Sefarad Universo
ANO 2 NO. 3 EDIÇÃO DE PESSACH 2019
INCLUI
Uma noite diferente:
O SEDER NA TRADIÇÃO
SEFARADI
1
CHAG HAPESSACH KASHER VESAMEACH A TODOS
PESSACH SAMEACH A TODO NOSSO ISHUV 3
Sefarad Universo
Diretor/Editor Executivo Elias Salgado Editora Executiva Regina Igel Diretor de Arte e Design Eddy Zlotnitzki Oriente Médio Henrique Cymerman Benarroch Literatura Cristina Konder Conselho Editorial HOMENAGEM ESPECIAL: Prof. Samuel Isaac Benchimol z”l Andre de Lemos Freixo Fernando Lattman-Weltman Heliete Vaitsman Henrique Cymerman Benarroch Ilana Feldman Isaac Dahan Jeffrey Lesser Michel Gherman Monica Grin Monique Sochaczewski Goldfeld Regina Igel Renato Athias Wagner Bentes Lins Editor Elias Salgado Projeto gráfico e arte diagramação Eddy Zlotnitzki Revisão Regina Igel Colaboram neste número Cecilia Fonseca da Silva Isaac Dahan Israel Blajberg Lucas Fernandes Paulo Valadares Iehuda Benguigui Inclui Suplemento Universo
Site www.talucultural.com.br www.amazoniajudaica.org Facebook Universo Sefarad Talu Cultural Email contato@talucultural.com,br universo.sefarad@gmail.com 4 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
EDITORIAL A cada ano, coincidindo com a chegada da primavera em Israel, famílias judias em todos os cantos do mundo se reúnem em suas casas em torno de uma mesa, em celebração do Seder de Pessach (leia-se Pêssar) É um jantar que lembra a passagem pelo Mar Vermelho e a caminhada de 40 anos pelo deserto rumo à Terra Prometida, liderada por Moisés e seus seguidores, ao escaparem da escravidão no Egito. Não só para se alimentarem que as famílias se reúnem embora, em tempos antigos, o sacrifício de um cordeiro e seu posterior serviço como repasto dos comensais seja lembrado nessa ocasião, quando pais, filhos, parentes e amigos rememoram o Êxodo das terras dos faraós escravistas. Os séculos se passaram desde aqueles primeiros anos e a noite do Seder foi ganhando novos elementos. A começar pela ordem (Seder, em hebraico) da celebração. Nossos sábios criaram, ao longo do tempo, um “roteiro”, algo como um “script” ou guia - a Hagadá - sobre como cumprir o preceito de contar e recontar o processo mosaico da liberação do povo hebreu. Os convivas conversam sobre alguns dos fatos acontecidos na travessia do deserto, observam os elementos interessantes, crianças se envolvem também nas discussões. É uma noite de celebração, memória e vivas à liberdade da Humanidade. Como é característico no Judaísmo, as novas gerações e as diversas edot (comunidades) inovaram e seguem inovando a maneira como narram o mesmo acontecimento. E assim agregam e enriquecem a nossa tradição. Este é o tema da matéria de capa desta edição de Pessach de nossa revista: o Seder e as variadas formas de realizá-lo. Os ingredientes simbólicos (ovo cozido, raiz amarga, salsão, matzá, etc) são os mesmos em quase todos os quadrantes da Terra, mas existem, sim, diversificações conforme a região em que os judeus se situem. Nossa editora, este ano, também resolveu inovar na maneira como apresentar e narrar ao seu público leitor, a história, a memória, as tradições e a cultura do judaísmo sefaradita: juntamos numa só publicação nossas duas revistas. Incorporando AMAZÔNIA JUDAICA à UNIVERSO SEFARAD, que ganha um Suplemento Especial sobre a AMAZÔNIA JUDAICA. E, assim, o seder (a ordem), o corpus da narrativa do mesmo conteúdo passa a ser apresentado com expansão, significando mais riqueza de conteúdo e beleza gráfica. Esperamos que esta novidade seja do agrado de todos. Boa leitura e Chag HaPessach Sameach (Feliz Pessach)! Os editores.
ÍNDICE
08
IDIOMAS - Ladino: a língua sefaradita e sua trajetória
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NOSSA HOMENAGEM: MOISÉS SABBÁ Z’L
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HISTÓRIA Sefarditas marroquinos que do Brasil regressaram à sua terra natal
36
ORIENTE MEDIO Rabinovich: “Rabin teria alcançado uma solução com Arafat.”
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TRADIÇÃO - O Seder: variações de uma mesma narrativa
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LITERATURA
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PELO NOSSO PORTAL
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MENSAGENS
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ATUALIDADES- Davi Alcolumbre: Da Amazônia à Presidência do senado
SUPLEMENTO UNIVERSO AMAZÔNIA JUDAICA
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IN MEMORIAM
MOISÉS SABBÁ Z”L (1944-2019)
Moisés Gonçalves Sabbá em entrevista-depoimento, para o projeto “Judeus na industrialização do Amazonas”, 2015. (Foto de Ricardo Oliveira)
E
A vida e a editoria de uma revista, entre vários pontos em comum, possuem um a que chamamos de “a preponderância, a urgência e a surpresa do destino”
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por quê dizemos isso aqui? Resulta que a presente edição da Revista Universo Sefarad e seu Suplemento Amazônia Judaica, já havia sido encerrada, quando recebemos a triste notícia do falecimento do nosso querido chaver, membro da comunidade judaica de Manaus, Moisés Gonçalves Sabbá z”l O saudoso Moisés Sabbá, para nós da Amazônia Judaica, o eterno “Moshê”, foi umas das figuras de maior relevância de sua comunidade e da economia do Amazonas. Filho mais velho do saudoso Isaac Benayon Sabbá e um dos maiores empresários da história da formação econômica do estado. Amazônia Judaica possui uma dívida eterna para com esse grande hibri, sempre preocupado, como nós, com o registro e a preservação do judaísmo bicentenário da Amazônia e “guardião da memória” de seu pai. Em dois momentos, em dois diferentes projetos, Amazônia Judaica registrou depoimentos fundamentais feitos por Moisés Sab-
A seguir publicamos um pequeno trecho do depoimento dado por Moisés Sabbá, em entrevista a Amazônia Judaica, para o projeto “Judeus na Industrialização do Amazonas”. (“História e memória: judeus e industrialização no Amazonas”. Ed. Amazônia Judaica, 2015)
Formação e atividade profissional Meu nome é Moisés Gonçalves Sabbá, filho de Isaac Benayon Sabbá e Irene Gonçalves Sabbá, ambos falecidos. Nasci em Manaus, no dia 3 de abril de 1944. Cursei o primário na Escola Princesa Isabel, o secundário no Colégio Dom Bosco, Colégio Estadual e Instituto de Educação, e o curso superior na Universidade do Amazonas, em Manaus, onde fui laureado com o Anel Simbólico, por mérito discente. Não quero parecer arrogante, mas gostaria de comentar que durante o curso no Instituto de Educação fui o melhor aluno dos 100 anos da escola, e na faculdade obtive o Anel Simbólico no curso de Ciências Econômicas, tudo isso, graças ao incentivo, ajuda e apoio dos meus pais para que eu tivesse a minha formação, não somente em casa, mas também na instrução escolar. Atualmente, cuido dos negócios deixados pelo meu pai, alguns ainda em funcionamento, outros, modificados na maneira de trabalhar, e ainda outros novos, como o Hotel.
História da família O pouco que sei da nossa história é que o pai do meu avô, que se chamava Primo, veio do Marrocos entre 1880 e 1890 e se estabeleceu em Belém. O avô Primo foi funcionário da Estrada de Ferro Belém-Bragança,
bá z”l: no documentário ganhador do I DOC TV PARÁ, do Ministério da Cultura, produzido por David Salgado e dirigido por Alan Rodrigues, “Eretz Amazônia, judeus na Amazônia” e no Projeto Judeus na Industrialização do Amazonas” uma pesquisa, livro e documentário ainda não editado e finalizado, sobre a referida temá-
onde meu pai nasceu, na cidade de Cametá, em 1907. Meu avô faleceu em Manaus, quando eu era criança. Primo Sabbá era casado com Fortunata Sabbá, e tiveram sete filhos: tia Cotinha (Dona Carlota Israel), tio Jacob Sabbá, Isaac Benayon Sabbá (meu pai), tia Raquel, tia Dina, tio Samuel e tio Abraham. Como já comentei antes, Primo Sabbá e a esposa, Fortunata Sabbá, residiam em Cametá, porque meu avô trabalhava na Estrada Belém-Bragança. Em 1922, meu tio Jacob e meu pai Isaac vieram para Manaus e estabeleceram uma firma de representações. Meu tio tinha 17 ou 18 anos, e meu pai, 15.
Vida judaica em Manaus e relações fora da comunidade Lembro-me que havia duas sinagogas. A primeira ficava na Rua Sete de Setembro, em frente a onde hoje funciona uma agência do Banco da Amazônia, e a segunda, fundada em razão de uma desavença entre os nossos correligionários naquela época, ficava na Praça da Saudade. A família do meu pai frequentava a sinagoga da Praça da Saudade. Apesar de uma formação judaica forte, tanto no coração como no pensamento, meu pai era muito comunicativo, como já comentei anteriormente, e também era ligado ao multiculturalismo. Ele tinha uma relação muito boa com toda a sociedade e com as diferentes religiões e etnias. Era muito amigo de várias famílias de descendentes de sírios, como a família Tadros entre outras, e também tinha amigos cristãos. Enfim, não havia nenhum problema nesse particular, e apesar da concorrência nos negócios, todos conviviam civilizadamente.
tica, dirigido e editado por Elias e David Salgado. Ambos trabalhos - o DVD do filme e o livro – podem ser adquiridos em nossos sites: www. talucultural.com.br e www.amazoniajudaica.org . Todá Rabá – muito obrigado – querido e saudoso “Moshê”. 7
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IDIOMAS
Do Castelhano ao Ladino:
UMA VIAGEM MÁGICA PELO TEMPO
Em março de 1492, os reis de Castela e Aragão assinaram o Decreto de Alhambra, que determinava a expulsão dos judeus que viviam em seus domínios. Que língua falavam os judeus no momento da expulsão? O quê aconteceu com seus descendentes? Como conseguiram manter viva a cultura levada da Península Ibérica? Por meio de um rico repertório musical, transmitido oralmente, é possível identificar as aquisições de elementos das línguas dos diversos países por onde passaram ou onde se estabeleceram os judeus expulsos em 1492. Quando saíram, levaram consigo o saber, os conhecimentos, as tradições, a língua, cujas manifestações se mantêm até hoje em todas as partes do mundo onde se encontram seus descendentes Cecilia Fonseca da Silva*
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Sefarad é o nome hebraico da Península Ibérica, já mencionado na profecia de Abdias I, Versículo 20, como um dos lugares habitados pelos exilados de Jerusalém: “Os exércitos de Israel deportados ocuparão as terras dos cananeus até Sarepta. Os deportados de Jerusalém em Sefarad possuirão as cidades do sul.”
