Revista JurĂdica Digital
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Revista OMNES
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Esta é uma publicação da Associação
Outubro de 2012
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Sumário Editorial 6 Breves notas sobre o Habeas Corpus 149.250 “Caso Satiagraha” (Rodrigo De Grandis) 8 1. Introdução 9
2. O “Habeas Corpus” n.º 149.250: origem, objeto e alcance
3. Da legalidade da investigação policial: o auxílio da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) não é causa de nulidade da prova
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Investigação criminal pelo Ministério Público: Estado atual do debate pelo Supremo Tribunal Federal (Bruno Calabrich) 21 1. Introdução 22
2. Da repercussão geral do tema e sua admissão pelo STF
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3. Origens do debate no STF 29
4. Ações diretas de inconstitucionalidade e outros casos atualmente em trâmite no STF
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5. Votos proferidos e o “placar” atual
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6. Tendências identificáveis para o julgamento definitivo
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7. Conclusão 42
As principais alterações introduzidas pela Lei 12.403/2011 no sistema das medidas cautelares pessoais (Andrey Borges de Mendonça)
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1. Introdução 44
2. CPP de 1942, seu contexto histórico e as alterações posteriores
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3. A Lei 12.403 e suas principais inovações
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4. Conclusão 81
O trânsito em julgado para a acusação como marco inicial da prescrição da pretensão executória e a impossibilidade de execução provisória da pena: prescrição sem inércia? (Isac Barcelos Pereira de Souza) 82 1. Introdução 83
2. O trânsito em julgado para a acusação como marco inicial da pretensão executória,
a impossibilidade de execução provisória da pena e os fundamentos da prescrição: uma conformação necessária 84
3. Por uma interpretação sistemática do art. 112, i, do Código Penal:
4. O trânsito em julgado para ambas as partes como marco inicial da prescrição da
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pretensão executória: precedentes do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais-regionais federais das cinco regiões
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5. Conclusões
Editorial “Omnes”: todos. Em Direito, o termo indica, principalmente, que os efeitos de algum ato ou lei alcançam todos os indivíduos; é a coletividade a quem se direciona o fenômeno jurídico. Inspirada por este conceito, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) lança a revista jurídica eletrônica Omnes, para reunir artigos e textos doutrinários, de autoria dos membros do Ministério Público Federal e dos demais protagonistas do cenário jurídico. A revista digital visa a incentivar a produção da doutrina e o estudo da teoria, da legislação e da jurisprudência, estimulando o intercâmbio de informações entre os procuradores da República e os profissionais e estudantes de Direito. Em sua edição inaugural, Omnes aborda a temática criminal, trazendo a visão do procurador da República Rodrigo de Grandis sobre a polêmica Operação Satiagraha. Já o procurador da República Bruno Calabrich discorre sobre o poder de investigação criminal do Ministério Público, com ênfase no estado atual do debate em curso no Supremo Tribunal Federal. O tema ganhou visibilidade, este ano, em função da insólita Proposta de Emenda Constitucional nº 37/2011, que retira o poder de investigação do MP, tornando-o exclusivo dos delegados de polícia. A publicação eletrônica lança luz, também, sobre as inovações trazidas pela Lei 12.403/2011, que alterou o capítulo das medidas cautelares pessoais do Código de Processo Penal. O texto é da autoria do procurador da República Andrey Borges de Mendonça. Outro assunto de destaque da revista é a prescrição da pretensão executória, que refere-se à perda do direito estatal na execução da sanção imposta na sentença. Em
seu artigo, o procurador da República Isac Barcelos trata do trânsito em julgado para a acusação como marco inicial daquela forma de prescrição e a impossibilidade de execução provisória da pena. Boa leitura! Alexandre Camanho de Assis
Breves notas sobre o Habeas Corpus 149.250 “Caso Satiagraha”
Rodrigo De Grandis 1
Introdução
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O “habeas corpus” 149.250: origem, objeto e alcance
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Da legalidade da investigação policial: o auxílio da agência brasileira de inteligência – Abin não é causa de nulidade da prova
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Abin não é causa de nulidade da prova Procurador da República em São Paulo, com atuação nas Varas Criminais especializadas em crimes contra o sistema financeiro nacional e em “lavagem” de ativos ilícitos de São Paulo. Promotor de Justiça no Estado de São Paulo (2003-2004). Professor de Direito Penal da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (Curso de Especialização em Direito Penal Econômico-GVLaw) e do Curso de Capacitação e Treinamento para o Combate à Lavagem de Dinheiro PNLD, do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional do Ministério da Justiça. Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidad de Salamanca-Espanha.
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1. Introdução Por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n.º 149.250, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria apertada de votos, anulou os elementos de prova produzidos nos procedimentos investigatórios de interceptação telefônica, interceptação telemática e de ação controlada realizados no âmbito da denominada Operação Satiagraha. Na mesma oportunidade, seguindo o voto do Relator, Desembargador Convocado ADILSON MACABU, o STJ determinou a anulação dos “procedimentos correlatos”, anulando, também, desde o início, a ação penal de corrupção ativa ajuizada contra DANIEL VALENTE DANTAS e outras duas pessoas acusadas de oferecer vantagem indevida a um Delegado de Polícia Federal, “na mesma esteira do bem elaborado parecer exarado pela douta Procuradoria da República”. O presente artigo destina-se, assim, à análise dos fundamentos lançados no acórdão do HC n.º 149.250, e a revolver alguns aspectos relacionados à persecução penal da criminalidade organizada e, finalmente, a estabelecer, ainda que
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de modo panorâmico, a incorreção do que fora decidido pelo Superior Tribunal de Justiça.
2. O “Habeas Corpus” n.º 149.250: origem, objeto e alcance O Habeas Corpus n.º 149.250 foi impetrado em benefício de DANIEL VALENTE DANTAS por força de denúncia ofertada perante a 6ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo dando-o como incurso no artigo 333 do Código Penal (autos n.º 2008.61.81.010136-1)1. Consoante se colhe do relatório lançado pelo próprio ministro Relator, Desembargador Convocado ADILSON MACABU, o writ buscava “a concessão da ordem de habeas corpus, a culminar com a decretação da nulidade dos Procedimentos n.º 2007.61.81.010208-7 (monitoramento telefônico), 2007.61.81.0114193 (monitoramento telemático) e 2008.61.81.008291-3 (ação controlada), sobre os quais inequivocamente se projetaram as comprovadas ilegalidades, a fim de que, ulteriormente, se possa avaliar a derivação da nulidade a investigações e/ou
1 Além de Daniel Dantas, foram denunciados, pelo mesmo delito, Humberto José da Rocha Braz e Hugo Sérgio Chicaroni. Segundo a acusação formulada pelo Ministério Público Federal, nos dias 18 e 23 de junho de 2008, no interior do restaurante “El Tranvia”, localizado na rua Conselheiro Brotero, n.º 903, Higienópolis, São Paulo-SP, Daniel Valente Dantas, Humberto José da Rocha Braz, vulgo “Guga” e Hugo Sérgio Chicaroni, previamente ajustados com unidade de desígnios e identidade de propósitos, ofereceram vantagem indevida consubstanciada em US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares norte-americanos) ao Delegado de Polícia Federal Victor Hugo Rodrigues Alves Ferreira, que estava no regular exercício de suas funções, para determiná-lo a omitir a prática de ato de ofício relacionado à investigação policial existente em face de Daniel Dantas. Note-se, por oportuno, que a ação penal pela prática do crime de corrupção ativa insere-se em um contexto de criminalidade organizada, em especial aquela de perfil empresarial, de onde foram descortinados e processados, em autos respectivos, crimes contra o sistema financeiro nacional, “lavagem” de ativos criminosos e formação de quadrilha.
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ações penais decorrentes de tais procedimentos”. O argumento principal do habeas baseava-se na ilegalidade da participação de servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), no âmbito da denominada “Operação Satiagraha”, tese que, diga-se de passagem, já havia sido repelida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região2, pelo órgão do Ministério Públi-
2 Confira-se o Habeas Corpus n.º 2008.03.00.044165-7, de onde se retira o seguinte período: “Há que se ter em mente que é premissa básica do processo penal a regra segundo a qual não se declara nenhuma nulidade sem a demonstração do prejuízo. O artigo 563 do Código de Processo Penal é firme nesse sentido. E nestes autos não há nenhuma prova acerca de um prejuízo concreto experimentado pelo paciente, pelo fato de servidores da Agência Brasileira de Informação, hipoteticamente, terem conhecido do conteúdo de conversas telefônicas interceptadas. É certo que esse fato pode até vir a gerar a responsabilização funcional daquela autoridade que eventualmente violou o seu dever de sigilo, contudo, tal violação, não possui o condão de macular a prova como um todo. De acordo com o que consta dos autos, a interceptação telefônica foi regularmente decretada pela autoridade impetrada e executada pela Polícia Federal, com supervisão do Ministério Público Federal. Isso é o quanto basta para que esta Corte, nesta via estreita e célere, repila a pretensão veiculada pelos impetrantes, que pretendem a nulificação de todos os procedimentos em curso junto ao primeiro grau de jurisdição, relativos à denominada "Operação Satiagraha”. E mais: “E ainda que assim não fosse, observo, em uma primeira análise, que a Lei 9.883/99 - que instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência - indica a possibilidade de órgãos componentes do aludido sistema, compartilharem informações e dados relativos a situações nas quais haja interesse do estado brasileiro. Tanto a Polícia Federal como a Abin, integram o Sistema Brasileiro de Inteligência, como se infere dos incisos III e IV do artigo 4º do Decreto nº 4.376/02, que regulamenta a Lei 9.883/99. O artigo 6º do parágrafo único da Lei 9.883/99 apresenta a seguinte redação: "(...) Os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência fornecerão à Abin, nos termos e condições a serem aprovados mediante ato presidencial, para fins de integração, dados e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais (...)" (grifei). E o artigo 6º, IV, do Decreto nº 4.376/02, regulamentando o dispositivo legal acima registrado, estabelece o quanto segue: "(...) Cabe aos órgãos que compõem o Sistema Brasileiro de Inteligência, no âmbito de suas competências (...) fornecer ao órgão central do Sistema, para fins de integração, informações e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais (...)" (grifei). Portanto, existe a possibilidade de compartilhamento de dados e informações entre a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Informação - órgão central do Sistema de Inteligência - excetuando-se aquelas que digam respeito a operações militares, nos termos do parágrafo único do artigo 10 do Decreto nº 4.376/02”.
