Livro thiago com capa

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Thiago BasĂ­lio

SobreVida


SobreVida Copyright © Thiago Basílio 2014

Projeto desenvolvido para Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado como requisito para obtenção do Diploma de Bacharel em Jornalismo pelo Centro Universitário Adven!sta de São Paulo - Unasp - Campus Engenheiro Coelho.

Todos os eventos descritos nesta publicação foram escritos sob a permissão e responsabilidade dos entrevistados.

Publicação independente Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998

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“Sobre viver? Sobreviver.” Priscilla Dias Cavalcante “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.” Fernando Pessoa



Sumário Agradecimentos Prefácio Histórias para mudar histórias Capítulo 1 - Felicidade é ser livre Capítulo 2 - Seremos suas mãos e pés Capítulo 3 - Mais que uma sacola Epílogo

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Agradecimentos Esta é uma daquelas partes tão importantes quanto as histórias em si. Aqui são revelados os responsáveis por tornarem sonhos possíveis. Quero agradecer a Deus pela força e saúde. À Minha mãe Rita, e ao meu pai Alcione pelo apoio incondicional, mesmo frente à minha recorrente ingratidão. Se hoje sou um formando, os culpados são vocês. Amo-vos muito. À minha orientadora e amiga Andréia Moura. Um ser impecável que compra junto comigo todos os meus desa ios. Não tenho palavras para agradecer toda a sua dedicação gratuita. Minha tia Mirian que é, desde sempre, a minha maior referência acadêmica. À minha avó, Antônia, que faz o melhor bolo de fubá do mundo e representa para mim um divertimento à parte quando estou em Vitória. Não morra, por favor! Um abraço de gratidão muito apertado aos meus professores desde o jardim da infância. Vocês são os responsáveis por conceituar em mim o princípio básico da educação que é o de transformar. Obrigado aos meus amigos, colegas que participaram da minha construção como ser humano. Quero agradecer também aos personagens deste projeto que, gentilmente, expuseram suas histórias particulares. Obrigado Rodolpho! Obrigado Thaís! Obrigado Roberto! Nominalmente, quero destacar pessoas que dedicaram o seu tempo para me ajudar com este projeto: Guilherme Figueiredo, Maria Júlia Magalhães e Mariana Farinha. Valeu as ajudinhas no manuseio de tecnologias que tanto me perseguem. Por im, muito obrigado a você que se dispôs a consumir esse projeto tão importante para a minha vida. A todos o meu sincero e mais profundo “muito obrigado”.

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Prefácio Gabriel García Márquez disse, certa feita, o seguinte: “A vida não é mais que uma contínua sucessão de oportunidades para sobreviver”. Nada mais próprio do que falar de sobrevivência, aqui neste espaço. No entanto, antes de deter-me nesta questão e em outros pequenos tópicos periféricos, quero contar uma história. (Que por sinal, cabe muito bem neste contexto também, que na verdade trata-se do exercício do contar histórias). Conheci Thiago Basílio há quase 5 anos. Fevereiro de 2010... Foi uma manhã bastante comum, em que me dedicava a afazeres ainda mais comuns na Rádio Unasp (emissora educativa pertencente ao Unasp-EC). Nesta época eu era uma das responsáveis pela produção de conteúdo da rádio e pelo gerenciamento dos alunos estagiários que trabalhavam no veículo. Dois meninos, (porque realmente não passavam disto ainda) colocaram timidamente a cabeça no vão da porta da Rádio Unasp. Um deles me perguntou: - Quem é Andréia? Encarei o rapaz com certa seriedade e respondi: - Sou eu, porque? Meio sem graça o garoto foi entrando e continuou: - Gostaria de saber se é possível fazer estágio aqui na rádio. Na sequência, esclareceu-me que e ele e o acompanhante eram alunos do primeiro ano de Jornalismo e que, em sala de aula, haviam icado sabendo sobre a Rádio Unasp e a respeito das oportunidades de estágio ali no local. Sorri. Aos que me conhecem, entenderão que isto signi icava muito naquele momento. Sorri porque me admirei da disposição dos dois, já que trabalhavam em outro setor da instituição, mas gostariam de fazer uma jornada dupla ali na Radio Unasp. Gostei da atitude. Sempre respeitei o esforço, a pró-atividade, a dedicação.

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THIAGO BASÍLIO - Qual é seu nome? perguntei a ele. - Ah.. (riu timidamente) Thiago Basílio. Naquele momento eu sequer imaginava o tamanho do talento, do material humano que chegava até minhas mãos. Hoje, depois de todo este tempo, reconheço e me orgulho do privilégio de ter estado tão próxima, tão presente e atuante no processo de lapidação deste jornalista. Sim, porque o considero, já, um colega de pro issão. Thiago foi um aluno exemplar. Haja vista seu histórico escolar, seu currículo de prêmios e congressos em que participou. Acima de tudo, ressalto sua qualidade textual. Indiscutível. Ainda que feito de muitos imprevistos e adversidades, este livro é apenas uma amostra do que acabo de mencionar e de um futuro de sucesso que se apresenta a este (não mais) menino. As histórias retratadas aqui falam, assim como Garcia Marquez, sobre esta característica da vida: sua natural e impreterível capacidade de nos obrigar à sobrevivência. Que somos nós, que não sobreviventes? Dos minutos, das horas, dos dias, dos anos, de toda uma vida? Das adversidades, dos planos frustrados que geram novas perspectivas, dos sonhos perdidos que se transformam em diferentes conquistas, das expectativas malogradas que nos ensinam a fazer mais e esperar menos? SobreVida traz, por meio da história de três pessoas absolutamente comuns, uma visão de que tudo é questão de sobrevivência. Ser feliz é sobreviver aos medos, ter sucesso é sobreviver aos obstáculos. Cada pequeno retalho de nossa vida é uma sobrevida que precisa ser entendida e encaixada no grande quebra-cabeças que é a relidade. Este é um livro sobre vidas sobrevividas. Uma sobrevivencia diária, quase comum, mas que transformou estes personagens em exemplos, em transformadores de realidades alheias, em incentivo a seus pares... Que esta leitura produza em você a correta sensação de que não podemos, nem devemos nos render as viscissitudes da vida. Porque a própria vida, espera mais de nós. Espera que sejamos sábios e felizes sobreviventes. Andréia Moura Jornalista, professora universitária, editora-chefe da revista eletrônica Canal da Imprensa

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Histórias para mudar histórias Falar em histórias é falar de infância. Pelo menos no meu caso. Lembro-me muito bem de meu fascínio por ouvir, através da voz de meus pais, relatos heróicos, triunfantes, fictícios, ou realistas que me introduziam num contexto totalmente abstrato. Um universo alheio, criado por mim. Realmente fabuloso! Recordar as vezes em que o sono foi induzido a partir de uma aventura tão intensa capaz de gerar cansaço, cria em mim uma agradável nostalgia. Mas a boa notícia é a de que, mesmo crescido, ainda continuo gostando do bom relato. Aliás, o meu “ganha pão”, a partir de agora, está baseado, essencialmente, em relatar boas histórias. E acho que a minha motivação primordial ao me decidir pelo jornalismo foi, inconscientemente, esta: ser livre para, a partir da realidade terceira, ter uma percepção humanizada das situações que pessoas enfrentam, com intuito de tornar aquele fato um ingrediente capaz de potencializar conceitos que não podem ser explicados sem exemplificações. Assim como as histórias infantis foram capazes de criar em mim uma percepção mais “aproximada” de uma realidade desconhecida, acredito que o princípio básico de descrever o verídico é fazer com que o seu interlocutor se envolva com um referencial personificado num acontecido que talvez ele nunca enfrentará. Este produto surgiu a partir de um conceito de que todos temos uma história a contar. Histórias sobre vidas “sobrevividas” aos mais adversos tipos de situações. Uma experiência particular pode fazer com que pessoas diversas a ela sejam capazes de absorver uma gama estonteante de sensações, reproduzindo situações, trazendo uma realidade nunca antes percebida, reformulando conceitos de existência. Enfim, significando um mix de percepções, por vezes inexploradas, no universo de cada leitor. Este livro traz três perfis. Pessoas distintas. Realidades, muitas vezes, paralelas, mas uma única mensagem as une: o ser humano é condicionado à felicidade. E esse conceito tão imaterial difundido por igrejas,

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THIAGO BASÍLIO políticos, ONG’s e empresas, só poderá ser realmente percebido em plenitude quando deixarmos de lado aquilo que a sociedade insiste em nos dizer que é um impedimento. Mais do que ninguém, aprendi muito com os meus perfilados. Rodolfo me ensinou que aceitar o outro é aceitar a si próprio; Thaís me provou que a única limitação do ser humano é o infinito; Roberto me inspirou a transformar realidades a partir do meu comprometimento social. Você é convidado a experimentar e tirar de cada personagem um proveito particular para a sua existência. Se precisar utilizar uma abstração infantil para mergulhar no universo dessas histórias relatadas sob a minha ótica, fique à vontade. Certamente isto produzirá uma sensibilidade capaz de enxergar o mínimo detalhe e, assim, sentir na pele o que cada um precisou passar para se tornar um ser humano mais completo. O único pedido que faço é o de que, neste momento, você se liberte de todo o preconceito para que a sua experiência seja completa, marcante e verdadeiramente envolvente. Boa leitura!

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Capítulo 1

““É preciso provocar sistematicamente confusão. Isso promove a criatividade. Tudo aquilo que é contraditório gera vida.” Salvador Dalí



O processo de aceitação de um jovem gay que ressignificou em sua família conceitos básicos de tolerância, humanidade e amor

Felicidade é ser livre


THIAGO BASÍLIO A questão da diferença é muito complexa de ser superada. E não é uma justi icativa tão simples capaz de ser encontrada na vasta opção de livros de autoajuda disponíveis por aí. Não estar dentro do que a maioria considera normal e contrariar as expectativas que naturalmente a família deposita em seus amados quando eles são ingênuos, indefesos e inconscientemente sonhadores, é uma questão que causa frustrações. Acho que a dicotomia envolvendo determinados tipos de aceitações é sempre norteada pelo amor. O problema não está totalmente relacionado ao fato de “ser diferente”, mas de como a sociedade vai lidar com essa diferença. E é esse ponto que gera o pânico familiar. A determinação gerada pelo amor e pela recorrente sensação de que aquela pessoa que você ama pode ser, de alguma forma, excluída pela sociedade é motivo de profunda preocupação e sofrimento. Revelar verdades dói. Afrontar conceitos impregnados em mentalidades tradicionais custa caro. Mas se libertar é mostrar ao mundo que sua motivação de vida é pautada em verdades que podem transformar percepções equivocadas em profundas admirações. E preconceitos todos temos, muitas vezes é necessário que sejamos submetidos a situações discriminatórias para valorizar o que realmente importa nas pessoas: o seu valor como ser humano. É engraçado como utilizamos o preconceito para mascarar ou criar barreiras que nos protejam de aparências que a sociedade também não enxerga com bons olhos. Rodolfo Sanches de Carvalho é fruto de uma relação adolescente. Aos 15 anos, sua mãe, Ana, engravidou do namorado (que tinha 14). Claro que esse foi um momento delicado e complicadíssimo na vida dessa jovem que, além de esperar uma criança, tinha também que lidar com a injusti icável incompreensão do seu parceiro que se recusava a assumir o ilho por achar que precisava estudar e fazer a sua vida sem a tarefa de criar uma criança. Foi uma turbulência na família da moça. Seus pais conversaram com a família do rapaz e esclareceram que, se fosse para eles continuarem juntos, teriam que se casar, situação que era quase que apocalíptica na cabeça do adolescente naquele momento. No im das contas, e após alguns acertos referentes à pensão da criança que estava por vir, os avós do Rodolfo decidiram, juntamente com sua mãe, criar aquele bebê, mesmo sem o apoio do pai. A gravidez deu-se de forma normal e em 12 de novembro de 1993 nascia mais um cidadão de Votuporanga, uma criança que cresceu sendo criada pelos avós e a mãe, que continuou sua vida batalhando para conseguir dar o melhor ao ilho. “Eu tenho lembranças vagas, mas minha mãe estava no 2º ou 3º ano do ensino médio e, de noite, meu avô me levava para buscar ela na escola, tenho

