Os vulneráveis, as utopias e suas barbáries - Diálogo Aberto

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uma lesão muito grave na cabeça e estava sem comer havia dois dias porque sua família não conseguia encontrar comida. Quando encontraram, ele não podia comer porque

estava muito machucado. Ele morreu com fome. Em suas páginas no Facebook e no Twitter, Amani tenta registrar as condições em que trabalha na Síria e registra

o sofrimento das vítimas. Ela destaca a desnutrição que atinge grande parte dos bebês na região sitiada de Ghouta Oriental. […]

VIEIRA, Ana Luísa. “Não há lugar seguro”, diz médica síria que trata crianças em Ghouta. R7, 5 mar. 2018. Internacional. Disponível em: <https://noticias.r7.com/internacional/nao-ha-lugar-seguro-diz-medica-siria-que-trata-criancas-em-ghouta-05032018>. Acesso em: 18 set. 2018.

Diálogo aberto Os vulneráveis, as utopias e suas barbáries revolucionários dos movimentos sociais e políticos do século XX. Explora o papel da arte, da violência, das imagens e das mídias na construção do ser humano e da História. Ao fim, o espectador se confronta com algumas questões: a utopia é necessária? O ser humano é, em essência, um bárbaro? Grandes sonhos alimentam grandes opressões? O que é progresso? Diante dessas perguntas, sobressai uma única afirmação: somos vulneráveis. Antes de refletir sobre esses temas e sua relação com as condições de fragilidade na infância, estado este de vulnerabilidade muito presente em

países emergentes como o Brasil, é importante entender o significado de alguns termos. O que é vulnerabilidade? Vulnerável é algo ou alguém impotente diante de algum tipo de violência. É pertencer a algum grupo entendido como mais frágil em relação aos demais, como o idoso, a criança, a mulher (entendida assim na maioria das sociedades), por exemplo. O que é utopia? O primeiro significado que vem à mente, normalmente, é a ideia de algo impossível, irrealizável. Nesse contexto, porém, a utopia deve ser considerada uma espécie de jogo

MOHAMAD ABAZEED/AFP

Utopia e barbárie é o nome de um documentário produzido pelo cineasta e historiador brasileiro Silvio Tendler. Inicialmente lançado em 2005, foi relançado com acréscimos em 2009. O filme tenta criar um panorama das transformações mundiais ocorridas após a Segunda Guerra Mundial, que oscilaram entre idealismos e extremismos. Ele aborda grandes sonhos da humanidade que se converteram em tragédias ainda maiores: o absurdo de Hiroshima, o holocausto, as ditaduras latino-americanas, o conflito entre árabes e judeus. Trata também de uma esperança, muito subjetiva, levantada pelos ideais

Criança brincando em meio aos escombros, na cidade de Daraa, Síria, 31 jan. 2017.

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Crianças portando armas andando pelas ruas de Aleppo, Siria, 28 set. 2013.

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mesmo tempo, manifestações de barbárie tão massivas, opressoras e desumanas quanto os séculos XX e XXI. Esta é a tônica do filme de Silvio ­Tendler: fazer enxergar o inevitável avesso da utopia, o reverso da idealização. Quanto maiores são os sonhos humanos, mais terríveis e instrumentalizadas são as iniciativas para torná-los reais e, portanto, mais assustadoras são as consequências dessas empreitadas. Ou seja, quanto maior o grau de civilidade, mais terrível parece a barbárie produzida por ela. O ser humano civilizado, na busca por efetivar suas utopias, visando “progredir” coletivamente, desenvolve aparatos e ações capazes de ferir o próprio coletivo que presume defender. No afã de alcançar seu sonho, ele se corrompe e fere o outro. O Nazismo gerou o holocausto. A resposta ao Nazismo, a Segunda Guerra Mundial, provocou milhões de mortes. O fundamentalismo religioso no Oriente Médio oprimiu o povo, incitou conflitos civis e incentivou o surgimento de grupos dedicados a utilizar a violência como resposta. O sonho capitalista produziu um imenso abismo de desigualdade social.

Assim, entre utopias e barbáries, o efeito colateral mais terrível é a vulnerabilização extrema de grupos frágeis. Quando o assunto é vulnerabilidade infantil, fala-se de crianças e adolescentes que vivem as consequências desses conflitos. Violentadas no plano físico e emocional, são privadas de um lar, saneamento básico, alimentação, educação, informação, acesso ao sistema de saúde, proteção contra o trabalho infantil, lazer, cultura. Além disso, em muitos casos, são privadas de estabilidade emocional por serem frutos de famílias desestruturadas que, por sua vez, se formaram em meio a condições desiguais e agressoras. Essas condições começam, na maioria esmagadora das vezes, na pobreza. Para a criança pobre, a desumanização pode estar na falta de recursos mínimos para sobrevivência, na inserção precoce no mundo do trabalho precário e informal, na inevitável submissão à exploração, às vezes sexual. Também está na falta de perspectivas para o futuro, em uma percepção negativa da utilidade da educação que resulta em altos índices de reprovação e/ou evasão escolar. Essas condições