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co Federal oficiante na 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo3 e pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal4. Note-se, a propósito, que os Impetrantes sequer pleitearam a anulação da ação penal promovida pelo crime de corrupção ativa, restringindo o pedido do habeas corpus ao reconhecimento da nulidade dos três aludidos procedimentos investigatórios (interceptação telefônica, interceptação telemática e ação controlada). De fato, pela leitura do relatório do acórdão, a proposta de anulação da ação penal movida contra DANIEL VALENTE DANTAS, HUMBERTO BRAZ e HUGO CHICARONI surgiu somente no parecer do Ministério Público Federal (!), subscrito pelo então Subprocurador-Geral da República
Relembre-se que, após a conclusão da “Operação Satiagraha”, o Departamento de Polícia Federal instaurou inquérito policial para apurar eventuais irregularidades cometidas pelo Delegado de Polícia Federal Protógenes Queiroz, distribuído à 7ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo. Muito embora o relatório final da investigação tenha atribuído ao Delegado Protógenes uma diversidade de delitos, inclusive violação de sigilo funcional por ter permitido a participação dos servidores da Abin nas investigações, os Procuradores da República oficiantes naquele Juízo entenderam que Protógenes Queiroz havia cometido dois crimes: (i) violação de sigilo funcional, ao comunicar a um repórter a deflagração da operação policial e (ii) fraude processual, por editar um vídeo do procedimento de ação controlada retirando trecho onde se vislumbrava um repórter da Rede Globo na gravação. Quanto à participação dos servidores do Abin, o MPF pediu o arquivamento do inquérito policial, o qual foi rejeitado pelo Juiz Federal Ali Mazlom, em decisão marcada pelo vício do excesso de linguagem. 3
4 A decisão da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público foi motivada pela remessa dos autos de inquérito policial nos termos do artigo 28 do CPP. À unanimidade, a 2ª CCR/ MPF insistiu no arquivamento do procedimento policial e, uma vez mais, apregoou a licitude e a constitucionalidade do auxílio da Abin na “Satiagraha”. De acordo com o voto do Relator, Subprocurador-Geral da República Wagner Gonçalves, “não há reserva de mercado investigatório para a Polícia Federal”, ou seja, “se todos são responsáveis pela segurança pública, não se pode afastar, a priori, a colaboração de outros órgãos, muito menos da Abin, Agência essa que tem, dentre suas atividades, o objetivo de: ‘II – planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade’ (art. 4º, inc. II, da Lei 9.883/99)”.
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EDUARDO DANTAS NOBRE5. Em 07 de junho de 2011, por três votos a dois, a 5ª Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu anular “todas as provas produzidas, em especial a dos procedimentos n.º 2007.61.81.010208-7 (monitoramento telefônico), n.º 2007.61.81.011419-3 (monitoramento telefônico), e n.º 2008.61.81.008291-3 (ação controlada), e dos demais correlatos, anulando também, desde o início, a ação penal, na mesma esteira do bem elaborado parecer exarado pela douta Procuradoria da República”. Votaram com o Relator os ministros NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO e JORGE MUSSI, quedando vencidos os ministros GILSON DIPP e LAURITA VAZ. O acórdão portou a seguinte Ementa: “PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO SATIAGRAHA. PARTICIPAÇÃO IRREGULAR, INDUVIDOSAMENTE COMPROVADA, DE DEZENAS DE FUNCIONÁRIOS DA AGÊNCIA BRASILEIRA DE INFORMAÇÃO (Abin) E DE EX-SERVIDOR DO SNI, EM INVESTIGAÇÃO CONDUZIDA PELA POLÍCIA FEDERAL. MANIFESTO ABUSO DE PODER. IMPOSSIBILIDADE DE CONSIDERAR-SE A ATUAÇÃO EFETIVADA COMO HIPÓTESE EXCEPCIONALÍSSIMA, CAPAZ DE PERMITIR COMPARTILHAMENTO DE DADOS ENTRE ÓRGÃOS INTEGRANTES DO SISTEMA BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE PRECEITO LEGAL AUTORIZANDO-A. PATENTE A OCORRÊNCIA DE INTROMISSÃO ESTATAL, ABUSIVA E ILEGAL NA ESFERA DA VIDA PRIVADA, NO CASO CONCRETO. VIOLAÇÕES DA HONRA, DA IMAGEM E Veja-se o seguinte trecho do relatório: “o Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem, 'ex officio, para que seja expedida ordem, com força para anular, desde o início, a ação penal declinada nesta manifestação. Se tida como incabível a concessão da ordem de habeas corpus, nos moldes propostos, espero, como agente do Ministério Público, o seu deferimento para que seja anulado o acórdão em que o Tribunal Federal Regional da Terceira Região (sic), através de sua Quinta Turma, indeferiu a súplica originária, para que em seu lugar outro seja proferido, com análise e consideração, pelos seus integrantes, dos documentos que se recusaram a apreciar naquela oportunidade'”.
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DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. INDEVIDA OBTENÇÃO DE PROVA ILÍCITA, PORQUANTO COLHIDA EM DESCONFORMIDADE COM PRECEITO LEGAL. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE. AS NULIDADES VERIFICADAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL, E DEMONSTRADAS À EXAUSTÃO, CONTAMINAM FUTURA AÇÃO PENAL. INFRINGÊNCIA A DIVERSOS DISPOSITIVOS DE LEI. CONTRARIEDADE AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, DA IMPARCIALIDADE E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INQUESTIONAVELMENTE CARACTERIZADA. A AUTORIDADE DO JUIZ ESTÁ DIRETAMENTE LIGADA À SUA INDEPENDÊNCIA AO JULGAR E À IMPARCIALIDADE. UMA DECISÃO JUDICIAL NÃO PODE SER DITADA POR CRITÉRIOS SUBJETIVOS, NORTEADA PELO ABUSO DE PODER OU DISTANCIADA DOS PARÂMETROS LEGAIS. ESSAS EXIGÊNCIAS DECORREM DOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS E DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS INSCRITOS NA CONSTITUIÇÃO. NULIDADE DOS PROCEDIMENTOS QUE SE IMPÕE, ANULANDO-SE, DESDE O INÍCIO, A AÇÃO PENAL.
1. Uma análise detida dos 11 (onze) volumes que compõem o HC demonstra que existe uma grande quantidade de provas aptas a confirmar, cabalmente, a participação indevida, flagrantemente ilegal e abusiva, da Abin e do investigador particular contratado pelo Delegado responsável pela chefia da Operação Satiagraha. 2. Não há se falar em compartilhamento de dados entre a Abin e a Polícia Federal, haja vista que a hipótese dos autos não se enquadra nas exceções previstas na Lei nº 9.883/99. 3. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, no qual, como nos ensina a Profª. Ada Pellegrini Grinover, in “Nulidades no Processo Penal”, “o direito à prova está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da ampla defesa, de sorte que o seu
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exercício não pode ultrapassar os limites da lei e, sobretudo, da Constituição.” 4. No caso em exame, é inquestionável o prejuízo acarretado pelas investigações realizadas em desconformidade com as normas legais, e não convalescem, sob qualquer ângulo que seja analisada a questão, porquanto é manifesta a nulidade das diligências perpetradas pelos agentes da Abin e um ex-agente do SNI, ao arrepio da lei. 5. Insta assinalar, por oportuno, que o juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. Ele não deve, jamais, perder de vista a importância da democracia e do Estado Democrático de Direito. 6. Portanto, inexistem dúvidas de que tais provas estão irremediavelmente maculadas, devendo ser consideradas ilícitas e inadmissíveis, circunstâncias que as tornam destituídas de qualquer eficácia jurídica, consoante entendimento já cristalizado pela doutrina pacífica e lastreado na torrencial jurisprudência dos nossos tribunais. 7. Pelo exposto, concedo a ordem para anular, todas as provas produzidas, em especial a dos procedimentos nº 2007.61.81.010208-7 (monitoramento telefônico), nº 2007.61.81.011419-3 (monitoramento telefônico), e nº 2008.61.81.008291-3 (ação controlada), e dos demais correlatos, anulando também, desde o início, a ação penal, na mesma esteira do bem elaborado parecer exarado pela douta Procuradoria da República”. Contra o acórdão proferido no HC 149.250, as Subprocuradoras-Gerais da República LINDÔRA MARIA ARAUJO e CÉLIA REGINA SOUZA DELGADO manejaram, em 02 de dezembro de 2011, recurso extraordinário, suscitando a violação dos seguintes dispositivos da Constituição da República: (a) ofensa direta e ime-
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diata ao princípio da fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88), aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (art. 5º, V, CF/88) e ao art. 108, I, alínea ‘d’, CF/88 (usurpação de competência do TRF); (b) ofensa direta e imediata do voto condutor do acórdão ao princípio constitucional da razoabilidade, assim como ao princípio da vedação da proteção deficiente e, ainda, ao direito fundamental da sociedade e do Estado à segurança (arts. 5º e 6º, caput, CF/88); (c) ofensa direta e imediata ao princípio constitucional da segurança jurídica; (d) ofensa direta e imediata à interpretação dada ao princípio da proibição das provas ilícitas (art. 5º, LVI, CF/88), especialmente no tocante à correta avaliação do conteúdo do princípio e seus efeitos, e ao art. 144, CF/88. As contrarrazões ao recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal foram oferecidas e, no momento, ele se encontra no gabinete do ministro Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça aguardando o exame de admissibilidade.
3. Da legalidade da investigação policial: o auxílio da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) não é causa de nulidade da prova A tese veiculada por DANIEL DANTAS no Habeas Corpus n.º 149.250 e no parecer elaborado pelo então Subprocurador-Geral da República EDUARDO ANTÔNIO DANTAS NOBRE no sentido de que a participação de servidores da Abin na “Operação Satiagraha” macularia o procedimento investigatório e, por conseguinte, a ação penal promovida pela perpetração do crime de corrupção ativa, parece-nos, data venia, equivocada. Com efeito, muito embora os procedimentos investigatórios glosados pelo Superior Tribunal de Justiça tenham sido conduzidos em estrita obediência aos postulados legais, contando, durante toda a sua duração, com o acompanhamento do órgão do Ministério Público Federal e o
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crivo do Poder Judiciário, a maioria da 5ª Turma vislumbrou, no caso Satiagraha, o que se pode denominar de “nulidade por aderência”, ou seja, compreendera-se ilícito um elemento de convicção pelo fato exclusivo dele ter sido “tocado”, “manipulado”, “analisado” por pessoas que não figuravam no quadro pessoal do Departamento de Polícia Federal. Ora, em primeiro lugar deve ficar assentado que os servidores da Abin que atuaram na “Operação Satiagraha” foram cedidos pelo então Diretor Paulo Lacerda para auxílio às complexas investigações de crimes contra o sistema financeiro nacional e de “lavagem” de recursos ilícitos, o que sucedeu, diga-se de passagem, em caráter secundário e coadjuvante6. Vale dizer: a atuação dos servidores da Abin restringiu-se à pesquisa, vigilância, seleção e transcrição dos diálogos legalmente interceptados. Deveras, segundo apurou o órgão do Ministério Público Federal oficiante na 7ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo, “Protógenes nunca pretendeu, ao trazer a Abin para as investigações, violar o seu sigilo. Ele desejava simplesmente aumentar o quadro de servidores disponibilizados, a fim de conseguir melhores resultados. A operação, ademais, nunca foi retirada do controle da Polícia Federal, tendo os agentes da Abin sempre trabalhado sob a coordenação de policiais”. De fato, as interceptações telefônicas foram realizadas mediante autorização
A participação da Abin na Satiagraha foi vista, por parte da imprensa brasileira e, também, por parte do Superior Tribunal de Justiça, com perplexidade. Diversa, todavia, foi a reação quando, no início do ano de 2008, divulgou-se amplamente nos veículos da imprensa brasileira que a Abin colaboraria com a Polícia Federal no famoso furto de quatro “laptops” contendo informações confidenciais da Petrobras relacionadas aos recém-descobertos campos de exploração de Tupi e Júpiter. Em matéria publicada no sítio do “G1”, do Grupo Globo. com, em 18 de fevereiro de 2008, destacou-se, por exemplo, que a colaboração da Abin “foi acertada em reunião nesta segunda-feira (18) entre os ministros Tarso Genro (Justiça) e Jorge Armando Félix (Gabinete de Segurança Institucional), e os diretores-gerais da PF, Luiz Fernando Corrêa, e da Abin, Paulo Lacerda”.