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SOBREVIDA essas lembranças, sabe?! Eu tinha dois ou três anos”, recorda Rodolfo. Esse período foi um momento de muitos problemas, principalmente con litos entre sua mãe e seu avô que frequentemente se desentendiam. O fato de a família ser bastante tradicional era uma questão que, vez ou outra, motivava discussões indesejadas que rondavam a temática da maternidade precoce de Ana. Fatores como esse izeram com que a adolescente criasse em si um orgulho grande, um brio, talvez, uma responsabilidade dobrada que lhe dizia que precisava fazer com que o seu ilho não se afetasse pelas escolhas que ela própria tinha tomado. Trabalhar e estudar era praxe e foi assim por muitos anos, objetivando sempre o bem-estar do Rodolfo que também era muito paparicado pelos avós. Essa característica “guerreira” de Ana construiu no seu ilho uma imagem referência de uma heroína. Alguém com superpoderes e com quem poderia contar para todas as situações. Enquanto isso, a contribuição do pai biológico se limitava ao dinheiro (que nem sempre era certo, situação que gerava desgastes e problemas). Nesse contexto, Rodolfo crescia. Era uma “infância dos sonhos”, como ele mesmo descreve. Sempre com os desejos saciados e muitas regalias que a maioria das crianças almeja. “Tem gente que fala que fui mimado até demais”. Após me contar os diversos encantos da sua meninice proporcionados pela mãe e avós, começou a fazer algumas ressalvas. “Os meus gostos sempre foram muito diferentes dos de meus amigos, dos meus primos... eu sempre gostei mais de brincadeiras de menina. Sempre fui mais afeminado”. A forma sentimental como lidava com a vida; seu distanciamento das bolas, pipas e carrinhos; sua preferência por videogames e computador; e o fato de gostar muito de bonecas eram marcadores que causavam bastante estranhamento dele em relação a si próprio e das pessoas em relação a ele. Um episódio que recorda até hoje é uma ocasião em que desejava muito ter uma boneca da Mulan. – “Mas a sociedade e minha mãe diziam: ‘não, Rodolfo, isso é coisa de menina!’”. E o “isso é coisa de menina” permaneceu por muito tempo incomodando esse cidadão que, na verdade, só exteriorizava um desejo intrínseco ao seu ser. Algo que saía do seu controle, mas todos pareciam condenar. Seu interesse por arte, moda, pelo “se vestir bem” eram tão naturais quanto a capacidade humana de respirar. Nessa altura do campeonato, Ana namorava com o seu atual marido, que está presente na vida do Rodolfo desde os dois anos de idade. Essa convivência fez com que ele fosse sua referência paterna desde a infância, tanto que, em diversos momentos das conversas que tive com ele, se

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THIAGO BASÍLIO referiu ao Alexandro como “pai”. Se “corrigia”, na sequência, com um “meu padrasto, no caso” para que eu pudesse entender de quem ele estava falando. Por ter desempenhado esse importante papel na vida do Rodolfo, Alexandro tentava levá-lo a direções, digamos, mais masculinas. Soltava pipa com ele e o matriculou na escolinha de futebol, mas era um “esforço” em vão, já que Rodolfo realmente não gostava daquilo. O problema era o de que, ao mesmo tempo, ele se sentia extremamente mal por não ser como o coleguinha da escola que fazia tudo aquilo por gostar e olhava para as menininhas do colégio encarando-as de uma forma mais sexualizada. Claro que tudo isso levava sua família a fazer aquelas eventuais indagações: – “Rodolfo, cadê a sua namoradinha?”, deixando o menino envergonhado e sem reação. Sua “sorte” era a de que algumas pessoas que conheciam o seu temperamento “quietinho” e “recatado” atribuíam a essas características o jeito de ser do garoto. A cobrança para beijar meninas começava a icar cada vez mais intensa, mas, na cabeça dele, quanto mais adiasse essa etapa, melhor seria. – “Beijar uma menina... ai, credo!’, sempre gostei de coisas diferentes. Sempre gostei de artes....Minha mãe tentou me colocar em judô, futebol... diversos esportes. Chegou um momento em que ela percebeu que nada funcionava e decidiu explorar o meu lado artístico”. Seu destaque na área sempre era motivo de orgulho para os professores e para a família. Um dos seus trabalhos no período escolar rendeu-lhe a oportunidade de mostrar sua arte publicamente em uma galeria da cidade onde morava. Parecia, inalmente, que sua mãe havia acertado na área adequada a se depositar o bem-estar de Rodolfo, ramo em que, segundo ele, é necessário ter uma sensibilidade feminina aliada à dureza masculina para que as criações tenham sentido. Certamente foi um investimento certeiro, já que a sua habilidade como artista é sempre revelada nos diversos aspectos da vida: desde as palavras bem selecionadas, até à complexidade com que produz o seu trabalho, dando sempre um ar transcendental aos seus projetos. Atualmente é muito mais fácil reconhecer o seu talento “diferente”, mas na época em que ele era criança poucos queriam aceitar. Quem conhece o Rodolfo sabe muito bem que ele é o tipo de pessoa que não se importa muito com o que os outros acham. E ele garante que sempre foi assim, mas, como diz o ditado, “ninguém é de ferro”.

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SOBREVIDA Em toda essa história, talvez a parte mais complicada tenha sido a escola. Contrariando a visão quase que unânime que corrobora a ingenuidade infantil, Rodolfo assegura: “criança é má por natureza!”. E antes mesmo de abrir margem para que seu interlocutor se espante, ele justi ica racionalmente a sua colocação: – “Porque criança não tem noção das palavras”. E palavras são as maiores causadoras de destruições pessoais. Lidar com os comentários maldosos é duelar consigo mesmo e, de forma muito desleal e acovardada, com os que, maldosamente, observam em ti apenas o lado dessemelhante e colocam em cheque suas mais prestigiosas virtudes em detrimento de uma percepção equivocada da realidade. Problemas assim eram frequentes na rotina do Rodolfo.... Sua personalidade mais “calma” acabou sendo esgotada em alguns momentos. Rodolfo atribui isto a uma insurgência natural de algo capaz de proteger a si mesmo. Dentre as inúmeras injúrias que enfrentava, uma icou bem marcante em suas lembranças. Na terceira série do ensino fundamental, aula de educação ísica corria em quadra e, por alguma razão não muito justi icável (se é que seja possível encontrar explicações para tal comportamento), uma colega de classe disparou ironicamente: – “Além de ‘viado’, você ainda não tem pai”. Ele concentrou todas as suas forças em seu punho fechado e deu um murro no rosto da mocinha, resposta que lhe rendeu uma suspensão escolar e, ao chegar em casa,diversos tapas da mãe (por ter batido em uma moça). No primeiro momento ninguém foi capaz de dar ouvidos às outras versões dos fatos, se concentraram somente no menino que deu um soco na menina. Após um tempo, a verdade veio à tona e a escola pediu desculpas. – “Atualmente ela é freira, coitada! Dei um soco na cara dela. É uma coisa que eu não me arrependo, nunca me arrependi”, enfatiza comicamente. “Nunca tive medo de ninguém, nunca tive medo de nada. Então, foi muito fácil dar um murro nela”. Lendo essas declarações é complicado acreditar em um ser dócil e querido por todos materializado em alguém que descreve posições tão fortes de uma forma tão natural. Mas, pode acreditar, é uma realidade irrefutável. Enquanto

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THIAGO BASÍLIO conversávamos em seu ambiente de trabalho, o celular do Rodolfo tocou e, gentilmente, pediu licença para atender o telefone. Claro que eu assenti. De forma mal educada, mas curiosa me permiti prestar atenção em alguns tópicos da conversa que consistia, basicamente, em situar o colega de trabalho atrás da linha sobre um arquivo que deveria ser enviado por e-mail. Com toda a paciência e boa disposição do mundo, Rodolfo se pronti icou a mandar o material o quanto antes. Perguntou se teria algum problema em atender a solicitação após a entrevista e foi-lhe respondido que “não”. Em todos os ambientes que ele frequenta, deixa marcas muito fortes que revelam o seu carisma, a sua bondade e a sua verdade. E verdades parecem estar sempre presentes na rotina deste estudante de publicidade e propaganda. Quando lhe perguntei sobre quando se deu conta de que era gay, pensou um pouco e disse: – “A gente sempre sabe. Os con litos começam a aparecer em você a partir dos sete anos, que é o momento que você começa a se conhecer. Seu corpo, seu órgão sexual, suas limitações. Então, para mim, é a partir dos sete anos que você começa a ter uma sexualidade a lorada”. Foi a partir dessa idade que ele passou a entender que não era como os outros. Um processo demorado. Perdurou até os seus 15 anos e foi, como normalmente acontece, extremamente sofrido. A ideia de você ser algo que você “não pode ser” talvez seja a sensação mais desesperadora que alguém possa enfrentar. E aliar tudo isso a questões religiosas do “ser errado” pode ainda ser mais complicado. Mas, apesar desse longo e tortuoso caminho, acho que todo o processo de aceitação deve começar pelo reconhecimento de que se é assim para só depois revelar ao mundo essa faceta. Pelo menos é dessa forma que a maioria dos especialistas discutem o tema. Claro que com o Rodolfo não foi diferente. Convivendo com o menino, seu padrasto conseguiu identi icar, aos sete anos, que o enteado era gay. “Alertou” Ana para o fato, além de recomendar a ela que estivesse preparada. Na época a mãe não quis acreditar de forma alguma. Descartou a suposição. Mal sabia ela que nesse mesmo contexto a criança já começava a ter perspectivas que sinalizavam claramente que seu universo estava muito melhor localizado na percepção do padrasto do que na dela. – “Foi nessa idade que começou a lorar esse processo em mim. É um sufoco, e você tem que sufocar o seu sentimento.Então você tem que seguir ao máximo o que a sociedade quer”, explica.