telhano pelas terras do Novo Mundo. A fala predominante naquele momento, na Espanha – o castelhano –, começa a se espalhar por todo o mundo: por um lado, pelos judeus e por outro lado, por cristãos velhos, cristãos novos, criptojudeus. Os dois grupos levam consigo o meio de comunicação oral que vai se transformar, respectivamente, no judeu-espanhol - com as suas duas vertentes: o ladino e a haquetia e no espanhol, idioma que depois vai ser uma das línguas oficiais da Espanha, além de língua
O
s termos sefaradi, sefardita ou sefaradita se referem aos judeus descendentes dos judeus espanhóis que saíram da Península no final do século XV e que conservaram as características culturais hispânicas, muito especialmente o castelhano. O ano de 1492 é importante não só para a História da Espanha, mas também para a História da língua espanhola e, consequentemente, para a língua sefaradi. Quatro fatos concorrem para isso: a conquista de Granada, último baluarte dos muçulmanos na Península Ibérica; a expulsão dos judeus, que levaram sua cultura e seu idioma para os países que os acolheram; a publicação da primeira gramática escrita em língua neolatina, o castelhano e o descobrimento da América. Com a publicação da gramática castelhana, a expulsão dos judeus e a viagem de Colombo, começa também a viagem do cas-
oficial de 21 países, que também é falada por núcleos de imigrantes em todos os países do mundo. Minha intenção é mostrar alguns aspectos do ladino em relação ao espanhol e ao português, por meio de letras de algumas melodias do repertório sefaradi. Reconheço que é algo muito ambicioso, por causa da realidade tão rica e multiforme que é a língua dos descendentes dos judeus espanhóis expulsos e dispersos por vários países no desenrolar dos séculos. 9
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Mapa da expulsão dos judeus de Espanha (1492) e de Portugal (1497)
Não se sabe ao certo quantos judeus saíram da Espanha, pois historiadores não conseguem chegar a um acordo. Segundo estimativas mais tradicionais, os que se converteram seriam cerca de 50.000 e os que preferiram emigrar, cerca de 180.000. Foram diversos os caminhos que tomaram – por terras e por mares -: alguns se dirigiram para Portugal, outros tantos, para Navarra e para a França. Desses lugares, muitos se dirigiram para os Países Baixos, outros emigraram para o norte da África, cruzando o Estreito de Gibraltar. Mas a maioria preferiu dirigir-se para o Leste. Alguns escolheram fixarse na Itália e formaram colônias que chegaram a ter grande importância econômica e cultural; outros seguiram caminho em direção ao Império Otomano que reunia, sob sua soberania, diferentes povos, línguas, religiões e culturas. Progressivamente, os falares importados da Península foram se moldando a ponto de se transformar em uma só língua. A ela vieram 10 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
agregar-se, além de termos hebraicos, palavras italianas, provençais, francesas, gregas, turcas, ou seja, vocábulos provenientes das línguas faladas nos diferentes pontos de passagem ou de assentamento. A língua trazida da Península foi evoluindo e se enriquecendo com novo vocabulário, mantendo, no entanto, as raízes ibéricas combinadas com as de tradição hebraica. Foi assim que se formou, pelo século XVII, a língua falada pelos descendentes dos judeus expulsos da Península no século XV. Dependendo da direção tomada, organizaramse, espontaneamente, dois grupos linguísticos: o judeu-espanhol ocidental ou haquetia, que se originou no norte da África e o judeu-espanhol oriental ou djudezmo, djudió, djidió, espanyol, spanyolit, ladino. As letras das melodias entoadas pelas mulheres no dia a dia contribuíram, sem dúvida,
para que a língua falada pelos judeus ibéricos permanecesse viva até hoje, enriquecida com expressões das línguas dos países pelos quais passaram ou nos quais se fixaram na sua longa viagem, após a expulsão de 1492. O repertório musical sefaradi é numeroso e variado. Nele, é possível estabelecer três gêneros: os romances (romansas), as coplas (koplas) e as canções (kantikas ou kantigas). Vamos começar nosso trajeto por um romance. Os romances são poemas narrativos com raízes profundamente hispânicas. Refletem, em seus temas, as experiências da Espanha medieval, com personagens históricos, reais ou inventados. Nas comunidades sefaradis esses cantos são conservados até hoje, às vezes com mais fidelidade do que na própria Espanha, onde alguns deles, até hoje, também são cantados em festivais de estilo medieval que se sucedem durante quase todo o ano. Como se trata de uma composição de cunho popular e transmitida oralmente, o romance pode possuir várias versões, dependendo do lugar onde foi recolhido. É o caso do romance Tres ermanikas, que possui versões recolhidas na Turquia, em Rodes, em Salônica. Há versões de todos os tipos: longas (chegam a ser ernomes), curtas, com final feliz, sem final nenhum, algumas bem surreais. Antes de continuar com os exemplos de letras de melodias sefaradis, acho importante esclarecer qual é o significado da palavra ladino. O que hoje chamamos de ladino, não é o mesmo que o judeu medieval chamava por esse nome. O judeu que vivia na Espanha antes da expulsão, falava a língua do entorno, seja o castelhano, o aragonês, o galego ou o catalão. Ele usava o mesmo sistema da população não-judia, ao qual acrescentava os termos relacionados com os conceitos da ética judaica. No momento da
expulsão, em 1492, o dialeto dominante era o castelhano. O termo “ladino” vem do verbo “enladinar”, que significa “traduzir à língua latina”. Ladino quer dizer, então, ‘traduzido para a língua do povo, a de uso diário’. O que vai caracterizar o ladino em seu significado atual - o de língua falada pelos descendentes dos judeus expulsos da Espanha - é a adoção de palavras dos países por onde esses judeus passaram ou nos quais se estabeleceram. Com a incorporação de palavras das novas línguas, ele se enriqueceu e se fortaleceu, em vez de morrer por assimilação.
Tres ermanikas 1 Tres ermanikas eran Blankas de roz, ay, ramas de flor Tres ermanikas eran Tres ermanikas son 2 Las dos eran cazadas Blankas de roz, ay, ramas de flor Las dos eran cazadas La una se deperdio 3 Su padre kon verguensa Blankas de roz,ay, ramas de flor Su padre kon verguensa A Rodes l’embiyo 4 Nel medio del kamino Blankas de roz, ay, ramas de flor Nel medio del kamino La ninya se durmi 5 Por ayi paso el kavayero 11
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Blankas de roz, ay, ramas de flor Por ayi paso el kavayero Tres bezikos se le dio 6 Uno en kada kara Blankas de roz, ay, ramas de flor Uno en kada kara I uno en el korason 7 Si el mi kerido sabe Blankas de roz, ay, ramas de flor Si el mi kerido sabe Matada merezco yo 8 No te mates mi kerida Blankas de roz, ay, ramas de flor No te mates mi kerida El tu kerido so yo Vejamos alguns elementos característicos do ladino: - O diminutivo em -iko, -ika é o utilizado pela comunidade sefaradi. Esse diminutivo em -iko até hoje se mantém em muitas regiões da Espanha e também em muitos países da América do Sul. Embora o diminutivo padrão espanhol seja o –ito e haja outros diminutivos em -illo, em -iño e em –ucho, o diminutivo em --ico foi o adotado pelos judeus espanhóis e seus descendentes. - Yeísmo – o judeu sefaradí é yeísta. O yeísmo é o nome que se dá à pronúncia característica do duplo ele (ll), nos diversos países onde o espanhol é falado. Consiste em pronunciar o duplo L do mesmo modo que o Y (i griega –“ye”). Assim, o yeísmo leva a dizer “cabayo” (caballo, em espanhol/ cavalo, em português) e 12 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
“beya” (bella, em espanhol/ bela, em português). Há outras espécies de yeísmo, mas este é o característico do ladino. Vamos agora ao outro gênero musical sefaradi – a copla. Embora, como os romances, tenham suas raízes na Espanha medieval, as coplas constituem, por seus temas e por sua função, um gênero muito próprio e diferenciado, que mostra a dualidade de um povo que se comunicava em castelhano, mas que se movimentava num âmbito conceitual inteiramente judaico. Podemos, então, definir as coplas como poemas que expressam as crenças, os conhecimentos e os valores judaicos. São essencialmente didáticas e se inspiram em vivências históricas e culturais. Um exemplo é a copla paralitúrgica “Buena semana”. Os versos desta copla, muito difundidos tanto na tradição oriental quanto na da região do Estreito de Gibraltar, expressam, Buena semana mos de el Dio alegres i sanos A mis ijos bendizir ke me los deshe el Dio bivir buena semana Para fadar i serkuzir Para poner el tefilin Buena semana mos de el Dio alegres i sanos de maneira bem sintética, o desejo de que Deus gratifique seu povo com uma nova semana repleta de alegria e saúde:
Observa-se a vivência sefaradi da alegria e da saúde: estando alegres e saudáveis é possível trabalhar e, assim, usufruir os bens espirituais
e materiais de uma vida proveitosa e produtora. Os apelos paternais e maternais se evidenciam nos versos “A mis ijos bendizir/ke me los deshe el Dio bivir/ buena semana” e culminam na cerimônia de “fadasion” – para as meninas – e na de circuncisão – para os meninos -, tudo aliado à observância da oração diária (“para poner el tefilin”). Podemos observar dois fatos linguísticos caracteristicamente sefaradis: O primeiro é a passagem do n- a m- em determinadas palavras, principalmente quando ocorre o ditongo –ue-; por exemplo: nuevo (novo) passa a muevo; nueve (nove) passa a mueve. O possessivo nuestro (nosso) passa a muestro, causando a mudança, por analogia, nos outros pronomes. Nosotros (nós) se diz mozotros, e nos se diz mos: “Buena semana mos de el Dio”. Esse fenômeno ocorreu no Exílio, ou seja, não ocorria na Espanha medieval, tratando-se, portanto, de um fato linguístico
exclusivamente sefaradi. O segundo é a supressão do –s, em Dios. O mesmo ocorreu em Portugal. O judeu medieval português diz Deu, em lugar de Deus, fato comprovado nos Autos de Gil Vicente. Essa apócope do –s, sentido como marca de plural, evidencia a unidade de seu Deus, por oposição à trindade do Deus dos cristãos. Outro fato linguístico, herdado da origem hispânica, é a passagem, em muitas palavras, do f- ao h-, em sua supressão ou manutenção, no caso do ladino. Por exemplo, ijo ou fijo, em ladino; hijo, em espanhol. Esse fato só ocorre nestas duas línguas. Este fenômeno está ligado à história, à geografia, ao meio social da Espanha medieval a partir do século VIII, quando começa o movimento de Reconquista dos territórios tomados aos cristãos pelos mouros invasores. A pronúncia do jota (j), em ladino, é a mesma da do português. O xis (x) equivalia ao nosso 13
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ch (dixo); em espanhol: dijo (com o j aspirado, como o “h” inglês em home), e em ladino: disho. Os dois sons – o de fijo e o de dixo se unificaram no que hoje, em espanhol, é representado pelo j. Em ladino, a diferença permaneceu. Isso foi ocorrendo aos poucos, a partir do século XVII. O termo “fadar” refere-se à cerimônia de “fadasion” ou “de las fadas”. Nela, a menina recebe seu nome e as “fadas”, isto é, os bons votos de sua comunidade para que tenha um destino feliz.
1. Ya salio de la mar la galana
Vamos passar agora às canções. Os temas são variados – amorosos, humorísticos, descritivos. O cancioneiro sefaradi une as tradições espanholas às dos novos países de passagem ou assentamento. As canções expressam sentimentos de amor e ciúme, pena e dor. Essas
Ya salio de la mar
kon su vestido de sirma i blanko Ya salio de la mar 2. Entre la mar i el riyo mos kresio un arvol de bimbriyo Ya salio de la mar 3. La novia ya salio del banyo El novio la esta esperando
4. Entre la mar i la arena mos kresio un arvol de almendra Ya salio de la mar da vida: há uma grande quantidade de canções associadas ao casamento (kantes de bodas). Os cantos de bodas são sempre alegres e, algumas vezes, maliciosos, com duplo sentido, com símbolos claramente sexuais. Mas não são vulgares – são frescos e espontâneos. Como exemplo, temos “La galana i la mar”, recolhida em Salônica.
O mar pode simbolizar o banho ritual, assim como o rio. La galana é a noiva, elogiada pela sua formosura, por sua elegância, por estar vestida com gosto, esmero e perfeição. canções foram transmitidas de geração em geração; houve tempos em que foram quase esquecidas, mas foram sendo recuperadas a partir de finais do século XIX, graças a vários pesquisadores que estudaram o cancioneiro medieval espanhol. O repertório sefaradi é rico em canções (kantikas, kantigas ou kantes lirikos) associadas ao ciclo 14 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
As árvores com seus frutos – amêndoa (almendra), marmelo (bimbriyo/ bembriyo/ membriyo - em espanhol, membrillo), suas formas, seu sabor e o fato de serem geradas pela fertilidade da terra fazem com que sejam associadas ao erotismo e ao sexo. Mas também podem ser símbolos espirituais. Na Grécia antiga, ofereciam-se marmelos às noivas,
1. Arvolikos d’almendra ke yo planti Por los tus ojos vedrolis (vedrulis) S’incheron mis ombros i mis brasos De los tuyos entrensados Ke yo por ti, ke yo por ti, ke yo por ti Me muero yo 2. La puerta de mi kerida ya se abrio De lagrimas ya se incho Komo la primavera ansi salio La beya ninya ke amo yo Ke yo por ti, ke yo por ti, ke yo por ti Me muero yo 3. Ermoza sos em kantidad, mi kerida Si yo a ti no te alkansi, mi kerida Mi vida te voy a empresentar (presentear, port.) Ke yo por ti, ke yo por ti, ke yo por ti Me muero yo como símbolo de fertilidade. A amêndoa, entre os árabes, é associada à paixão e à fertilidade Quero chamar a atenção para o fato de que a palavra mar se usa no feminino, em ladino: la mar. Na canção “Arvolikos d’almendra”, ocorrem vários fatos linguísticos interessantes: Em vedrolis ou vedrulis ocorre o fenômeno chamado metátese, que consiste na deslocação ou transposição de um fonema ou sílaba dentro da mesma palavra. Como exemplo de metátese, no espanhol e no português: o latim semper passou ao português como sempre e ao espanhol como siempre. Podemos observar também o uso do artigo com o possessivo, já desaparecido do espanhol
atual: los tus ojos. O uso da forma verbal sos – ainda é vivo no espanhol da Argentina e do Uruguai. A partir de meados do século XIX, uma série de acontecimentos desencadeou um progressivo abandono do judeu-espanhol entre as novas gerações de sefaradis. Dentre esses acontecimentos quero citar o que podemos chamar de ocidentalização do mundo sefaradi: a introdução do francês e do italiano, por meio das escolas da Aliança Israelita Universal e das escolas Dante Alighieri, que passam a ser consideradas línguas de cultura entre os sefaradis do Oriente. A aniquilação sistemática da população judia nos campos de concentração no curso da II Guerra Mundial constitui um dos mais duros golpes sofridos pelas comunidades sefaradis desde a expulsão de 1492. É importante ressaltar que estamos falando de uma língua atual, que quase desapareceu, mas que está ressurgindo e que não se encontra só em textos antigos. Não é mais uma língua de saudade de um passado ibérico; ela aparece na Internet, em jornais impressos ou eletrônicos. Usam-se palavras modernas, como televizion, telekomunicasion, radio, telefon e demais termos contemporâneos. Tomei como base para este trabalho minhas anotações no convívio com queridos amigos da comunidade sefaradi de origem turca do Rio de Janeiro, unidas ao belíssimo trabalho da professora Carmen Hernández González “Un viaje por sefarad: la fortuna del judeoespañol”, publicado em 2001 no site do Insituto Cervantes, na rubrica El español en el mundo e ao fórum virtual Ladinokomunita, da Internet, do qual participam mais de 2.000 pessoas de diversos países. 15
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Apesar de dispersos em diversos continentes, os sefaradis sentiram o perigo e vêm empreendendo uma luta para resgatar, preservar e transmitir sua cultura, seus valores, suas tradições e, principalmente, sua língua. Formaram novas comunidades, ativas e unidas, em Madri, Paris,
Caracas, Buenos Aires, Lima, Toronto, Montreal, Israel. O ladino vive um momento de atividade impressionante. Muito importantes são os esforços feitos no campo de estudos e pesquisas, além de projetos que têm como objetivo intensificar o interesse do público por essa língua e sua cultura. Em Israel, são cinco as universidades nas quais se oferecem cursos sobre o ladino e sua criação literária. A Autoridad Nasionala del Ladino promove cursos para a formação de professores de cultura judeu-espanhola e de sua língua. O jornal Shalom, da Turquia, publica o suplemento El Amaneser, com artigos e reportagens escritos totalmente em ladino. Na Turquia ainda vive uma comunidade sefaradi, com cerca de 15.000 pessoas que continuam utilizando a língua como meio de comunicação, sobretudo nos círculos familiares e culturais. Na América do Sul, o Centro de Investigación y Difusión de la Cultura Sefardí, de Buenos Aires e o Centro de Estudios Sefardíes de Caracas promovem simpósios e atividades
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tais como cursos de ladino, concertos e exposições. No Brasil, o Conselho Sefaradi, com sede no Rio de Janeiro, organiza, desde 2002, os congressos chamados Confarad. A Federación Sefardí Latinoamericana, com sede na Argentina, possui representantes no Brasil, Chile, México, Panamá, Peru, Uruguai, nos Estados Unidos, na Venezuela e na Colômbia.
