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A crise ecológica e socioambiental

O princípio básico dessa política de preservação ambiental passa, necessariamente, pela agroecologia, que, segundo Caldart (2020, p. 270), é o alicerce “da agricultura camponesa do século XXI”. No caso das escolas do campo, cuja experiência é uma realidade que comparte seu modelo pedagógico com a agenda geral da educação pública nos estados, a agricultura agroecológica é construída fundamentalmente pelos camponeses, haja vista a importância adquirida pela agricultura familiar camponesa, fenômeno nacional que se manifesta vivamente no território cearense.

Não surpreende, portanto, que as restrições fundamentais ao modelo de destrutividade do agronegócio encontram expressão na agroecologia, que, em última hipótese, “É a base científica de construção da agricultura camponesa capaz de confrontar o agronegócio (CALDART, 2020, p. 278). O MST, por meio de seu modelo agroecológico, contesta o envenenamento da terra e, por conseguinte, a lógica predatória do capital que, em larga medida, Marx já prenunciara no livro I de O Capital ao falar dos Estados Unidos. Segundo ele, “Quanto mais um país, como os Estados Unidos da América Norte, tem na grande indústria o ponto de partida de seu desenvolvimento, tanto mais rápido se mostra esse processo de destruição” (MARX, 2013, p. 573).

O MST é uma organização que se apresenta como impulsora de uma alternativa camponesa agroecológica, algo, digamos, incompatível com a lógica da propriedade fundiária sob o manto de chumbo do modo de produção capitalista.

O que era uma tendência geral dos países mais fortemente industrializados do século XIX, hoje se ampliou de tal forma que, mesmo em estados frágeis industrialmente, o uso das últimas e funestas descobertas de destruição da natureza tornou-se algo corriqueiro. Em consonância com esse fato, o capitalismo, para usar as palavras de Marx (2013), desvirtua o metabolismo entre o homem e a terra. Assim, a maquinaria e as últimas descobertas tecnológicas não só anulam as possibilidades de sobrevivência de milhões de pequenos produtores rurais, mas, desvirtuando esse metabolismo há pouco designado, induzem aos processos mais irrefreáveis de degradação ambiental.

Aqui, não se trata de opormos obstáculos à ciência e à tecnologia, mas de destacar como o capitalismo lança mão dessas ferramentas para incrementar seus ganhos, malgrado o alto preço que se paga no que concerne ao desvirtuamento do metabolismo entre os seres humanos e a natureza. Não se trata, portanto, de negar a ciência, mas de fazer com que as conquistas científicas e tecnológicas sejam trabalhadas com a natureza e os seres humanos, não contra ela e eles.

É no interior desse contexto que começa a se manifestar a proposta agroecológica esgrimida pelo MST. Segundo Queiroz et al (2022, p. 208):

Pertencentes a uma longa tradição crítica, as propostas de um projeto agroecológico e de uma economia camponesa fundada no exercício de solidariedade social andam lado a lado nas proposições programáticas e estratégicas que mobilizam o MST. Aqui, os temas são enlaçados: crítica à estrutura fundiária concentrada e ao agronegócio, necessidade de reforma agrária, mas, igualmente, de uma educação popularcamponesa e de um modelo agrícola fundado na agroecologia. Trata-se, em última análise, de um combate pertinente às agruras de uma lavoura arcaica, que precisa urgentemente ser vencida.

Dessa forma, os autores, em lugar de glorificar a suposta modernidade capitalista, associa a imagem do modo de produção capitalista na agricultura a uma ideia de atraso: a de lavoura arcaica. Em que consistiria esse atraso ou estaríamos diante de um contrassenso histórico? A questão toda pode ser formulada da seguinte maneira: ao associar avanço com preservação ambiental e condições de vida dignas para as amplas massas, e ao identificarem que isso não se daria sob a forma da propriedade fundiária no capitalismo, os autores entendem que, em lugar de modernização, o que se tem é um modo de produção antiquado coberto de um floral modernizante.