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SOBREVIDA Claro que nesse misto de sentimentos e a a lição para atender às demandas da sociedade sobre você, muitas crises foram enfrentadas. O então adolescente teve duas namoradas que se con iguraram verdadeiros desastres, pois ele se magoou, magoou as moças, além de afetar também sua mãe. A inal, os relacionamentos izeram com que ela acreditasse que isso era real. Mas a crise geralmente piora no momento em que a autoa irmação aumenta tanto que já não há como escondê-la. Existe uma necessidade de gritar para o mundo quem realmente se é. E esse é o momento mais delicado do processo, pois envolve mais pessoas na questão. Pessoas que se importam muito contigo e vão querer que você seja feliz dentro do extenso código de valores culturalmente construídos. No caso de nossa realidade brasileira, muitos desses parâmetros são controlados sob uma perspectiva cristã que, como não é novidade para ninguém, condena veementemente a prática homossexual. Mas esse meio tempo não foi somentede angústias. Importantes descobertas se agregaram à sua história. Aos 16 anos, Rodolfo se permitiu dar o primeiro beijo em alguém do mesmo sexo. Foi uma experiência que o ajudou a entender plenamente que aquilo sim fazia sentido em sua vida. – “Eu já tinha beijado meninas sem sentir nada. Quando eu beijei um menino”, relata, “pensei ‘meu Deus, que alívio!’, eu estou descobrindo o que eu sou!”. Certamente esse foi um fato que dicotomizou a sua vida. A partir de então, ele se permitiu relacionar-se via internet com outros rapazes. Seu computador era uma espécie de refúgio. Um local onde ele poderia passar o tempo de forma que não precisasse se esconder de ninguém, além de poder paquerar de um jeito mais seguro e confortável. Esse hábito foi o responsável por mudar completamente a sua vida “oculta”. Certa noite em que uma tia muito próxima estava de passagem na casa onde Rodolfo residia (a de seus avós), o computador que o adolescente usava para conversar com o rapaz com quem estava tendo um caso icou “sozinho” por alguns minutos, enquanto o usuário ia ao banheiro. – “Quando eu voltei, percebi que a cadeira estava meio virada. E eu pensei ‘não deixei essa cadeira assim. Alguém sentou aqui!’”. Ao olhar para fora, se deu conta também de que a porta estava meio aberta e, por isso, decidiu sair para “veri icar o terreno”. Ao cruzar saída, encontrou a sua tia fumando. Ela deu uma longa tragada, bateu duas vezes na ponta do

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THIAGO BASÍLIO fumo para descartar as cinzas e, na sequência, moveu o olhar para o sobrinho. Sem demorar muito ironizou: – “Você tem algo para me contar, não é, Rodolfo?” O rapaz, meio desconsertado e a lito lançou um: – “O quê?!”, que não colou muito. Viviane, sem rodeios, já engatou: – “Eu li toda a conversa que você teve com aquele menino no computador. Vi que você estava na webcam com ele”. A tia aproveitou o momento para expressar também a sua decepção, pois sempre deu liberdade para que ele falasse sobre tudo com ela, já que não tinha preconceito algum. Foi um momento muito forte na vida daquele adolescente. Claro que ele desabou em lágrimas por inalmente poder compartilhar com alguém de sua família suas in indáveis a lições e dilemas nessa fase tão importante da sua existência. Eles icaram ali por um longo tempo. Instantes que pareceram in initos para os dois, pois o valor simbólico daquele momentorepresentou muito mais um alívio do que uma monstruosa revelação. –“A partir daí eu comecei a ir diariamente na casa dela. Me lembro que fazia estágio no fórum da cidade, saia de lá e ia direto pra casa dessa minha tia. Lá podia contar de tudo para ela”, recorda. Essa rotina se repetiu por um longo período, até que um dia Viviane perguntou-lhe se estava a im de contar para a família dele. E ele prontamente respondeu “sim”, justi icando que estava se sentindo muito sufocado. Autorizada, ela sugeriu que começassem pela madrinha de batismo dele, a Antônia. Com os dois de acordo começava um processo que tinha tudo para transcorrer de uma forma tranquila e saudável. Mas nem sempre o que prevemos se materializa na prática... Com a madrinha foi tranquilo. Ela o aceitou, o abraçou, chorou junto com ele e prometeu estar sempre ao seu lado, independente das circunstâncias. Check! Agora o próximo passo era o pai (padrasto). Mesmo processo... Conversa, choro, aceitação e um carinho muito grande pois ele, no passado, havia enfrentado problemas com drogas, e sabia, mais do que ninguém, o valor de ter,

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SOBREVIDA sobretudo, a igura humana sendo valorizada e respeitada. No momento da conversa, o “eu sempre soube” foi praticamente inevitável. Feito! Mais um passo dado. O próximo escolhido foi o tio, esposo da Viviane, que também foi totalmente aberto. Chegou a vez dos primos, outros tios, até alcançarem o “topo da pirâmide” que seria, no caso, a avó e a mãe. Esses eram os terrenos em que cautela era necessária, pois tratava-se de falar com as pessoas que tinham maior envolvimento com ele. O único deixado de lado, na lista, foi o avô, que nunca soube, e não sabe até hoje, deste “segredo”. A família preferiu poupá-lo, respeitando seus fortes ideais, sua idade mais avançada e sua construção ideológica baseada em valores conservadores como ocorre com a maioria dos idosos do planeta. Voltando à questão da mãe e da avó, a busca por uma melhor forma de fazer com que elas soubessem da situação fez com que os dias fossem passando sem soluções plausíveis. Decorreu-se tanto tempo que parecia até que haviam se esquecido por completo do “comunicado”. Fim de tarde e o Rodolfo recebe, em seu trabalho, uma ligação do padrasto. Alexandro telefonou para comunicar que passaria no fórum para buscá-lo. A situação causou um pouco de estranheza, mas foi encarada de forma tranquila, a inal, poupar-se de uma caminhada até em casa poderia ser bem interessante em dias exaustivos. O expediente acabou e, como combinado, Alexandro estava lá. Em dado momento da “viagem”, ele parou o carro em uma rua deserta, escura e fantasmagórica. Fechou os vidros, ligou o ar-condicionado, olhou para o Rodolfo e disse: – “Tá na hora da gente acabar com essa palhaçada de todo mundo saber, menos a sua mãe e a sua avó. Elas têm direito a isto. Elas te criaram. De hoje não passa: ou você conta, ou eu conto!” Nesse momento, muita coisa passou na cabeça daquele jovem mas, conhecendo a mãe e tendo ciência de que ela tinha o temperamento forte, preferiu que o pai contasse. Apenas pediu para que falasse com a mãe primeiro, pois, naturalmente sua avó saberia posteriormente, através da Ana. Alexandro o levou para casa e, quando Rodolfo saía do carro, o padrastro reiterou: – “...então eu vou contar hoje, assim que eu chegar em casa!”. O jovem assentiu. Bastante a lito, entrou no quarto e por lá icou angustiado por longas horas. Às 22h o telefone tocou e, como de costume, a dona Teresa foi atender

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THIAGO BASÍLIO a ligação. Do quarto, Rodolfo só ouvia choro, soluços e lamentações decepcionadas. – “Eu não acredito! O Rodolfo não... eu criei com tanto amor, com tanto carinho. Meu Deus, não!...”. Recluso em seu espaço, ele estava aos prantos acompanhando todo o desenrolar da situação. – “É um sentimento muito ruim, pois, mesmo você sabendo que não é culpado,acaba se responsabilizando pela infelicidade de quem ama”, desabafa com uma expressão bastante abatida. Acho que foi o único momento na conversa de 1 hora e meia em que ele mudou subitamente suas feições.... No outro dia, um silêncio sepulcral dominava a manhã da casa. Rodolfo saiu sem ver a avó, foi para a escola e, após o horário letivo, voltou para casa. Preferiu manter a rotina de aguardar a dona Teresa servir o seu prato. Ela o fez e entregou a refeição com uma indagação: – “Filho, mamãe contou para vovó. É isso mesmo que você quer?” Ele a irmou com um “sim” acompanhado de outras poucas palavras, mas ela insistiu e repetiu a questão sublinhando: – “Você tem certeza disso?”, e novamente ele sinalizou positivamente. Mais um banho de choro, abraços e ponderações. – “Filho, a vó não sabe nem o que pensa, porque a vó nunca passou por isso. Então eu peço paciência, pois eu não sei como agir. Preciso de um tempo para digerir essa realidade”. Apesar do sofrimento, a situação ali acabou estável. A única questão que ela colocou a mais foi a preocupação com a forma que a sua ilha estaria lidando com a questão. Passou-se uma semana. Neste tempo, Ana não viu o ilho nenhuma vez. Era o dia de pagamento de Rodolfo e o rapaz estava fazendo as contas a respeito do que tinha que pagar na utilização do seu primeiro salário. Neste momen-

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SOBREVIDA to viu o carro da mãe chegando. No mesmo instante, correu e fechou a porta do quarto. Ana entrou possessa em casa,praguejando a vida e a existência do ilho. Abriu a porta do quarto com tanta força que quebrou uma parte da estrutura. Ao ver Rodolfo, começou a esbravejar todos os seus sonhos frustrados por causa da “opção sexual” do ilho. No discurso, “netos, nora e coisa do diabo” foram palavras-chave que nortearam as diversas questões abordadas em sua irritação que se concluiu com a frase: – “Você é a maior decepção da minha vida!” (Eu e Rodolfo icamos em silencio por 2 segundos....) – “Nesse momento toda a igura de heroína que eu tinha da minha mãe acabou”, admite o jovem que foi tomado por um ódio nunca antes experimentado por ele em toda a sua existência. Iniciava-se, então, a parte mais di ícil. Psicólogos, psiquiatras e até acupunturistas foram utilizados em vão para tentar “curar” o menino. Todos os pro issionais sempre falavam a mesma coisa: “seu ilho não tem nada”. A mãe desorientada insistia na ideia de que alguma coisa estava errada e isso fazia com o sofrimento acometesse a si própria e ao ilho que, nesse meio tempo, perdeu 30 quilos e teve seu rendimento drasticamente diminuído na escola. – “Foi o ano do ‘cão’!”, resume. Muitas brigas, humilhações, troca de farpas, controle de redes sociais, controle de rotina e diversos impedimentos foram impostos para limitar as possibilidades de escape do adolescente. O ápice da depressão deu-se no momento em que sua mãe o proibiu de visitar o seu “primeiro grande amor”. Um rapaz que ele conheceu na internet. Parecia o im. Mas o clichê “nada melhor do que o tempo para curar feridas” resume muito bem o im do con lito entre mãe e ilho, que sempre foi muito bem assessorado por Alexandro e a dona Teresa. Ambos, conselheiros que comumente racionalizavam a situação utilizando argumentos para mostrar que diversas futilidades são irrelevantes se no inal for considerado o amor. E era exatamente o amor que o Rodolfo procurava encontrar pós tal fase turbulenta de sua vida. Foi um desgaste tão grande que, depois de superado o deixou desejando apenas ter paz e encontrar a sua felicidade. Achou-a de forma

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THIAGO BASÍLIO “picada”, pois, em seu currículo já coleciona quatro namoros. O primeiro foi um relacionamento, como ele mesmo descreve, “intenso”. Não tem nenhum arrependimento, mas lembra com um pouco de dó o tanto que gastou na época. – “O dinheiro da minha vida. Não vou utilizar pra nada. Mas gastei um dinheirão!”, brinca. Mas suas valiosas e grandes paixões não estão somente depositadas em pessoas e relacionamentos. Fotogra ia é uma dessas exceções. Isso o faz feliz. Quem conhece Rodolfo, conhece suas fotos. Trabalhos impecáveis, retratos que te transportam para um universo estático com a maior gama possível de signi icados. Obras de arte. – “Amo a fotogra ia, pois ela me dá liberdade. Eu posso criar um mundo a partir da fotogra ia, posso levar as pessoas para outro planeta. A minha fotogra ia não tem sentido nenhum se ela não te tirar o fôlego por alguns segundos”. Ela realmente tira. Algumas, inclusive, por minutos... Você percebe um sentimento depositado ali naquele projeto, além de conseguir identi icar marcas do seu autor, marcas que também são facilmente encontradas em personalidades que ele admira. Lady Gaga é um exemplo. – “Ela vai me inspirar para sempre, pois lutou pelos direitos dos gays, ela surgiu na música de um jeito estranho e diferente, quebrou paradigmas”. Na verdade o próprio Rodolfo quebrou muitos paradigmas para conquistar tudo o que tem hoje. Em uma das visitas que a sua família realizou à agência de publicidade onde ele estagia, dona Teresa fez questão de abraçar todos os funcionários que ali estavam. E repetia incansavelmente a frase “eu amo vocês, por que vocês amam o meu neto”. No Facebook, sua mãe faz declarações apaixonadas, e, vez ou outra, levanta a bandeira em apoio aos direitos LBGT. Óbvio que esses são sinais nítidos de aceitação e de que, atualmente, Ana o acolhe do jeito que é. Vez ou outra, ela enfrenta leves “recaídas”. Lembra da porta que foi quebrada na crise de fúria que ela teve uma semana depois de descobrir que o ilho era gay? Pois bem, Rodolfo conserva o “defeito” até hoje e, segundo ele, jamais deixará que consertem. Essa marca foi causada por um trauma e todas as vezes que esse trauma for minimamente esquecido ele estará materializado ali, indicando aos que o rodeiam que a maior dor é causada pela repressão e não pela liberdade.