Fontes consultadas:
O Instituto Cervantes, em suas diversas ramificações acadêmicas, espalhadas por muitas partes do mundo, contribui de maneira relevante para a divulgação da língua e dos costumes sefaradis, por meio de conferências, concertos e cursos, muitas vezes em colaboração com Universidades.
GARCÍA LÓPEZ, J. Historia de la Literatura Española. Editorial Vicens Vives. Barcelona, 1963.
No dia 20 de fevereiro de 2018, o diretor da Real Academia Española anunciou o nascimento de um novo membro na família da língua espanhola: a Academia Nasionala del Ladino, que deverá incorporar-se às demais Academias que fazem parte da ASALE (Associação de Academias da Língua Espanhola). A sede será em Israel. Com esse ato, a Real Academia Española reconhece o judeu-espanhol, seja sob que nome for ladino, judezmo, haquetia...- como uma língua espanhola. Não posso deixar de referir-me especialmente ao Grupo Angeles y Malahines de Cultura Sefaradi, do Clube Israelita Brasileiro, fundado por Nelson Menda, em 2002 e dirigido por Viviane e José Behar, cujo propósito é o de preservar e divulgar a língua e a cultura sefaradi por meio das koplas, kantikas e romansas do rico repertório sefaradi. Mersi muncho por meldar este artikolo i por permitirme eskrivirlo. Kaminos de leche i miel ke tengamos todos mozotros.
BEL BRAVO, María Antonia. Sefarad (Los judíos de España). Sílex (3ª edición actualizada), 2006. DÍAZ-MAS, P. ”Los sefardíes: una cultura del exilio”, in Publicación especial del Simposio Inernacional de Estudios Sefardíes “30 años del CIDICSef”, 2007. Buenos Aires, Centro de Investigación y Difusión de la Cultura Sefardí, p. 9.
GARCÍA SÁNCHEZ, María Luisa. “La huella hispánica en el legado musical de Sefarad”, disponível em https://cvc.cervantes.es/artes/sefarad/sefardita/ legado_musical.htm HERNÁNDEZ GONZÁLEZ, C. Un viaje por Sefarad: la fortuna del judeoespañol. Anuario 2001, Madrid. Disponível em http://cvc.cervantes.es/lengua/ anuario_01/hernandez/p.02.htm KOHEN-SARANO, M. Vini kantaremos, koleksion de kantes djudeo-espanyoles. Edision de l’autora, 1993, Jerusalém. RUIZ MANTILLA, Jesús. IV Congreso de la Lengua. “El ladino se recupera del coma”, in El País.com, Madrid España, 24/3/2007. SAUL, M. El ladino en el mundo oy. Maio de 2007. Enviado pelo autor por correio eletrônico em 25 de junho de 2011. SILVA, Cecilia Fonseca da. Os Caminhos de Sefarad (uma língua e sua história), Athalaia, 2018, Brasília, DF. WEICH-SHAHAK, Susana. “El repertorio sefardí em sus géneros poético-musicales”, in Cuadernos de Estudios Gallegos, I.VI, nº 122, enero-diciembre (2009), pp.191-212.
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* Licenciada em Letras Neolatinas e em Música. Autora de livros didáticos de Espanhol. Coordenadora do Grupo Angeles Y Malahines de Cultura Sefaradi, do Rio de Janeiro. Dedica-se ao estudo do judeu-espanhol oriental – ladino – e sua divulgação, por meio de palestras e apresentações musicais. 17
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HISTÓRIA
UM ESTANDARTE BRASILEIRO NO MARROCOS (1902)
Sefarditas marroquinos que do Brasil regressaram à sua terra natal
Este artigo resulta de pesquisa desenvolvida pelo autor sobre a identidade e cidadania brasileira mobilizada por naturalizados residentes no Marrocos na passagem do século XIX para o XX Lucas de Mattos Moura Fernandes* 18 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
O porto de Tânger, 1902
P
or meio de uma leitura crítica da historiografia e da análise de documentos originais produzidos pelas autoridades brasileiras no Marrocos ao longo do período em questão, o presente trabalho, objetiva abordar as nuances conjunturais que envolviam o acesso e uso da cidadania brasileira no contexto marroquino oitocentista. Mobilizando o caso da prisão do naturalizado Simão Nahmias, este é um trabalho expositivo de como as relações pessoais e intercomunitárias cotidianas de judeus marroquinos foram fundamentais para engendrar a atuação de autoridades brasileiras nas terras de um país disputado pelas maiores potências coloniais da Era Contemporânea.
Introdução Os estudos sobre a presença judaica no Brasil têm desenvolvido muito recentemente apurada
sensibilidade para as correntes migratórias sefarditas, reconhecendo seu pioneirismo na constituição de comunidades judaicas em regiões do país onde inicialmente eram escassas mesmo a presença de quaisquer outras formas de sociabilidade local. O pioneirismo sefardita na organização de instituições sociais e de auxílio no Brasil e mesmo na América do Sul foi fortalecido por meio da produção bibliográfica, memorialística e acadêmica, por conta da rememoração da diáspora judaica de 1492 em seu quinto centenário. O aprofundamento da investigação histórica sobre as origens e costumes dos sefarditas marroquinos que se instalaram na região amazônica a partir do segundo quarto do século dezenove, levou-nos ao estudo de documentos históricos que relatam seu cotidiano passado no referido país norteafricano. 19
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“La mouna”. A distribuição de víveres. 1902
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Pedindo passagem aos pesquisadores que já desenvolveram diversas vertentes do conhecimento sobre a presença sefardita no Brasil, este artigo tem como objetivo apresentar o outro lado do fluxo migratório de sefarditas marroquinos para nossa nação, a saber, o lado dos regressos. Muitos dos judeus marroquinos que migraram para o Brasil amazônico e ali se estabeleceram como comerciantes, mantiveram seus vínculos com o reino norteafricano em que nasceram, especialmente pelo fato de transitarem ao longo de suas vidas pelos dois lados do Atlântico, abrindo negócios e gerando descendentes aqui e ali. Contudo, de forma mais objetiva, alguns dos componentes destas comunidades, obtiveram a cidadania brasileira e, ao regressarem ao Marrocos, permaneceram identificando-se como brasileiros, mesmo em sua terra natal, com propósitos a que devemos investigar. Assim sendo, neste artigo, como parte de um todo composto de conhecimentos sobre as
Mercado de ovelhas. Tãnger, 1902 comunidades judaicas marroquinas, nos debruçamos sobre fontes históricas que identificam a comunidade de sefarditas amazônicos que regressou ao Marrocos, ainda em suas primeiras gerações, no século XIX e início do XX, para expormos assim algumas de suas questões e algumas das conclusões das pesquisas mais recentes sobre o tema. Nossa pesquisa se distingue pelo uso das fontes diplomáticas disponíveis no Brasil sobre esta comunidade, que trazem, não apenas os relatórios, pareceres e atuações das autoridades consulares brasileiras no Marrocos, mas, de modo especial para nosso interesse, correspondências e testemunhos que dão voz a estes regressos. Não se encontra nos objetivos deste artigo analisar todas as facetas da vida judaica sefardita, seja na Amazônia, seja no Marrocos, mas compreender a partir de uma perspectiva
crítica, como era importante para um sefardita marroquino, nascido no Marrocos e naturalizado brasileiro, identificar-se com o país sul-americano mesmo em sua terra natal.
A questão Sicsú-Nahmias: um caso a ser pensado No dia 2 de agosto de 1902, Simão Nahmias passava as primeiras horas de sua tarde sentado na British Pharmacy, conversando com o médico local e dois de seus amigos, quando à porta apresentou-se um oficial sob as ordens do governador e indicou que Nahmias o acompanhasse. Considerando não saber do que se tratava e julgando a possibilidade de ser um assunto particular, Nahmias o seguiu. Era o início de uma controvérsia que colocaria o judeu marroquino como notícia nas páginas dos principais jornais da cidade de Tânger, no Marrocos. 21
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Alegando ser um assunto de interesse particular, o referido soldado, enviado da parte do governador local guiou Simão Nahmias até uma residência, alegando que lá o governador lhe aguardava. O caminho até o ponto de encontro foi feito por algumas das ruas e vielas periféricas e menos movimentadas da Medina. Chegando ao endereço não revelado pelo soldado, Nahmias viu-se defronte de uma “bateria”, uma espécie de posto policial, onde, ao notar a ausência do governador no recinto, logo foi novamente conduzido pelo soldado a outro local. A informação de que o governador estava esperando Simão Nahmias parecia se confirmar, pois o segundo endereço a que este judeu marroquino foi conduzido era a “Alcazaba”, uma espécie de fórum onde o governador exercia suas funções de magistrado sobre os súditos marroquinos. Entretanto, ali o governador também não se encontrava. Afinal, por que motivo Nahmias estava sendo guiado neste périplo? O terceiro endereço a que Nahmias foi levado, era não menos do que a residência particular do governador local, onde cercado por outros seis soldados lhe foi dada voz de prisão, pelo mesmo soldado que o conduzira, sob ordem do governador. Em seu relato sobre o ocorrido, Nahmias expôs, em espanhol, a reação que teve no ato de sua prisão:
A lo que contesté que por qué no me lo habia dicho em lós primeros momentos que se encontro conmigo em la farmacia arriba mencionada. Me replicó que asi eran las instruciones que el tenia y que si me lo manifestaba en la farmacia que yo me resistiria y tenia un escándalo y no seria preso.
De acordo com a narrativa documentada sobre 22 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
Rua principal de Tânger este caso, percebemos que Simão Nahmias era tido como uma ameaça à ordem pública, de modo a justificar sua prisão, de forma secreta por ordem do governador local. Mas que tipo de crime Simão Nahmias teria cometido? Em resposta à sua detenção secreta, Nahmias tomou uma atitude deveras surpreendente:
abriu seu colete e puxou uma bandeira do Brasil, sua “pátria adotiva”, e amarrando-a por sobre seu corpo, tal qual um estandarte vivo, disse aos soldados que se o governador não o respeitava como súdito brasileiro, forçosamente teria que respeitar a bandeira brasileira. Nahmias teria obtido a cidadania brasileira ao residir no Pará, na década de 80 do século XIX, onde casou com uma brasileira e teve filhos.
sefardita, habilidoso negociador de imóveis, alcançara reconhecimento ao servir como mediador na venda de um palácio pertencente ao Rei Leopoldo II da Bélgica ao próprio Sultão do Marrocos. O êxito nesta tarefa teria lhe rendido não apenas dividendos financeiros, mas também o posto de Cônsul Geral da Bélgica no país e, supostamente, a amizade pessoal do monarca europeu.
A situação de Simão Nahmias, a que relatamos por meio de registros feitos pelo cônsul brasileiro no Marrocos, Adonyram Maurity Calimério, encontra como desfecho a inevitável prisão do judeu-marroquino, naturalizado brasileiro, pelas autoridades comandadas pelo governador local. O motivo da prisão, não declarado em seu momento, é apontado claramente pelo Consul brasileiro: Simão Nahmias, a quem é atribuída a patente de major, teria passado por situações litigiosas contra Abraham Sicsú, então autoridade consular belga no Marrocos. Sicsú usara de sua influência contactando Mohamed Torres, ministro marroquino que lidava com as legações estrangeiras no Marrocos, que a seu favor solicitara a prisão de Nahmias ao governador local. A querela entre Nahmias e Sicsú, que teria se iniciado por motivos pessoais, relacionados a uma disputa por metragem de lotes de terra, tornou-se uma notícia presente nas principais páginas de jornais marroquinos e espanhóis com circulação no Marrocos, como “El Liberal” , “El Heraldo”, “El Imparcial”, e foi relatado na coluna “assunto do dia” do jornal “Eco Mauritano” de 23 de agosto de 1902, sendo denominada como “Questão Sicsú-Nahmias”.