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judicial e concretizadas, a todo momento, sob o comando de um Delegado de Polícia Federal. No curso das investigações, os agentes da Abin reportavam suas atividades diretamente ao Delegado de Polícia Federal, que conduzia a primeira fase de persecução penal. Todas as medidas cautelares decretadas no âmbito da Satiagraha, em especial as interceptações telefônicas, as buscas e apreensões e ação controlada foram levadas a efeito a pedido do Departamento de Polícia Federal ou do Ministério Público Federal, de modo que em nenhum momento a Abin realizou ou protagonizou qualquer ato investigatório típico. No ponto, não pode passar despercebido que, se é verdade que a cessão dos servidores da Abin ao Departamento de Polícia Federal não fora formalizada segundo os ditames do Direito Administrativo, não é menos verdadeiro que, no ordenamento jurídico brasileiro, inexiste norma ou preceito que imponha autorização judicial para que servidores públicos externos aos quadros do Departamento de Polícia Federal auxiliem as investigações desencadeadas pela Polícia Judiciária da União. Como apontou a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, por ocasião da confirmação do pedido de arquivamento do inquérito policial, instaurado para apurar eventuais desvios funcionais do Delegado Protógenes Queiroz, o Diretor Geral da Abin “cedeu servidores à Polícia Federal para atuar sob as ordens de um Delegado da Polícia Federal (Protógenes Queiroz). Se o fez em desobediência às normas administrativas, em princípio, tal fato não constitui crime, como antes mencionado. Quando muito, representa irregularidade administrativa e/ou improbidade, mesmo que se desconsidere, só para argumentar, a exclusão da ilicitude prevista no parágrafo
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único do art. 44, da Lei n.º 11.776, de 17.9.2008”. Sob esse contexto, é imperioso observar que não existe, no Brasil, “monopólio investigativo”; vale enfatizar: “o próprio Código de Processo Penal é claro ao dizer, no parágrafo único do seu art. 4º, que a competência da polícia judiciária não exclui a de outras autoridades administrativas. Exemplos disso são as investigações efetuadas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito; o inquérito judicial presidido pelo juiz de direito da vara falimentar; o inquérito no caso de infração penal cometida na sede ou dependência do Supremo Tribunal Federal (RISTF, art. 43), entre inúmeros outros” (cf. STJ – Habeas Corpus n.º 29.159-SP – Relatora Ministra Laurita Vaz). No âmbito do Poder Executivo, por exemplo, é “cediço que a Receita Federal realiza com alguma frequência, no exercício de seu mister, não apenas diligências investigatórias como, também, operações que têm como móvel, tanto quanto a constituição de auto de infração, a repressão a determinados delitos”7, o mesmo ocorrendo, por exemplo, com o Banco Central do Brasil, o IBAMA, o COAF, a Corregedoria-Geral da União etc. Ademais disso, a Constituição da República preceitua que a segurança pública é responsabilidade de todos (art. 144); assim, se o cidadão é responsável pela segurança pública (p. ex. pode prender alguém em flagrante – art. 301 do CPP), muito mais serão os outros órgãos e instituições em cooperação com a polícia judiciária, como inegavelmente é o caso da Abin, mormente porque tem, como um de seus objetivos, “planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis,
Nesse sentido: LENIO LUIZ STRECK e LUCIANO FELDENS, Crime e Constituição, a legitimidade da função investigatória do Ministério, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 93.
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relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade”. Nada obstante, o Relator do Habeas Corpus 149.250, ADILSON MACABU, entendeu que “as provas colhidas por agentes da Abin e pelo investigador particular contratado indevidamente, no curso da operação, são ilícitas”. Como assinalado, embora o aresto tenha passado ao largo do fato de a produção da prova ter se dado em obediência à Lei n.º 9.034/1995 (ação controlada) e à Lei n.º 9.296/1996 (interceptações telefônicas e interceptações telemáticas) e sob autorização expressa do Poder Judiciário, decidiu-se prestigiar a forma em detrimento do conteúdo, criando-se uma nulidade onde ela, originária e essencialmente, não existia. A nós, agora, só resta aguardar o desate do recurso extraordinário no STF...
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Investigação criminal pelo Ministério Público: Estado atual do debate pelo Supremo Tribunal Federal
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Introdução
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Da repercussão geral do tema e sua admissão pelo STF
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Origens do debate no STF
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Ações diretas de inconstitucionalidade e outros casos atualmente em trâmite no STF
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Votos proferidos e o “placar” atual
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Tendências identificáveis para o julgamento definitivo
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Conclusão
Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV; professor da Escola Superior do Ministério Público da União; procurador da República no Distrito Federal.
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1. Introdução Desde o ano 2003, a comunidade jurídica brasileira aguarda a decisão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sobre uma questão tão polêmica quanto importante: pode o Ministério Público realizar investigações criminais próprias, diretamente, ou deve sempre requisitá-las à polícia? Noutras palavras, tem a polícia a exclusividade para a realização de investigações criminais, ou pode o Ministério Público também realizá-las? Além da doutrina, o debate tem instigado advogados, membros do MP e juízes criminais, que se vêm mais e mais às voltas com processos deflagrados com base em investigações promovidas diretamente pelo Ministério Público. São muitos, e por vezes muito graves, os casos em que a denúncia é oferecida pelo promotor de Justiça ou procurador da República com base exclusivamente em elementos de convicção colhidos no curso de um procedimento investigatório criminal (PIC1) 1 A nomenclatura dada à investigação realizada diretamente pelo parquet (procedimento investigatório criminal, ou simplesmente PIC) foi dada pela resolução n.º 13 do CNMP, que “regulamenta o art. 8º da Lei Complementar 75/93 e o art. 26 da Lei n.º 8.625/93, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal, e dá
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do Ministério Público, sem a participação de autoridades policiais2. E o volume de tais casos, pelo que aponta o crescente número de julgamentos que têm sido realizados pelos Tribunais inferiores, tende somente a aumentar3. Como já se registrou em outra oportunidade4, causa muita surpresa que o debate sobre o tema tenha alcançado tamanhas repercussão e magnitude no Brasil. Não se tem conhecimento de nenhum outro país em que a impossibilidade da investigação criminal pelo MP tenha sido sequer cogitada. A ausência de um desfecho pelo STF, a quem cumpre dar a palavra final, apenas aumenta a apreensão e acalora a polêmica. A nosso entender, diante da fragilidade dos principais argumentos contrários à investigação pelo MP, a celeuma sequer deveria existir, ou no mínimo já deveria estar há muito tempo sepultada. Mas o foco do presente artigo não é a exploração minuciosa dos argumentos apresentados pelos defensores de uma ou outra tese. Pretende-se, aqui, apenas apresentar quadro atual do julgamento do tema pelo Supremo Tribunal Federal; é dizer, oferecer um diagnóstico da questão
outras providências.” Não é demais lembar que o PIC não se confunde com um inquérito policial, que é presidido por uma autoridade policial (delegado de polícia). À guisa de exemplo, gize-se que, no âmbito do Ministério Público Federal, são também muito comuns os processos criminais (via de regra, por ilícitos contra a ordem tributária) movidos com base exclusivamente em procedimentos apuratórios fiscais realizados pela Receita Federal. Em boa parte dos casos é dispensável a realização de diligências complementares, considerando a exaustividade (inclusive em suas repercussões criminais) das investigações do órgão fazendário. 2
Uma rápida pesquisa com termos correlatos no sítio da Jurisprudência Unificada do portal da Justiça Federal (<http://columbo2.cjf.jus.br/juris/unificada/?> acesso em 28.09.2012) permite identificar dezenas de precedentes. Naturalmente, não constam nesta base de dados informações sobre os casos julgados pelos Tribunais de Justiça dos Estados. 3
4 CALABRICH, Bruno. Investigação criminal pelo Ministério Público: uma brasileira e renitente polêmica, p. 605-608. In Temas Atuais do Ministério Público: a atuação do parquet nos 20 anos da Constituição Federal, 2. ed.. Belo Horizonte: Lumen Juris, 2010.
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(se nos for permitido utilizar a expressão), tal qual hoje esta se desenha perante a Suprema Corte brasileira. Para tanto, principia-se, para fins didáticos, com uma breve digressão sobre o reconhecimento da repercussão geral que o tema encerra, tal qual recentemente proclamada pelo STF.
2. Da repercussão geral do tema e sua admissão pelo STF A Lei n.º 11.418/06 regulamentou o parágrafo 3º do art. 102 da Constituição Federal, para instituir um novo requisito de admissibilidade para recursos extraordinários, denominado repercussão geral. A regulamentação se deu com a inclusão dos arts. 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil (aplicável também aos recursos de natureza criminal remetidos ao STF), e certamente teve como propósito contribuir para a diminuição do gigantesco volume de processos pendentes de julgamento pela Suprema Corte do Brasil. A matéria foi assim, em síntese, conceituada pela Lei n.º 11.418/06 (conforme redação dada pela Lei ao art. 543-A do CPC): “Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. § 1o. Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. (...)