MUZAFFAR SALMAN/Reuters/Latinstock

de forças que rejeita o real em função de alcançar o ideal que se deseja. Em síntese, utopia é uma ideia, uma imaginação, um devaneio, um sonho a respeito daquilo que o “real” deveria ser. Não é difícil entender, assim, o Nazismo, o Comunismo soviético, o Capitalismo estadunidense, o Socialismo cubano, o Talibã no Oriente Médio, o movimento hippie, o anarquismo, entre tantos outros, como iniciativas para tentar transformar o “real” em um ideal imaginado, considerado melhor, portanto utópico. O que é barbárie? Pode-se defini-la como aquilo que é selvagem, que brota do instinto e não da razão. Superficialmente, bárbaro é o contrário de civilizado. Nesse sentido, parte-se da ideia de que “civilizar” é organizar-se socialmente pela razão. Logo, o não civilizado é o bárbaro, o selvagem, o irracional. Esse conceito foi herdado dos povos gregos, que chamavam os povos vizinhos de bárbaros, pois os consideravam inferiores. Mais amplamente, bárbaro é o desumano, o violento, o intolerante e o opressor. Nenhum período da História conheceu utopias tão complexas e, ao


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convidam ao consumo de drogas, ao uso de armas, ou seja, a uma vida de clandestinidade, de “microbarbáries”. Em regiões afetadas pela guerra, onde a violência generalizada produz condições similares de desumanização, um adolescente vulnerável pode ser levado a repetir as violências recebidas, inserindo-se, às vezes voluntariamente, na máquina de conflito. Esse jovem vê nessa inserção sua única condição para sobreviver ou expurgar o que lhe foi feito. E, assim, o ciclo da violência e da barbárie vai se perpetuando. A pobreza em si não leva ao crime, mas desumaniza. Perceber-se humilhado, envergonhar-se daquilo que foi obrigado a se submeter, de sua história, dos ferimentos causados por condições contra as quais não pôde lutar é a pior das opressões. Toda opressão gera uma porcentagem de respostas que, em algum nível, representa novas barbáries. Tudo isso significa que não se pode sonhar? Desejar um mundo melhor? Não se trata disso. É hora de voltar à primeira pergunta feita neste texto: A utopia é necessária? Nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano, a utopia fica sempre na linha do horizonte. Ao se aproximar dela dois ou dez passos, ela se afasta na mesma proporção. Por mais que se caminhe, não se pode alcançá-la. Mas sua função é esta: exigir que a caminhada rumo ao ideal continue ininterruptamente. Caminhar em direção ao que se espera não significa paramentar-se com todas as armas e atos para impor o sonho à força. Não implica explorar esse sonho ao extremo corrompendo seus benefícios coletivos. Mas dar pequenos passos rumo ao que se deseja, ao que se sonha, ao que parece certo

e melhor. E isso é feito, primordialmente, em microinstâncias. Reduzindo as vulnerabilidades nos menores espaços que estão ao redor. No caso da vulnerabilidade infantil, lutando por políticas públicas e investimentos na comunidade em que se habita, engajando-se em projetos que procuram minimizar as condições de desigualdade e enxergando, antes de tudo, que há vulneráveis em todos os lugares. Lançando um olhar para as violências a que crianças são submetidas. Participando, por exemplo, da reforma da escola de seu bairro ou se unindo à associação de moradores para discutir melhorias para a comunidade. Escolhendo representantes públicos que estejam mais preocupados com questões como o bem-estar das minorias, o acesso a educação e cultura, a promoção de programas que promovam igualdade. Rejeitando toda política de combate, de repressão, de instrumentalização agressiva visando exterminar “violências”, de cerceamento de direitos. A vulnerabilidade só termina no exercício de conceder direitos, nunca em políticas que pretendem revogá-los. Essas ações criam redes de apoio. Pertencer a esse tipo de rede e sentir-se acolhido produz autonomia, humanização, e instrumentaliza a luta por direitos e a superação da opressão vivida. O ser humano não é um bárbaro na essência. É a espécie que vive, por prazer, em comunidade. E embora a barbárie esteja presente em partes de sua misteriosa composição, ela não é a síntese da humanidade. O bater de asas de uma borboleta em um lado do mundo pode produzir, em uma cadeia de eventos, um ­tsunami do outro lado do planeta. Portanto, que as utopias sejam localizadas, que

os direitos mínimos e próximos sejam buscados e mantidos, que você vote por políticas públicas de educação e acesso à cultura. Os pequenos passos dados por estas “pequenas” utopias podem revolucionar com mais força do que se imagina um mundo dedicado à barbárie. Não é esta a maior das utopias? Que ela comece pequena, por mãos individuais, enxergando e minorando as vulnerabilidades que estão ao alcance. Neste mês das crianças, um olhar para a situação de vulnerabilidade infantil em seu entorno seria fundamental. O que cada um de nós pode fazer em nosso universo? Pode ser apenas postar um texto, uma imagem, compartilhar um link em suas redes sociais; votar conscientemente; cada pequeno gesto representará o bater das asas de uma borboleta.

Andréia Moura é jornalista, mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade de Campinas (Unicamp) e doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP). Atua como docente em cursos de Jornalismo, Publicidade e Rádio e TV no interior de São Paulo. Suas pesquisas e interesses voltam-se para a área da circulação de sentidos na cultura e visualidades. Estuda a arte (cinema, pintura, fotografia e quadrinhos) em suas muitas relações com os sujeitos sociais e com a cultura.

Sua opinião 1. Quais fatores são responsáveis por criar espaços de vulnerabilidade? 2. O que é utopia? Cite exemplos de utopias modernas. Esses exemplos produziram situações de barbárie? 3. Como lidar com os grupos vulneráveis? O que pode ser feito para mudar a situação de fragilidade deles?

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