Do mesmo modo a soltura de Nahmias, que passou dois dias em detenção, foi noticiada nos jornais “Eco Mauritano” e “Al Mogreb Al-Aksa” de 27 de Agosto de 1902, e no “Le Reveil Du Maroc” e “El Porvenir” de 28 de agosto do mesmo ano. A partir das cópias destes jornais disponíveis no relatório consular que invoca instruções do Itamaraty, percebemos que grande parte dos correspondentes destes jornais assumiram uma postura de solidariedade em relação a Simão Nahmias.
Esta exposição midiática dos fatos se deve em parte ao prestígio que Abraham Sicsú e sua família possuíam no país e mesmo fora dele. Abraham Sicsú, marroquino de origem
Se por um lado a escassez de informações pessoais sobre Nahmias dificulta sua identificação diante do costume sefardita de homenagear parentes a partir da nomeação de seus filhos, gerando inúmeros homônimos em uma mesma comunidade, por outro, os relatórios consulares a que tivemos acesso explicitam que o motivo da prisão de Nahmias teria sido suas disputas comerciais com Abraham Sicsú. Haja vista que Simão Nahmias foi liberto da prisão de forma condicional, tendo de assinar um termo em que se comprometia a
1º Que no escribiria artículos en ningún de los periódicos locales, contra los señores Abraham Sicsú, cónsul de Belgica y su hermano Jacob Sicsú; 2º Que no dirigiera mi palabra a dichos señores, ni ofensiva, ni pacíficamente; 3ª Que si en caso incurriera en estos delitos seria expulsado del Imperio de Marruecos. 23
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Ou seja, evitar que por meio de uma campanha de difamação que viesse a prejudicar os negócios e a reputação do rival belga, Abraham Nahmias pudesse alcançar vingança.
A “consularização do cotidiano” A disputa entre os interesses particulares de dois judeus marroquinos, Nahmias e Sicsú, conforme visto no tópico anterior, é um dos muitos exemplos registrados nas fontes diplomáticas daquilo que chamamos de “consularização do cotidiano”. No caso apreciado a querela saiu na esfera pessoal e chegou a envolver um ministro marroquino e um governador com suas tropas, além de ter sido reportado oficialmente à chancelaria brasileira por envolver a prisão de um de seus cidadãos. Tivemos por intenção mencionar este caso, não apenas pelo simbolismo de um judeu marroquino arvorar a bandeira brasileira em busca de reconhecimento de sua cidadania por parte das autoridades marroquinas, mas também pelo fato de que o outro implicado no caso, o cônsul Abraham Sicsú também ter atuou na situação por meio de sua influência e prestígio obtidos como Cônsul e cidadão belga. É necessário compreender que com o avanço das potências coloniais europeias sobre o território africano, especialmente na segunda metade do século XIX, o Marrocos tornou-se um território cobiçado por nações interessadas em expandir seu poderio pela orla sul do Mediterrâneo. Se por um lado a formação tardia da Alemanha tornava esta uma concorrente natural na disputa pelas zonas de influencia em território africano, o Império Britânico e sua armada ambicionavam sustentar sua posição estratégica em Gibraltar, interesses 24 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
que em muitas ocasiões colidiam com o desejo espanhol de consolidar sua presença no norte da África para além de Ceuta e Melilla. O poderio militar francês, talvez mais do que qualquer outro, também se fazia presente, especialmente após a instituição da colonização franca sobre a Argélia (1830) e a diplomacia cultural de Napoleão III, buscando reverter a perda de influência francesa sobre o Egito. Para tentar controlar as pressões externas que se abatiam sobre o país, quando da interferência das potências europeias em defesa de seus cidadãos no Marrocos, em 1880 o próprio governo marroquino convocou uma conferência em Madrid, com a finalidade de elaborar um tratado que delimitasse a atuação das potencias em seu território. Participaram da conferência e assinaram o tratado diplomatas dos Estados Unidos da América, Alemanha, Áustria-Hungria, França, Bélgica, Espanha, Reino Unido, Dinamarca, Itália, Países Baixos, Portugal, Noruega e Suécia, além, claro, do próprio representante marroquino. Na prática este Tratado de Madrid (1880) surtiu efeito contrário ao esperado, pois seus 18 artigos acabavam por oficializar o até então informal sistema de proteções, em que cada uma das potências europeias, aproveitando a fragilidade administrativa e militar do país norteafricano, impunha foro jurídico privilegiado para seus colaboradores, geralmente diplomatas e comerciantes, presentes em território marroquino. Pertencentes a um grupo social de condição ambígua no histórico marroquino, os judeus ora ocupavam posições de poder na economia e cultura maghrebinas, ora eram vistos como alheios à população muçulmana, de modo a serem considerados “nem incluídos, nem
“repertório de esquemas de ação” para adquirir segurança jurídica. Como afirma Mohammed Kenbib:
Devido às suas posições tradicionais no domínio do comércio marítimo, à frequência dos seus movimentos na Europa, às suas ligações com membros das suas famílias ou outros correligionários estabelecidos em Gibraltar, Marselha, Antuérpia, Londres, Liverpool e noutros locais e sua familiaridade relativa com línguas estrangeiras (originalmente Espanhol, depois francês), os comerciantes judeus foram os primeiros a serem alvos das potências e equipados com cartas de proteção.
Reprodução de um quadro constando a família Sicsú, incluído Abraham e Jacob, citados no artigo. excluídos” da formação social marroquina. Esta ambivalência identitária gerava oportunidades distantes de posturas politicamente tradicionais. Como prática dos termos deste tratado, a busca pela condição de “protegido” se tornou o objetivo de todos aqueles que pretendiam escapar dos riscos de estar sob a frágil soberania do Sultão marroquino. Claramente, esse modo de proceder, funcionaria como uma tática acessível a comunidade judaica do Marrocos, especialmente pelo fato de já exercer socialmente o papel intersticial de mediação entre o elemento marroquino e o Outro, o estrangeiro. Assim como a educação adquirida por muitos dos judeus nas escolas da AIU e a migração para outros países, a obtenção da condição de protegido passou a fazer parte do
Deste modo, estar vinculado a uma autoridade de nação estrangeira por meio de uma cidadania obtida, geralmente por meio de viagens migratórias, como era a condição majoritária dos cidadãos brasileiros alocados no país magrebino era de grande relevância, tendo em vista que o acesso a uma naturalidade estrangeira colocava muitos desses judeus regressos numa condição a salvo da justiça muçulmana local. O historiador Mohamed Kenbib ressalta em sua obra que o neologismo “consularizado” (m’qûnssô) surgiu neste período da história do Marrocos como um adjetivo ambicionado por muitos nativos do país, sendo símbolo de “posses, poder e de arrogância” A partir destes elementos conjunturais podemos perceber como a prisão de Simão Nahmias não deve ser vista como uma situação insólita, excepcional, como tende a historiografia, mas como símbolo das disputas e táticas cotidianamente praticadas pela comunidade judaica no Marrocos oitocentista, inclusive a comunidade de cidadania brasileira que 25
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HISTÓRIA
Comunidades Judaicas do Marrocos estimava-se em cerca de 600 componentes, espalhados por dez cidades marroquinas.
Conclusão Neste artigo tivemos por objetivo expor os elementos trabalhados pelas pesquisas mais recentes voltadas para a história social da imigração judaica marroquina para o Brasil. Por meio do estudo do caso Nahmias- Sicsú, relatado nas fontes documentais oriundas do registro consular, assim como em outros casos em apreciação por uma pesquisa mais profunda podemos desvelar a estreita relação entre as demandas, reveses e necessidades 26 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
características da vida judaica marroquina e o uso tático da cidadania brasileira. Seguindo a máxima historiográfica de que “o micro engendra o macro”, um estudo das demandas cotidianas deste s brasileiros que viviam no Marrocos na virada do século XIX para o XX, demonstra como cidadãos comuns se articularam para subverter a ordem estipulada pelo Tratado de Madrid (1880) e de forma tática, cotidianamente mobilizavam a cidadania brasileira para superar as dificuldades e injustiças oriundas do combalido sistema administrativo e judicial marroquino. A partir de casos como o de Simão Nahmias,
que nos motivam a buscar cada vez mais o conhecimento das fontes documentais, compreendemos como querelas pessoais ascendiam a instâncias legais superiores, chegando mesmo ao conhecimento de ministros, tanto marroquinos como brasileiros a partir dos relatórios consulares. Se por um lado as crises econômicas brasileiras e o acirramento das disputas coloniais fechava as portas de nossa nação para um relacionamento mais estreito com países africanos, por outro o transito de sefarditas marroquinos entre os dois lados do atlântico e sedimentação de uma comunidade de regresso que frequentemente mobilizva sua cidadania brasileira manteve por um longo período um estandarte brasileiro tremulando em solo marroquino, a comunidade de naturalizados.
Bibliografia BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – Formação Social e Cultural. 3.a ed. Manaus: Editora Valer, 2009 FERREIRA,Frederico Antonio. Diplomacia do Império Brasileiro na África entre 1850 e 1860: abolicionismo, liberalismo e civilização. In Revista Discente do Programa de Pós-graduação em História da UFJF, Juiz de Fora, V.3, Nº.5, Jan/Jul 2017
nacional:.Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo:Unesp,2001 LESSER, Jeffrey.A Invenção da Brasilidade. Identidade Nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Editora Unesp,2015 NADIR, Mohammed. Em torno da viagem diplomática do Rei D. Fernando II de Portugal a Marrocos, em 1856. Centro de História da Sociedade e da Cultura. Disponível em: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39674 acessado em 10 julho 2017 NOVINSKY, Anita; KUPERMAN,Diane (orgs) Ibéria Judaica:roteiros da memória. São Paulo: EDUSP,1996 RIGHT OF PROTECTION IN MOROCCO. Convention signed at Madrid July 3,1880. Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/ us-treaties/bevans/m-ust000001-0071.pdf acessado em 15 e julho de 2018 RIVET, Daniel. Histoire du Maroc de Moulay Idrís a Mohamed VI. Paris: Fayard, 2012 SORJ, B. (Org.). Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Imago; 1997 Fonte Arquivo Histórico do Itamaraty AHI 265-1-13
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*Historiador, professor e mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realiza pesquisas de Estudos Sefarditas junto ao Núcleo de Estudos Árabes e Judaicos do Instituto de História da UFRJ.
LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade 27
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O Seder e suas modalidades ao longo de gerações De acordo com a tradição, a primeira celebração de Pessach ocorreu há 3.500 anos quando, segundo a Torá, Deus enviou as dez pragas sobre o povo egípcio
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O Seder em quadro de Bernard Picart
A
ntes da décima praga, o profeta Moisés foi instruído a pedir para que cada família hebreia sacrificasse um cordeiro e molhasse os umbrais (mezuzót) das portas com o sangue daquele animal, para que as famílias não fossem alcançadas pela praga da morte de primogênitos. Chegada a noite, os hebreus comeram a carne do cordeiro, acompanhada de pão ázimo (matzá; matzót, no plural) e ervas amargas (como o rábano, por exemplo). À meia-noite, um anjo enviado por Deus feriu de morte todos os primogênitos egípcios, desde os 32 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
primogênitos dos animais até mesmo a primogenitura da casa do Faraó. Então este, temendo a ira divina, aceitou liberar o povo de Israel, o que ficou conhecido como o Êxodo do povo hebreu em sua longuíssima caminhada pelo deserto. Como recordação dessa liberação e do castigo de Deus sobre o Faraó, foi instituído o sacrifício de Pessach ou sua recordação para todas as gerações futuras. Segundo o livro de Josué, originalmente Pessach era uma celebração agrícola que já existia na época cananeia, que marcava o fim do longo período no deserto. Durante aquela
travessia, os hebreus se alimentaram do maná, um alimento que caía do céu como a chuva. Já nos livros Êxodo, Números e Deuteronômio, temos as primeiras alusões à celebração, que estaria vinculada ao sacrifício do cordeiro e à ceia com matzá e ervas amargas, que comemoram e lembram a milagrosa passagem pelo Mar Vermelho e a libertação da escravidão no Egito. Da época da monarquia hebraica há registros da celebração como festa realizada
pelo rei Salomão e na época da reforma de Josias, a celebração começa a se transformar num movimento de peregrinação a Jerusalém. O judaísmo rabínico estabeleceu normas muito precisas para a celebração do Pessach no Templo, enfatizando o sacrifício. Primeiramente, a família sacrificava o cordeiro junto aos sacerdotes. Num segundo momento, a celebração era realizada nas casas na quais o cordeiro era sacrificado e cozido para servir como alimen-
O Seder e sua riqueza de costumes entre as diversas comunidades: Apesar de o conteúdo da Hagadá (as brachot - bênçãos -, as passagens lidas em voz alta ou cantadas, etc.) ser praticamente o mesmo para os judeus do mundo todo, o Seder apresenta algumas práticas diferentes entre as comunidades, de acordo com as tradições estabelecidas nos seus locais geográficos e sua trilha histórica. Há um costume comum entre todos os judeus que é manter as crianças atentas às rezas, à narrativa e aos cantos da noite. Para isto, se quebra uma matzá e um pedaço dela é escondido em algum lugar da casa. Ao final do jantar, as crianças saem da mesa à procura daquele pedaço e quem o encontrar ganha um presentinho. No entanto, os marroquinos não têm este costume de esconder o aficoman (o pedaço da matzá) e sim deixá-lo sobre a mesa aos olhos de todos os presentes. Outro costume exclusivo das comunidades do Marrocos é o Bibhilu: na noite do Seder, antes do início da leitura da Hagadá, o dono da casa pega a keará (bandeja com seis sulcos onde se colocam os alimentos simbólicos do Êxodo, da travessia do deserto, etc), e a circula por três vezes sobre a cabeça de cada um dos presentes, entoando a seguinte frase: Bibhilu iatazanu mimitzraim – halachma aniá benei chorim. (Com louvores saímos do Egito, eis o pão da miséria, filhos da liberdade.)