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Capítulo 2

“O fracasso nunca será fracasso se dele tirarmos uma lição” Daniel Luz


THIAGO BASÍLIO

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A vida de uma cadeirante que teve nos seus pais referência de autonomia, persistência e tenacidade para lidar com as limitações da rotina

Seremos suas mãos e pés


THIAGO BASÍLIO Jogar tudo para o alto e desistir algumas vezes parece ser a única alternativa para certos casos. Mas essa é uma percepção que não se aplica muito bem à realidade da Thaís Alencar. Ela faz parte daquele grupo de pessoas que tinha as motivações necessárias para não acreditar na capacidade individual de lidar com complexidades sobre-humanas. Mas com racionalidade, a inco e uma inteligência prodígio (expressa em sua forma erudita e bem articulada de falar), foi capaz de provar para si mesma e para o mundo que não vale a pena se entregar. Enquanto há vida, há esperança. Os problemas de Thaís começaram antes mesmo dela, de fato, fazer parte deste mundo. Após quase quatro anos de casamento e a perda de um ilho recém-nascido, Maria Ivete Alencar engravidou novamente. Em 31 de agosto de 1992, quando a gestação estava no sexto mês, e tinha sido (até então) tranquila, a di iculdade enfrentada por ela durante a natalidade anterior se repetiu e ela acabou dando à luz precocemente àquele feto em formação. Maria sofria de uma anomalia chamada Útero Infantil Progressivo, problema caracterizado pela falta de estrutura da mulher em comportar dentro de si um feto com peso superior a um quilo. Para quem sofre deste mal, os partos acontecem antes do tempo estipulado pela natureza. Os médicos desacreditaram a sobrevivência daquela criança, já que nunca tinham visto caso parecido. E, a exemplo do que tinha acontecido com o primeiro bebê de Maria, a expectativa depositada sobre Thaís também era de uma morte decorrente da incapacidade dos seus imaturos órgãos funcionarem normalmente. Mas essa era apenas uma das preocupações a serem mentalizadas. O parto daquela criança não foi nada fácil. Em um primeiro momento, os médicos optaram pelo normal, porém as condições não eram favoráveis para esse tipo de procedimento, pois, após o rompimento da bolsa, a placenta desceu e o feto subiu. Ao perceber a situação, a médica decidiu fazer uma cesárea de emergência. Essa atitude salvou a criança. O problema é que, nesse meio tempo em que o bebê icou sem a placenta, perdeu muito oxigênio, o que gerou uma paralisia cerebral, situação responsável por criar uma série de interrogações nos pro issionais que acompanhavam a pequena paciente. As sequelas poderiam ser muitas e a maioria delas só seriam identi icadas tempos após o ocorrido. A “má fase” poderia acabar por aí, porém não foi assim. Este foi apenas o começo... A segunda “surpresa” logo se revelaria. Alguns bebês estavam sendo utilizados para testar um novo método que ajudaria os frágeis pulmões dos pre-

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SOBREVIDA maturos a funcionarem melhor. Aos seis meses, esses órgãos ainda estão em processo de formação. Thaís foi uma das “selecionadas”. – “Se não fosse esse tratamento, eu não teria sobrevivido”, explica. O drama enfrentado pela família na luta pela sobrevivência de Thaís durou três meses. Um período conturbado em que as coisas muitas vezes se agravavam. A garotinha nasceu com 1,60kg e 30 cm. Após pouco tempo teve o seu peso subtraído a 798 gramas, período em que contraiu uma meningite. A falta de esperança dos médicos era quase unanime. Sua avó paterna trabalhava no hospital e acompanhava de perto o desenrolar da situação. Esse era um dos poucos confortos de Maria, pois podia contar com a sogra naquele ambiente para “cuidar” de sua ilha durante os plantões noturnos. Mas, ao mesmo tempo, era um sofrimento bastante intenso para aquela avó que, informalmente, ouvia de perto os “boletins” nada animadores dos médicos sobre a pequena paciente, boletins que sempre tinham uma entonação de “console sua nora e seu ilho, pois eu nunca vi alguém sobreviver nessas condições”. As palavras acompanharam tão intensamente dona Alzenir Matos que, atualmente, ela prefere não lembrar desse passado sofrido. A perda de peso era rotina na batalha daquela criança pela vida. O processo de “emagrecimento” deu-se tão rapidamente que espanto e esperança disputavam a rotina dos familiares. A mãe estava tão preocupada que sistematizou em um caderno anotações que registravam cada dia e peso da ilha. - “Minha mãe achou que eu iria sumir”, brinca Thaís. “Estava muito magra e, claro, não tinha condições de ser amamentada. Meu alimento era fornecido através de uma sonda”. E, mesmo em tratamento numa UTI neonatal, a criança se demonstrava muito ativa. Sempre que colocavam a sonda, ela dava um jeito de retirá-la. Os enfermeiros substituíram o material três vezes. Era uma danadinha! Por im, tiveram a ideia de conter os bracinhos da pequena com um esparadrapo para que ela deixasse o aparelho “em paz”, visando ao seu próprio bem. E entre uma história cômica aqui, e complicações ali, os dias foram passando. Thaís inalmente começou a ganhar peso e pôde então, deixar o hospital em dezembro daquele ano. Mês que, seguindo o “cronograma de gravidez”, era para ter sido o seu momento de nascimento. – “Receber alta foi a primeira vitória. A igreja que meus pais frequentavam orou muito por mim, pois eles acompanharam toda a situação. Meu pai conta

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THIAGO BASÍLIO que semanalmente faziam boletins para que a congregação icasse informada sobre o meu estado de saúde.” A devoção provavelmente foi uma herança que Thais recebeu dos pais e das pessoas com quem conviveu em sua formação. E isso é claramente notado nas diversas vezes que exclama “graças a Deus!” e em suas constantes referências à atuação divina em sua vida. Claro que, em nossa cultura, expressões do tipo já são praticamente vícios de linguagem, mas quando a Thaís fala é diferente. É perceptível a emoção que está atrelada a essas palavras. E, cá entre nós, é realmente di ícil não justi icar sua existência sem considerar uma força meta- ísica que realmente queria manter a vida desta cidadã para mostrar ao mundo que é possível acreditar, batalhar e vencer. Limitações são obstáculos mais psicológicos do que ísicos que colocamos para comprometer o nosso progresso. Os médicos previam que uma série de sequelas poderia (ou não) acometer a pequena Thaís, mas diagnosticar precisamente quais seriam era uma questão que não poderia ser traçada. O passar dos dias e a convivência com os pais foram su icientes para que essas incógnitas fossem lentamente reveladas. A mãe sempre acreditou que a ilha não sofreria com nenhuma de iciência cognitiva (tinha essa certeza desde a época da sonda, no hospital). A pequena respondia aos estímulos, acompanhava as pessoas com o olhinho e interagia com as situações em que estava inserida. Mas, aos cinco meses, Maria teve a habilidade de perceber a primeira sequela ísica no momento da amamentação. Ela observou que o seu braço direito funcionava de forma normal, porém, o esquerdo não acompanhava do mesmo jeito, icava sempre em uma única posição. Após essa constatação, os médicos já encaminharam-na para o tratamento de isioterapia e hidroterapia. Depois de passar por uma série de acompanhamentos, Thaís foi conduzida para a AACD, um centro de reabilitação referência no país. – “Eu sou muito grata a Deus pela oportunidade de ter conseguido a vaga nessa instituição.” Thaís brinca ao a irmar que na AACD ela é “mais conhecida do que bolacha”, já que faz acompanhamento até hoje e existem pro issionais que estão na instituição desde o tempo em que era criança. Thaís teve a oportunidade de estudar na escola daquela organização. Uma experiência que a marcou, mas

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SOBREVIDA não fazia sentido para sua formação, considerando que ela não possuía limitações cognitivas. Pra se ter uma ideia do grau das de iciências dos seus coleguinhas, aos oito anos, quando cursava a segunda série, Thais estudava com uma moça (de 19 anos) que não tinha aprendido a ler e escrever, dada sua gravidade clínica. Imaginem que disparate! A capacidade de aprendizagem de Thaís em comparação aos outros especiais que frequentavam aquela escola! Frente a essa situação, uma das responsáveis pelo colégio aconselhou aos pais da jovem que a matriculassem em uma escola de educação regular. Ela não tinha di iculdade alguma de conviver com crianças “normais”. Apesar da sua rotina na AACD, o local onde morava era um conjuntinho de casas que foram construídas na cidade de São Paulo por familiares para que todos pudessem viver próximos. Thaís cresceu ali, juntamente com os seus primos (e “primos”, nesse caso, é um termo que se refere diretamente ao gênero dos indivíduos), tendo a responsabilidade de ser a mais velha entre eles. Eram 12. Nesse contexto, ela nunca teve nenhum problema de aceitação com os parentes. Sua di iculdade de locomoção não impedia que a natural característica do “brincar” fosse “boicotada”, tanto que ela mesma reconhece que era bastante “traquina”. – “Tenho muita saudade dessa época. Eu aprontei tudo que tinha de aprontar!”, admite. Nesse período já utilizava a cadeira de rodas, mas no contexto “domiciliar” a ferramenta era praticamente inútil, pois um dos primos tomava para si a responsabilidade de carregá-la no colo para todos os lados, inclusive, subia escadas com ela. Maria sempre alertava para os riscos de acidentes, mas os dois nem ligavam e nada de grave aconteceu. As poucas vezes que ela caiu foi sozinha e nessa época tinha a sua mobilidade menos comprometida. Obviamente, era muito afetada pela paralisia cerebral, mas com o que tinha, ganhava o mundo. E essa característica provavelmente é uma construção do pai Antonio. Ele sempre deixava muito claro que ela poderia fazer o que quisesse, ir a qualquer lugar. Sua de iciência não poderia em nenhum momento desempenhar um papel limitador. – “Os meus pais sempre diziam ‘se você não puder ir, a gente leva você’”.