Diante da lógica arrogante dos ideólogos capitalistas, Florestan Fernandes chamou nossa atenção para as contradições desse capitalismo pretensamente moderno aplicado às economias dependentes, concluindo que essas estruturas econômicas, em última instância, são reféns de uma modernização contro- lada de fora (FERNANDES, 1995). Desse modo, “À sombra dessa modernização controlada de fora, forjaram-se múltiplas políticas, que, mais recentemente, traduziram-se na mal denominada ‘revolução verde’, bem como nos ‘pacotes tecnológicos’ (máquinas, equipamentos e crédito), conforme nos alerta Barbosa (2020)” (QUEIROZ et al, 2022, p. 209).

A questão que se coloca agora é a seguinte: o MST é uma organização que se apresenta como impulsora de uma alternativa camponesa agroecológica, algo, digamos, incompatível com a lógica da propriedade fundiária sob o manto de chumbo do modo de produção capitalista, em que esse “cria a forma correspondente a si mesmo mediante a subordinação da agricultura ao capital” (MARX, 2017, p. 687). Ao terra-capital, de feito, o MST deve ser tratado como um genuíno pária social, que, seguramente, precisa ser ideologicamente minado e socialmente contido.

Do mesmo modo que o MST integrou ao seu projeto de reforma agrária uma alternativa pedagógica organizada, ou o que Barbosa (2020, p. 299) intitulou “de espaços educativos de resistência” – as escolas do campo –, ele articulou a esse tipo específico de instituição escolar a abordagem agroecológica.

Dessa forma,

A luta do MST tem por base organizar os camponeses expropriados da terra, por meio da ocupação dos latifúndios improdutivos, com o objetivo de conquistar a reforma agrária e realizar transformações profundas na estrutura da sociedade. Observando o processo de modernização conservadora do capital na agricultura, cujo efeito se dá na adoção do pacote tecnológico da chamada revolução verde, a luta do MST se amplia em direção ao combate ao agronegócio e sua destruição do modo de vida e da cultura camponesa (BARBOSA, 2020, p. 305).

Como podemos ver, o MST opõe ao regime do latifúndio improdutivo a conquista da reforma agrária, mas, ao mesmo tempo, contesta vividamente seu formato moderno-conservador, expresso em uma palavra controversa: agronegócio. Essa contestação não se faz só negativamente, mas também por meio de uma alternativa concreta: o modelo de matriz agroecológica. Entre a luta pela terra e esse modelo, traduzido em um conjunto de práticas alternativas, nasceu a escola do campo, uma pedagogia da terra que, de- certo, demonstra o lugar da educação, da ciência e dos demais saberes não somente como oponência ao velho, mas, também, como anúncio do novo.

É precisamente em virtude dessa lógica eivada de amplitude e criticidade que o movimento tem produzido uma massa crítica que cimenta a estruturação de toda uma teoria que ressalta o sentido mais fecundo da agroecologia. Seguindo essa linha de raciocínio, Caldart (2020, p. 276-277) afirma que:

Uma primeira razão para se aproximar da agroecologia é a vocação humanista das escolas do campo: tudo que tem importância para defesa e valorização da vida, em suas diferentes dimensões e na sua diversidade, é de interesse da escola. A agroecologia estuda a vida e fundamenta a opção por uma agricultura a favor da vida.

Partindo desse pressuposto inicial, Caldart (2020) acrescenta outras razões as quais ela considera como algo essencial para justificar por que se ocupar da agroecologia, destacando as motivações de natureza ética, de ordem política, educativa e epistemológica/ pedagógica. Isso demonstra não apenas a complexidade das questões envolvidas na alternativa agroecológica, mas como ela oferece um caminho que confronta o modelo do agronegócio, violento e envenenador, vislumbrando uma nova geografia para a agricultura, que, de fato, desde que as divisões de classe se afirmaram socialmente, apenas se perpetua mediante a exploração das massas.

Em geral, é preciso assinalar que essa era a constatação que Marx esgrimia no livro III de O Capital, ao afirmar que:

Nesse sentido, o monopólio da propriedade da terra é uma premissa histórica e continua a ser a base constante do modo de produção capitalista, assim como de todos os modos de produção anteriores que, de um modo ou de outro, fundam-se na exploração das massas (MARX, 2017, p. 677).

A coincidência entre luta pela terra, educação do campo e agroecologia com a estratégia de luta por uma nova sociedade, sem a exploração das massas, em última hipótese, responde à necessidade de superar essa velha, teimosa e continuada premissa histórica.