Entre os judeus iraquianos, o início do Seder é ativado com uma encenação durante a qual uma das crianças bate na porta e a pessoa que está conduzindo a cerimônia pergunta: - De onde você veio? - Do Egito. - Para onde você está indo? - Para Jerusalém. - E onde estão as provisões? A criança responde recitando o Ma Nishtaná (são as duas primeiras palavras de uma sentença interrogativa: Por que esta noite é diferente de todas as demais noites?), dando início, assim, ao Seder.
Seder no Marrocos. Realização do costume do “BIbhilú” da tradição marroquina. Família Benarroch, anos 60.
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to no jantar comemorativo. Este era completo com as matzot, as ervas amargas e quatro copos de vinho. É esta a origem histórica do que hoje conhecemos como Seder de Pessach. Nele, cada elemento que o compõe tem um significado específico que rememora, ao longo de gerações, o grande acontecimento conhecido como o Êxodo. Este significado da libertação, expresso no Pessach, estará para sempre presente no Judaísmo, como bem aponta o texto rabínico chamado “Targum do Êxodo”:
“Esta é a noite do Pessach para Deus, noite reservada e fixada para a libertação de todo Israel ao longo de suas gerações.” (Targum Êxodo, 12, 41-42)
Os judeus sírios também seguem uma tradição similar segundo a qual o aficoman é embrulhado em um tecido especial e passado de mão em mão, entre os comensais. Cada um que o recebe coloca o pano por cima de um ombro e recita o Micharotam zerurot besimelotam al shichmam ubenei Yisrael Assu kidebar Moshe (Êxodo 12:34). Os presentes perguntam, então, em hebraico ou em árabe-sírio: “De onde você vem?” (Mi nuen jaie) e cada um, por sua vez, responde “Egito” (Mitzraim). Depois, “Para onde você vai?” (Le uen rayeh) e a resposta é “Para Jerusalém” (Le-Yerushalaim). Um costume similar é observado entre os judeus originários do Yemen. O condutor do Seder põe-se de pé, coloca o aficoman em uma sacola por cima do ombro e anda em volta da mesa relatando como ele acabou de sair do Egito e descrevendo todos os milagres que lhe aconteceram. Mesmo na keará, cada comunidade usa diferentes alimentos para compô-la. O zeroá é um osso tostado com pouca carne. Embora qualquer osso possa ser usado, os sefaraditas usam geralmente
Gravura representando um Seder de Pessach medieval. (Hagadá de Sarajevo, criada em Barcelona, cerca de 1350) 34 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
Iluminura reproduzindo o Seder de Pessach (Página da Hagadá de Barcelona – Sec. XIV)
pedaço de perna do cordeiro ou de uma ovelha, mas também pode ser o pescoço descarnado ou o osso da coxa de uma galinha. O marór, a erva amarga colocada num dos sulcos da bandeja, simboliza o sofrimento dos judeus escravos no Egito. Os judeus sírios usam a escarola, verdura mais amarga que a alface. Segundo o costume sefaradita, para o carpás é usado o salsão ou outro vegetal de folhas verdes. É imerso em água salgada para lembrar as lágrimas dos escravos. A palavra carpás, se lida ao contrário, indica um acróstico (em hebraico) que informa que 600 mil hebreus sofreram a escravidão com espírito inquebrantável. A diversidade encontrada nas modalidades acima descritas pode ser estendida a toda a comunidade judaica moderna. Os judeus não são um monólito no que diz respeito à interpretação da tradição. Esta é respeitada e seguida ao longo dos séculos, mas há diferenças, poucas e leves, que fazem o seguir a religião algo deveras interessante e intrigante. Muitos intelectuais, religiosos e leigos, têm estudado as variações sobre o mesmo tema, o Seder de Pessach, que permanece imutável ao longo dos milênios. Representa não apenas a libertação dos hebreus do jugo faraônico, mas a essência da liberdade almejada por toda a Humanidade. 35
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Itamar Rabinovich, ex-embaixador de Israel nos Estados Unidos e autor de um livro sobre Yitzhak Rabin
Rabinovich: “Rabin teria alcançado uma solução com Arafat.” Itamar Rabinovich (Jerusalém, 1942) foi embaixador de Israel nos Estados Unidos nos anos 90 e chefe das negociações com a Síria entre 1993 e 1996 Henrique Cymerman Benarroch Correspondente para o Oriente Médio ENTREVISTA (Fonte: La Vanguardia, 07/11/2018) Tradução: Elias Salgado
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ra muito próximo ao ex-primeiro ministro israelense Yitzhak Rabin, assassinado por um extremista judeu em 1995, durante o processo de negociações de paz com os palestinos. Rabinovich acaba de publicar o livro Isaac Rabin: soldado, líder, estadista. Como conheceu Rabin e que relação tiveram? (Nossa relação) começou quando eu era um jovem oficial na unidade de inteligência do exército nos anos 60. Eu investigava a Síria, entre 36 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
outras coisas. Quando aconteceu a Guerra dos Seis Dias em 1967, em grande parte por culpa de um grupo radical na Síria, Rabin era o comandante em chefe e se interessou muito por aquele país. O exército era muito menos formal do que é hoje e os soldados rasos podiam falar diretamente com o comandante em chefe. Assim eu o conheci. Mais tarde, nos anos 70, voltei ao exército depois de estudar na Universidade de Tel Aviv. Nós nos conhecemos melhor. Mais tarde ainda, nos tornamos vizinhos, nossas famílias se tornaram amigas e nos visitávamos amiúde. Quando foi eleito primeiro ministro pela segunda vez, buscava um negociador com a Síria e um embaixador em Washington. Ele me ofereceu ambos os postos.
palestino Mahmud Abas fecharam um projeto de acordo permanente que ia ser levado a Rabin, que não o pôde ler.
Ampliar os assentamentos “Pensava que os líderes da direita israelense cometiam um erro histórico.” O quê sabe sobre isto? Sei da existência deste projeto. Sei que Beilin tinha fé nele e até hoje continua acreditando nele. Não sei o quê pensava Abas. O importante é que quando Shimon Peres substituiu Rabin como primeiro ministro, se concentrou no problema sírio e não no
Onde você estava quando ele foi assassinado? Estava voando para Boston para preparar uma visita de Rabin. Quando aterrissei, chamei meu motorista e ele me deu as más notícias. Em vez de voltar para casa, fui à embaixada e comecei a trabalhar duro com o governo e os meios norte-americanos. Entendi, então, que nossa realidade havia mudado. Era muito mais que um ato violento, era um assassinato político do mais alto nível que afetaria a Israel e ao mundo inteiro devido ao processo de paz com os palestinos, no qual nos encontrávamos. A nível pessoal, a dor que senti era muito forte, porque perdi um amigo. Recentemente, foi publicado que uns dias antes do assassinato, o político israelense Yossi Beilin e o presidente
Yitzhak Rabin aperta a mão de Yasar Arafat sob o olhar complacente de Bill Clinton em Washington, 13 de setembro de 1993 (J. DAVID AKE / AFP)
palestino. Beilin pressionava Peres para que aprovasse o projeto, porém Peres preferiu se concentrar na Síria. Foi uma decisão muito significativa. Você abre seu novo livro com uma frase de Amos Oz: “Não era um homem de redenções, 37
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era um homem de soluções”. A quê se refere com ela? Rabin era um homem de ação, de gestos, com uma mente brilhante. Não era um romântico. Quando foi eleito primeiro ministro pela segunda vez, entendeu que alguém não pode receber uma segunda oportunidade como esta só para perder tempo. O primeiro assunto que quis abordar foram os acordos permanentes com os palestinos. Estava obcecado por levar a cabo este processo porque viu uma janela de oportunidade que poderia se fechar. Na
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época, as maiores ameaças na região eram Iraque e Irã e soube que deveria melhorar suas relações com seus vizinhos (os palestinos, sírios, libaneses e jordanianos) para fazer frente, no futuro, a essas ameaças. Também pensava que os líderes da direita israelense cometiam um erro histórico promovendo os assentamentos em Gaza e Cisjordânia e que gastaram todos seus recursos com isso. Ele acreditava que estes recursos deviam ser investidos em integrar a onda de imigrantes russos que chegou depois da extinção da
URSS e em modernizar o Estado.Mas, como político, teve que desempenhar um papel demasiado grande para ele. Qual foi o êxito mais importante de Rabin? E qual foi o maior de seus fracassos? Seu maior êxito foi em 1967. Foi o comandante em chefe que venceu a Guerra dos Seis Dias, melhorando significativamente a realidade de Israel, apesar de que também nos tenha legado um problema que arrastamos até hoje: o problema palestino. Aqui há uma certa ironia: o homem que liderou o exército que mudou a realidade de Israel foi assassinado por tentar consertar esta realidade que ele mesmo havia ajudado a criar. Seu maior fracasso foi seu primeiro mandato como primeiro ministro. Teve suas vitórias: reconstruiu a economia, o exército e o país, depois do trauma da guerra de 1973. Porém como político, o papel era difícil. Os dois momentos mais duros de sua carreira foi quando teve que abandonar seu primeiro mandato, quando descobriram que sua mulher mantinha uma conta bancária secreta nos Estados Unidos e o trauma emocional que sofreu depois da Guerra dos Seis Dias. Porém o público sempre se mostrou compreensivo e disposto a perdoá-lo, porque era grato por sua sinceridade.
Seu maior êxito: “Foi o comandante em chefe que venceu a Guerra dos Seis Dias.” O quê acredita que teria acontecido se Rabin não tivesse sido assassinado? Rabin se candidataria novamente, em 1996. Sua popularidade não era muito alta naquele momento devido aos atentados, porém certamente derrotaria Netanyahu e teria que terminar as negociações com Yasser Arafat, à época líder palestino. Não estou seguro se teriam terminado bem, porém sei que caso algo desse errado, ele saberia encontrar uma
forma de seguir adiante sem uma intifada. Arafat tinha muito respeito por ele, teriam alcançado uma solução. Qual é o legado de Rabin? Sua liderança. Mais que um líder, ao final da sua vida e carreira política, se converteu num estadista, um dirigente que modificou a realidade de seu país. Rabin passou de um oficial do exército a embaixador, a político inexperiente, a primeiro ministro não muito exitoso, a ministro da Defesa competente, a líder. Finalmente nos anos 90, se converteu num estadista. Líderes como o rei Hussein da Jordânia, presidentes Mubarak no Egito e Clinton nos Estados Unidos, todos agradeciam sua honestidade, transparência e credibilidade. Estas eram as marcas importantes de sua liderança, uma liderança que nos falta hoje. Se Israel tivesse devolvido as Colinas do Golan à Síria durante os Acordos de Oslo, teria mais problemas durante os últimos anos, com a guerra civil na Síria.
Um dos seus fracassos: “Descobriram que sua mulher mantinha uma conta bancária secreta nos Estados Unidos.” Qual sua opinião sobre isso? Rabin estava disposto a devolver as Colinas do Golan à Síria, assim como havíamos devolvido o Sinai ao Egito. Se tivessem assinado um acordo de paz, poderia ter mudado a realidade territorial com a Síria e talvez o que aconteceu em 2011 não tivesse estourado de forma tão violenta. Teria havido protestos, mas não teriam chegado a uma guerra civil. O Estado Islâmico encontra-se na nossa fronteira, porém nosso problema com a Síria não é o EI, e sim a coalizão Irã-Assad-Hizbolah. As regras do jogo mudaram. Irã quer colocar mísseis na Síria para repetir o que nos fizeram do Líbano (quando Hizbolah disparou mísseis contra Israel), porém agora disparam da Síria. 39
NO PRELO
Está em fase de edição para lançamento em Maio próximo, o novo livro da historiadora, especialista em Oriente Médio, Monique Sochaczewski, pelo selo Talu Cultural www. talucultural.com.br
Sefarad Universo
ATUALIDADES
Judeus da Amazônia no centro do poder em Brasília
Eleição para a presidência do Senado Federal
A História é mesmo surpreendente. Aqui na redação a pauta da Edição de Pessach da Universo Sefarad já estava fechada, quando nós e todo o país, fomos sacudidos por uma surpresa incomum 42 | USf | ANO 1 - Nº 2 | DEZEMBRO 2018
U
m político originário do Amapá, acabara de ser eleito presidente do Senado Federal. Seu nome: Davi Alcolumbre. Para nós que pesquisamos, estudamos e divulgamos há décadas o judaísmo amazônico, aquele sobrenome era bastante familiar. Em poucos minutos, graças a velocidade estonteante da internet, as redes sociais já noticiavam a origem judaica do político do baixo clero que acabara de ser catapultado ao cargo que é o terceiro na linha de sucessão em nosso país. Nosso site, o Portal Amazônia Judaica (www.amazoniajudaica.org), em um só dia, recebeu o dobro do número de acessos que recebe em média todo mês: 2.500 pessoas acabavam de acessá-lo em menos de 5 minutos! Vários estudiosos e formadores de opinião passaram a se manifestar sobre o assunto, dentre eles, destacamos a seguir, um texto de Israel Blajberg que ganhou mundo e um posto do historiador Paulo Valadares, de quem nossa editora acaba de publicar um livro com uma seleção dos seus melhores posts – “Caiu na rede é post” Ed.Talu Cultural (www.talucultural.com.br).