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THIAGO BASÍLIO Essa certeza norteava seus dias que eram de uma segurança surpreendente. Fatores como esses corroboraram o fato de ela nunca questionar aos pais a sua condição ísica. Para não ser injusto, a única vez que aconteceu algo parecido (questionar sua de iciência) foi aos cinco anos, quando indagou a mãe: – “Porque o Alisson e o Gabriel (seus primos) podem subir correndo a escada e eu não posso?” Maria prontamente respondeu: – “Filha, é verdade, você não pode. Mas, olha, não se preocupe, pois onde você não puder ir papai e mamãe serão suas pernas e seus braços”. A réplica foi su iciente para que nunca mais a pequena izesse esse tipo de indagação. – “Muitas pessoas portadoras de necessidades especiais deixam de realizar sonhos por se limitarem. Se você possui algum problema de locomoção e o lugar não tem acessibilidade, e daí?! Eu já fui na queda de uma cachoeira. Quer lugar menos acessível do que esse?”, questiona. E a “falta de acessibilidade” sempre acompanhou a rotina da Thais. Nunca teve uma casa adaptada, sempre foi motivada a superar desa ios. Em uma nova etapa da vida (pós escola especial), encarou a escola regular, que, na época, não tinha nenhuma adequação à sua realidade. Claro que isso não foi um impedimento para que pudesse continuar. Essa característica de não se importar com a falta de adaptação ica muito evidente quando você passa alguns momentos com a estudante. Nossa conversa aconteceu nas ruas do campus do Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo, em Engenheiro Coelho, SP). A locomoção aconteceu, neste período, tranquilamente com sua cadeira de rodas motorizada. Qualquer probleminha, encarava com naturalidade e humildade, no sentido de não hesitar em pedir ajuda para se resolver, sempre com a coragem de se en iar onde desse. Num dado momento, sua sapatilha saiu do pé. Simpaticamente me informou sobre a situação e pediu que lhe ajudasse. No mesmo dia, entrou em salas com acesso apertado (manobras muito precisas, demonstrando uma habilidade bem rara com “balizamentos”), subiu rampas inclinadas e encarou buracos. Tudo sem xingamentos ou lamenta-

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SOBREVIDA ções. Um humor nas alturas e uma ina simpatia a caracterizam. Essas marcas izeram com que sua adaptação à nova escola fosse muito natural. O ambiente era agradabilíssimo. A interação com o lugar não poderia ter sido melhor. O fato de gostar de estudar colaborou para que se destacasse. Ser cadeirante era um pequeno detalhe diante de sua fama de “inteligente” e dedicada. E essa faceta é percebida em casa também. Antônio, sempre muito orgulhoso ao falar de Thaís, costuma brincar quando a ilha chega em casa com um “sete”: – “Até que en im você deixou um pouco os livros de lado para fazer outras coisas!”. Este fato foi contato por Thais, aos risos, enquanto imitava o pai. Mas ao levar em consideração o histórico escolar da jovem, chega até a ser extremamente aceitável a colocação do pai. Uma aluna exemplar, sempre entre as melhores da classe e publicamente reconhecida. Na oitava série ganhou um prêmio de melhor desempenho acadêmico da escola. Fato que trouxe à memória e, consequentemente, à nossa conversa uma outra história... Ao longo de sua vida, Thaís passou por nove cirurgias. Muitas dessas extremamente delicadas e arriscadas. No ano em que terminaria o ensino fundamental, teria de enfrentar duas operações médicas daquelas que necessitam de um repouso quase pleno para a recuperação. Seguindo a lógica, seus pais programaram para que ela não se matriculasse, pois, se isso acontecesse, ela poderia frequentar efetivamente menos de três meses letivos. A estudante descartou essa possibilidade e, mesmo em recuperação do primeiro procedimento realizado no início do ano, foi para a escola. Chegou atrasada, já estava no segundo bimestre. Para conseguir as notas necessárias, teve que fazer inúmeras provas e trabalhos dos conteúdos que havia perdido. Quando o segundo bimestre terminou, em julho, lá estava ela novamente na mesa cirúrgica. – “Foi muito sofrido. Eu iquei um mês e meio sem dormir por causa das dores”, acrescenta. Foi um trabalho demorado e extremamente complexo. A intervenção aconteceu da cintura até o dedinho do pé, com intuito de alongar o tendão, além de trabalhar os ossos na correção de posicionamento. Gesso do quadril ao pé. O frio era um agravante, pois as placas de platina que ela possui no corpo es-

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THIAGO BASÍLIO friavam. Imagina isso em contato com o osso em uma baixa temperatura. Uma dor inenarrável. O engraçado é que, mesmo nessas condições, Thaís contava os dias para voltar à escola. Em meados de outubro, ao mínimo sinal de recuperação, ela (ainda com gesso) perguntou à médica se já poderia retornar às aulas. Com algumas ressalvas, e mais “limitações”, voltou ao colégio em setembro, mas não pôde permanecer por muito tempo. No mês seguinte ela foi internada na AACD e lá permaneceu em outubro e novembro. A formatura estava marcada para dezembro. Nessa situação, ela clamou à médica por alta durante uma semana, a im de que pudesse fazer as provas e estar apta para a formatura. Não queria perder o ano. A pro issional naturalmente achou uma loucura e, mesmo sendo pressionada pela paciente, não recuou. Foi liberada do tratamento na sexta-feira do culto de ação de graças, como parte das comemorações de formatura. Como chegou tarde em casa, não pôde ir. No domingo, mesmo sem ter se preparado, colocou a melhor roupa que tinha guardada e foi à cerimônia da colação de grau. Sem dúvida, foi uma das melhores coisas que aconteceram na vida dela. No momento em que a secretária ditou o seu nome completo e ela entrou sendo empurrada pelo pai, uma calorosa histeria de palmas, gritos entonados como reconhecimento e o “colocar-se de pé” da plateia mexeram com todos os sentidos daquela estudante que, em sua cabeça, acreditava estar cumprindo apenas suas obrigações como aluna, ilha e cidadã. – “Foi muito marcante para mim. Ver todos naquela posição de respeito me saudando. Depois de um tempo eu descobri que a ideia de me dar a placa de reconhecimento acadêmico partiu dos próprios alunos. Porque ninguém acreditava que eu passaria frequentando apenas três meses de aulas. Poucos sabiam o quanto eu tive que estudar para fazer as provas e concluir aquela etapa tão complicada da minha vida.” Certamente a aluna que ia engessada para a escola e teve de se ausentar durante boa parte do ano para tratar da sua saúde será lembrada eternamente na memória daqueles que vivenciaram essa trajetória. Mas nem sempre as relações dela com os colegas de classe foi tão amistosa assim... Antônio tinha um sonho, um desejo aparentemente incomum, mas que revelava um comprometimento muito maior com sua fé: ser pastor. Dentro da Igreja Adventista do Sétimo Dia isso só se torna possível quando o interessado faz a faculdade de teologia em uma das instituições de ensino da

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SOBREVIDA organização religiosa. Mesmo com uma vida estável em São Paulo, esse desejo icou cada vez mais intenso e ele passou a encarar isso como um chamado divino. Foi quando ele conversou com a esposa e a ilha e, em comum acordo, se mudaram para a cidade que se localizava a faculdade: Engenheiro Coelho (a duas horas da capital paulista). Thaís dividiu comigo momentos de uma quarta-feira à tarde. Um daqueles dias em que o sol aparece dividindo o céu eventualmente com algumas gotas de chuva. Um clima agradável, em sintonia com a conversa. Foi quando a questionei se ela tinha enfrentado “alguma situação” de preconceito. Seu olhar manso mudou para uma expressão mais carregada, esboçando espanto ao disparar: – “ALGUMA situação?!” A fala foi sucedida de risos irônicos e complementada com um: – “Várias!” Quando ela começou a frequentar a nova escola, percebeu que, naquele instante, a realização do sonho do seu pai poderia se con igurar seu maior pesadelo. – “Da quarta à sétima série eu enfrentei muito, muito bullying. Eu descobri o que era bullying nessa época. E foi muito cruel”, desabafa. E ser cadeirante não era o único fator que motivava o tratamento agressivo. Excluíam-na por morar em um bairro periférico da região, por ser de iciente, por usar óculos, por ser a aluna que se destacava na sala... Uma série de razões que, racionalizando cada uma delas, jamais encontraríamos uma motivação justa para inocentar seus agressores. Era um sentimento um tanto malé ico de não admitir que uma pobre, cadeirante, com estilo nerd pudesse ser a aluna com melhor desempenho acadêmico daquela classe. O mais intrigante é que, ao me contar esse fato com um olhar claramente pesaroso, Thaís não deixou de usar o “mas”. - “O preconceito me ajudou a ser uma pessoa melhor. Para mim e para o mundo. Descobri que, nem todo mundo vai gostar de mim. Posso ser a melhor pes-

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THIAGO BASÍLIO soa, mas nem todo mundo vai gostar de mim. Ainda assim eu tenho algo a oferecer às pessoas. Até para as pessoas que não gostam de mim”. Óbvio que essa segurança, construída a partir de um apoio familiar, não foi su iciente para transformá-la num ser inabalável. A fase se marcou como muito destrutiva para aquela adolescente que precisou receber ajuda pro issional para saber lidar com insinuações como: “anda direito” e “porque você não tem um material melhor?”. Questões que saiam do controle daquela estudante que não poderia jamais oferecer aos coleguinhas o que eles tanto lhe cobravam. Teve que descobrir na prática o signi icado da frase “quando o bullying não te faz melhor, te mata”. Apesar de ter sido o pior, foi apenas um período da sua vida. Seu pai se formou, começou a trabalhar e, como parte dos “sacri ícios” de uma família pastoral, mudaram-se bastante de cidades para atender às demandas designadas. Após alguns anos, Thaís pôde entrar na faculdade que, ironicamente, é o mesmo campus em que ela tinha realizado a parte traumatizante do seu ensino fundamental. Alguns alunos que estudaram com ela e protagonizaram o papel de agressores estão hoje cursando o ensino superior na mesma instituição. “Graças a Deus”, não na mesma sala. – “Muita gente me pergunta como eu aguento voltar para um lugar em que sofri tanto. Eu não me importo. Na verdade, acho bom. Pois falo ‘sem falar’ aos que me agrediram: ‘eu venci. Consegui. Hoje estou no mesmo lugar que você!”. No momento em que teve de escolher a faculdade, Antônio opinou para que ela izesse jornalismo (em função da sua desenvoltura e facilidade com as palavras), mas, um ano antes, Thaís havia feito um curso de inglês em Campinas, numa escola de línguas que é referência de aprendizagem. Ela se apaixonou ainda mais pelo idioma e isso só corroborou seu desejo (alimentado desde a sexta série) de estudar Tradutor e Intérprete. Atualmente cursa o terceiro ano de faculdade e o jornalismo não sai da sua cabeça. Ela já pensa no segundo curso superior como uma possibilidade real, possivelmente após se formar em tradução e interpretação. Nesse meio tempo, uma situação inesperada deixou a família a lita. Maria descobriu que tinha um câncer de mama. A doença foi diagnosticada bem no início, por isso foi mais fácil de ser tratada. O médico aconselhou que, por precaução, ela izesse quimioterapia. Ao todo, foram 15 sessões. A doença foi completamente sanada, mas houveram outras complicações. A quimioterapia era descarregada no ígado e