Considerações finais

É sabido que, nos primórdios do MST, o questionamento da natureza monopolista do latifúndio, de um lado, e a bandeira da reforma agrária, de outro, eram considerados quase que suficientes para dimensionar programaticamente o movimento. Os processos que produziram gradualmente uma mudança nesse ponto de vista não devem ser entendidos como um raio no céu azul, mas como algo que sempre estivera ali, ainda que não forçosamente com a mesma espessura e amplitude que hoje se conhece.

Suponhamos que as alterações na economia, nas ciências, na natureza e na sociedade, globalmente, e, em particular, nas relações de classe – que se deram tanto localmente como em escala internacional (principalmente) –, obrigaram os movimentos sociais a repensar as suas táticas e estratégias, bem como as suas tarefas. Isso se dá especialmente com o MST, que, talvez por essa capacidade de se redimensionar, mostre-se com toda potência, mesmo em circunstâncias difíceis, o que anima aos explorados e irrita os poderosos.

Logo, se considerarmos a trajetória do MST, desde 1984 até os dias que correm, certamente haveremos de captar o seu complexo desenvolvimento, nascido da luta pela terra, e, portanto, do combate contra a estrutura agrária injusta, e amadurecendo sua pauta, ressaltando temas como a educação do campo e, quase como desdobramento, jamais independentemente, o considerável lugar ocupado pela alternativa agroecológica.

A esse respeito, é especialmente interessante enfatizar que a luta pela terra, pela educação pública e por modelos que respeitem o meio ambiente, na ambiência selvagem do capitalismo, nem sempre é ofensiva; inversamente, grande parte das vezes constitui um dos tantos momentos de resistência da classe trabalhadora. Nesse sentido, na medida em que nos aproximamos dos 40 anos de fundação do MST, não há como negar que nele flameja uma centelha de quase inesgotável resistência, para nossa fortuna e para o azar do grande capital e de seus funestos ideólogos.

BARBOSA, Francisco Flávio Pereira. Educação do campo e agroecologia: uma experiência pedagógica em construção. In: GONÇALVES, Adelaide; BRITO, Liana; VICENTE, Lourdes (Orgs.). Resistência camponesa: histórias de teimosia e esperança. Fortaleza: UECE, 2020.

CALDART, Roseli Salete. Escolas do campo e agroecologia: uma agenda de trabalho com a vida e pela vida. In: GONÇALVES, Adelaide; BRITO, Liana; VICENTE, Lourdes (Orgs.). Resistência camponesa: histórias de teimosia e esperança. Fortaleza: UECE, 2020. FERNANDES, Florestan. Em busca do socialismo: últimos escritos & outros textos. São Paulo: Xamã, 1995.

IANNI, Octavio. A utopia camponesa. In: STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2016.

LIMA, Maria Aires de. A formação dos professores das escolas do campo. In: COSTA, Frederico Jorge Ferreira; COSTA, Karla Raphaella; PAULA, Alisson Slider do Nascimento de. (Orgs.). Escolas de ensino médio do campo no Ceará: dialética da formação de professores.

Curitiba: CRV, 2020.

MARX. Karl. O Capital, livro I, tradução Rubens Enderle, São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. O Capital, livro III, tradução Rubens Enderle, São Paulo: Boitempo, 2017.

QUEIROZ, Fábio José de; RODRIGUES, Jéssica; GONÇALVES, Camila. Da lavoura arcaica à agroecologia: questão fundiária, reforma agrária e escola do campo no Ceará, In: Educação do campo no Ceará - Uma forma de resistência à barbárie na perspectiva histórico-crítica / Orgs.: Frederico Jorge Ferreira Costa; Karla Raphaele Costa Ferreira; Maria Aires de Lima.

Curitiba: Editora CRV, 2022.

QUEIROZ, Fábio José de; RODRIGUES, Jéssica; LIMA, Renata. A questão agrária no livro didático de história: uma abordagem crítica da coleção “História - Das cavernas ao terceiro milênio”, In: Economia do conhecimento e contemporaneidade em pesquisa / Organizadores: Daniel Luciano Gevehr, Diogo da Silva Cardoso. Guarujá-SP: Científica Digital, 2023.

SAUER, Sérgio. Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro, São Paulo: Expressão Popular, 2010.

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