atravessando o através

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FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

São Paulo, 10 de janeiro de 2017, De Andrea Teixeira Barcelos aos cuidados do Profº Drº Agnaldo Farias,

A respeito da obra Através (1983-1989) do artista plástico Cildo Meireles, como trabalho de conclusão da disciplina AUH0323 – História da Arte no Brasil.

Inicialmente gostaria de sinalizar meus encaminhamentos de pensamentos positivos para a recuperação à cirurgia a qual eu soube que você esteve submetido. Estimo imensamente sua generosidade e disponibilidade como professor e como

pessoa. E envio meus melhores sentimentos de consideração para você.

É importante também que eu diga que apreciei muito as suas aulas e sugiro que a disciplina incorpore esse termo em seu nome, algo como “História e Apreciação da Arte no Brasil”. Assim como aquelas que eu cursei na Fundação das Artes de São Caetano do Sul chamadas de “Apreciação Musical”, em que eu pude entrar em contato com algum vocabulário e aspecto do universo da música.

Decidi trabalhar sobre a obra Através, de Cildo, pois ela incentivou-me a pensar sobre a atividade da percepção das imagens e dos sons. Observei-me pensando sobre como a percepção é produto de uma elaboração humana muito sofisticada, responsável pelo desenvolvimento da linguagem.

Através, 1983-89, Desenho de Cildo Meireles. Fotografia de instalação

Parece claro que opera como via de mão dupla, a linguagem transmitida por símbolos e códigos sonoros tanto remontam a história quanto enfatizam a sua continuidade futura. Se para Cildo, os espaços imaginados tem profunda relação sonora e linguística, devem eles ter tanta importância quanto o emprego dos materiais e a escolha das formas.

Apesar de não eu estar em um contato real com a obra escolhida, proponho-me fazer o exercício de imaginar o atravessamento, narrando esse percurso imaginado com apoio da literatura e dos desenhos do Cildo, buscando especialmente expressar alguma ideia sobre as operações artísticas propostas.

Estruturei o percurso em cinco etapas. Na primeira, é possível ver a obra a um só golpe de

olhar dividindo o espaço de um galpão tão imenso que ecoa o tom de uma goteira distante. As redes e filos mais externas são vistas convidando para um mistério, que tanto se mostra como se vela. Mesmo que pareça possível fotografar a essência dessa imagem, não será possível registrar com precisão o som tranquilamente repetitivo das gotas que já caiam por lá.

A chegada não é marcada por um pique no bilhete de visitação ou um carimbo de entrada de uma obra de arte, o ritual do atravessamento é marcado pelo som que ecoa da pisada de quem adentra. Imagino que alguns cochos se espantem com a rapidez da notícia que se espalha a medida que caminham sonoramente, imagino que outros tão contidos se envergonhem do barulho e covardemente se recusem a continuar.

Mas é dessa distância que já se tem proximidade com os materiais, reconhecendo os do cotidiano doméstico e urbano. As malhas e retículas dispostas verticalmente são persianas, telas soldadas e grades comuns, então apesar do espaço ser inédito e estarrecedor, a familiaridade de seus materiais constituintes oferece um terreno razoavelmente estável e seguro.

Apesar do espaço ser atravessado pelo olhar, pelo convite da transparência, a mesma facilidade não é oferecida ao caminhar que deve tatear o chão de vidro na restrição dos planos verticais.

O som do piso de vidro é a evidência do público, seu sinal de chegada e convite à atenção perceptiva.

Estariam todos aqueles materiais abrigando um mistério entre o inédito e o cotidiano, o futuro e o presente. Os mistérios que residem no vidro datam sua vida marinha, sua experiência em tempo geológico. Seu eco deve ser como oração a todos os responsáveis pela sua fatura: da terra que oferece, do vento que erode, da água que sedimenta e do fogo que inventa seu brilho.