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SOBREVIDA isso fez com ela desenvolvesse uma cirrose. Em casa, Thaís acompanhava sua mãe se medicar periodicamente. Era uma situação desconfortável, pois Maria justi icava a utilização do remédio com um “é para o ígado”. E estava “tudo bem”. Mas não estava. Com o tempo o problema foi se agravando e já era impossível esconder a realidade para a ilha, em função das frequentes crises de dor que vinha enfrentando. Maria precisava de um transplante de ígado. Mas, como essa poderia ser uma espera muito demorada, os médicos queriam fazer um procedimento paliativo arriscado, que colocaria em risco a memória da paciente. Na noite de 31 de agosto de 2013, Thaís foi tomada por uma a lição muito grande. Foi o momento em que se deu conta da possibilidade real de perder sua mãe. No dia seguinte, ela contou para Maria a angústia sofrida na noite anterior e, em tom de despedida, a mãe disse três coisas à ilha: – “A vontade de Deus é soberana; lute sempre por seus sonhos, pois sei que você vai conseguir realizar todos eles; e quero que você não se revolte contra Deus. Duas semanas após aquela situação, Maria foi para o Rio de Janeiro, se internou no Hospital Adventista Silvestre (instituição referência em transplante de ígado no Brasil). Ali, os médicos izeram os procedimentos adequados para colocá-la na ila do transplante. A lista é feita conforme a gravidade da situação e, dado o estado crítico de Maria, ela foi colocada em 7º. Thaís viajou ao Rio. Esse foi um tempo em ela aproveitou para realizar os desejos maternos. Em casa, Maria pedia massagem nos pés à ilha, mas ela sempre tinha outras coisas para resolver. No hospital não faltou nem massagem, nem afeto. Thaís queria tanto permanecer ali que cogitou trancar a faculdade para que pudesse icar mais tempo por perto. Maria perguntou de forma bem humorada se ela estava bêbada. Conhecia a ilha e sabia mais do que ninguém o quanto o estudo era importante na vida daquela jovem. Obviamente, a mãe tinha um valor inestimável para Thaís. Após quatro dias de visitas, a universitária precisou retornar a São Paulo. O abraço apertado de despedida foi misturado a um intenso desejo de que aquele momento não acabasse. E, na cabeça da Thaís, tinha um valor simbólico muito grande. Poderia ser o último. Dias depois, já em casa, Thaís atendeu o telefone e era a Maria do outro lado da linha. O teor da conversa era o de que um “anjo” havia aparecido para salvar a vida dela. A estudante deu Glórias a Deus e, já na sequência, a mãe

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THIAGO BASÍLIO pediu-lhe para que escrevesse uma carta a essa pessoa agradecendo a dádiva que representaria a salvação. Prontamente a estudante perguntou se Maria sabia quem era o doador e ela negou, falando que era “coisa dos médicos”. - “Eu não sabia que era o meu pai, mas se você ler a carta vai pensar que eu sabia”, revela.

Oi, anjo! Eu estou me referindo a você como anjo, porque minha mãe pediu que fosse assim. Mas algo me diz que você está bem mais perto do que nós podemos imaginar... Esse era só o início do documento endereçado a Antônio. No im de semana seguinte, seu pai foi pra casa e Thaís inalmente soube do gesto nobre do pastor. Em 4 de novembro de 2013 ocorreu a cirurgia. Doze horas de agonia para Thaís. Ligava de hora em hora e a notícia que tinha era a de que sua mãe estava sobrevivendo, mas não sabiam até que horas. Com relação ao pai, sempre davam um parecer positivo. Procedimento arriscadíssimo, onde 65% do ígado de Antônio seria retirado e anexado, em seguida, dentro de Maria. As duas pessoas que aquela jovem mais amava estavam numa situação paradoxal em que o resultado poderia representar vida ou morte. No im das contas, tudo correu bem. A mãe icou em coma induzido por alguns dias para que o corpo viesse a aceitar o novo órgão mais facilmente. - “Eu me lembro de um dia que ela ligou para mim da UTI e falou assim: ‘ ilha, a mãe tá sentada, tomando uma sopa’. Foi quando eu pensei ‘deu certo!’ Todo o esforço do meu pai valeu a pena.” Nesse meio tempo o maior desejo de Maria era ver sua ilha. A mãe tinha previsão de alta para uma quarta-feira. O pai havia alugado um apartamento na cidade para que a família icasse por perto e evitasse assim que Maria tivesse de viajar para muito longe (já que o repouso se fazia necessário para a adaptação do novo órgão). Na segunda-feira anterior à previsão de alta, Maria teve uma complicação no estômago, que fez com que outros órgãos fossem afetados. Ela precisou fazer duas cirurgias de emergência nesse meio tempo. Às pressas, Antônio viajou para o Rio a im de acompanhar de perto a situação. Não pôde icar por muito tampo, pois ele também estava recém operado. Nas

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SOBREVIDA conversas que tinha com a ilha, sempre a mantinha calma, na sequência pedia para falar com o marido e dizia para ele não levar a Thais para o Rio. Por isso, sempre que a estudante falava ou pedia para viajar, Antônio tentava dar uma “burlada” na situação. As coisas foram se complicando e, em virtude da baixa imunidade a que estava arti icialmente submetida para que o corpo não detectasse o ígado do marido como um “corpo estranho”, Maria contraiu uma infecção. Era um vírus que atacava os órgãos vitais. Ela precisaria ser submetida novamente a um coma induzido. - “Quando ligaram do hospital informando que minha mãe teria de tomar um remedinho para dormir, pensei: ‘tudo bem. Ela vai dormir e depois vai acordar’. Orava todos os dias pedindo para Deus curá-la.” Thaís começou a pensar no pedido que fazia em suas preces e se deu conta de que estava sendo egoísta. Queria a todo custo sua mãe curada para sanar um capricho pessoal. Foi quando ela fez a oração mais di ícil da sua vida: – “Senhor, não permita que o meu egoísmo te peça para icar com a minha mãe só para suprir uma necessidade pessoal que tenho”. Maria não acordou. Apesar de tudo, Thaís não icou angustiada, pelo contrário. Sentiu uma paz nunca antes experimentada em sua trajetória. – “Deus tinha cumprido o propósito dele, seja lá qual fosse”. A estudante compreendeu que a vontade divina era soberana, continuou a lutar por seus sonhos, e em momento algum se revoltou contra a fé cristã. A impressão que poderíamos ter agora é a de que a universitária perdeu um de seus membros, se levarmos em consideração a promessa de sua mãe de que ela e Antônio seriam as mãos e os pés de Thaís quando ela não conseguisse fazer algo... Ao terminar a entrevista, ela gentilmente me agradeceu a oportunidade de poder tornar pública a sua história para motivar outras pessoas. A acompanhei até o auditório onde ocorreria uma palestra na qual deveria participar. Ao chegar próximo a porta do local em que ocorreria o evento, me despedi e, na sequência, ela subiu uma rampa de acesso cercada de muito carinho,

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THIAGO BASÍLIO simpatia e afeto. Eram colegas e professores que a encontravam no pequeno trajeto e faziam questão de saudá-la, nem que fosse um “tchauzinho” tímido de longe. O Deus dessa jovem não é injusto. Talvez, de fato, ela esteja atualmente sem as suas simbólicas “pernas maternas”, mas ela pode icar tranquila, pois a fé lhe garantiu uma locomoção quase normalizada, utilizando fortalecidas muletas que, na ausência de Maria, são formadas por diversas pessoas que a cercam e tem na sua história uma referência de vida, proatividade e gratidão.

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Capítulo 3 “[...] Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer [...] Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança” (Pedra Filosofal- António Gedeão)



O negro que utilizou suas viv锚ncias como tentativa de evitar que sua hist贸ria se repita atualmente em outros contextos

Mais que uma sacola


THIAGO BASÍLIO No mundo de hoje, onde o politicamente correto norteia os nossos comportamentos, é muito mais fácil mascarar o que realmente somos e pensamos do que permitir que nossas construções e pareceres sobre as pessoas nos exponham a uma condição em que somos apontados como racistas, segregadores e preconceituosos. O maior problema é que o sentimento está ali, dentro de cada um de nós. Pode ser de forma sutil, mas, em algum momento, será exposto. Quando isso acontecer, a única certeza é a de que alguém será machucado, injustiçado e desconstruído. Roberto Alexandre dos Santos, ou Roberto Santos, como o conhecem, é um cidadão que tem em mente um compromisso social. Sua percepção de mundo, baseada nas experiências que vivenciou, traduz o seu engajamento nas questões que envolvem educação, cidadania e direito. Em um projeto desenvolvido junto ao departamento de extensão universitária da sua faculdade, Roberto leva à comunidade da região conceitos importantes e muitas vezes pouco explorados em nosso cotidiano. Construir uma sociedade mais justa e com oportunidades amplas de crescimento é se preocupar não só com o coletivo, mas ter a percepção de que, se estiver bom para todos, a chance de a realidade particular de cada um também melhorar é muito maior. A satisfação de Roberto em participar desse programa é expressa de forma muito clara em seu largo sorriso. Num dos encontros que tive com ele para conversarmos, me mostrou um livro intitulado “Concepção de cidadania e direito na escola: Meios para a emancipação do cidadão”. A obra trazia em seu conteúdo vários artigos de pessoas envolvidas com o projeto de extensão desenvolvido por ele. Inclusive um texto escrito pelo próprio. Falou-me orgulhosamente sobre o lançamento do material e a importância do impresso. Provavelmente esse sentido de “responsabilidade social” foi construído a partir de algumas experiências que teve de enfrentar ao longo de sua vida. Experiências que, em sua concepção, não deveriam ser repetidas com as crianças da atuualide.

********************************************************* Seguindo o que normalmente acontecia naquela época, Elisiana Juçara dos Santos casou-se muito cedo e teve a sua primeira ilha aos 14 anos, em 1977. O segundo da lista de sete (no caso, Roberto) viria dois anos depois. Sua mãe casou-se quatro vezes e uma característica bastante peculiar é a de que ele é o único ilho legítimo dela com o seu pai, João Pedro dos Santos.

