MEMORIAL DAY
POSSIBILIDADES: TONY BRANCO
Aviso: Tudo apresentado a seguir é uma possibilidade que pode ser seguida, mas o importante é que não se esqueça que estamos tratando de uma experiência, a proposta de uma, então cabe a aqueles que passarem por ela decidirem o que ela será, apesar das sugestões aqui colocadas. Esta experiência condiz à memória e todo seu processo de interconexão em rede com o corpo (vida-morte), a comunicação, os atos de fala, assim como investiga, como também acaba por associar, a presença das figuras monstruosas ou bufônicas, traçando um percurso “cômico” a partir da corporificação, num amplo sentido, dos ditos “distúrbios” que afetam a memória. É necessário, desta forma, que aqueles que escolham passar por aqui entendam que isto escrito é apenas uma parte, o que se vive próximo a isto, tornando-se íntimo disto, é o que se precisa encontrar para que possa ser compartilhado com outros, um público, que deve também passar por aqui deixando marcas próprias do que bem lhes ocorrer, lhes acontecer.
CENA ÚNICA
(Primeiramente o espaço, que nesta experiência se caracteriza por uma superfície plana e fina de madeira de cor preta, sobre uma estrutura de barras de ferro montadas, como um palco com altura de um metro com relação ao solo. O centro da superfície de madeira não é preenchido, há apenas uma longa vala que corta de um lado a outro o espaço, como o esgoto de uma favela, nela não podemos enxergar a estrutura de barras de ferro e sim uma grande lona preta que recobre toda a vala [de fundo arredondado como um “U” e paredes laterais diagonais como um “V”]. No interior da vala há apenas o malcheiro advindo de cerca de dez ou vinte sacos com lixo orgânico apodrecendo, sobre eles outros sacos que deverão além de lixo conter as especificações denotadas na página 28 desta experiência, e por fim completando os espaços restantes entre os sacos, carvão. Grande parte do espaço de madeira está tomado por manequins infantis brancos e pretos, cada um deles possui colado em sua face uma fotografia distinta, que sugerimos que seja instantânea 1, sendo 1
Sugerimos a utilização de fotografias instantâneas daqueles que escolherem ser Tony e Branco. A
especificidade da utilização deste tipo de fotografia se deve a subseqüente sugestão, que seria que estas fotos não estivessem simplesmente dispostas tais quais foram produzidas, mas que através da interferência daqueles que escolherem ser Tony e Branco elas possam ser modificadas e inseridas nestes novos corpos. Como possibilidade de interferência bastante interessante sugerimos a utilização de fogo, por meio da chama de um isqueiro, contra o verso da fotografia instantânea, pois ao início da queima podemos verificar na face inversa, na qual se pode visualizar a foto, o crescimento de uma bolha que apaga e deforma parte da imagem, exigindo o controle da queima em tempo que ainda se possa visualizar parte da fotografia, preservando a bolha como deformação e não como a fotografia por si. Os corpos dos manequins deverão compor a cena também como discurso, nesse sentido recomendamos que memórias daqueles que escolheram ser Tony e Branco tenham seu áudio gravado e que cada manequim possua um recorte específico destas memórias, seja por meio da utilização de aparelhos de mp3 ou de um sistema de som integrado com a mesa, de modo que antes do “início” da ação aqueles que se configuram na forma de público estejam em contato, ouvindo, estas memórias. Na região do sexo do manequim sugerimos que haja uma abertura por onde cada pessoa que presencia e compartilha ação possa deixar um fragmento de memória, uma indicação, mediante o recebimento inicial de uma peça de quebra-cabeça e um lápis grafite, e não caneta, pois a utilização do material da grafite na superfície escrita se desvanece com o tempo, ligando o material a ação. As peças de quebra-cabeça devem com o passar das apresentações serem montadas por aqueles que serão Tony e Branco no espaço no chão a ser ocupado pelo “público”, antes de sua entrada no
também, a partir de cortes em seus corpos, as únicas fontes de iluminação nessa experiência. Do centro da vala emergem duas figuras sentadas numa pequena ponte que atravessa a vala ligando as metades do espaço com suas pernas pendendo em direção ao lixo, elas estão de costas uma para o outra unidas pelo crânio por dois espelhos-bolha e na região da cintura até o quadril por papel filme 2, e além destas possuem diversas especificidades, dentre as quais sugerimos o uso de um imobilizador para o pescoço, uma grande quantidade de tecido [mofado ou apodrecido propositalmente] envolta nos braços de cada um criando uma deformação semelhante a elefantíase, uma bolsa com cateter para a saída de urina, parcialmente cheia, o uso de uma fralda descartável geriátrica, o uso da estrutura metálica de panóplias corretoras nas laterais das pernas, e pés esculpidos a partir de blocos de cimento, medindo cerca de oitenta centímetros (onde possam ser encaixados os pés daqueles que escolherem ser Tony e Branco), esses últimos repousam sobre os sacos de lixo. Aqueles que estarão juntos nesta experiência, podem chamá-los de público se preferir, deverão estar distribuídos no interior do espaço entre os manequins. Tony e Branco são irmãos xifópagos, eles são um casal 3. Eles permanecem no espaço que inicialmente ocupam durante toda a experiência.)