Davi Alcolumbre - O Senador da Eretz Amazônia Por Israel Blajberg* Um dia o Bandeirante Raposo Tavares subiu o Grande Rio. Era cristão-novo, um judeu, forçado. Graças aos Bandeirantes como ele, hoje o Brasil é tão grande, e na Amazônia se fala o português, e não espanhol, Depois de Raposo outros da fé mosaica também seguiriam seu mesmo caminho. Já se vão mais de 200 anos. Tangidos pela intolerância, os judeus do Marrocos sofrido atravessaram o oceano, subindo o Grande Rio, chegando até Iquitos no Peru. Se estabeleceram ao longo das suas margens, penetrando rios e igarapés.
Davi Alcolumbre: judeu de origem marroquina, novo Presidente do Congresso Nacional
Tinham nomes curiosos, os mesmos que hoje aparecem em placas de ruas, nas obras, em consultórios. Nomes como Alcolumbre, atestando a ponderável densidade da contribuição judaica para o desenvolvimento da Amazônia, onde foram erguidas sinagogas, cemitérios. Levando junto a sua religiosidade, muito contribuiram para o progresso da Amazônia, primeiro como comerciantes e empreendedores, e mais tarde como profissionais Ajudar a fazer deste liberais, empresários, militares. Uma visita a Macapá é suficiente para avaliar a ponderável densidade da contribuição judaica para o desenvolvimento da Amazônia. Aparentemente oculta pela selva, a presença judaica revela-se em toda a sua plenitude para um observador atento.
país uma nação cada vez mais justa para seus filhos, esta é a contribuição que o Brasil espera de Davi Alcolumbre
Basta andar pela cidade. Em Macapá o porto se chama Major Eliezer Levy, antigo prefeito da cidade. Nos confins do Acre, Guajará-Mirim, fronteira com a 43
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ATUALIDADES
Bolívia, nomes judaicos sefaradim são comuns no comércio, na política. Tantas e tantas cidades, onde houve e há sinagogas, cemitérios. Mas os séculos passaram, fazendo com que muitos olvidassem suas origens, na convivência com os descendentes do colonizador europeu, dos árabes mercadores, escravos da África e indígenas, desmentindo a calúnia dos antissemitas, que os judeus não se misturam. Os israelitas se integraram muito bem, e hoje são tão amazonenses, paraenses ou amapaenses quanto qualquer outro. Segundo o Prof. Samuel I. Benchimol, Z”L (1923-2002), autor de “Eretz Amazônia”, professor e notável estudioso expoente da cultura amazônica, haveriam no mínimo 50 mil descendentes daqueles judeus marroquinos, número este que poderia chegar a quase 300 mil, a imensa maioria já afastada do judaísmo. Andando pelas ruas arborizadas de Macapá, contemplamos alguns rostos de passantes. Em um e outro, aqui e ali nos parece possível identificar traços do biótipo judaico-marroquino. Mesmo os que deixaram a Casa de David não puderam abjurar o DNA, que faz reviver fisionomias daqueles piedosos judeus de Tanger, Tetuan, Fez e Agadir. A imensidão da Amazônia abençoada. As belas sinagogas, as escolinhas, os eminentes rabinos, na terra dos rios de muitos meandros, imensos ainda que à distância, caudalosos, a selva protegendo as riquezas do subsolo, quantos trilhões ainda a pesquisar. Ajudar a fazer deste país uma nação cada vez mais justa para seus filhos, esta é a contribuição que o Brasil espera de Davi Alcolumbre. Eretz Amazônia - a selva nos une. * iblajberg@poli.ufrj.br
Major Eliezer Levy, ex-prefeito de Macapá
CAIU NA REDE É POST- PAULO VALADARES Ele é um tangerino: o judeu vindo de Tanger, Marrocos. Sempre a história de judeus começa num casal Abraham e Sara - os Alcolumbres brasileiros também. Eles vieram para Belém em 1903, ainda na Corrida da Borracha. Ali tiveram o filho Isaac Menahem A. (1913-1971), que casou-se com uma conterrânea, Alegria Gabay Peres. Procurando crescer economicamente ele foi para o interior e estabeleceu a “Casa Fé em Deus” em Macapá, origem de outras empresas. Nos anos 50 já era chamado o “Rei do Ouro” (material que negociava). A filha, Julia Peres Alcolumbre, casou-se com o tangerino Samuel José Tobelem e são os pais do Senador Davi Alcolumbre (1977), que acaba de bater o recorde brasileiro de ficar sentado numa cadeira e como prêmio tornou-se o Presidente do Congresso Nacional. Políticos não vem de Marte, são daqui mesmo e escolhidos por seus vizinhos. Fonte: https://www.facebook.com/paulo.valadares.9/posts/2228429857168657
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História da comunidade judaica do Amapá (Fonte: Boletim Conib)
A
s primeiras famílias de judeus provindos do Marrocos, de origem sefaradita, emigraram para a Amazônia brasileira vindos da Península Ibérica, inicialmente com presença nos Estados do Pará e Amazonas, século 19, ano 1824. Macapá, situada no meio do mundo, no marco zero da carta geográfica brasileira, à época município pertencente à jurisdição do Estado do Pará, passou a ser parte do Território Federal do Amapá, em 1943, que transformou-se no Estado do Amapá, em 1988. A cidade recebeu, entre seus primeiros judeus, as famílias Peres, Zagury, Alcolumbre, Bemergui, Ellarat, Gabay, Barcessat, Cohen, Sananiz, entre outros. Trabalhadores judeus, efetivos cidadãos incorporados à comunidade, Sinagoga de Macapá constituíram-se grandes comerciantes. Como exemplo, há Moysés Zagury (z’l) & Cia., Salomão Alcolumbre (z’l) Derivados de Petróleo S/A; empreendedores da área de telecomunicação, as famílias Tobelem e Alcolumbre, das redes de televisão Bandeirantes e Record; relevantes serviços na área política, famílias Tobelem e Alcolumbre, na Assembleia Legislativa do Amapá, na Câmara dos Deputados e Senado Federal; além do ilustre major Eliezer Moisés Levy, prefeito de Macapá, nos anos de 1932 a 1935 e de 1942 a 1944.
A comunidade judaica de Macapá, por suas relevantes significações, deixou indeléveis marcas na história do Estado do Amapá, obtendo o reconhecimento com o registro de muitos nomes aos logradouros – Rua Isaac Alcolumbre, Alameda Abraão Peres, Aeroporto Alberto Alcolumbre, Trapiche Major Eliezer Levy, entre outras homenagens. As primeiras reuniões da comunidade, nos shabatot e festas religiosas aconteciam na residência da família de Moysés Zagury (z’l), presidente de honra do Comitê Israelita do Amapá, em forma de seudá com kidush, na Avenida Fab, transformandose em sinagoga. Posteriormente, as reuniões ocorriam na sala comercial da família Ruben Bemergy, mudandose para os altos da residência da família Sol Errat. A sinagoga passou a ter imóvel próprio, doado pela família Pierre Alcolumbre, à Rua Gertrudes Saturnini de Loureiro 437, cep 68905830, Perpétuo Socorro. O Centro Israelita do Amapá foi fundado em 2004, e no ano de 2009 institucionalizou-se sob razão social de Comitê Israelita do Amapá. utilidade pública Há três cemitérios israelitas na cidade.
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LITERATURA
“Agudas e Crônicas: O Olhar Clínico” No segundo livro (de bolso ou de bolsa) da coleção Postagens Sagazes, da editora Talu Cultural, Nelson Nisenbaum vai surpreendê-los com abordagens sofisticadas, mas de fácil leitura, sobre diversos assuntos. O título deste livro já desperta o nosso interesse e mostra sua criatividade
N
Cristina Konder
elson nasceu no Rio de Janeiro em 1960. Aos seis anos foi para São Paulo, onde vive até hoje. Este carioca/paulista formou-se médico pela Santa Casa de São Paulo em 1984 e começou sua vida profissional como professor nas áreas básicas de medicina. Em São Bernardo, trabalhou na área de saúde pública de 1990 a 2014. Aí iniciou sua vida de militância, tendo sido membro do Conselho Municipal de Saúde e delegado do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Especializou-se em Clínica Médica. Amante das Artes e da Música, participa até hoje do Coral “A Tempo”.
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Seu livro é uma viagem maravilhosa por sua biografia. A começar pelo Prefácio, de Francisco Horta, que avalia “a vida como a troca de tempo por sentimento”. Diz que “Um livro é o exemplo mais bem-sucedido de como a sabedoria humana pensou sobrepujar o tempo”. E finaliza seu texto numa exortação: “Que pela humanidade transformemos nosso tempo em conhecimento e pela partilha alcancemos o que for eterno.” Daí, Nelson Nisenbaum nos pega pela mão e nos leva numa generosa viagem de conhecimento. Passeamos por crônicas curtas do nosso quotidiano, semeado de cultura na forma de música e arte; de acontecimentos trágicos ou
cômicos; de filosofia, de história, de medicina. Navegamos em águas turbulentas, como em A Fórmula do Bem e do Mal : “onde o mal existe quando o indivíduo age em função apenas de suas motivações e desejos pessoais, sem ponderação sobre os interesses e necessidades do grupo do qual faz parte”; em A facada “estamos no estado de arte da destruição da democracia”; em A Moradia do Caráter numa Democracia Crucificada, onde o judeu Jesus mostrou seu maior destempero, segundo os Evangelhos, “ao confrontar a corrupção no Templo e os seu vendilhões”. As águas continuam mais agitadas em A Nossa Luta, na discussão sobre a proibição da comercialização do livro Mein Kampf, de Hitler, sobre o “princípio da liberdade de expressão que se submete a modulações éticas e culturais no nosso cotidiano”. E continuamos nesse mar de ondas tão altas como A Onda do Mal, na qual afirma que “se a cosmologia moderna mostra que o Universo está se expandindo de forma acelerada, nossa sociedade parece seguir o mesmo rumo, onde as distâncias entre os poderes instituídos e os cidadãos só fazem aumentar.” E finalmente o momento do sorriso e do relaxamento em A Loucura e a Cura – A Paciente que veio tarde. Aquela que procurou o médico quando já estava curada. E do sorriso ao enlevo e ao deslumbramento da Primeira Sinfonia de Brahms. E com direito a partes da estória dessa Sinfonia e do sofrimento do autor para compô-la. Nisenbaum, em sua generosidade, compartilha seu amor e conhecimento dessa música e nos encanta. Depois da leitura e da audição desta Sinfonia é impossível não responder a Philip, personagem de Françoise Sagan no livro Aimez-vous Brahms?, “Oui!”. Impossível também não se apaixonar pela Sagração da Primavera, de Igor Strawinski, no
concerto da Orquestra Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo. Com direito a detalhes sobre a orquestração e instrumentos usados no poema sinfônico. Águas ainda agitadas nos levam a Ciência e catástrofe: a tragédia da dioxina, onde temos a confirmação de que erros médicos podem ocorrer com o avanço da medicina e dos medicamentos. Nos levam também ao Marco filosófico sobre o aborto, mostrando que o aborto legal salva vidas. Assunto que é retomado em Sofismas, desonestidade e delírios no debate sobre o aborto. Nelson, com a autoridade de judeu e homem de esquerda, disserta sobre sua posição com relação ao sionismo, a Israel e à Palestina. Com ele aprendemos suas fronteiras sobre estes assuntos e sua visão de mundo internacionalista. E nos conta também sobre o Brasil, no título elucidativo de Baderna Política e em sua Carta Aberta a um Governador brasileiro, dirigida ao então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. E em Lula, o Pacifista dá com clareza, simplicidade e honestidade sua visão de nosso ex-presidente. Em Mentes autoritárias nos mostra que “o mundo do autoritário é solitário, fantasioso, restrito, mas, uma vez alavancado, pode produzir o mal” e nos leva de novo a águas agitadas. Em O homem que venceu a morte – crônica de uma amizade perdida, demonstra como o perdão é difícil de ser dado. E através do olhar generoso, competente, alegre e melancólico de Nelson Nisenbaum teremos feito uma viagem rápida, mas profunda pelo mundo, pelos acontecimentos e pela alma humana. “Agudas e crônicas: o olhar clínico”. Nelson Nisenbaum. Ed. Talu Cultural. Adquira já em nossa loja virtual – www.talucultural.com.br 47
Sefarad Universo
PELO NOSSO PORTAL
Primo Sergio Amzalak e Sr. Elias, a história dos Amzalak da parte que tenho pesquisado se refere aos judeus sefardim, e até então não tínhamos Amzalak na Amazônia. Dos primeiros imigrantes judeus fez parte Isaac Amzalak (nosso tataravô) cuja chegada à Salvador na Bahia remonta ao período 1829 a 1832, pois que, ainda em 1827, recebeu da Municipalidade de Lisboa uma medalha de agradecimento pelos serviços prestados durante a epidemia de febre amarela. Isaac casou-se com Hannah Levi em 14 de agosto de 1844. Um interessante foi que o grande poeta Castro Alves, que deslumbrado com a beleza das filhas do casal, Simy e Esther, compôs os memoráveis poemas à mulher judia. (estas informações estão no livro os Amzalak no Brasil). Além de Simy e Esther, nosso tataravô Issac teve ainda mais outra filha e mais dois filhos, dentre estes, o Capitão-de-Mar-e-Guerra Leão Amzalak , Oficial da Marinha de Guerra brasileira que foi companheiro de classe do Príncipe Don Augusto, Leão casou-se com Leocádia Pereira de Souza Barros, filha de Manuel Pereira de Souza Barros, barão de Vista Alegre. E de seus filhos está nosso avô o General do Exército Brasileiro, Oscar de Barros Amzalak, e tia Marina de Barros Amzalak, que trabalhou no Ministério das Relações Exteriores do Brasil – o Itamaraty - vindo a ser Secretaria do Presidente da República,
o Dr. Getulio Vargas. «O vô Oscar nascido no Rio de Janeiro em 12 de novembro de 1894, filho de Leão Amzalack e D Leocárdia Pereira de Barros Amzalack , com laços de parentesco, através de suas tias Simy, Mary e Ester, com Duque de Caxias (Simy)». A alguns anos achei no facebook o Sr. Aarao Amzalak. Ele me informou que seus parentes são do Amazonas e que ainda tem parentes em Israel, mas não encontro em lugar algum nem ele a união das familias, sendo que o Amzalak matriarca, digamos assim, foi Isaac Amzalak, nascido em 1750 em Marrocos. Sem mais delongas, peço desculpas se esqueci algum fato da nossa história ou se algum fato que encontrei seja falso, a nossa família começou em Marrocos e Gibraltar com Issac, depois Portugal com Moises, no Brasil com outro Issac nos estados da Bahia e Minas Gerais. Primo esta é a história que conheço e que tenho documentos (xerox) de todos os relatos acima, se me perguntar de onde veem os Amzalak da região Norte ou da região Sul, não há relatos de suas origens e fico na dúvida se não foi por um acaso usarem o sobrenome de rabinos importantes do passado. Abraços, estou a disposição em ajudar em algo mais ou aprender mais sobre nossa descendência. Carlos Amzalak
Boa tarde Gostaria de saber como faço para adquirir a torá traduzida para português, estou a ver na vossa biblioteca e não acho,Poderiam me ajudar? Obrigada
Bom dia, Procuro informações sobre a origem de minha família sei que uma parte é judia .devido as músicas costumes e etc ..podem me ajudar ?