Desde 2006, para que recursos extraordinários sejam conhecidos pelo STF, exige-se, portanto, a demonstração de que a questão enfrentada tenha repercussão econômica, política, social ou jurídica que extravase os interesses das partes envolvidas no caso concreto a ser submetido ao controle difuso de constitucio-
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nalidade. Sobre a repercussão geral, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes ponderam que5: “Desse modo, além das exigências tradicionais (que não são poucas), para que o Supremo Tribunal Federal efetivamente conheça do recurso extraordinário interposto pela parte, é preciso, ainda, que esteja demonstrada a significação política dos temas constitucionais versados na impugnação, aferida em face de uma possível influência da decisão para a solução de outros casos. Em outras palavras, a matéria constitucional deduzida não pode estar restrita ao âmbito do feito examinado, mas deve haver uma probabilidade de que se apresente também em situações futuras.”
Note-se que, embora tenha sido instituído mais um requisito para o conhecimento de recursos extraordinários, o habeas corpus, ação de natureza criminal e certamente maior responsável pelo atual assoberbamento da Corte Suprema brasileira, continua hoje a ser irrestritamente admitido. Sobre esse contraste (concernente à facilidade, na prática, para a impetração de um habeas corpus e à limitação imposta aos recursos extraordinários pela necessidade de demonstração da repercussão geral), Eugênio Pacelli leciona6: “Como se vê, o que já prevíamos: o acesso ao Supremo Tribunal Federal (que deveria mesmo ser reservado à matéria constitucional) está cada dia mais difícil, à exceção da via do habeas corpus, que não se abre
5 GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antônio Magalhães e FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no Processo Penal. 6 ed., São Paulo: RT, 2009, cit., p. 204.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de., Curso de Processo Penal. 13 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 899.
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ao juízo de admissibilidade, relativamente à questão da repercussão geral. Quanto ao mais, isto é, no âmbito próprio do recurso extraordinário, a via recursal processual penal foi sensivelmente reduzida, embora não se saiba exatamente qual será a dimensão econômica, política ou social exigida no artigo 543-A, § 1º, que autorizará o recurso em matéria criminal. Provavelmente, as alternativas serão: ou o habeas corpus, que dispensa repercussão geral, mas exige ameaça à liberdade de ir e vir, ou a presença de divergência da decisão com súmula ou jurisprudência dominante na Corte. Ou seja, a repercussão geral se limitará às questões processuais objetivas, isto é, àquelas sobre as quais haja manifestação já consolidada naquele Tribunal.”
Embora seja recorrente a crítica de que a lei, ao valer-se de conceitos jurídicos indeterminados para a aferição da repercussão geral, não teria declarado explicitamente como poderá ser identificada a relevância econômica, política, social ou jurídica que ultrapasse os interesses subjetivos da causa, Fredie Didier observa7: “(...) É possível vislumbrar, porém, alguns parâmetros para a definição do que seja “repercussão geral”: i) questões constitucionais que sirvam de fundamento a demandas múltiplas, como aquelas relacionadas a questões previdenciárias ou tributárias, em que diversos demandantes fazem pedidos semelhantes, baseados na mesma tese jurídica. Por conta disso, é possível pressupor que, em causas coletivas que versem sobre temas constitucionais, haverá ali a tal “repercussão geral” que se exige para o cabimento do recurso extraordinário, ii) questões que, em razão da sua magnitude constitucional, devem ser examinaDIDIER JUNIOR, Fredie, Curso de Direito Processual Civil. 8 ed. Bahia : JusPODIVM, 2010, cit., p. 333-334.
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das pelo STF em controle difuso da constitucionalidade, como aquelas que dizem respeito à correta interpretação/aplicação dos direitos fundamentais, que trazem um conjunto de valores básicos que servem de esteio a toda ordem jurídica - dimensão objetiva dos direitos fundamentais.”
À luz da Lei n.º 11.418/06 e da doutrina sobre o tema, conforme resumido linhas acima, é de se indagar se a investigação criminal pelo Ministério Público deve ser considerada uma questão relevante do ponto de vista, econômico, político, social ou jurídico. Pois bem: já sob a égide da Lei n.º 11.418/06, o Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2009, reconheceu expressamente a repercussão geral para o julgamento de um recurso extraordinário versando sobre a investigação criminal realizada diretamente pelo Ministério Público. O julgado (pela admissibilidade do recurso) foi assim ementado: EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Ministério Público. Poderes de investigação. Questão da ofensa aos arts. 5º, incs. LIV e LV, 129 e 144, da Constituição Federal. Relevância. Repercussão geral reconhecida. Apresenta repercussão geral o recurso extraordinário que verse sobre a questão de constitucionalidade, ou não, da realização de procedimento investigatório criminal pelo Ministério Público. (RE 593727 RG, Relator(a): ministro CEZAR PELUSO, julgado em 27/08/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 EMENT VOL-02375-07 PP-01929 )
Não há como não verificar a presença desses requisitos no julgamento de um caso afeto ao tema. Como bem assentado na fundamentação do mesmo acórdão
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pelo ministro Cezar Peluso, “A questão suscitada neste recurso é objeto do julgamento, inciado pelo Plenário em 11.06.2007. do HC n.º 84.548 (Rel. ministro MARCO AURÉLIO) e que versa a relevantíssima matéria da constitucionalidade, ou não, da realização de procedimento investigatório criminal pelo Ministério Público, o que interessa ao bem jurídico fundamental da liberdade e, como tal, transcende os limites subjetivos da causa, de modo que sua decisão produzirá inevitável repercussão de ordem geral.”
A rigor, a repercussão geral no debate sobre a investigação criminal pelo Ministério Público afeta ao menos três das quatro vertentes previstas no §1º do art. 543-A. Com efeito, a eficiência da persecução penal (ou a limitação das possibilidades de persecução criminal) tem evidente repercussão econômica, social e jurídica. Há certamente centenas de investigações do Ministério Público em curso sobre crimes de grande danosidade patrimonial (com potencial afetação, inclusive, à economia do país), de elevado interesse social (como são, por essência, quaisquer casos de grave violação a normas penais incriminadoras) e jurídico (considerando, especialmente, a necessidade de se afirmar ou recusar, em definitivo, a legitimidade para a persecução penal em sua etapa pré-processual e as consequências disso para o complexo de relações entre autoridades e investigados). Na esteira do escólio de Fredie Didier (acima transcrito), é igualmente cristalino que a questão atinente aos poderes investigatórios do MP (i) é fundamento para demandas múltiplas, tal qual já se tem verificado nos tribunais (e também em primeiro instância), e (ii) tem importância constitucional a demandar um exame pelo STF em controle difuso da constitucionalidade, tendo em vista que, em último grau, trata da interpretação e aplicação de direitos fundamentais – não só dos investigados mas também de toda a sociedade, legitimamente interessada
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na maior eficiência da persecução criminal, na acepção garantista do termo8. Correta, portanto, a declaração do Supremo Tribunal Federal de que o tema tem repercussão geral. Mas a verdade é que o debate iniciou-se bem antes disso, quando sequer vigorava a Lei n. 11.418/06.
3. Origens do debate no STF Em 06.05.2003, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de um recurso em habeas corpus, decidiu que a realização de diligências investigatórias é atribuição exclusiva da polícia judiciária (Informativo do STF n. 307, RHC 81.326-DF, rel. ministro Nelson Jobim). O recurso julgado pelo STF tinha por objetivo modificar a decisão do STJ que havia reconhecido a validade de uma requisição expedida pelo Ministério Público do Distrito Federal para que um delegado de Polícia fosse ouvido por promotores do Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial, no interesse de um Procedimento Administrativo Investigatório Supletivo (na nomenclatura utilizada à época). O STJ havia denegado o HC em que se postulava, ao final, o trancamento da investigação instaurada pelos promotores responsáveis pelo controle externo da atividade policial em face do delegado de polícia para a apuração de um crime supostamente praticado por ele. O impetrante/recorrente alegou que a apuração do fato caberia não ao Ministério Público, mas exclusivamente à polícia, por meio de um inquérito policial. Foi esse o primeiro caso em que a tese da impossibilidade da investigação criminal pelo Ministério Público foi acolhida pelo STF. Os poderes investigatórios do Ministério Público, contudo, já haviam sido 8 Ou seja, da proteção dos direitos fundamentais de qualquer investigado ou acusado e, ao mesmo tempo, do justo sancionamento dos responsáveis pela prática de um ilícito penal.
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apreciados – e reconhecidos – em diversos outros julgados anteriores daquela Corte, do STJ e de tribunais inferiores. Podem ser citados como precedentes favoráveis à investigação pelo Ministério Público (anteriores a 2003) os seguintes acórdãos: STF, ADI n.º 1517-UF Rel. ministro Maurício Corrêa, julg. em 30.4.97, Informativo STF nº 69; STJ, HC nº 7.445-RJ, 5ª T., Rel. ministro Gilson Dipp, julg. em 01.12.98, v.u., DJU de 01.02.99, p. 218, RHC 7.063-PR, 6ª T., Rel. ministro Vicente Leal, julg. em 26.08.98, v.u., DJU de 14.12.98, p. 302; TRF/4ª Região, HC nº 97.04.26750-9-PR, 1ª T., Rel. Juiz Fábio B. da Rosa, 1ª T., v.u., julg. em 24.06.97, DJU de 16.07.97; TJDFT, HC nº 1998.00.2.035-8, 1ª T., Rel. Des. Otavio Augusto, julg. em 12.03.98, v.u., DJ de 03.06.98, p. 38. Esse julgamento deu fôlego a um entendimento então apenas incipiente e inspirou a impugnação de diversas investigações criminais diretas pelo Ministério Público. A mais emblemática dessas invectivas contra os poderes investigatórios do MP foi o “caso Remi Trinta”, que se tornou, entre 2003 e 2006, o palco principal dos debates pelo STF; Trata-se do inquérito 1.968-DF, em que o STF avaliava se deveria ser recebida a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal contra o então deputado federal Remi Trinta (PL/MA). O parlamentar, que à época dos fatos era dono de uma clínica em São Luís (MA), foi acusado da prática de estelionato, por supostas fraudes contra o Sistema Único de Saúde – SUS. A defesa argumentou que a denúncia foi apresentada com base numa investigação realizada diretamente pelo Ministério Público, e que tal atribuição não lhe tocava por ser de exclusividade da polícia. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Cezar Peluso. Saliente-se que ali sequer se tratava de um procedimento investigatório ins-
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taurado e conduzido exclusivamente pelo MP. Era um típico e simples caso de complementação das investigações policiais: com a vinda dos autos relatados pela polícia, o MPF, entendendo serem ainda insuficientes os elementos reunidos, requisitou (diretamente) o encaminhamento de determinados documentos, com respaldo no art. 47 do CPP9. Pela documentação recebida, ficaram cabalmente confirmadas as fraudes – havia notas de prestação de serviços supostamente realizados pela clínica do deputado (e custeados pelo SUS) que chegavam ao absurdo de relatar (e cobrar por) um parto feito num homem. Lamentavelmente, como o julgamento da questão não foi encerrado no STF, o acusado Remi Trinta não se reelegeu deputado federal nas eleições de 2006 e o caso foi remetido à Justiça Federal de primeiro grau em São Luís (MA) no início de 2007. Lá, foi imediatamente arquivado, eis que já estava prescrito.