local. Recomendamos, finalmente, que este material não se configure apenas como componente e agente no momento da experiência, mas que esteja exposto além da experiência em galerias, na rua, ou espaços museológicos (onde pode configurar-se também, com exceção da rua, a própria ação), podendo ser isoladamente acessados a despeito de sua presença na ação, assim como por meio da criação de um museu virtual, através do qual os manequins podem ser acessados. Além dos manequins recomendamos também que as peças de quebra-cabeça preenchidas pelo público sejam expostas como uma instalação de parede. Essa sugestão não se configura a parte com relação à experiência aqui disposta e sim de maneira complementar, incitando a introdução da investigação em espaços sociais reconhecidamente atribuídos a uma outra forma de memória, de preservação da memória, de preservação de uma memória compartilhada por determinadas noções de humanidade. 2
Sugerimos que os espaços ocos que existirão no momento da cobertura desta região com papel filme, sejam
preenchidos com a massa branca do pão desfeita em leite, formando uma papa consistente, que deve respingar pelo papel filme no decorrer da experiência, sugerimos também a utilização de anilina líquida vermelha, amarela e verde respingadas na face interior do papel filme no momento da cobertura. 3
A menção de um casal aqui, não se restringe a configuração heterossexual, mas qualquer possibilidade de
um par de indivíduos.
Tony – Há tão pouco tempo. Branco – Como? Tony – O tempo, você sabe. Branco – Tão pouco. Tony – O quê? Branco – É uma boa pergunta para começar. Tony – Não é o começo, você sabe. Branco – É a procedência. Tony – (Sorrindo) Engraçado isso. Branco – Realmente. Tony – Não, realmente não, eu não quero. Branco – Melhor ainda. Tony – Você dizia... Branco – Ah sim. Muitas vezes, eu sempre disse... Tony – Tão pouco. Branco – É por isso que hoje eu posso ter prazer... Tony – Tão pouco. Branco – Melhor ainda. Tony – Nós conhecemos um homem que não comia em restaurantes porque não sabia a procedência da carne. Branco – É. A procedência. Tony – É o corpo não é? Branco – O quê? Tony – Não sei ao certo. Branco – Recomece então. Tony – Você me esperaria? Branco – Não é uma escolha. Tony – Esse é o nosso drama. Branco – Drama? Tony – O processo inquisitório da audiência a partir dos meandros de nossa situação. Branco – Engraçado isso.
Tony – Sempre foi a melhor piada. Branco – Até vale a pena repetir. Tony – Era o que eles diziam. Branco – Quem? Tony – Há muito tempo. Branco – Quem são eles? Tony – É o nosso drama. Branco – O que é inquisitório? Tony – Soa bem. Branco – Dá prazer dizer. Tony – Não sei ao certo. Branco – É bom não se adiantar. Tony – Com tão pouco sobrando. Branco – Recomece. Tony – O quê? Branco – Você está falando comigo? Tony – Nunca havia conseguido em toda minha vida, eu estou falando. Branco – É possível que seja você? Tony – Não acredito, não acredito que seja mesmo! Branco – Finalmente eu te encontrei. Tony – Você pode ter certeza. Branco – Posso? Tony – Não no começo, mas estamos nos movendo. Branco – Finalmente. Tony – Não, ainda não. Branco – Finalmente! Tony – Você saberia me dizer... Branco – (Interrompendo) É improvável. Tony – Poderia me dizer... Branco – (Interrompendo) Não, ainda não. Tony – Eu queria dizer...
Branco – (Interrompendo) É improvável. Tony – Tudo bem. Branco – Assim está. Tony – É mesmo. Branco – E continuará. Tony – Por quanto mais? Branco – Poderia ser pior. Tony – Engraçado isso. Branco – Poderíamos estar sós. Tony – Cobertos de razão. Branco – E de coisas com sentido. Tony – Até o pescoço, sem poder virar a cabeça. Branco – Poderíamos estar sós. Tony – Finalmente. Branco – Você acha que é disso que se trata. Tony – Com quem? Branco – Conosco. Tony – É uma boa hipótese. Branco – Com certeza não vale nada. Tony – É certo. Branco – Como nunca. Tony – O som que faz é tão bonito, o que quer dizer? Branco – Eu? Nada. Tony – O som. Branco – De quê? Tony – Do que você disse. Branco – Eu admito que devo ter dito. Tony – E então? Branco – Estou tentando lembrar. Tony – De quê? Branco – Do que você disse.
Tony – Você acha que é disso que se trata. Branco – De alguma forma sempre se trata de lembrar. Tony – Ou então como essa conversa seria possível? Branco – Essa é uma boa pergunta. Tony – Como nunca. Branco – Bonito som, o que quer dizer. Tony – Um poema, de amor. Branco – Oh, um poema. Tony – Então é isso. Branco – Não pode ser, não desse modo. Então é assim? Tony – Como nunca. Branco – Eu estava me lembrando... Tony – Quando? Branco – Ontem, eu acho. Tony – Tão pouco tempo. Branco – Ontem. Tony – Onde fica ontem na nossa cabeça? Branco – Depende das partes. Tony – Partes de quê? Branco – Ontem. Tony – E como seriam. Branco – Seriam não, são. Tony – Não são? Branco – Foram. Tony – E como seriam? Branco – Bem, isso não é ontem. Tony – Então você está dizendo que é circunstancial. Branco – Longe de mim. Tony – Longe de todos. Branco – Ontem, eu acho. Tony – Mas hoje ainda podemos pensar como seriam.