Através, 1983-89, Cildo Meireles. Captura de imagem da instalação em Inhotim por video de youtube

Já os reticulados são produto de uma indústria capaz de extrair e manipular matéria prima de tamanho peso geológico, como o petróleo para os plásticos e os minérios para os metais. Também são produtos cotidianos do desejo do fechamento, gradeamento e cerceamento das passagens de uma sociedade interessada em dar vista de seus bens loteados.

Eu não consigo imaginar quantas pessoas no mundo fizeram o exercício de amassar bolinhas de diferentes tipos de papéis como experiência de uma estrutura fractal. Mas eu fiz, e por isso, nem com muito esforço eu conseguiria ver uma imensa bola de celofane amassado sem pensar em fractais. Apesar desse exemplo específico, certamente muitos humanos já repararam em padrões fracionados de crescimento, e repetições exaustivamente conse-

cutivas de uma mesma forma. É o caso dos que já observaram uma folha de samambaia rendada ou um brócolis romanesco.

Nesse instante, diante do núcleo, que é um gigantesco amassamento de celofane, como uma cebola de cascas que de tão secas já estão transparentes, é possível ver mais e mais retículas formadas pelo amassamento do papel. É a geometria fractal que explica a razão espacial de um objeto plano que tende a ser esférico. Algo que esteve na segunda dimensão euclidiana como o papel, ao ser ferido pela dobra, atinge uma dimensão fracionária entre a segunda e a terceira dimensão. Ao contrário de fundir-se em um objeto maciço, a esfera feita de um plano tende a expandir seu volume à medida do tempo. A concentração do núcleo na obra marca esse profundo contato com a estrutura fractal, tan-

Através, 1983-89, Cildo Meireles. Captura de imagem da instalação em Inhotim por video de youtube

ilustrativa da estrutura cristalina do quarzto

to que convida hipnóticamente seus expectadores a caminharem entre suas estreitas camadas, e experimentarem o som do plástico. Mas não é possível para um ser humano de nossa estatura, e que não tenha passado por um encolhimento ficcional. A materialidade da sociedade humana está presente na repetição daquelas formas. A barreira entre o núcleo precioso e o público é o cordão de isolamento do cinema e um gradil para o museu e entre eles, um cavalo de frisa metálico, aludindo às memórias da II GGM. São separações simbólicas que marcam um limite humano no caminho em direção a essa posição ainda mais central, mais internamente do núcleo. São signos muito facilmente distinguíveis, em que pese a relevância da produção fonográfica, a história registrada e exposta e a memória política. Portanto, uma vez diante do nucleo, talvez nunca mais seja possível estar diante de grades e retículas sem relacionar à memoria daquilo que foi visto em Através. Caminhando em direção à saída é o momento de reflexão sobre como o ser humano aplica seus conhecimentos das geometrias da natureza.

Pareço entender de Cildo sua demostração de que o ser humano tanto sabe ler a estrutura fractal, quanto sabe reproduzir à exaustão as imagens derivadas da repetição de malhas e redes. Diz que tanto fazem parte de um mesmo núcleo comum quanto se repetem para além da experiência da obra. E que ao estabelecer uma barreira política e cultural para o núcleo, o público deve destinar a sua atenção sobre a produção humana de barreiras atravessáveis, e de transparências instransponíveis. A ausência de uma saída evidente reforça a ideia de propagação do trabalho para os ambientes mais externos e distantes do nucleo. A obra fractal continua sendo vista para além do período de visitação, como um eco que ressoa o encontro generoso entre o espaço poroso e a sagração de sua história formal na natureza. O eco que nos atravessa é tanto mitológico que expõe a nossa relação com a fração de superfícies e de espaços. Por outro lado, é tão humano que nos expõe diante das nossas próprias barreiras.

Imagem Imagem ilustrativa de vidro aramado com retícula metálica. Imagem ilustrativa de um cavalo de frisa em madeira e metal. Geometria fractal. Superfícia fracionada de uma folha de alumínio.

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