4. Ações diretas de inconstitucionalidade e outros casos atualmente em trâmite no STF Como mencionado na decisão que admitiu a repercussão geral para o RE 593727, o tema dos poderes investigatórios do MP estava (e continua) sob a apreciação do pleno do STF no HC n.º 84.548, do qual é Relator o ministro Marco Aurélio. Trata-se de um habeas corpus impetrado por Sérgio Gomes da Silva (conhecido como “o Sombra”). Com base elementos colhidos pelo Ministério Público paulista, Sérgio Gomes foi denunciado pelo homicídio do então prefeito do “Art. 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.” Note-se que essa é a redação original de 1941, o que torna ainda mais curioso que as impugnações às investigações criminais pelo Ministério Público só tenham se avolumado tão recentemente. Não se pode ignorar a possibilidade de que isso tenha ocorrido pelo simples fato de que tais investigações começaram a atingir pessoas que nunca antes (ou raras vezes) foram sujeitas, de fato, à lei penal (como altas autoridades, políticos, policiais e empresários dotados de elevado poder econômico).
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município de Santo André, Celso Daniel, em janeiro de 2002. O julgamento do caso foi aberto em 11.06.2007. Proferiram seus votos o ministro Marco Aurélio, relator, contrário à investigação pelo MP, e o ministro Sepúlveda Pertence, que rejeitou a tese da defesa. Em seguida, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Cezar Peluso. Há diversos outros casos concretos nos quais o STF, por suas turmas, tem sido instado a decidir (em sede de controle difuso) sobre a validade de atos investigatórios realizados diretamente pelo MP, consoante será visto nos tópicos seguintes (em que podem ser identificados os votos já proferidos). Falta apenas o julgamento final pelo plenário do Tribunal. O STF também deverá pronunciar-se em definitivo sobre o tema pela via do controle concentrado. Em 22.07.2003, o Partido Liberal ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 2943-6, pugnando pela suspensão da eficácia dos dispositivos da Lei Complementar 75/93 e da Lei 8.625/93 que tratam da investigação pelo MP. Em 19.12.2006, a OAB ajuizou a ADI n.º 3.836, questionando a constitucionalidade da resolução n.º 13 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que regulamentou a LC 75/93 e a Lei 8.625/93, disciplinando os procedimentos de investigação criminal do MP. A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) ajuizou a ADI n.º 3.806 (distribuída em 10.10.2006), contra a mesma Resolução n.º 13 do CNMP, e a ADI n.º 4271-8 (distribuída em 15.07.2009), arguindo a inconstitucionalidade da Resolução n.º 20 do CNMP e de dispositivos das leis orgânicas do Ministério Público que tratam do controle externo da atividade policial. Todas essas ações ainda esperam uma decisão do STF.
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5. Votos proferidos e o “placar” atual Antes de ser interrompido o julgamento do caso Remi Trinta (INQ 1.968-DF), cinco ministros proferiram seus votos sobre a questão: a) favoráveis à investigação pelo MP – Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto e Eros Roberto Grau; b) contra a investigação pelo MP: Marco Aurélio Mello e Nelson Jobim. Tendo como base julgamentos posteriores, é possível identificar os posicionamentos de outros ministros. Além dos ministro Joaquim Barbosa e Ayres Britto, são favoráveis à investigação direta pelo Ministério Público a ministra Cármen Lúcia (HC 89.398/SP, decisão de 04.08.2006) e o ministro Celso de Mello (HC 89.837/DF, decisão de 20.10.2009, e RHC 83.492/RJ, decisão de 16.12.2010). O ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, já se pronunciou contra a investigação pelo MP (HC 87.395/PR, voto-relator de 24.10.2006), mas depois mitigou seu entendimento para admitir a investigação pelo MP em casos excepcionais (RE 593.727/MG, voto proferido em 27.06.2012). O hoje aposentado ministro Sepúlveda Pertence também se posicionou favoravelmente à investigação criminal direta pelo Ministério Público (voto proferido no HC 84.548/SP, em 11.05.2007), assim como a ministra Ellen Gracie (RE 535478/SC, decisão de 20.10.2008, e HC 91.661/PE, decisão de 10.03.2009 – aposentada em agosto de 2011) e o ministro Eros Grau (voto no referido INQ 1.968DF – aposentado em agosto de 2010). Pouco antes de se aposentar, em 27.06.2012, o ministro Cezar Peluso também proferiu seu voto sobre o tema, no julgamento do RE 593.727, “reconhecendo (...) a competência do Ministério Público para realizar diretamente atividades de investigação da prática de delitos, para fins de preparação e eventual instauração de ação penal apenas em
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hipóteses excepcionais e taxativas, nos termos do seu voto, no que foi acompanhado pelo ministro Ricardo Lewandowski”10. Nesse quadro, podem ser contabilizados, com a composição atual do STF (setembro de 2012), 4 votos favoráveis à investigação criminal direta pelo Ministério Público (Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Cármen Lúcia e Celso de Mello) e 1 contrário (Marco Aurélio). Placar: 4 a 1, em favor da investigação criminal pelo MP. Quanto ao ministro Gilmar Mendes, registre-se que, relator de um caso versando sobre investigação do parquet referente a crimes cometidos por autoridades policiais, denegou a ordem, argumentando que “a atividade investigativa supletiva do MP ante a possibilidade de favorecimento aos investigados policiais vem sendo aceita em recentes pronunciamentos desta Corte” e que o MP é um órgão com “poder de investigação subsidiária em casos em que é pelo menos plausível a suspeita de que falha a investigação policial”11 (HC 93.930/RJ, decisão de 07.12.2010). O ministro, entretanto, frisou que o caso se referia a investigação contra autoridade policial e que, nessa hipótese, o entendimento do STF já estaria sedimentado. Nestes termos, seu voto pode ser contabilizado como favorável à investigação pelo parquet, ao menos com relação a crimes cometidos por policiais12. Como visto linhas acima, a min. Ricardo Lewandowski também admite a investigação pelo MP em casos excepcionais (RE 593.727/MG, voto proferido em 27.06.2012). Nessa situação, o placar está em 6 a 1, favorável à investigação pelo Decisão disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2641697>, acesso em 28.09.2012.
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11 <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/49563/stf+reconhece+poder+de+invest igacao+do+ministerio+publico.shtml>, acesso em 19/10/2011.
Ver-se-á adiante que o ministro Gilmar Mendes, em julgamento posterior, não restringiu a investigação pelo MP a crimes cometidos por policiais.
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Ministério Público (ao menos para determinados crimes). Dos atuais 11 ministros do STF13, 4 ministros não votaram: Teori Zavaski, José Antônio Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Maria Weber. Quando no STJ, o min. Teori Zavascki já decidiu a favor da investigação pelo MP: “(...) Está assentado na jurisprudência do STF e do STJ entendimento no sentido de que ao Ministério Público não compete a função de presidência de inquérito policial, não lhe sendo vedada, entretanto, a colheita de material probatório para formar ou complementar as bases de convicção para o exercício da ação penal. Nesse sentido, entre outros, são os seguintes precedentes desta Corte: APN 345/AP, Corte Especial, ministro Gilson Dipp, DJ de 26/09/2005; HC 55.100/RJ, 5ª Turma, ministro Arnaldo Esteves Lima, DJ de 29/05/2006, HC 40.827/MG, 5ª Turma, ministro Félix Fischer, DJ de 26/09/2005. No caso, não tendo o Ministério Público presidido a instauração ou a realização de um inquérito policial, não houve irregularidade alguma na sua atuação.” (voto relator do min. Teori Zavascki no recebimento, pela Corte Especial do STJ, da denúncia na APn 300/ES – Ação Penal 2003/0139654-4; decisão de 18.04.2007, publicada no DJ de 06.08.2007, p 443). Dos que ainda não votaram, talvez também se possa antecipar o posicionamento do ministro José Antônio Dias Toffoli, que, quando Advogado-geral da União, em 18.08.2009 exarou um parecer nos autos da ADI n.º 4271-8 contrário à investigação pelo MP. Nesse caso, e curiosamente, a AGU pleiteou a declaração da inconstitucionalidade dos incisos V e IX do art. 8º da LC n.º 75/93 (que preJá contando com a indicação de Rosa Maria Weber Candiota para ocupar a vaga aberta com a aposentadoria da ministra Ellen Gracie, que aguarda aprovação pelo Senado. A indicação foi publicada no DOU de 08 de novembro de 2011.
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veem a realização direta de diligências investigatórias pelo MP), em que pese ser papel da AGU, no rito das ações diretas, defender a constitucionalidade do diploma normativo impugnado14. Não se deve ignorar, entretanto, a possibilidade de que o ministro Dias Toffoli se declare impedido, nesse caso, por ter atuado anteriormente em nome da AGU, da mesma forma que tem se declarado impedido em casos semelhantes (como na ADI n.º 4215/TO, sobre concursos públicos no Estado de Tocantins, decisão de 09.06.2010, e na ADPF n.º 132/RJ, sobre uniões homoafetivas, decisão de 05.05.2011). É interessante perceber que, se a questão tivesse sido submetida a julgamento pelo plenário do STF em suas composições anteriores, a tese favorável à investigação pelo Ministério Público já teria sido vencedora por maioria (de 6 ou 7 votos, no mínimo), contabilizados os votos dos ministros Sepúlveda Pertence, Eros Grau e Ellen Gracie (e sem contar os votos dos ministro Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski). Dentre os ministros que se aposentaram desde o ano de 2003, quando a polêmica realmente aflorou no STF, apenas o ministro Nelson Jobim pronunciou-se contrariamente à investigação criminal pelo MP15 – e mesmo ele, sempre mencionado por ser contrário à investigação pelo MP, já a admitiu “para a apuração de crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente”, considerando que “A questão relativa à infância e à juventude é regulada por lei especial Segundo disposto no art. 103. § 3º, da CF/88, "Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado." Jé se decidiu, contudo, que “"(...) o munus a que se refere o imperativo constitucional (CF, artigo 103, §3º) deve ser entendido com temperamentos. O Advogado-Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade.” (ADI 1.616, Rel. ministro Maurício Corrêa, DJ 24/8/2001, grifo nosso). Como o STF ainda não fixou seu entendimento sobre o tema, não poderia o AGU desatender o comando expresso do art. 103 da CF/88, que tem como propósito permitir o exercício do contraditório nas ações diretas de inconstitucionalidade.
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Sobre a posição do ministro Nelson Jobim, ver Informativos do STF n.º 307 (RHC 81.326-DF) e n.º 325 (HC 82.865-GO) – este último pela admissão da investigação pelo MP mas apenas por se tratar de investigação de crime previsto no ECA (ver tópico 6).