Branco – E sofrer. Tony – Finalmente. Branco – Com apenas uma circunstância. Tony – Longe de mim. Branco – Longe de todos. Tony – É assim que ficamos, não é? Branco – Depois de tudo. Tony – Sim, depois de tudo que passamos. Branco – Apenas depois de tudo. Tony – Quem dera tudo já tivesse passado de uma vez. Branco – Eu acho que isso não nos leva a lugar algum. Tony – É óbvio. Branco – Porque ainda é ontem, apenas recomeçamos. Tony – Com apenas uma circunstância. Branco – Procurar um caminho. Tony – Não importava para onde, estávamos nos aproximando. Branco – Ainda estamos, não estamos? Por assim dizer. Tony – Por assim dizer... Branco – Exatamente por isso. Tony – Por assim dizer? Branco – E por que mais? Tony – É necessário que haja mais, se fosse apenas isso não teríamos o suficiente nem pra comer. Branco – Você comeu? Tony – No passado. Branco – Nós temos o suficiente? Tony – Em breve. Branco – Mais perto do que se imagina. Tony – Você acha? Branco – Sem nenhum esforço... Se eu quisesse. Tony – E então, o que quer?
Branco – Ora, não me venha com isso. Tony – O quê? Branco – Querer. Tony – Mas você adorava. Branco – Eu adorava dizer. Tony – E você sempre disse. Branco – Disso não podem me culpar. Tony – Quem? Branco – De que importa? Tony – É variável. Do que se trata? Branco – Da culpa. Tony – Nós temos o suficiente. Branco – E não custa dizer. Tony – Claro que não, já está voltando. Branco – Quem? Tony – Eu disse. Branco – Realmente disse. Tony – Eu sempre disse. Branco – Mas hoje é coerente. Tony – Sou? Branco – O que você disse. Tony – É variável. Do que se trata? Branco – Você sabe muito bem. Tony – Sobre já estar voltando? Tudo isso? Branco – Claro que está. Nos falta o assunto. Tony – Pelo Senhor! Para quê? Branco – Para seguir. Tony – Para isso é preciso pés e não um assunto, poderíamos perder tempo. Branco – Seria tão bom. Tony – Seria. Branco – Estamos enganados.
Tony – É sempre possível. Branco – Pensamos sempre em comunicar. Tony – É sempre possível. Branco – Não acredito, mas não é essa a questão. Tony – Como poderia. Branco – Acreditamos por tempo demais que processos de comunicação são ligados a de uma forma ou outra comunicar. Tony – Sim, acreditamos. Mas que bobagem. Branco – Deveríamos ter parado em algum momento e talvez visto, que processos de comunicação podem muitas vezes não ter a mínima pretensão de comunicar, ou de subverter o ato de se comunicar. Não nos ocorreu a sensação de instalar um canal de comunicação, um processo, a sensação de estar ligado sem estar próximo, que de fato nada tinha a ver com comunicar coisa alguma, mas com o gradativo desaparecimento de algo, para mim imponderável. Tony – Lembro de tudo que você me dizia. Branco – Falávamos como um sonar que emite um pulso para a torre e recebe de volta sem necessariamente outra coisa a colocar, a não ser o impulso que continuamente dizia ao outro, estou aqui. Tony – Lembro de tudo. Branco – Seria possível? Tony – Sim, o é ainda. Mas não tenho mais dimensão do esforço que é para ver na coisa outros lugares, que não são ela, mas onde estivemos em outro tempo, e ver na coisa tudo o que esperamos, e saber de outro tempo com outras marcas de esperas distintas que ficou conosco, o esforço de ver no outro memória. Branco – Eu sei o quanto lhe custou. Tony – Uma espera ainda não consumada. Branco – Um esforço que exige para ter o tempo de cumprir-lhe somar o tempo gasto na tentativa de cumprimento a cada dia à quota do próprio esforço, sem assim se permitir acabar. Tony – E a nós nada mais é permitido. Branco – A não ser a sensação da presença um do outro.
Tony – Emitindo o impulso para saber que estamos um para o outro. Branco – Sim. É possível que estejamos. Tony – (Gargalha rapidamente com estranhos sons ou arrota4 estes sons.5) Branco – (Olha para Tony. Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons).