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SOBREVIDA A criança cresceu em um contexto muito conturbado. Aos dois anos, viu a igura paterna deixar a família. Santos precisou trabalhar em outra cidade e, na época, era uma prática comum “ir e voltar” para ver esposa e ilhos. Em uma das vezes que foi, João Pedro encontrou uma mulher por lá e decidiu não voltar, abandonando Roberto e Elisiana. Além dessa ausência, aquela criança cresceu presenciando muita violência doméstica. Sua mãe casou-se novamente e o padrasto não poupava crueldade com a mulher. Por isso, Roberto cresceu empenhando-se para que essa realidade pudesse ser modi icada. Inúmeras vezes ele presenciou Elisiana ser agredida por seus maridos. – “Eu lembro uma vez que minha mãe levou um golpe de facão. E aquele objeto poderia ter pegado nela e no meu irmão. O que o salvou foi uma cadeira colonial que estava na frente”. Se não fosse aquela bendita cadeira no local certo e na hora certa, a criança provavelmente não existiria atualmente. Na época, tinha menos de um ano. Era um “bebê” no colo da mãe que, por um triz, não foi vitima fatal do próprio pai, um dos muitos perpetradores de uma prática que é mais comum do que imaginamos. Apesar de frequentes, Roberto jamais aceitou situações do tipo como normais. Sua infância não foi muito típica. Brincou pouco. Teve que amadurecer rapidamente para trabalhar e ajudar a mãe na criação dos irmãos. Aos nove anos já tinha que “dar seus pulos” para conseguir dinheiro. Por presenciar o sofrimento de Elisiana, ele alimentava o pensamento de que “quando crescesse” deveria cuidar da mãe. E esse crescimento ocorreu de forma rápida, já que é di ícil esperar a biologia se desenvolver quando há necessidade de resolver questões urgentes. Roberto realizava trabalhos como capinador de terrenos e, nas férias, ia para a casa de primos (que, na verdade, eram sobrinhos do seu padrasto) na cidade de Vera Cruz (RS). Ali, o trabalho era colher fumo. Aqueles momentos acabavam se tornando um divertimento muito grande para a criança que morava numa cidade. Nessa época, podia vivenciar uma realidade de campo. Lá ele tinha coisas para fazer com os outros guris da sua idade. Ficava encantado com aquela vida de “mato”. Rio, pescas, caças, bois, cavalos... todos os componentes tornavam aquele momento do ano um parque de diversões. Trabalhar na colheita era um simples detalhe que nem dava tempo de doer. Conseguia ali sua graninha e já tinha como comprar uma roupa nova, alguma coisa que quisesse muito ter, além de pagar os materiais escolares do ano letivo que se aproximava.

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THIAGO BASÍLIO Esta foi uma fase extremamente complicada na vida daquela família. A mãe, com cinco ilhos, separada do seu segundo marido, saiu do casamento com uma mão na frente e outra atrás. Com pouco estudo, sempre desenvolveu atividades de trabalhadora doméstica. A situação apertava, junto com o espaço da casa em que eles estavam vivendo. O momento era tão delicado na vida daquela família que tiveram de ser “socorridos” pela ilantropia de um padeiro. Esse pro issional saía distribuindo pães frescos e, ao voltar, colhia dos seus clientes os pães velhos. Percebendo a situação de falta de mantimentos dos moradores da casa apertada, o homem passou a destinar os pães dormidos àquelas pessoas. Também tiveram que contar com a ajuda de caridade para se vestir. – “Foi um momento em que eu passei a ter nojo de sopa. A falta de dinheiro para comprar mantimentos fez com que a minha mãe só tivesse condições de preparar aquele alimento durante uma semana”, recorda Roberto com um sorriso de quem hoje pode lembrar da pobreza de forma menos dramática. Ainda assim, não se esquece de enfatizar: “Graças a Deus, nunca passamos fome”. Ao completar doze anos, começou a trabalhar na Gazeta do Sul, um grupo de comunicação que tinha jornal impresso e rádio na sua cidade. Permaneceu naquele emprego até os 18 anos. Nesse meio tempo, Roberto convivia com o fato de sua mãe ter ilhos e mais ilhos. Aquilo o incomodava muito, pois nunca a via com um bom casamento e, na concepção daquele pré-adolescente, era necessário ter uma vida matrimonialmente estável para que o casal pudesse ter estrutura para criar ilhos. A situação acabou aumentando aquele antigo sentimento de que era sua a responsabilidade de tirar a mãe daquela situação recorrente. Desde que ganhou seus primeiros salários, por exemplo, ele já se preocupava sempre em ajudar nas despesas domésticas. Assim seguiu a vida... Roberto trabalhava, estudava e sonhava sempre com o dia que em entraria no exército e lá se formaria um grande capitão e o icial. Enxergava aquela como a única esperança para mudar de vida. Esse desejo era sustentado pela in luência da sua mãe, que utilizava o exército como uma espécie de referência para a vida do ilho. Ela também sempre o motivava a frequentar a escola, mas expressões do tipo “quando você for para o exército”, eram rotineiras nos discursos de Elisiana com o ilho. A mãe também condicionava a vida amorosa do jovem à experiência militar:

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SOBREVIDA – “Você só vai namorar depois que sair do quartel”, alertava a mãe. - “Aos 16 anos tive um namorinho no colégio, mas foi coisa bem rápida. Durou um mês, no máximo”. Ainda falando em “escola”, ele nunca foi o “melhor aluno” (mesmo desejando muito ser), mas também não fazia parte dos piores da sala. Sem querer, se destacava. Era o sempre o único negro (ou quase único) a compor as turmas em que estudava. Mas, ainda assim, naquele contexto não tinha a sensação de ser inferiorizado. Adorava quando era escolhido como líder da turma. Ao pedir para que ele me contasse alguma situação marcante que vivenciou no colégio, Roberto pensou um pouco e logo respondeu: – “Foi quando me ofereceram drogas. Eu estava na terceira ou quarta série. Era um colégio de con issão luterana. Tinha um rapaz fumando uma maconha, também negro. Nem pegar, eu peguei. Nunca utilizei nenhum tipo e entorpecente”. O tempo foi passando e o jovem continuava sempre na labuta para alcançar seus objetivos. A cidade em que cresceu, Santa Cruz do Sul (RS), possui uma característica muito forte de colônia alemã. Diversos habitantes conservam ainda o idioma original dos antepassados. Alguns pontos comerciais, inclusive, têm atendimento bilíngue. Uma população majoritariamente branca, olhos claros, com hábitos muito sistemáticos e que normalmente encaram a diferença com bastante cautela. Fisicamente, Roberto era diametralmente oposto a esse padrão. Jovem negro, olhos escuros, cercado de um contexto familiar bastante desestruturado e traumatizante. É claro que o preconceito em algum momento se revelaria. No período em que trabalhava na “Gazeta” isso se tornou evidente quando ele tinha que lidar com o público. Desenvolvia um trabalho de atendimento junto aos assinantes do periódico que era produzido pela empresa e, em diversos momentos, sentia uma certa resistência dos clientes em serem atendidos por ele. – “Não queriam o meu auxílio por ser negro. Várias vezes me falaram assim: ‘não quero o seu atendimento’. Alguns nem falavam comigo e eu percebia”, lembra. Viver numa cidade de alemães fazia com que Roberto se sentisse inferiorizado. Tudo comunicava de uma forma em que ele se rebaixasse. O Rio Grande do Sul é um dos estados mais racistas do Brasil, fruto de uma colonização

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THIAGO BASÍLIO europeia. Determinadas cidades, se você é negro e chega no comércio, por exemplo, eles te olham, te visualizam, analisam e você enxerga claramente o preconceito. Apesar de conviver com a situação, Roberto sempre teve o equilíbrio de não achar preconceito em tudo mas, segundo a sua própria percepção: – “Tu chega no sul e tu sente o ar do preconceito sobre você”. Contrariar é um bom caminho para quebrar conceitos preestabelecidos sobre alguém ou mesmo alguma coisa. Roberto sempre gostou de estudar. Estar por dentro de assuntos plurais. Conhecer um pouquinho de tudo. E, na concepção de muitos por aí o negro é um ser que não tem a mesma capacidade intelectual do branco. (E não adianta ter a postura ingênua de que isso “é coisa da cabeça do negro” porque tal pensamento, de fato, existe sim. E de forma muito vívida em nossa sociedade). Isso é tão verdade que, como negro, já ouvi inúmeras vezes de inições sobre a minha pessoa descrevendo “o Basílio é um preto diferente, porque ele gosta de estudar”. Esse, talvez, seja o preconceito velado mais escancarado que existe. Casos despudorados continuaram dando às caras. Em uma determinada ocasião, Roberto estava em um cyber café, quando um médico sentou ao seu lado. Sem muita cerimônia, perguntou: – “Você é o locutor?” Roberto então sinalizou positivamente e, na sequência, tiveram algumas conversas sobre conhecimentos gerais. Um dos assuntos Roberto não dominou e, sem vergonha alguma, o homem disparou: – “Você sabe que os negros foram inferiorizados e eles estão eternamente condicionados à inferioridade? Porque se você observar as grandes cidades, sempre encontrará as comunidades negras se concentrando às margens. Nunca na área central da cidade”. Talvez esse tenha sido o momento de maior fúria da vida daquele cidadão. Inúmeras reações hostis (e certamente nada que ele izesse seria tão hostil quanto a fala do médico) passaram por sua cabeça, mas ele manteve a calma e tentou fazer algumas ponderações. Terminou aquele debate de forma elegante e educada, como sempre costuma ser.

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SOBREVIDA - “O Brasil tem uma história escravocrata, inclusive o último país da região a abolir a escravidão. Então vale a pena observar isso tudo. Já ouvi pessoas me dizerem ‘os negos são muito acomodados’. Não é assim. A questão está relacionada a uma situação racial, econômica, de educação que não corroboraram para que os negros sejam um pouco mais ávidos e audaciosos”, esclarece. Muitos falam para Roberto que algumas vezes tem um comportamnto prepotente e arrogante, pois nunca se permitiu, por ser negro, permanecer condicionado a uma situação econômica ou inanceira. O fato de ele ter sido pobre despertou-lhe um desejo de mudar sua vida. E isso envolveu muita dedicação e empenho para que construísse em si um cidadão mais completo. Muitas vezes quando ele conversava sobre determinados assuntos com as pessoas, o pensamento “como esse negro sabe disso?” era inevitavelmente esboçado nas expressões faciais de quem o ouvia. Essa característica de “sabichão” ele atribui ao Rio Grande do Sul, como um bom gaúcho orgulhoso do seu quase que internacional estado. – “Eu procurei me politizar. E a nossa região tem essa característica de ser um pouco mais politizada do que o resto do país. Aproveito para sublinhar que tenho muito orgulho de ser gaúcho, viu, Basílio!”, fez questão destacar, lançando-me um olhar de “eu precisava dizer isso”. Já acostumado com os vícios gauchescos, dada a minha convivência com “nativos” há oito anos, apenas permiti o momento, sinalizando um sorriso malcriado. Ele continuou a conversa ponderando, de forma muito intrigante, que é demasiadamente grato a Deus por ter nascido naquele contexto alemão. Argumenta que, se estivesse em outro local, poderia estar mais acomodado. Tem a sabedoria de reconhecer que o próprio preconceito teve um efeito positivo em sua vida. O ajudou a lutar e ir adiante. Finalmente, chegou o tempo de servir ao exército. O momento tão esperado da sua vida estava se concretizando. Con iava que era apenas o primeiro degrau para, com passar dos anos, ser promovido a general. No momento da entrevista de admissão, ele disse ao tenente: “a maior renda da minha família é minha”. Na época, trabalhava em três empregos. Em valores atuais, seria algo em torno de R$ 5 mil. Um excelente estipêndio, contrariando o meio salário mínimo que o governo federal paga a um soldado. – “Se eu entrar para o exército, o meu dinheiro será perdido”, continuou explicando. Não havia muito o que fazer. Entrou no exército. Esse foi um período