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que tem previsão específica (art. 201, inciso VII, da Lei 8.069/90)” (STF, HC 82.965, Segunda Turma, Rel. ministro Nelson Jobim, DJ 30/4/2004).
6. Tendências identificáveis para o julgamento definitivo Em alguns casos, o STF acenou com a possibilidade da adoção de uma tese intermediária, segundo a qual seria admitida investigação criminal direta pelo Ministério Público para crimes cometidos por policiais – como decorrência de sua função constitucional de exercício do controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da CF/88) – e, para outros crimes, desde que haja lei expressa (a respeito desses crimes) estabelecendo tal atribuição específica. Noutras palavras, o MP poderia investigar somente crimes cometidos por autoridades policiais ou determinados crimes especificados em lei. Sobre crimes previstos em leis específicas, o STF assim se pronunciou em pelo menos três ocasiões. Nas primeiras delas, 2ª Turma decidiu que, por se tratar de crimes praticados contra menores e haver expressa previsão no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 201, VII, do ECA), a investigação produzida pelo MP era válida16. Noutra oportunidade a mesma 2ª Turma reconheceu a validade de determinada investigação por se tratar de crime praticado por membro do MP e haver previsão expressa na Lei Orgânica respectiva17. Abraçada essa tese, as leis que, tratando de crimes específicos, autorizam explicitamente a investigação direta pelo Ministério Público seriam: o Estatuto do Idoso (o art. 74, VI, da Lei n.º 10.741/03); o Estatuto da Criança e do Adolescente Informativo do STF n.º 325, HC 82.865-GO, rel. ministro Nelson Jobim, 14.10.2003 (HC82865). Também: HC 82.965, Segunda Turma, rel. ministro Nelson Jobim, DJ 30/4/2004.
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Informativo do STF n.º 506, HC 93224/SP, rel. ministro Eros Grau, 13.5.2008 (HC-93224).
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(art. 201, VII, da Lei n.º 8.069/90); a Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (art. 29 da Lei n.º 7.492/86), o Código Eleitoral (art. 356, §2º, da Lei n.º 4.737/67), a LC 75/93 e a Lei n.º 8.625/93 (Leis Orgânicas do MP, para crimes praticados por seus membros). Quanto a crimes cometidos por autoridades policiais, a tendência a que se consolide a atribuição para condução de procedimentos investigatórios diretamente pelo MP tem permeado alguns julgamentos, a exemplo do citado HC 93.930/RJ, relatado pelo ministro Gilmar Mendes e assim ementado: Habeas corpus. 2. Poder de investigação do Ministério Público. 3. Suposto crime de tortura praticado por policiais militares. 4. Atividade investigativa supletiva aceita pelo STF. 5. Ordem denegada. (RE 93.930/RJ, Relator(a): ministro GILMAR MENDES, julgado w/12/2010, DJE 03/02/2011 - ATA Nº 3/2011. DJE nº 22, divulgado em 02/02/2011 – grifo nosso).
Outros casos que podem ser citados são os de relatoria do ministro Celso de Melo no HC 89.837/DF e no RHC 83.492/RJ, ambos versando sobre crimes cometidos por delegados e outros agentes policiais. Neles, o exercício do controle externo da atividade policial é invocado não como um argumento isolado, mas como um reforço à indispensabilidade das investigações diretas do MP em casos que tais. A ementa do acórdão proferido no julgamento do RHC 83.492/RJ merece transcrição: “EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM “HABEAS CORPUS”. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL PREVALECENTE NA SEGUNDA TURMA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. (...) ALEGADA NULIDADE DO PROCESSO PENAL. CRIME DE CORRUPÇÃO ATIVA. ENVOLVIMENTO, EM REFERIDA PRÁTICA DELITUOSA,
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DE DELEGADOS DE POLÍCIA E DE OUTROS AGENTES POLICIAIS. POSSIBILIDADE DE O MINISTÉRIO PÚBLICO, ESPECIALMENTE EM TAL HIPÓTESE, FUNDADO EM INVESTIGAÇÃO PENAL POR ELE PRÓPRIO PROMOVIDA, FORMULAR DENÚNCIA CONTRA AGENTES INTEGRANTES DE ORGANISMOS POLICIAIS. VALIDADE JURÍDICA DESSA ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA. CONDENAÇÃO PENAL IMPOSTA A ALGUMAS DAS PESSOAS INVESTIGADAS, INCLUSIVE AO RECORRENTE. LEGITIMIDADE JURÍDICA DO PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. MONOPÓLIO CONSTITUCIONAL DA TITULARIDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA PELO “PARQUET”. TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS. CASO “McCULLOCH v. MARYLAND” (1819). MAGISTÉRIO DA DOUTRINA (RUI BARBOSA, JOHN MARSHALL, JOÃO BARBALHO, MARCELLO CAETANO, CASTRO NUNES, OSWALDO TRIGUEIRO, v.g.). OUTORGA, AO MINISTÉRIO PÚBLICO, PELA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, DO PODER DE CONTROLE EXTERNO SOBRE A ATIVIDADE POLICIAL. LIMITAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA AO PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECURSO ORDINÁRIO IMPROVIDO. (STF, HC 83.492/RJ, rel. CELSO DE MELLO, decisão de 16.12.2010, DJe n.º 22, de 02.02.2011 – grifos do original)
Sublinhe-se que, nos mencionados acórdãos de relatoria do ministro Celso de Mello, não se defende a limitação da investigação pelo MP a casos envolvendo policiais (nem a quaisquer crimes específicos); apenas se afirmou ali que, nessas situações, a atribuição investigatória do MP é ainda mais evidente, sem nenhuma pretensão de restringir sua atuação a esses crimes. Em 15.05.2012, a 2ª Turma do STF, sob a relatoria do min. Gilmar Mendes, ad-
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mitiu à unanimidade a investigação criminal do MP “em situações excepcionais”, mas sem depender de uma lei específica que a preveja. No caso julgado, cuidava-se de um crime de tráfico de influência praticado por vereador. Confira-se: “EMENTA: HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL REALIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. EXCEPCIONALIDADE DO CASO. POSSIBILIDADE. (…) ORDEM DENEGADA. 1. Possibilidade de investigação do Ministério Público. Excepcionalidade do caso. O poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle. O tema comporta e reclama disciplina legal, para que a ação do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos fundamentais. A atuação deve ser subsidiária e em hipóteses específicas. No caso concreto, restou configurada situação excepcional a justificar a atuação do MP: crime de tráfico de influência praticado por vereador.” (STF, HC 91.613/MG, rel. GILMAR MENDES, decisão de 15.05.2012, DJe n.º 182, de 17.09.2012 – grifos nossos)
Em arremate a este tópico, importa consignar que a tese restritiva, a nosso entender, não deve prosperar. Quanto a crimes cometidos por autoridades policiais, é óbvio que, cercean-
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do-se a atribuição investigatória do Ministério Público, estar-se-ia ferido de morte o art. 129, VII, da Constituição Federal. É simplesmente impossível realizar o controle externo da atividade policial sem que seja permitido ao MP investigar, sobretudo em casos mais graves. Quanto a esse ponto o entendimento do STF está razoavelmente consolidado e não parecem restar muitos questionamentos, como consta inclusive no HC 93.930/RJ, relatado pelo ministro Gilmar Mendes e linhas acima referido. No que toca à restrição à atuação do MP a crimes determinados com base no argumento da necessidade de lei específica (elencando os crimes a serem investigados), a razão do equívoco é simples: em outros dispositivos – art. 8º da LC 75/93 e art. 26 da Lei n.º 8.625/93, além do art. 47 do CPP – prevê-se a mesma atribuição investigatória, sem limitá-la a nenhum crime. A previsão da investigação do MP para ilícitos determinados é apenas um reforço ao que já está previsto nas leis orgânicas do Ministério Público, além realçar a premência da atuação do órgão em situações que tais, certamente porquanto reputadas mais graves ou sensíveis. A previsão dos poderes investigatórios do MP em leis diversas não tem o condão de simplesmente “revogar” a expressa previsão das leis orgânicas do parquet. Não há nada na Constituição que permita afirmar que uma lei que confere atribuição investigatória somente será constitucional se e somente se limitar essa atribuição a crimes específicos. E se o legislador, em relação ao Ministério Público, fez a clara opção de não limitar essa investigação a crimes específicos, não cumpre ao STF substituir essa opção por uma outra que julgue, por qualquer razão, mais adequada ou conveniente. Se a restrição se der para casos excepcionais, a exemplo de crimes “contra a administração pública” ou “cometidos por agentes públicos” (conforme sinalizado no julgamento do HC 91.613/MG, também trazido acima), é muito importante que o STF defina o que se deve entender por casos excepcionais, fixando claramente os cri-
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térios para que se reconheça tal excepcionalidade. A nosso ver, todavia, quaisquer que sejam estes critérios, dificilmente deixarão de ostentar certa dose de arbitrariedade, considerando que nem a lei nem Constituição restringiram a atribuição investigatória do MP a situações específicas18. O fato é que a investigação criminal não é uma atribuição exclusiva da polícia (como poderia indicar uma leitura enviesada do art. 144 da CF/88) e a realização de diligências investigatórias diretamente pelo MP é plenamente compatível com o modelo processual brasileiro (acusatório) e com sua missão constitucional19.
7. Conclusão Considerando as decisões proferidas em casos concretos por turmas do STF (controle difuso) e o fato de que o julgamento ainda não foi concluída pelo pleno daquele tribunal, a verificação da situação atual do debate acerca da constitucionalidade da investigação criminal direta pelo Ministério Público tem suscitado o interesse e muitas dúvidas por parte da doutrina e de operadores do direito. O presente artigo é uma singela tentativa de apresentar aos interessados no assunto um panorama fiel da controvérsia perante o STF. Levando-se em conta a importância da questão, confia-se que a Corte Maior tenha condições de apresentar à comunidade jurídica, em futuro próximo, sua palavra definitiva.
18 O que não significa que o MP deve investigar sempre. Para que o MP instaure uma investigação, deve indicar, em seu despacho inaugural (devidamente fundamentado, como todos os seus atos), porque essa investigação direta será a mais eficiente (i.e, aquela que, no caso concreto, melhor atende ao interesse público). Sobre outros limites impostos à investigação pelo MP discorremos com maior vagar em: CALABRICH, Bruno. Investigação criminal pelo Ministério Público: fundamentos e limites constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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Idem, ibidem.
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As principais alterações introduzidas pela Lei 12.403/2011 no sistema das medidas cautelares pessoais Andrey Borges de Mendonça
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Introdução
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CPP de 1942, seu contexto histórico e as alterações posteriores
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A Lei 12.403 e suas principais inovações
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Conclusão
Procurador da República em Ribeirão Preto/SP. Mestre pela Universidade Pablo de Olavide na Espanha. Mestrando pela Universidade de São Paulo. Professor universitário. Email: andreyborges@yahoo.com.br.