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A questão do arroto condiz à relação estabelecida a partir do século XVII de que a figura do bufão, do louco, se associa a padrões que fogem à regra, a “ordem”, não possuindo simetria em seus corpos, nem em suas ações, não conseguindo enquadrar-se como homem “civilizado”. Como coloca Jorge Leite Jr.: “O gradativo controle das funções corporais, um dos elementos mais importantes de distinção social, torna-se um dos alvos prediletos das brincadeiras grotescas. Bufões peidam entre aqueles que seguram seus gases, arrotam entre os que comem de boca fechada.” (p. 191) LEITE Jr., Jorge. Das Maravilhas e Prodígios Sexuais – A Pornografia “Bizarra” como Entretenimento. São Paulo: Annablume, 2006. 5 Os sons mencionados devem seguir as orientações processuais de criação e memorização da experimentação sugerida por Herman Ebbinghaus, que por meio da criação de sílabas formadas por uma vogal entre duas consoantes (como REN, DAX), cerca de 2300, criou listas aleatórias com treze sílabas e memorizou-as, a ponto de ser capaz de repeti-las duas vezes sem errar, depois testou sua capacidade de retenção dessas listas em intervalos variados de tempo, registrando o tempo que levava para reaprendê-las usando o critério das duas repetições. Extraiu dessa experiência dois princípios, o primeiro que as memórias têm diferentes tempos de duração, e o segundo que a repetição faz com que as memórias durem períodos mais longos. Eles devem, porém, possuir uma escala quase musical, rítmica ou melódica, orientando períodos de uma comunicação que tem por um único fim conectar-se ao outro, sem necessariamente pretender comunicar quaisquer fatores. As seqüências encontradas no decorrer deste texto, ou escritura, crescem gradativamente, sendo “repetidas” naquilo que já foi realizado e ganhando novas seqüências a cada nova aparição.
Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). (Para todas as seqüências que envolvem as gargalhadas e arrotos supracitados, sugerimos a utilização do “choro de palhaço”, um pequeno dispositivo que faz com que as lágrimas jorrem para longe da face). Tony – É. Branco – É assim. Tony – É o suficiente. Branco – Para nós. Tony – Há tanto tempo e ainda agora. Branco – Como nunca. Tony – Mas resta o problema do tempo. Branco – Sim, é certo. É o paradoxo que nos move em direções estranhas, para nós mesmos estamos sempre no ano zero de nosso tempo, o presente, o nosso presente e como ele se articula em seus problemas, o vemos na maioria das vezes como um zero a partir do qual virá amanhã e pensamos hoje já como ontem, um zero, ou vários zeros, e um como todos os zeros, assim como todo número possui infinitos zeros à esquerda, mas então amanhã e zero novamente. Porém há o tempo transcorrido sem nós, para o mundo, por exemplo, colado como um só a um outro tempo nosso, um tempo exterior, de desgaste da forma do lado de fora, que já transcorreu, um tempo coletivamente e individualmente histórico, mas passado, nessas duas camadas unidas existe uma outra contagem que emite sons acumulados,
herdados, nos genes, na língua, na linguagem, nas sociedades, no modo de observar a si mesmo. Assim estamos alinhados nesta escala divergente de contagem, estamos sempre no zero tentando ou não contar um, estamos sempre nos bilhões da forma terrestre, ou da estruturação civilizatória, ou da caracterização da estrutura política e econômica das sociedades ocidentais, assim separados de uma sincronia achatada, e mais próximos de diversos fusos que comungam de nossa carne, e provam de nosso sangue, restando nada de eu a esse eu em movimento no tempo, assim como o tempo em movimento no eu, apenas o impulso anacrônico que afirma de várias direções, estou aqui. Tony – E como pensar esse tempo, se há apenas cinco séculos trinta anos eram uma vida toda, se há os que contribuem à imortalidade da alma, os cristãos, os judeus, os mulçumanos, todos com seus calendários anacrônicos, se há também os que multiplicam suas falas e imagens em mundos virtuais, livros, computadores, em que viverão tanto tempo mais do que seus corpos, as crianças vietnamitas fumando cigarros nos colos de suas mães, os que descobrem um câncer terminal aos noventa anos de vida, pedaços que flutuam não se atendo ao tempo comum de gestação da imagem, da percepção, isso e mais uma distinção infinita do que de fato se soma de tempo sobre o tempo, sobre a vida, segundo a decomposição de cada ente que discerne a passagem do tempo sobre si. Branco – É assim. Tony – Mesmo que não fosse, é engraçado. Branco – É. Tony – Garante o riso. Branco – Por assim dizer. Tony – O quê? Branco – O que acabamos de falar sobre o tempo. Tony – Mas eu não estava falando com você. Branco – O que isso quer dizer? Tony – Não muita coisa. Branco – Você não lembra o que dissemos? Tony – Quando? Branco – Eu não sei bem. Tony – Tampouco eu.
Branco – Mas você não estava falando comigo? Tony – Eu continuo falando com você, é diferente. Branco – É certo. Tony – Apenas em parte, mas quem pode nos contradizer. Branco – Nós. Tony – Para quê? Branco – Eu não saberia. Tony – Então não faça suposições. Branco – Me perdoe. Tony – E você a mim. Branco – Mas o que vai restar então. Tony – Ainda poderemos falar. Branco – Um com o outro. Tony – É possível, mas é preciso que nos esforcemos mais. Branco – Eu vou. Eu juro. Tony – (Move-se um pouco, mantendo ainda sua posição) Não faça isso, você deve permanecer onde está. Branco – Onde estamos? Tony – Viu? Drama. Branco – É, você gostou. Tony – Não é a melhor parte, quase nunca é. Mas você está aí e eu aqui. Branco – Sim, estamos assim. Tony – Mas também não. Branco – Porque não estamos de todo contidos aqui. Tony – Não, realmente não. Branco – Esse esforço só se faz uma vez, ou melhor, todo esforço só se faz uma vez, mas este é impossível reinventar. Tony – Acabar, certo? Branco – É certo, mas uma vez só, até então temos que nos virar com os restos. Tony – É certo. Branco – É possível.
