tornou-se imensamente popular. Posto isso, “A conquista da escola nos primeiros acampamentos é uma luta incorporada à pauta de reivindicações do Movimento” (BARBOSA, 2020, p. 294).
Como resultado de fortes determinações objetivas, a ideia-chave de uma educação camponesa aflorou quase sob as pegadas iniciais do movimento. Não por acaso, Barbosa (2020, p. 295) assevera que “A reflexão em torno do direito à educação no MST vem desde sua gênese, quanto à reparação histórica de um direito fundamental e assim se iniciou a construção de uma Pedagogia do Movimento, uma Pedagogia da Terra”.
Para Barbosa (2020, p. 294), “A história da luta por educação no MST está associada à luta por terra, trabalho e justiça social”. Consequentemente, estamos
Evidentemente, a proposta de uma escola do/no campo não apareceu no laboratório da história como um projeto pronto e acabado. No início, era uma reflexão e uma proposta genérica estampada em uma frase: “Nas lutas pela terra, a educação é uma necessidade” (BARBOSA, 2020, p. 295). As linhas básicas de uma proposta nessa direção foram sendo construídas pouco a pouco por meio de vários eventos organizados pelo movimento para refletir o problema e produzir soluções. Até chegar à ideia de uma escola territorializada e ligada à luta pela reforma agrária, de fato, muitas noites foram atravessadas e, finalmente, o rascunho adquiriu a forma de arte-final.
É exatamente daí que surge o que Francisco Flávio Barbosa descreve como
Uma escola que valorize o saber do povo, que respeite a realidade dos educandos e que seja diferente em seu planejamento, currículo, avaliação, tempos educativos, formação de educadores e participação da comunidade em todas as fases do processo educativo (BARBOSA, 2020, p. 300).
A partir dessa descrição, torna-se possível avaliar o lugar e o caráter da escola do campo que, na maior parte dos casos, é uma realidade que perpassa inicialmente as primeiras duas décadas do século XXI. Nas palavras de Queiroz et al (2022, p. 212), trata-se de uma escola “em tudo e por tudo diferente do velho projeto das escolas rurais tradicionalistas, em alguns casos, fincadas na cidade e, em geral, desvinculadas dos territórios camponeses e de suas tradições, práticas, saberes e necessidades”.
É possível, com efeito, identificar que a última década do século XX correspondeu ao amadurecimento de uma reflexão centrada na noção de uma escola camponesa. Também seria inconcebível, nas condições históricas da luta de classes no campo brasileiro, supor que entre a reflexão e o advento das primeiras escolas não se estabelecesse algum tempo de maturação. Por isso, as experiências iniciais de constituição das escolas do campo, em geral, coincidem com a dobra do século.
O que é extremamente pertinente é notar as contradições que emergem junto a essas experiências de que tratamos. Há uma tendência a tomar esses processos como unívocos quando, em última análise, eles trazem em si o selo do contraditório, afinal, governos estaduais, na aurora do século XXI, tomam como sua a tarefa de institucionalização da proposta do movimento. Ao estudar o caso do Ceará, nota-se uma política em disputa na qual não faltam impasses, embaraços e contradições.
Independentemente dessa consideração, que traz consigo inestimável importância, as escolas do campo constituem uma realidade no Ceará e já ultrapas- sam 10 unidades espalhadas pelo espaço local, trazendo, em sua tessitura, as lutas e o modo de vida das comunidades camponesas. Dadas tais características, talvez seja necessário concordar com Ianni (2016, p. 66), quando ele afirma que “a luta pela terra é sempre e, ao mesmo tempo, uma luta pela preservação, conquista e reconquista de um modo de ser e de trabalho”. À luz dessa passagem, não há como não concordar com Queiroz et al (2022, p. 213), quando assinalam que
[...] essa proposição peculiar de escola recupera as formas camponesas de trabalho e luta, o seu modo de vida, as suas tradições, as suas místicas, a sua história, ainda que articulando cada uma dessas questões a uma teoria pedagógica com um olhar voltado para o conjunto.
O MST é um dos mais importantes movimentos sociais da América Latina, e quer nos parecer que quanto a esse ponto não há dúvidas. Depois disso, precisamos recordar que esse movimento, em sua prática cotidiana, tem se notabilizado por uma política permanente de combate à fome. Além disso, conforme vimos no item anterior, ele também se destaca no campo da educação. Mas um aspecto que não pode ser minimizado é a sua estratégia com vistas à preservação ambiental, tema que ganhou orientação específica e influência pronunciada no programa da organização.