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1. Introdução No dia 4 de julho de 2011 entrou em vigor a Lei 12.403/2011, alterando sobretudo o capítulo IX do Código de Processo Penal (CPP), antes designado “da prisão e da liberdade provisória” e que passou a ser nominado “Da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória”. Interessante anotar que, embora tenham sido alterados apenas 32 dispositivos do CPP pela Lei 12.403/2011, pode-se dizer que há outro sistema de medidas cautelares pessoais após a entrada em vigor desta lei. A ideia, realmente, era remodelar completamente a disciplina processual penal no tocante à prisão e à liberdade, a qual ficara tão prejudicada, em termos de sistemática, em razão das diversas alterações que ocorreram desde a edição do CPP, há 70 anos. Neste sentido, o Projeto de Lei 4.208/2001 (posteriormente convertido no Projeto 111/2008) foi elaborado por uma Comissão de Juristas1, constituída pelo Ministro da Justiça, José Carlos Dias, por meio da Portaria 61/2000, com o intuito de reformar todo o CPP. Referida comissão apre1 Os juristas que compunham referida Comissão eram Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rui Stoco, Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti.
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sentou, em dezembro de 2000, sete anteprojetos2, dentre eles o que alterava o capítulo das medidas cautelares pessoais (Projeto 4.208). Antes de adentrarmos propriamente ao estudo das alterações introduzidas, urge que seja contextualizado o atual CPP, notadamente a sua origem histórica e seus princípios reitores relacionados às medidas cautelares pessoais, para que possamos, após analisar algumas alterações legislativas relevantes, compreender o verdadeiro sentido da Lei 12.403/2011.
2. CPP de 1942, seu contexto histórico e as alterações posteriores O Código de Processo Penal, o Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942. Foi editado durante o Estado Novo, período no qual Getúlio Vargas governou o Brasil com forte centralização de poderes. Quando da edição do Código estava em vigor a Constituição de 1937, outorgada e de inspiração nitidamente autoritária e policialesca, características estas que se refletiram no CPP editado. Sua inspiração foi o CPP italiano de 1930, editado no auge do fascismo italiano, e inspirado pelas ideias da Escola Técnico-Jurídica, que renegava o princípio da presunção de inocência e adotava o da presunção de culpabilidade. Na Itália, como lembra Maurício Zanoide, a referida Escola desenvolveu posturas políticas escondidas sob tecnicismos dogmáticos. Vincenzo Manzini, o maior representante da Escola Técnico-Jurídica, cujos argumentos inspiraram o legislador italiano de 1930, afirmava que a presunção de inocência era inaceitável no processo penal, pois não seria nem presunção e nem inocência. Sustentava que não se deveria falar em inocente, pois seria inviável compatibilizar a presunção de inocência com a existência de medidas cautela-
2 Sendo que quatro já foram convertidos em lei: Leis 10.792/2003, 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008.
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res (como a prisão, por exemplo)3. Defendia, ainda, que durante o procedimento não havia nem culpado e nem inocente, mas apenas acusado4. Ademais, sobre a presunção, Manzini afirmava que, tecnicamente, seria meio de prova indireta, que se extrairia da experiência comum. E a “experiência comum do processo penal” mostraria, segundo sua visão, que a maioria dos acusados era condenada. A presunção, portanto, deveria ser de culpa5. Essas ideias foram aceitas pelo texto italiano de 1930 e foi justamente esse o modelo que influenciou e inspirou o CPP brasileiro de 1942. Neste contexto de presunção de culpabilidade, não era de se espantar que o regime das medidas cautelares pessoais no CPP brasileiro partisse de uma visão autoritária, que estabelecesse a prisão como regra ao longo do procedimento. Vejamos, neste passo, qual era o cenário então existente, no tocante às medidas cautelares pessoais. Na redação original do CPP, eram previstos quatro tipos de prisões processuais: a prisão em flagrante, a prisão preventiva; a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível (Art. 594) e a prisão decorrente de pronúncia (Art. 408). Essas duas últimas eram automáticas, como efeitos imediatos do ato a que faziam referência (sentença condenatória recorrível e pronúncia, respectivamente). A prisão preventiva, por sua vez, também era obrigatória em todo e qualquer crime 3 MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 128/129.
4 MACHADO, Rogerio Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. 2ª ed., revista, ampliada e atualizada de acordo com a Lei 12.403/2011. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 72.
5 MORAES, Maurício Zanoide de. Ob. cit., p. 132/137, onde o autor demonstra como os argumentos técnicos da Escola Técnico-Jurídica buscam, em verdade, ocultar posturas políticas fascistas.
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cuja pena máxima superasse dez anos, nos termos da redação originária do CPP. Assim, bastava ser acusado por um crime grave, com pena máxima cominada superior a dez anos, que o agente deveria ser recolhido necessariamente ao cárcere. De outro giro, uma vez ocorrida a prisão em flagrante - vista como espécie prisional autônoma e independente – o imputado deveria, como regra, ficar na prisão até o final do processo. Somente em três hipóteses o agente poderia responder ao processo em liberdade, caso fosse preso em flagrante: a) se a infração fosse daqueles que se livrasse solto (Art. 321), ou seja, se não fosse cominada pena privativa de liberdade ou se esta não superasse três meses6; b) se o agente tivesse praticado o fato sob o manto de uma causa excludente de antijuridicidade (Art. 310)7 e, por fim, c) se afiançável a infração. Veja, assim, que no regime originário do CPP, uma vez preso em flagrante, a fiança era praticamente a única hipótese de o agente responder o processo em liberdade, uma vez que as duas primeiras hipóteses eram bastante restritivas. Se a infração fosse inafiançável, a regra era o acusado permanecer preso durante todo o processo. Naquela época – e isto é bastante diverso de hoje – ter direito ou não à fiança era praticamente sinônimo de ficar ou não em liberdade durante o processo. Deste ligeiro panorama é possível extrair que a prisão processual era a regra na sistemática originária do CPP. A liberdade provisória, por sua vez, era excepcional e como contracautela à prisão em flagrante decretada. Paradoxalmente, durante outro período de exceção, algumas leis modificaram Neste caso teria direito à “liberdade provisória” sem vínculo. Em verdade, era uma contradição em termos falar em uma liberdade provisória que não trouxesse qualquer vinculação ao processo. Esta espécie de liberdade provisória não existe mais no atual ordenamento jurídico brasileiro.
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7 Obteria, nesta hipótese, liberdade provisória vinculada sem fiança, com o dever de comparecer a todos os atos do processo.
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e até mesmo relaxaram – com intuitos escusos, como se verá – aquele panorama. Assim, durante o período da ditadura militar brasileira, iniciado com o Golpe de 1964, são editadas três leis que alteram o sistema cautelar e acabam retirando-lhe toda coerência. A primeira foi a Lei 5.349/67, que acaba com a malfadada prisão preventiva obrigatória, alterando a redação do Art. 312 do CPP. Posteriormente, edita-se a Lei 5941/73, que ficou conhecida como “Lei Fleury”, que permitiu exceção à prisão automática em caso de sentença condenatória recorrível ou de pronúncia, possibilitando a liberdade provisória se o agente fosse primário e de bons antecedentes. Esta Lei visou a beneficiar o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que liderou o chamado Esquadrão da Morte em São Paulo e foi o verdadeiro ícone da tortura e da corrupção policial na época da ditadura militar brasileira. Em razão da atuação corajosa do Procurador de Justiça Hélio Bicudo, o referido delegado foi investigado e acusado de homicídio doloso. Como a situação trouxe riscos para ele, que era o personagem-símbolo do regime militar, a lei processual penal foi alterada em regime de urgência e aprovada em apenas trinta dias no Congresso Nacional8, dando origem à Lei que hoje é conhecida pelo nome daquele que visou beneficiar9. Por sua vez, a Lei 6.416/1977 introduziu uma nova hipótese de liberdade provisória sem fiança, no mesmo patamar daqueles que atuassem ao manto de alguma causa excludente de antijuridicidade. Assim, incluiu-se um parágrafo único ao Art. 310, para que fosse concedida liberdade provisória sem fiança ao preso em flagrante, sempre que não houvesse necessidade da prisão preventiva. A partir de então, uma vez preso o agente em flagrante, a prisão somente deveria ser mantida se estivessem presentes os fundamentos da prisão preventiva. Como a Lei não fazia distinção entre infrações inafiançáveis e afiançáveis, o juiz deveria 8
MACHADO, Rogerio Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas, p. 37.
BICUDO, Hélio Pereira. Meu Depoimento sobre o Esquadrão da Morte. 10. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, especialmente p. 19 e 88/89.
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conceder liberdade provisória (sem fiança e com dever apenas de comparecer a todos os atos do processo) a todos aqueles presos em flagrante, quando não fosse hipótese de se decretar a prisão preventiva. Neste caso, o vínculo do agente ao processo era apenas o de comparecer a todos os atos processuais (vínculo muito menos rigoroso do que daquele que obteve a liberdade provisória com fiança). Esta Lei acabou com toda a coerência do sistema, uma vez que passou a ser admitida a liberdade provisória sem fiança para todos os crimes graves, mesmo que inafiançáveis. E o pior: para crimes inafiançáveis, caberia apenas liberdade provisória sem fiança do Art. 310, parágrafo único, mais tênue que a liberdade provisória com fiança. Ou seja, para crimes menos graves (afiançáveis), maiores vínculos com o processo (liberdade provisória com fiança) e para crimes mais graves (afiançáveis), menos vínculos processuais (liberdade provisória sem fiança)! Explica-se, por isto, porque a fiança perdeu praticamente toda a sua importância após 197710, uma vez que os juízes, para evitar a quebra da isonomia, concediam, tanto para infrações afiançáveis quanto inafiançáveis, a liberdade provisória do Art. 310, parágrafo único (sem fiança). Vale ressaltar que desde a edição desta Lei, naquele ano, passa a ser possível a liberdade provisória para crimes inafiançáveis. Posteriormente, é editada a Constituição de 1988, que modifica toda a principiologia vigente, ao estabelecer a prisão como exceção e assegura, expressamente, o princípio da presunção de inocência dentre as garantias fundamentais do indivíduo (Art. 5º, inc. LVII), além de diversas outras garantias relacionadas à prisão. Com isto, o descompasso entre o vetusto CPP e a principiologia constitu-
A única função prática que a fiança manteve foi a de permitir que o delegado antecipasse a soltura do preso, naquelas infrações apenadas com detenção que fossem afiançáveis, podendo o preso em flagrante ser solto imediatamente após a lavratura do auto de prisão e pagamento da fiança, sem ter que aguardar a decisão judicial sobre a liberdade provisória.