Tony – Eu sempre me perguntei como seria na minha mente se eu não soubesse estas palavras. Branco – Seria assim, apenas uma lembrança. Tony – Estamos sempre brincando com os mortos. Branco – Falando. Tony – Escrevendo. Branco – Pensando. Tony – As palavras sempre mudando de um lado para outro. Branco – A voz sempre mudando de um lado para outro. Tony – E todo o movimento debaixo de sua aparente estaticidade. Branco – E as dizemos sem que de fato elas ainda estejam ali, onde achamos que o que dizemos tem significado. Tony – Engraçado isso. Branco – E as dizemos ou pensamos, sem que correspondam umas as do outro, pois as definimos de formas distintas, e todos pensam em Babel, tão longe, enquanto a torre incompleta está exposta a tanto tempo em nosso interior, em nosso contato com o que está fora, há quanto tempo vivemos Babel, mas atendemos quando nos chamam por outro nome? Tony – E as dizemos ou pensamos sem que estejam ali, e eu penso enquanto digo agora, que não é comunicar é o contato, não estamos comunicando muita coisa, nem se fôssemos mais claros, é o contato ou a existência do contato com qualquer coisa a sensação que nos toca. Branco – E o que nós sabemos um do outro é tão opaco, então eu imagino os que montam ipsis literis num palco Édipo Rei, os que montam O Tartufo, mais longe ou mais perto, o que de fato sabem sobre aquele tempo? Algumas hipóteses históricas, tão pobres por haverem tantas histórias certas em serem tantas, algumas palavras que parecem se assemelhar. Mas de resto apenas a sensação completamente distinta de que já não se diz algo nem próximo do que tentam as palavras escritas, que pelo relevo erosivo de seu corpo a palavra, as palavras, estão desmontadas e que a cada um resta uma opinião sobre cada face do fragmento.
Tony – Uma vez me disseram que as palavras eram todas amputadas porque viviam lidando muito de perto com os dentes. Branco – Mas e os mudos? Tony – Não sei. Branco – E os desdentados? Tony – Não sei. Branco – E os que sofreram derrame? Tony – (Gargalha rapidamente com estranhos sons, ou arrota estes sons). Branco – (Olha para Tony. Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons).
Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – Meu nome é Tony. Branco – Meu nome é Branco. Tony – Nós não nos conhecemos? Branco – É improvável. Tony – O quê? Branco – Nos conhecermos. Nos conhecer precisaria de uma vida, não há qualquer vida aqui. Tony – Nós não nos conhecemos. Branco – Não, senão não poderíamos nos apresentar. Tony – Isso não é uma apresentação. Branco – Por que não? Tony – Porque nós não estamos presentes ou não nos fazemos presentes. Branco – Como? Tony – Você não é você e eu não sou eu agora. Branco – Então pra quê o público?
Tony – Porque toda violência precisa de público, e não fui eu quem disse isso. Branco – Você me machucaria? Tony – Não sem querer. Branco – Você quer? Tony – O quê? Branco – Me machucar. Tony – Você não está aqui, e para fazer ou querer eu precisaria de uma vida. Branco – Você está bem? Tony – Talvez amanhã se eu me lembrar desde o começo eu consiga. Branco – Você me quer? Tony – É improvável. Branco – Por que? Tony – Porque já nos conhecemos. Branco – O que isso tem a ver? Tony – É que daí não sobra mais nada pra encontrar. Branco – Encontrar? Você é um cão? Tony – Só se eu quisesse você. Branco – Mas eu não estou aqui. Tony – Então daqui a pouco vou me dar conta de que te amo. Branco – Desde o começo? Tony – Talvez amanhã. Branco – Daí então você poderia me machucar? Tony – Só se eu quisesse continuar te amando. Branco – E você quer? Tony – É possível. Branco – Me diga quem você é e confie em mim. Tony – É necessário? Branco – Para me manter em silêncio, sim. Tony – Eu prefiro que você diga. Branco – Mas então o conforto seria só seu. Tony – Exato.
Branco – Se você não é você por que quer estar confortável. Tony – Eu não quero. Branco – Mas você acabou de dizer. Tony – É improvável, eu prefiro o silêncio. Branco – Eu te amo. Tony – Não. Branco – Por que não? Tony – Porque eu ainda estou aqui. Branco – Eu pensei que não fosse você que estivesse aqui. Tony – Então, sim você me ama. Branco – O que você diz. Tony – Nada, eu não estou aqui e se estivesse eu prefiro o silêncio. Branco – Estou só. Tony – Não, somos a companhia um do outro. Branco – Se eu não souber disso ainda. Tony – Mas já está dito. Branco – E o que isso significa? Tony – Não muita coisa. Branco – Então para quê você disse? Tony – Para você. Branco – Eu quis dizer com que objetivo. Tony – Mas não disse. Branco – Acabei de lhe falar. Tony – Então vamos ficar quietos. Branco – Eu quis dizer que tinha lhe falado há pouco tempo. Tony – Mas não disse. Branco – Agora já está dito. Com que objetivo você disse? Tony – Para você. Branco – Eu não sou um objetivo. Tony – É possível. Branco – E então.