Aline Medina
Gilberson Alan Queiroz da Rocha
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Bom dia! Li o artigo do senhor Wagner Bentes Lins na revista de vocês sobre as famílias judaicas de Cametá. Gostaria do contato dele pois sou descendente de Jacob Sabbá e Carlota Sabbá, casal judaico da cidade de Cametá. Jacob Sabbá veio do Marrocos em 1836 e casou-se em 1856. Aguardo o retorno de vocês. Obrigado.
Claudio Guimarães
Olá amigo, tenho lido todas as edições do AJ e aguardo a de Chanucá! Gostaria de conhece-lo pessoalmente aqui no Rio (estou sempre nas palestras e eventos no CIB) e saber onde compro o livro No fim do mundo. Abs
Veneton Secchin
Olá. Me chamo Samuel Anselmo Filho, filho de Samuel Anselmo e neto de José Anselmo. Meu pai tem 82 anos e ele sempre conta sobre a história do meu avô, este que era regatão do lago do Paraná do Ramos, meu avô segundo minha finada avó e tios era judeu. Teve 10 filhos com Ana Marques Tavares na região de Vila Candia distrito de Barreirinha-AM. Meu avô contava que era de Tangêr - Marrocos, então suspeito que seja um judeu-espanhol pois ele falava o hakitia. Ele veio jovem para Belém com seu tio, porém rapidamente virou regatão. Assim estabeleceu família e sempre repassou os saberes judaicos. A verdade que nunca vi um registro e origem do meu sobrenome. Meu pai fala que o sobrenome ANSELMO foi “abrasileirado” pois era na verdade “ANSELEM (ou algo assim). Queria muito informação, uma lista de imigrantes desembarcados em Belém. Desde já grato!
Samuel Anselmo Filho Shalom. Sou Paulista e moro em Manaus a muito tempo, tenho me interessado muito pelo judaísmo, e ainda desconfio que tenho ascendência judaica, por causa de meus avós que vieram de Portugal. Como eu faço para conhecer uma sinagoga e aprender mais sobre o ETERNO?
Marcos Augusto Moura
Boa noite, Gostaria de obter o exemplar da Revista Amazônia Judaica n 13/2018 - edição Rosh - Hashaná 5779 by Amazônia Judaica Qual é o valor a pagar? Onde posso ir buscá-la pessoalmente? Com os melhores cumprimentos.
Ana Mello Borges Onde posso encontrar o livro Eretz Amazônia?
Pnina Schreiber Cagy
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Sefarad Universo
MENSAGENS
Somos um exemplo de povo que vive pela liberdade. Presente de D’s. Nosso livre arbítrio, um pilar de nossa cultura. Pessach, Shavuot e Sucot: Liberdade, Responsabilidade e Desapego. Am Israel Chai! Sergio Benchimol e família
Desejamos ao nosso amado Ishuv e a todo Am Israel, Pessach Kasher VeSameach Jaime, Anne e José Benchimol. Rebeca, Joshua, Benjamin e Daniel Neman 50 | USf | ANO 2 - Nº3 | PESSACH 2019
Kahal Kadosh, Desejamos a todas as famílias de nossa querida comunidade Pessach Kasher VeSameach Dr. Isaac Dahan , Sheliach Tzibur da Kehilá de Manaus, e toda a sua família
Pessach é tempo de rememorar uma grande epopeia lembrada há milênios. Pessach Sameach a todos. Moysés Bennesby, esposa, filhos, noras e netos
Vidinha Salgado, seus filhos, noras e netos Desejam a todos um Pessach Feliz. Chag Hacherut Sameach
Em Israel a primavera chegou aos campos e com ela o eterno desejo de Liberdade. Chag HaAviv Sameach. Os amigos formandos do Projeto Sefaradi – 1975 -1976 – Mossinzon Israel
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ANO 11 No 14 ABRIL DE 2019
Suplemento Universo
Ribi Jacob Azulay
SIMPLICIDADE E SABEDORIA DE
UM GUIA ESPIRITUAL
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CAPA
Durante décadas, o calendário israelita foi editado em Manaus pelo venerando JACOB AZULAY Z”L (de abençoada memória), que mesmo sem os avanços gráficos de hoje, não deixou faltar este serviço um ano sequer para nossas famílias
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JACOB AZULAY Z’L
Por Isaac Dahan*
J
acob Azulay veio suas preces. Era casado com para o Brasil no Ledicia Benguigui Azulay início do século e tinha um filho Ezuz XX, aproximadamente (Lilico), ambos já falecidos. em 1905, acompanhando Viveu pobre e morreu poa imigração dos judeus bre, como muitos dos piomarroquinos que vieram neiros que para cá vieram. para a Amazônia ao longo Já diz o Pirkê Avôt (A Étidestes duzentos anos, a ca dos Pais) Cap.VI-5: partir de 1810. “Não procures a grandeza Chegando inicialmente em e não ambiciones as honBelém do Pará, subiu o curso ras, além das que a tua cido Rio Amazonas e instalouência merece; não desejes se em Itacoatiara, onde a mesa dos reis, pois que floresceu uma importante a tua mesa vale mais do comunidade judaica na que a deles e a tua coroa é primeira metade daquele mais bela do que a coroa século. Na década de 30 do rei; pensa sempre que transferiu-se para Manaus, o Senhor para Quem atuando na Sinagoga da trabalhas te saberá rePraça da Saudade, onde hoje munerar segundo os existe um edifício da Caixa seus esforços”. JACOB Econômica e posteriormente, AZULAY Z’L’ foi um Imagem do último calendário editado por Ribi Jacob a partir de 1962, com a homem simples, humilAzulay z’l. (Foto de do arquivo pessoal do Chacham e construção da atual Sinagoga Sheliach Tzibur de Manaus, Dr. Isaac Dahan) de, porém extremamenBeit Yaakov/Rabi na Rua Leonardo te devotado aos seus seMalcher, passou a ser seu Rabino e melhantes e dele, acreditamos, podemos dizer o que nos Oficiante-Mor. mostra um trecho da Hascavá: - “Um bom nome vale Serviu à coletividade amazonense por mais de sessenta mais que óleos perfumados e o dia da morte e preferível anos, falecendo em 1976. O grande amor que nutria por para o seu possuidor, que o dia do nascimento”. Temos seus semelhantes fazia com que seu trabalho religioso não certeza que o BOM NOME de JACOB AZULAY Z`L´ se restringisse à comunidade israelita. Sempre ajudou a ficará perenizado em nossa comunidade e seu trabalho todos que o procuravam com orações e bênçãos para e devoção hão de pairar sobre este seu querido ishuv, os enfermos de qualquer credo desde crianças de tenra abençoando-o. idade aos mais idosos, todos filhos de um único Pai. Foi uma pessoa que dedicou sua vida ao serviço de Deus e *O autor é médico, ex-presidente do Comitê Israelita do Amazonas, Diretor da Seção Amazonas do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro e Shaliach Tsibur da dos homens, transmitindo carinho, palavras amigas e comunidade. 55
CRÔNICA
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OS TEFILIM, O TALIT E O SIDUR:
UM REI, O HERDEIRO E SUA HERANÇA Elias Salgado – Dedicado a memória do chacham Ribi Jacob Azulay z’l
Não sei mentir. Juro que não estou mentindo. Não minto para os outros e menos ainda para mim mesmo. O que faço é criar e contar histórias e fatos que são considerados da ordem da inverdade para o meu mundo exterior, mas que para mim são as minhas verdades
P
or muitos anos, esta prática fazia eu me sentir um impostor, um embusteiro de mim mesmo, até que um dia dei um basta naquele sentimento de autoflagelo e passei a ser bem mais feliz. Sabe o que deve sentir um pássaro que é solto após ter ficado preso na gaiola anos a fio? Finalmente livre, certo? Alguns até nem sabem o quê fazer com sua liberdade. Liberdade dá medo, sabiam? Mas comigo foi diferente. Para minha surpresa, não tive medo da minha liberdade. Muito ao contrário, vesti suas imponentes asas com tamanha avidez que não tive nem tempo de hesitar. E agora olha eu
aqui, em mais um voo livre e sem culpas. Acaba de me ocorrer que este preâmbulo, assim tão simples e profundo, bem poderia ser o moto contínuo de toda nova história que eu contasse. Mas eu sei que mesmo que eu não o registre em texto, é ele que me norteia. Toda vez que atravesso a portinhola da minha gaiola imaginária, incorporo meu ser liberto, subo naquela colina, caminho até sua extremidade e me lanço. O destino destes voos não sou eu quem determina. É algo interior que foge ao meu controle. Medo? Que nada! Nestes momentos, ele fica esquecido no fundo da última gaveta do meu ser.