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THIAGO BASÍLIO di ícil, pois, dada a sua situação inanceira estável, havia comprado diversos móveis e eletroeletrônicos para a sua família, além de ter construído uma casa nova para sua mãe. Ou seja, a realização do seu sonho, custou-lhe uma falência e a sua primeira “inscrição” na lista do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC). No quartel, procurou ser um bom soldado. Teve experiências muito enriquecedoras dentro da “caserna”. Fez tudo o que tinha que fazer com intuito de icar mais de um ano no exército, já que, a princípio, esse era o tempo previamente estabelecido aos novatos. Se o militar se destacasse, poderia ter sua estada “renovada” por mais tempo. Os dias passavam e, em certa ocasião, ele foi informado de que havia recebido uma ligação de Canoas (RS). A pessoa tinha deixado o telefone para que ele pudesse retornar. Curioso, Roberto ligou e descobriu que era o seu pai quem estava do outro lado da linha. Não foi o primeiro contato desde o tempo em que João Pedro saiu de casa. Aos cinco anos teve a oportunidade de o “conhecer”. Essa ocasião é sempre muito bem recordada por Roberto, já que o pai lhe ofereceu 5 Cruzeiros. Depois disso, alguns outros encontros e, com o tempo, foram se tornando cada vez mais raros. Durante toda sua vida, Roberto tinha um desejo muito grande de conviver de forma mais próxima com o pai, mas a mãe impossibilitava essa aproximação, argumentando que João era uma pessoa má que bateu nela e que não valeria a pena icar próximo dele. A famosa alienação parental. Mas ainda assim Roberto retornou a ligação e marcou uma visita ao local onde o pai morava. Sua irmã mais velha o acompanhou e, ao se aproximar da casa ela apontou para um senhor idoso, marcado pelo tempo. Avisou que aquele era o seu João. - “Eu tive um impacto. Foi um pouco decepcionante. Vi o meu pai envelhecido, judiado. Tempos depois fui entender o motivo. Em outra ocasião recebi uma ligação em que a pessoa me avisava sobre a saúde dele que estava debilitada em função de problemas relacionados ao alcoolismo”, conta. Naquele momento, Roberto icou extremamente desapontado e decidiu não se envolver com a situação, já que, no passado, o pai tinha o abandonado sem ao menos dar “tchau”. Preferiu se distanciar. Esse silêncio durou mais ou menos um ano e meio. Junto a essa situação, o seu tempo no exército se passava e, contrariando as expectativas, a estada no quartel não foi renovada. Voltou ao antigo emprego no grupo de comunicação. Permaneceu por pouco tempo. Foi então que, em 2000, ele decidiu, junto com a irmã, ir para São Leo-

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SOBREVIDA poldo, cidade gaúcha em que poderia fazer a sua faculdade. Dois anos depois, casou-se com uma “mulher de família italiana”, como se refere a sua ex-esposa. União que durou pouco tempo. Em 2008, irmou uma nova relação, casando-se com Cátia Santos, sua atual mulher. No novo município de residência, Roberto trabalhava em uma rádio como locutor. Essa é uma pro issão que ele vivencia em todos os momentos da sua vida. Ao falar, é claramente perceptível o timbre empostado e a sua forma bem articulada de se expressar. Ele pro issionalizou-se em locução ainda nos tempos de “Gazeta”, quando ouvia das suas clientes que tinha uma “voz bonita”. De tanto baterem naquela tecla, se convenceu e tomou coragem para fazer um curso e se quali icar no ramo. No período em que trabalhou na rádio de São Leopoldo, começou a conviver com alguns movimentos negros da cidade. Relação decorrente de convites que recebia para cobrir os eventos da organização, que era vinculada ao Partido dos Trabalhadores. Tinha quatro horas de programa e aquela era uma boa pauta de abordagem para levar esse conhecimento à população. Ele passou a se interessar pelo tema e, enquanto fazia Jornalismo na universidade da cidade, descobriu que, dentro da instituição, também tinha um movimento negro. Começou a se engajar na causa que, em sua concepção, é muito importante para discutir políticas públicas que promovam uma maior inclusão desta população historicamente excluída. Pessoas que eram tidas como referências e as “cabeças pensantes” da “negritude”, como ele carinhosamente chama. Nesse meio tempo estava sendo instituída, junto ao governo municipal, uma secretaria de igualdade racial. Roberto tinha um grande espaço na rádio, possuía também as articulações necessárias com a liderança do movimento, foi então que passou a intensi icar a participação do segmento em seus programas. Uma rádio tradicional, em uma cidade de colonização alemã. A realidade era nova, mas estava sendo encarada de forma normal por Roberto, que sempre levava integrantes do grupo para entrevistas e debates sobre diversos temas. Mesmo tentando dar uma abordagem mais “distanciada” possível nas transmissões, os ouvintes começaram perceber que ele era negro. Essa repercussão ajudou para que se abrisse um órgão, junto à prefeitura, que tratasse de forma mais segmentada a questão da promoção da igualdade racial. Não era uma secretaria como almejavam, mas uma diretoria, que icava sob o guarda-chuva do gabinete do prefeito. Conquista de bom tamanho, para quem não tinha nada.

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THIAGO BASÍLIO - “O órgão icou conhecido na cidade como ‘Secretaria dos Negros’, que eu achava ridículo, horrível, um tremendo preconceito”, lamenta com uma voz irme e indignada. “Uma diretoria de igualdade racial, não é só do negro, mas do índio também. E de qualquer outra raça que se sentir descriminada”, explica. A discussão sobre a questão tomou corpo e atualmente o nome da repartição está de inida mais ou menos nos termos de “direitos humanos”. Na verdade, o problema era apenas um detalhe diante da importante colaboração daquele cidadão que saiu de um contexto familiar desestruturado e passou a militar em favor de uma causa que, anos atrás, não era visada. Nada na vida é eterno. Desde 2006, Roberto entrevistava na rádio o Dr. Andrew, advogado especializado em processo penal que tinha um excelente escritório de advocacia na cidade. Se interessou, então, por direito. Viu no segumento, um espaço onde havia uma constante necessidade de atualização. Decidiu mudar de faculdade. Em 2007, parou de cursar jornalismo. Três anos depois, em 2010, começou Direito. Mas as mudanças em sua vida sempre vinham de forma inesperada e radical. Visando a melhores oportunidades de carreira, aliando a isso qualidade de vida e convicções pessoais, amigos começaram a colocar na cabeça de Roberto e Cátia a ideia de que vir para São Paulo. Seria uma excelente alternativa a im de que tivessem um crescimento mais completo, cercados de pessoas bem colocadas no mercado. O pensamento foi amadurecendo, amadurecendo, até que, em 2012 os dois acabaram, subitamente, em território paulista. Ele transferiu o seu curso e continuou a jornada na faculdade. O lado social jamais foi esquecido. Junto com sua história, trouxe uma experiência. Foi se ambientando com o novo lugar e, num momento oportuno, chamou um dos professores para falar sobre um projeto que desenvolvia no Rio Grande do Sul chamado “Papo Legal”. O trabalho consistia na utilização do rádio na conscientização contra a violência doméstica. A sementinha foi plantada timidamente e começou a germinar aos poucos com o projeto “Cidadania ao Alcance de Todos”. Lentamente ele ganhou uma maior dimensão e, quando perceberam, já estava sendo apresentado em Brasília na “Fundação Estudar”. A repercussão dentro da sua universidade foi grande. Foi então que professores de Direito e Pedagogia se sentaram com Roberto para saber um pouco mais do trabalho. O encantamento foi unânime e, já em 2013, o projeto foi relançado de forma adaptada, agora com o nome “Cidadania na Escola”. Pouco mais de um ano depois, um livro sobre o programa foi produzido.

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SOBREVIDA O fato de o negro ser fadado a um atraso no saber é uma concepção um tanto precipitada daquele médico do cyber café. Roberto é uma prova de que é possível conduzir uma trajetória de vida baseada em sonhos, estudo e disposição de fazer com que a existência seja protagonista da transformação. E não é uma mudança pessoal apenas. É uma referência também à coletividade. – “Em minhas horas vagas gosto muito de pesquisar. Eu ico bastante tempo na internet me inteirado sobre diversos assuntos. Há seis meses, me peguei lendo sobre moda. Estou sempre pesquisando, lendo sobre alguma coisa diferente.” Atualmente, explora a iloso ia. Tem gostado tanto do tema que já cogita fazer uma faculdade na área. É neste mesmo sentido de “buscar” que Roberto acredita que os jovens negros devem depositar a sua fé na atualidade. – “É isso que desejo para os meus irmãos negros. Precisam sair do mundinho em que vivem. O negro também faz o seu preconceito e vive no seu preconceito.” Em suas últimas palavras de nossa conversa, destacou uma única palavra aos negros: “Acordem!”. Quis dizer com essa exclamação que existem oportunidades muito grandes aos que têm vontade de crescer e sair das estatísticas que corroboram a exclusão social do afrodescendente brasileiro. Ele, que apresenta em suas ideologias conceitos petistas de sociedade, fez questão de lembrar feitos administrativos dos governos dos presidentes Lula e Dilma, garantindo que tivemos avanços importantes na questão da inclusão. Programas como o ProUni, Fies, as cotas raciais para universidades públicas e o próprio Pronatec, que a atual presidente tanto fala, desempenharam papel fundamental para a criação de oportunidades. A vida é construída de oportunidades. João Pedro parece não ter aproveitado muito bem as suas. O alcoolismo fez com que ele desenvolvesse um câncer. Roberto, sabendo do estado de saúde do homem, decidiu deixar de lado o passado e acompanhá-lo de forma mais próxima e atenta em seus dias inais. A ligação inevitável foi atendida. Roberto icou encarregado de reconhecer o corpo. Ao se deparar com o defunto, analisou-o por completo e uma coisa intrigante chamou-lhe a atenção: junto ao corpo do pai havia uma única sacola de supermercado com uns poucos pertences. Uma vida resumida a um saco plástico.

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THIAGO BASÍLIO Ao olhar para si mesmo, certamente Roberto têm motivos su icientes para acreditar que a sua herança está sendo construída à base de esforço, empenho, transformação de vidas. Uma bagagem vasta, que uma sacola plástica jamais poderia conter e capaz de fazer com que o mundo desfrute do seu legado quando, em algum dia imprevisível, não estiver mais entre nós.

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Epílogo Após as entrevistas, o contato com todos esses personagens continuou. Eventuais papos na internet, cumprimentos mais calorosos num encontro imprevisto, interações bem-humoradas nas redes sociais. A vida normalizada com a suas diversas nuances. Quando os vejo por aí, o sorriso é instantâneo, juntamente com a simpatia, inteligência e a boa disposição. Possuem características muito semelhantes, mesmo sendo pessoas distintas. Certamente continuam a enfrentar os seus desa ios particulares mas, a percepção que têm dessas situações é a de que a vida é muito importante para que percamos tempo com desgastes que, no im das contas, são irrisórios diante a grandiosidade da existência. Ainda que, subitamente, ela possa se mostrar tão frágil e sutil. É revigorante acompanhar Rodolfo em seu trabalho e perceber o quanto as pessoas que estão ao seu redor o respeitam, admiram, desejam sua companhia, retribuindo seu temperamento paci ista em forma de afeto.

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Caminhar e conversar com Thaís é uma tarefa desa iadora, já que seu costume de falar com conhecidos (ou não) no meio da rua é sempre um interruptor de diálogos e raciocínios. Isso revela a sua educação impecável e re inada. A sabedoria de Roberto, demonstrada em sua capacidade invejável de reproduzir pensamentos e referenciar quase que instantaneamente o autor das ideias utilizadas, é uma característica admirável e ao mesmo tempo, também, um tanto intimidadora. Peculiaridades importantes, que ajudaram a construir em mim um conceito mais completo sobre o ser humano. Passo a vê-lo (o ser humano) como uma criatura que só se torna plenamente obsoleta quando a vida lhe é retirada.

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1ª Edição Novembro de 2014 Impressão Duo Paper Miolo Capa



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