Tony – Não lhe digo mais nada. Branco – Eu sei. Tony – Não pode saber, você não pode estar aqui. Branco – Mas este é o meu lugar. Tony – Esta é a sua marca. Branco – Claro que é, não existem lugares sem marcas, sem indicações. Tony – Talvez nossas vozes. Branco – Não, eu as distingo bem. Tony – Eu quis dizer o que nós dizemos. Branco – O quê nós dizemos? Tony – Exatamente, o quê? Branco – Você deveria me ouvir de vez em quando. Tony – Quem? Branco – Você. Tony – Por que? Branco – Porque é a única coisa que restou. Tony – Então eu continuo te ouvindo, só que de outra forma. Branco – Qual? Tony – Está certo, diga então. Branco – O quê? Tony – O que você quiser. Branco – Desde o começo? Tony – Eu espero. Branco – Não sei se quero. Tony – Tampouco eu. Branco – Você tem certeza? Tony – Para mim. Para nós dois não sei se bastaria. Branco – Desculpe. Tony – Claro. Branco – Tudo bem então? Tony – Não é para tanto.
Branco – Qual o seu nome mesmo? Tony – O meu nome mesmo? Pelo qual você poderia me chamar? E eu viria até você, eu e meu verdadeiro nome. Branco – Não. Tony – Então que nome você quer? Branco – O seu, o que você está usando agora. Tony – Meu nome é Tony. Branco – Meu nome é Branco. Tony – Pronto, agora posso me lembrar de quem você é. Branco – De quem eu fui. Tony – Como? Branco – Você se lembrará de quem eu fui, senão você não poderia lembrar. Tony – Por que não? Branco – Porque eu não faria parte do seu passado e então você não poderia lembrar-se. Tony – Mas eu me lembro de você, agora, enquanto te vejo Branco. Branco – Não, você está me recomeçando. Tony – Como assim? Branco – Eu estou num limbo entre a memória recente e a de longa duração, e eu nunca chegarei a segunda margem. Tony – Por que não? Branco – Porque você não tem o que é preciso, então você permanece a me começar e não acabar o que resta, e em pouco tempo você não saberá quem eu sou e me recomeçará, assim como eu. Tony – Você também está me recomeçando? Branco – É claro, enquanto estiver aqui. Tony – Então estamos aqui? Branco – Aos poucos. Tony – Você está comigo? Branco – Às vezes. Tony – Então até quando nós podemos voltar? Recomeçar?
Branco – Voltar seria impossível, precisaria de alguma vida. Recomeçar é mais simples porque é apenas o que somos, estamos sempre no instante zero. Tony – (Gargalha rapidamente com estranhos sons, ou arrota estes sons). Branco – (Olha para Tony. Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons).
Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – Então é isso.
Branco – Como se já não fosse suficiente. Tony – Para quem? Branco – Ora, para todos. Tony – É. Branco – Mas por que nós fazemos isso? Tony – Nós estamos unidos de maneira inseparável pelo crânio, na região do lóbulo frontal, a pressão do crescimento do corpo um do outro fez com que ele tivesse uma estrutura subdesenvolvida. Branco – O que isso quer dizer? Tony – Não sei. Achei que você gostaria de um período tão medicinal para dar base a uma questão essencialmente existencial. Branco – Engraçado isso. Tony – Mas o que nós estamos fazendo aqui? Branco – Nossa mãe nos deixou aqui. Tony – Onde ela está? Branco – Ela não existe. Tony – Como ela nos deixou aqui? Branco – Você não deixaria? Tony – É possível. Branco – Toc-Toc. Tony – Quem é? Branco – Má formação neural. Tony – Má formação neural quem? Branco – Má formação neural na sua cabeça. Tony – Engraçado isso. Branco – Umas vezes mais que outras. Tony – E como foi essa? Branco – Essa vez é sempre a pior. Tony – É certo. Branco – Você nunca me deixou só. Tony – Eu não poderia.
Branco – Eu sei. Nem eu. Tony – Você nunca me deixou só. Branco – Eu quis. Tony – Mas nunca pôde. Branco – Nunca pudemos nada além dos limites um do outro. Tony – É certo. Branco – Então, não é assim que se ama. Tony – É improvável. Branco – Nós também. Tony – É certo. Branco – Você se sente bem comigo? Tony – Eu me acostumei. Branco – Eu também. Tony – Mas não lembro o que isso quer dizer. Branco – É uma sensação boa. Tony – Tem seus dias. Brancos – Tem todos eles. Tony – Para nós. Brancos – Sim, para nós. Tony – Queria sentir algum prazer nisso. Branco – Eu sempre te amei. Eu acho. Tony – Eu também. Eu acho. Branco – Eu queria te dar prazer. Tony – Mesmo? Branco – Eu quero. Tony – Eu também. (Masturbam um ao outro, com movimentos desencontrados, como insetos virados com as patas para cima). Branco – Eu sinto você na minha cabeça quando você goza.