Num destes tantos voos, em que muitas vezes ocorre que as terras para onde sou levado são aquelas do meu passado, minhas asas me levaram novamente a um tempo e um lugar para onde sempre volto: minha Manaus, minha casa e minha saudosa sinagoga. Daquela vez, o que vi lá das alturas foram as cenas de uma bela e marcante experiência vivida – um rito de passagem de grande importância para um garoto judeu, sua família e sua comunidade: a chegada da minha maioridade judaica – o meu Bar Mitzvá. À época eu tinha a noção e a emoção do que estava vivendo pelo sentir do coração de um 57
CRÔNICA
menino de 13 anos. Minha emoção pessoal era também a de todos os membros de minha família e da nossa comunidade. Eu sabia muito bem que aquele momento me marcaria vida afora. E não foi outra coisa o que me aconteceu. Olha eu aqui novamente pensando nele. Daqui das alturas deste céu infinito da memória, vislumbro pela enésima vez aquelas cenas do passado. Lá estou eu na sala de aula dos fundos da sinagoga, sentado diante do “seu” Jacob Azulay, nosso amado chacham (sábio), líder espiritual de nossa pequena coletividade, presença marcante e de fundamental importância em minha infância. Eu estava ali para mais uma das inúmeras aulas preparatórias para a tão esperada cerimônia religiosa que ocorreria na semana seguinte. Olha eu ali, pequeno, com meu corpo franzino de menino, sentindo um misto de ansiedade e emoção – na verdade eu estava bem tenso, também. Mas o velho Jacob, um santo homem, com sua paciência e sabedoria quase infinitas dizia, com seu português enrolado (vim a saber, mais tarde, que aquela língua que ele falava era a haquetía, dos meus avós e antepassados marroquinos, que eu nasci ouvindo e que era por esta razão que a compreendia tão bem): “Eliahu, fique calmo, você está indo muito bem. Sua leitura é perfeita e sua voz parece a de um chazan (cantor litúrgico). Você até me lembra seu avô Eliezer Elmaleh z”l. Aquele sim, era um
grande tzadik (sábio) e um chazan maravilhoso. Você tem a quem puxar”. Se aquelas palavras me ajudaram? E como! Na quinta-feira, eu colocaria pela primeira vez na vida o talit (manto de seda usado por judeus na sinagoga) e os tefilim (caixinhas de couro que guardam sentenças das Escrituras Hebraicas; tiras de couro de dentro delas são enroladas no braço esquerdo do judeu religioso nas rezas da manhã) que me foram presenteados por meu pai, de abençoada memória, com sua voz solene dizendo-me. “Aqui estão seu talit e seus tefilim e o seu sidur (livro de orações). Guarde-os com todo carinho como se fossem seu maior bem – e na verdade são, meu filho. Na sua idade, meu pai não pode me presentear com algo assim tão importante, pois não tinha recursos para isso. Na ocasião eu usei emprestado de meu tio Elias Elbaz, irmão de minha
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adorada mãe e em homenagem a quem eu te nombré com o nome que você tem, que em hebraico é Eliahu Bar David, e pelo qual você será chamado por primeira vez para subir na tebá (plataforma, na sinagoga) e ler diretamente nos pergaminhos da sagrada Torá, diante de todo o kahal (comunidade) da nossa esnoga (termo para “sinagoga”, no espanhol-judaico), o texto de sua parashá” (oração lida em determinada semana). Naquele mesmo dia, papai me levou ao alfaiate, o “turco” Fuad, seu grande amigo desde sua juventude, para fazer a última prova do meu terno. Eu estava muito feliz com meu primeiro terno. Tudo o que acontecia comigo naqueles dias se dava por primeira vez: aquela emoção, aquele orgulho, as roupas novas – o terno, a camisa, os sapatos e as meias; minhas abotoaduras, a gravata, meu relógio e muitos
outros presentes inesquecíveis que eu viria a receber. Ah! o meu relógio. Eu finalmente teria um só meu. Minha paixão pelos relógios (e também pelas canetas Cross), eu comecei a ter desde muito pequenino. Eram duas das maiores paixões do meu pai e um dos seus poucos luxos. Papai era muito austero. Era, também altruísta, o meu rei, mas não gostava de ostentação. No dia em que papai o trouxe e me mostrou, mas não queria ainda me entregar – disse que o guardaria no cofre até o grande dia – eu lhe implorei quase em prantos que me permitisse dormir com ele apenas uma noite. Ele, depois de muito negar, cedeu. Ele sempre reagia assim aos meus pedidos: primeiro negava e após eu insistir muito, ele cedia. Não sabia dizer não, meu amado velho. Ele
se fazia de durão, mas era somente por pouco tempo. E eu bem sabia disso e sempre guardava munição para nossos embates. Às vezes eu saia deles bem cansado, porém jamais desisti. Ai, como sinto falta daqueles calorosos embates, papai. Além daqueles presentes todos dados por meu pai, outros dois foram marcantes e eram a coqueluche da Zona Franca de Manaus dos anos 70: minha primeira máquina fotográfica – uma Olympus Trip e o meu primeiro radinho de pilha da marca Evadin. Sim que tudo naqueles dias se revestia de importância, mas aqueles dois presentes foram especiais e tiveram passagens que merecem um registro mais detalhado. A Olympus me foi presenteada
por Isaac Benayon, marido de minha prima Miriam, um judeu marroquino ortodoxo e grande atacadista de produtos de última geração. Certa manhã, antes de descer para o centro da cidade, papai me avisa: “Olha, o Isaac falou para você passar lá na loja dele que ele quer te dar o teu presente”. Naquele mesmo dia, após a escola, desci entusiasmadíssimo a Eduardo Ribeiro, a principal avenida da cidade até os anos 70 e que começa em frente ao Instituto de Educação do Amazonas, onde eu estudava à época. No caminho, tentava imaginar o quê aquele meu meio primo, que eu pouco conhecia, me daria de presente. Resolvi não criar grandes expectativas 59
CRÔNICA
para não me frustrar. Chegando lá, me anunciei e fui recebido por Isaac em seu escritório. Na verdade, uma mesa muito bagunçada num canto apertado de um gigantesco depósito abarrotado até o teto de produtos importados que, ao vêlos, meu coração começou a saltar de euforia dentro do meu jovem peito, mas fiz de um tudo para não deixar transparecer meu estado emocional, afinal, não sabia bem o que ele me daria de presente... Ele me recebeu com cordialidade, mas via-se que tinha um pouco de pressa. Após rápidos cumprimentos e votos de mazal tov
para parabenizar-me pelo meu Bar Mitzvá ele disse: “Primo, escolha aí algo de presente, quem sabe um brinquedinho” Respirei fundo e pensei comigo mesmo: e eu lá tenho ainda idade para brinquedinhos! Ora, eu já fiz 13 anos, não sou mais criança. -- E sem pestanejar, munido de uma coragem que eu não sabia que tinha até então, eu disse: “Sabe, primo, acho que prefiro uma máquina fotográfica Olympus Trip, daquelas ali.“ Pronto! Agora já estava dito e não havia como retornar daquele ponto. Minha cartada havia sido lançada. O camarada mal conteve sua reação. Era perceptível seu desagrado: “Uma máquina fotográfica? Tem certeza que não prefere um brinquedinho?” Mantive-me firme em minha posição e balancei a cabeça num não categórico. Muito a contragosto, ele se levantou da mesa, apanhou uma daquelas centenas de preciosidades, que eu bem sabia que não lhe faria nenhuma falta, como aquele homem pobre do Livro dos Reis, entrega contra a sua vontade, para o banquete do homem rico, sua única e adorada ovelha. “Bem, aqui está. Espero que faça por merecer este presente tão caro,
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sendo um bom hibri (judeu) e um bom filho” E assim se despediu de mim com incontida pressa, talvez temendo por um “prejuízo” ainda maior. E eu deixei o lugar bem rapidinho, temendo que ele desistisse de me dar aquele presente, que a bem da verdade era visível que não teve a menor vontade de me dar. Aquela máquina ainda me acompanharia pela juventude toda, nos inúmeros lugares por onde andei e registrando os divinos momentos que vivi naqueles anos dourados. Já o pequeno Evadin, foi minha companhia da adolescência. Esse me foi presenteado por Vivaldo , o nosso Dodó, sócio de papai, sem reticências e com imenso carinho: “Meu lourinho, aqui está o presente dos teus 13 anos. Como amigo de sua família eu te vi nascer e te acompanho com imenso orgulho, e tenho por ti um sentimento de pai para filho, assim como teve teu pai desde sempre comigo. Que ele te traga muita alegria e te acompanhe e faça teus dias ainda mais felizes. Parabéns, meu querido”. Hoje é uma quinta feira do mês de novembro. Já se passaram 47 anos desde aqueles dias tão distantes e eu sigo, sem nunca parar, desde então, a me lançar de cima daquela colina mágica rumo a terras de além – aqui. É nelas que vivo, que rio e que choro. Onde suspiro, respiro profundamente, me desespero e me redimo. É lá que me sinto maior do que eu mesmo. Sim, lá naquele além-de–mim.
BAÚ DA MEMÓRIA
MACHANÉ KISLANOV
A Machané precursora do Grupo Kadima de Belém Por Yehuda Benguigui - (Fotos do acervo de Yehudá Benguigui)
Em matéria feita especialmente para o jornal Amazônia Judaica, edição número 5 de agosto de 2002, o Dr. Yehudá Benguigui escreveu a história da Primeira Machané “Gan-Israel”, precursora do Grupo Kadima. Eis a matéria na íntegra Corria o ano de 1967, já próximo de com o fortalecimento do judaísmo seu final. Os três estudantes para- brasileiro. enses da Yeshivá Colegial MachaConcluída a havdaláh, os né Israel em Petrópolis – RJ, que lá estudavam nessa época, Abraham três estudantes se reuniram para refletir acerca Leão Serruya, José Menasséh Zagury e Yehudá Benguigui, assistiam no Shabat logo após a minchá, ao shiur de despedida do Rabino Chaim Biniamini, Rosh Yeshivá. Era o último Shabat antes do início das férias de final de ano, e ao concluir sua drashá, o Rav Biniamini recomendou enfaticamente, que cada aluno fosse um verdadeiro Shaliach-mitzvah da Yeshivá, em sua comunidade. Mesmo sendo ainda jovens, estudantes, ele esperava uma atuação marcante de cada um, que pudesse contribuir Todos os participantes da Machané Kislanov
dessa mensagem do Rav Biniamini, e ali mesmo fizeram um pacto entre si. Iriam dedicar suas férias em Belém em prol de um
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COLUNA: BAÚ DA MEMÓRIA
projeto comum, que pudesse, segundo disse o Rav, resultar em uma contribuição ainda que modesta, de reforço ao judaísmo na comunidade judaica de Belém. A ideia seria realizar durante as férias, uma machané com os jovens da comunidade, e assim iniciar um processo de retransmissão da
cultura judaica e de experiências que os mesmos estavam tendo a oportunidade de vivenciar, tanto na Yeshivá, como frequentando o Irgun B’nei Akiva no Rio de Janeiro e São Paulo. Logo chegando em Belém, em dezembro de 1967, iniciaramse os preparativos: reuniões de planificação, listagem das famílias com jovens entre 10 e 15 anos de idade, programação diária, menus, etc. Foi decidido limitar a idade
Grupo de meninos reunidos numa tefilá 62 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2019
dos chanichim em até 15 anos, uma vez que os próprios madrichim estavam na faixa de 15-16 anos. Mesmo assim, foi neste ponto, que se iniciaram as dificuldades. Alguns pais logo perguntavam: Quem será o adulto responsável? Quem vai cuidar das meninas? Desta forma, os três madrichim decidiram contatar a professora Ruth Hamú, filha do Rabino Abraham Hamú z’l, que a essa altura residia em Belém. A
professora Ruth imediatamente entusiasmou-se com a ideia, aderiu completamente a programação e sugeriu ainda, que convidássemos a jovem Messody Lancry, na época estudante e ativista no Grêmio Azul e Branco, que também aceitou o desafio. Formada a equipe de madrichim, partimos para o lugar. Ao conversarmos com o Sr. Manoel Kislanov z’l acerca dos planos, o mesmo, com seu tradicional entusiasmo por tudo relacionado a atividades judaicas com a infância e juventude da comunidade, foi um aliado incondicional. Além de ceder o sítio de sua propriedade em Santa Izabel do Pará para sediar a machané, ofereceu também todas as facilidades, como transporte dos mantimentos e também dos participantes e madrichim. Tanto o Sr. Manoel como sua irmã D. Clara Kislanov Pinhakof z’l, foram incansáveis em prestar todo o apoio necessário para a realização da machané, o que certamente foi um fator decisivo para o sucesso absoluto do empreendimento. Por esse motivo, os cinco madrichim, num gesto de justiça, homenagearam os dois irmãos, denominando o evento de “Machané Kislanov”.
A Machané Kislanov, foi realizada no período de 22 a 29 de janeiro de 1968 e contou com 18
crianças (11 meninos e 7 meninas), os cinco madrichim e o apoio de duas cozinheiras. Para o Shabat, tanto o Sr. Manoel como D. Clara, vieram juntarse ao grupo. No domingo, recebemos a visita de todos os país, irmãos dos participantes e outros membros da comunidade, que participaram de uma alegre manhã cultural. Alegraram-se ao ver seus filhos cantando músicas judaicas, participando de gincanas respondendo sobre história judaica, sionismo e religião, que haviam aprendido em um muito curto espaço de tempo. O evento teve várias repercussões. Uma nota publicada no jornal O Liberal, de 17-18 de Fevereiro de 1968, com o título Comunidade Israelita realiza acampamento Juvenil em Santa Izabel. A nível nacional, no âmbito da coletividade israelita, foi publicado no semanário Revista “Aonde Vamos?”, que circulava na época, o artigo preparado por Marcos Serruya (z’L – nossa observação), nessa época, também estudante, com o título “Acampamento no Pará tem judaísmo e kashrut”, na edição de 1522 de Fevereiro de 1968, de número 1274/75. No encerramento da Machané, os madrichim estavam felizes com os resultados, mas ao mesmo tempo bateu uma ponta de frustração, quando no último mifkad, momentos antes da partida de Sta. Izabel, um dos jovens participantes perguntou: Bem, e agora? Viemos a machané, aprendemos muitas
coisas e queremos melhorar nossas práticas judaicas. Como faremos para continuar...? Os três madrichim, estudantes da Yeshivá, tinham que regressar a Petrópolis para continuar seus estudos. Mas, naquele momento prometeram solenemente: “No próximo ano, aqui estaremos de regresso para realizar uma nova manchané, com muito mais participantes e mais abrangente!”
Efetivamente, em Janeiro de 1969, os madrichim voltaram e realizaram uma nova machané, com o dobro de participantes e dessa vez, deixaram plantada uma semente duradoura: No último dia da machané, foi fundado o “Grupo Kadima”! Mas isso, já é outra história... Na verdade, apesar da iniciativa pioneira, esta não foi a primeira machané, na acepção do termo, realizada em Belém. Consta, que na década de 50, quando esteve em Belém como Rabino da comunidade, o Rabino Abraham Anidjar z’l, Rabino Emérito da Shel Guemilut Hassadim, no Rio de Janeiro, realizou evento similar com a juventude daquela geração. Entretanto, acreditamos que a “Machané Kislanov” tem uma transcendência histórica por ter sido o embrião do “Grupo Kadima”, que passados 51 anos, continua a congregar nossa juventude... 63
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