Tony – Eu sinto você na minha cabeça sempre. Branco – É certo. Tony – Se você morrer o que acontece comigo? Branco – Vira um ator de monólogos, eu acho, poderia também ser ventríloquo. Tony – O que nós somos? Branco – Você não acha que já é muito drama? Tony – Talvez seja um pouco cômico. Branco – É um fator acrescentado pela tradição. Tony – Como? Branco – Você sabe, toda a tradição dos bufões nos castelos feudais e suas mutações físicas, anões, aleijados, partes de mais, partes de menos, uma fraternidade de monstros para todos que estivessem dispostos a rir. Somos aquele que pode exercer diariamente o papel do louco, do qual todos riem, todos tem medo, pois estamos tão dentro deles quanto eles de nós, e de alguma forma expomos uma verdade, que eu não sei qual seria, que é proibida a eles. Podemos ainda pensar “como os bufões eram a materialização da vida fora de ordem, do caos do espírito manifesto na desorganização do corpo (...), provavelmente quanto mais deformado melhor expressava o mundo fora dos eixos”6. Descendemos dos tocados pelos demônios na idade média, somos os indisciplinados de nascença na idade moderna, que carregam selados em sua deformidade, o sexo, o demo, o riso mau, a podridão, a maldição. Somos exibidos em feiras, em circos, para o comércio, para a ciência, as anomalias físicas: “anões; mulher barbada; o que portam defeitos físicos excepcionais; antípodas7”. Tony – Os monstros. Branco – E toda sua genealogia. Tony – A primeira causa da especulada origem dos monstros “é a glória de Deus. Branco – A segunda, sua ira. Tony – A terceira, a demasiada quantidade de semente – sêmen. Branco – A quarta, sua quantidade demasiada pequena. Tony – A quinta, a imaginação. 6
LEITE Jr., Jorge. Das Maravilhas e Prodígios Sexuais: A Pornografia Bizarra como Entretenimento. São
Paulo: Annablume, 2006. (p.188). 7
DANTAS, Arruda. Piolin. São Paulo: Pannartz, 1980. (p. 26).
Branco – A sexta, a estreiteza ou pequenez da matriz – a mãe, o útero da mãe. Tony – A sétima, o assentar-se inconveniente da mãe que, em estado prenhe, permanece sentada durante longo tempo com as coxas cruzadas ou apertadas contra o ventre. Branco – A oitava, por queda ou golpe dado contra o ventre da mãe que está prenhe. Tony – A nona, por enfermidades hereditárias ou acidentais. Branco – A décima, por podridão ou corrompimento da semente – sêmen ou óvulo. Tony – A décima primeira, por mistura ou cruzamento de sementes – sêmen de dois ou mais homens. Branco – A décima segunda, por artifício das más disposições da parteira. Tony – A décima terceira, pelos demônios ou diabos”.8 Branco – Nós dois falando desse assunto e eu fiquei com fome. Tony – É compreensível. Branco – É mesmo? Tony – Não, claro que não, sua aberração. Mas de qualquer forma... (Tony abre o papel filme na região de seu ventre e retira um punhado de uma pasta branca encharcada e o dá para Branco, ele a come). Branco – É bom. Tony – Eu sei. Branco – Tem gosto de queijo. Tony – Foi o que pensei. Branco – É fácil de mastigar também. Tony – Essa parte eu já adiantei um pouco para você. Branco – Obrigado. Tony – Tudo bem? Branco – Eu acho que sim. Tony – E sua fome. Branco – Vai voltar. Tony – É certo. 8
Retirados os grifos sublinhados, Ambriose Paré, Des Monstres et Prodiges (1573).
Branco – A não ser que acabe. Tony – Está próximo. Branco – Eu gostaria de me lembrar melhor como você é. Tony – Eu não. Branco – Como era antes daqui? Tony – Eu não sei. Branco – Mesmo? Tony – Não. Branco – Então diz. Tony – O quê? Branco – Como era. Tony – Você de um lado e eu do outro. Branco – E um dentro do outro. Tony – Sempre. Branco – E amanhã nada na cabeça. Tony – Todo o conhecimento entre zero e um apagados. Branco – As larvas comendo toda a carne morta de ontem. Tony – E engordando até que do seu corpo explodido de tanto comer nasçam mil outras. Branco – E assim por diante. Tony – O que isso quer dizer? Branco – Com certeza um número ilimitado de coisas. Tony – Então vamos esquecer. Branco – Mesmo que fosse limitado. Tony – O tempo se adianta e quase tudo se apaga, mas resta algo. Branco – E o que fazer com os restos, o cozinheiro pensa, e inventa novos pratos diante da escassez. Tony – Mas o apetite não se engana, e sabe que lhe sevem a mesma coisa de formas diferentes. Branco – E a vida brinca com seu resta um aparentemente infinito. Tony – Como se para cada peça retirada uma pequena semente ficasse e brotasse de um dia para o outro.
Branco – E colhemos a mesma peça no dia seguinte, sem lembrarmos do que tivemos na nossa mão no dia anterior. Tony – Uma mão que são duas, duas mãos que são quatro. Branco – Mas ainda haverá a morte. Tony – É certo. Branco – E então toda a memória para os outros. Tony – Nós apenas como objetos infinitos que se despedaçam em outros corpos, mas não mais o nosso. Branco – Nunca mais o nosso. Tony – Mas qual de nós irá primeiro, e quando tudo isso acabará para o outro? Branco – Ainda somos tão pequenos. Tony – Tão curtos. Branco – Tanta pele, com toda sua folga ainda por se preencher. Tony – E descobrir como cresce uma criança para depois esquecer. Branco – E descobrir como encolhe um velho para depois esquecer. Tony – E nem um riso verdadeiro. Branco – Nem um sorriso verdadeiro. Tony – Mesmo em nossa forma historicamente cômica. Branco – Mesmo que na boêmia as crianças tivessem os lábios cortados, as cabeças comprimidas, ou fossem fechadas em caixotes para que os ossos calcificassem e os músculos atrofiassem de maneiras disformes, dolorosas e, para época, engraçadas9. Tony – Nem um riso verdadeiro. Branco – Nem um sorriso verdadeiro. Tony – Os que se lembram presos a isso. Branco – Os que esquecem presos a isso. Tony – Reflexos motores. Branco – Reflexos verbais. Tony – Um neurônio espelho que brota em outro corpo colado pela carne ao primeiro. Branco – Um espelho que não mostra nada. Tony – E então nada mais a esconder. 9
NAZÁRIO, Luiz. Da Natureza dos Monstros. São Paulo: Arte e Ciência, 1998.
(Nesse momento podemos ouvir bastante sutilmente o som do choro de um recém nascido, que gradativamente vai crescendo, e a partir da emissão sonora do choro de diversos pontos, percebemos que não se trata do choro de um recém nascido, mas do choro de diversos recém-nascidos). Branco – De ninguém. Tony – De você. Branco – De você. Tony – De alguma forma ligados. Branco – E então dizendo um para o outro: eu não estou aqui. Tony – E todo o prazer da incerteza sobre isso. Branco – Tão pouco. Tony – Quem sabe o suficiente. Branco – Para um dia. Tony – Uma semana. Branco – Ou outro tempo. Tony – Contado de outra forma. Branco – Com muitas palavras. Tony – Que se subtraem enquanto são ditas. Branco – Acabando com os restos. Tony – Cada um deles. Branco – E então mais nenhum deles. Tony – Para nos ocorrer novamente. Branco – Para lembrar. Tony – Para esquecer. Branco – E quando nada disso é necessário. Tony – Nenhuma coesão. Branco – E todas as vontades que não se poderão comunicar. Tony – Apenas o contato. Branco – A sensação do contato.
Tony – Que jamais tentará recomeçar. Branco – Pois não faz a mínima idéia do que isso venha a ser. Tony – E é incapaz de aprender. Branco – E é incapaz de ser disciplinado. Tony – Pois a memória é onde começamos a nos partir. (Os sacos de lixo começam a se movimentar como se quatro pequenos membros empurrasse a película plástica de cada um deles, como se houvesse no interior de cada saco, lacrado, um recém-nascido). Branco – E a nos unir através de formações corpóreas inesperadas, que nos reconhecem naquela foto, naquela caligrafia. Tony – Que manda cartões postais de outro tempo nunca vivido, para mudar sua posição. Branco – Colado atrás de nossa cabeça. Tony – Essa é a posição. Branco – É certo. Tony – Agora mais do que antes. Branco – Para nós mais do que parecia ser. Tony – Seria melhor. Branco – Foi melhor. Tony – E ainda assim continua diante de nós. Branco – Agora mais do que antes. Tony – Sem equivalências. Branco – Sem proporções. Tony – A única medida que conheci foi você. Branco – E você jamais me viu. Tony – Não mais que uma pequena parte. Branco – E não saberá meu nome. Tony – Não mais que uma pequena parte.
Branco – Uma pequena parte de nosso nome em todas as palavras, que se juntam ao acaso no mundo por cada voz, sem possuírem jamais um único objeto cuja figura alguém possa reconhecer. Tony – E todos os nomes sendo chamados numa conversa comum. Branco – Sorrindo quando seus pedaços são tocados. Tony – Chorando quando seus pedaços são tocados. Branco – Implorando quando seus pedaços são tocados. Tony – Sentindo quando seus nomes são tocados. Branco – Morrendo quando seus nomes são tocados. Tony – Esperando quando seus nomes são tocados. Branco – Recomeçando quando seus nomes são tocados. Tony – (Gargalha rapidamente com estranhos sons, ou arrota estes sons). Branco – (Olha para Tony. Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons).
Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons).
Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons). Tony – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porém outros, ou arrota estes sons).
Branco – (Em resposta gargalha rapidamente com estranhos sons, porÊm outros, ou arrota estes sons).