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cional se mostrou ainda maior. Por fim, as Leis 11.719 e 11.689, ambas de 2008, acabaram com a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e da pronúncia como efeitos automáticos, revogando-se o artigo 594 e o modificando-se a redação do Art. 408 (que passou a ser tratada no Art. 413 do CPP), para dispor que, nestes momentos, o juiz poderá decretar a prisão preventiva, caso presentes seus fundamentos. O ordenamento, a partir de então, expressamente, só passa a ter três espécies de prisão cautelar (preventiva, em flagrante e temporária, esta última criada pela Lei 7960/89). Quando já se esperava a edição de um novo CPP, que revogasse integralmente o vetusto CPP – especialmente com a aprovação do Projeto de Lei do Senado 156/2009 pelo Senado - veio, então, a Lei 12.403/2011, que alterou todo o capítulo das medidas cautelares pessoais. Esta Lei será o objeto de nossa análise a partir deste passo.
3. A Lei 12.403 e suas principais inovações Como já dito, a Lei 12.403/2011 alterou o capítulo das medidas cautelares pessoais. Embora nem todos os dispositivos tenham sido alterados – foram 32 dispositivos, como mencionado – não é exagero dizer que hoje possuímos um sistema de medidas cautelares totalmente diverso daquele existente até 3 de julho de 2011. A ideia, realmente, era remodelar completamente a disciplina processual penal no tocante à prisão e à liberdade, a qual ficara tão prejudicada, em termos de sistemática, em razão das diversas alterações que ocorreram desde a edição do CPP, há 70 anos. Embora não seja possível neste espaço analisar todas as alterações e impli-
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cações, diretas e indiretas, incluídas pela nova legislação, buscaremos, depois de seis meses de vigência da referida Lei, apontar aquelas que possuem maior importância e que mais atingiram a realidade então existente11.
3.1 Referência ao princípio da proporcionalidade. A prisão como ultima ratio. No estudo e aplicação das medidas cautelares, há uma tensão permanente entre os fins do processo penal. De um lado, o estabelecimento de garantias em prol do acusado, impondo restrições ao exercício do poder punitivo, mediante a construção de um modelo normativo que assegure o indivíduo, estabelecendo garantias contra o abuso por parte do poder estatal; de outro, o interesse na efetividade do processo, na busca de valores também constitucionalmente estabelecidos. Neste sentido, o princípio da proporcionalidade justamente deve ser visto como o “fiel da balança”, para auxiliar a interpretação ótima a se buscar no equilíbrio entre os bens jurídicos em jogo. Não há dúvidas, em verdade, de que o princípio da proporcionalidade possui fundamento constitucional – seja como decorrência do Estado de Direito, do princípio do devido processo legal em sentido substancial (Art. 5º, inc. LIV)12 – como entende o STF –, seja em razão “da própria estrutura dos direitos fundamentais”, verdadeiros mandados de otimização13 ou, ainda, do caráter objetivo 11 Para análise de todas as alterações introduzidas e, ainda, de todas as medidas cautelares pessoais já à luz da Lei 12.403/2011, ver MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011.
Neste sentido, STF, ADIn 1.158-8/AM, medida liminar, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 24.11.1994, maioria. 12
DA SILVA, Luís Virgílio Afonso. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798, abr. 2002, p. 43.
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dos direitos humanos14. De qualquer sorte, o legislador estabeleceu, expressamente, alguns dos desdobramentos do princípio da proporcionalidade, sobretudo no Art. 282 do CPP. Pelo princípio da proporcionalidade, pode-se verificar uma vertente negativa e outra positiva. Pela vertente negativa – também conhecida como proibição do excesso - exige-se que toda medida cautelar seja adequada, necessária e proporcional em sentido estrito. A análise, portanto, se uma medida cautelar é ou não proporcional perpassa por este “teste”, justamente na ordem indicada. Inicialmente, exige-se, pelo subprincípio da adequação, que a medida seja apta para atingir o resultado visado. A relação, portanto, é de meio e fim, verificando-se a potencialidade que a medida possui para atingir determinada finalidade. Mas quais são as finalidades legítimas das medidas cautelares pessoais? O Art. 282, inc. I, esclarece que toda e qualquer medida cautelar – da mais tênue à mais gravosa - deve buscar apenas três finalidades: aplicação da lei penal; para a investigação ou a instrução criminal e para evitar a prática de infrações penais. Este dispositivo tem tríplice importância: a) indica a finalidade de toda e qualquer medida cautelar pessoal, da mais tênue à mais gravosa; b) qualquer medida cautelar que persiga finalidade diversa será ilegal; c) não há nenhuma medida cautelar automática, uma vez que necessariamente o juiz deve aplicá-la para buscar uma destas três finalidades15. Portanto, nenhuma medida cautelar pode ser imposta automaticamente pelo juiz. Importa ressaltar, embora já tenha sido dito: não há diferença teleológica entre a prisão cautelar e as medidas alter14 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o Direito Penal e os Direitos Fundamentais Entre Proibição de Excesso e de Insuficiência. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>.
Destaque-se que hoje, em razão da conjugação do Art. 312, caput, do CPP com o Art. 282, inc. I, a expressão “garantia da ordem pública” necessariamente deve ser interpretada como impedimento para a prática de novas infrações penais. Devem ser afastadas, segundo nos parece, outras interpretações que se afastem desta finalidade.
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nativas à prisão previstas no Art. 319 do CPP. Em verdade, todas devem buscar uma das três finalidades do Art. 282, inc. I, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade, em seu subprincípio da adequação. Infere-se, assim, que a diferença ontológica entre a prisão e as demais medidas alternativas é apenas de intensidade e não de finalidade. Mas para o juiz saber se a medida será ou não apta a alcançar a finalidade indicada no Art. 282, inc. I, deverá analisar o caso concreto (adequação objetiva) e o agente que está sendo investigado ou processado (adequação subjetiva). O depósito do passaporte em juízo, por exemplo, pode ser medida inadequada para um agente que já fugiu para o exterior em outras situações e que possua ali bens e residência, assim como cidadania estrangeira, mas pode ser adequada para outro réu, em razão de suas circunstâncias. Justamente por isso, o Art. 282, inc. II, determina que o juiz aplique as medidas cautelares analisando a adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. Superada a análise da adequação, urge que seja enfocado o subprincípio da necessidade, impondo que, dentre as medidas adequadas, seja escolhida aquela menos gravosa. Em outras palavras, o investigado ou acusado tem direito à restrição menos gravosa, dentre aquelas adequadas. Justamente neste sentido, o Art. 282, § 6o, afirma que “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (Art. 319)”. Estabelece-se, assim, o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva. Embora pela sistemática anterior já estivesse assentado o caráter excepcional da prisão cautelar, especialmente em decorrência do princípio da presunção de inocência, na prática, se verificava ainda um alto número de presos provisórios no Brasil. Porém, para que seja possível o estabelecimento da prisão provisória como ultima ratio, era imprescindível o estabelecimento de medidas alternativas à prisão, conforme
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veremos. Por fim, o princípio da proporcionalidade, em sentido estrito significa um balanceamento entre a restrição ao direito fundamental e as vantagens da finalidade perseguida. Como afirma Humberto Ávila, a finalidade pública buscada deve ser tão valorosa que justifique tamanha restrição, de sorte que se “exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. A pergunta que deve ser formulada é a seguinte: O grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causado aos direitos fundamentais?”.16 Especificamente no campo das medidas cautelares, a proporcionalidade em sentido estrito significa que a medida cautelar deve ser proporcional à pena que será provavelmente aplicada ao final do processo. Em outras palavras, impossível que a medida cautelar seja mais gravosa e aplique ao réu um malefício maior que a própria pena aplicável ao final do processo, pois neste caso, a medida cautelar – que é instrumento - estaria sendo mais gravosa que a própria pena – que é o resultado final. Seria, na conhecida metáfora, como se o remédio trouxesse efeitos colaterais mais gravosos que a doença a ser combatida. Ao lado da proporcionalidade em sentido negativo (proibição do excesso), decorre do princípio da proporcionalidade a vedação à proteção deficiente. Significa, assim, que não se pode admitir que determinada interpretação leve à total desproteção aos bens jurídicos constitucionais. Os poderes estatais estão vinculados a uma proteção eficiente aos bens jurídicos, sob pena de afronta ao princípio da proporcionalidade. Neste sentido, o STF já reconheceu o princípio da
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 165 e 175.
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vedação à proteção deficiente17.
3.2 Vedação à decretação de medidas cautelares de ofício pelo juiz, durante as investigações Em sintonia com o sistema acusatório, que deflui do texto constitucional, a Lei 12.403/2011 vedou ao juiz a decretação de ofício de qualquer medida cautelar durante o inquérito policial. Neste sentido, o Art. 282, § 2o , in verbis: “As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público (grifo nosso)”. Desta feita, o juiz não poderá, durante as investigações e sem provocação do titular da ação penal, decretar qualquer medida cautelar. Se esta é um instrumento a serviço do processo ou de seu resultado final, deve a sua iniciativa, sobretudo antes do início da ação penal, ficar relegada à iniciativa do titular da ação penal. Do contrário, imagine-se a seguinte situação: o juiz decreta prisão preventiva durante o inquérito policial, mas o membro do Ministério Público entende que o caso é de arquivamento! A incoerência desta postura já demonstra a inviabilidade de o juiz decretar medidas cautelares de ofício, antes de o titular da ação penal ter provocada a jurisdição. Mas vamos além. Deflui deste entendimento que, durante as investigações,
O Ministro Gilmar Mendes expressamente fez menção à proibição da proteção deficiente no RE 418.376 (julgado em 9.2.2006) e na ADIn 3.112 (julgada em 26.10.2007). Também se utilizou como fundamento na ADI 1.800/DF (julgada em 11.6.2007), Tribunal Pleno, Rel. para acórdão Min. Ricardo Lewandowski, afirmando que o Estado deve intervir para proteção eficaz dos hipossuficientes, especialmente no tocante aos direitos de cidadania. Também na ADIn 3.510 (julgada em 29.5.2008), em que era questionada a legitimidade da Lei 11.105/2005, células tronco, conforme votos Celso de Mello e Gilmar Mendes.
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se o membro do Ministério Público pede determinada medida, o juiz não poderá decretar medida mais gravosa, pois do contrário estará agindo de ofício em relação a esta parte. Assim, por exemplo, se o MP pede a decretação da fiança, não pode o juiz decretar a prisão preventiva. Outra decorrência da impossibilidade de o juiz decretar de ofício as medidas cautelares durantes as investigações – e neste ponto o texto legal deve ser interpretado conforme o texto constitucional – é a inviabilidade de a Autoridade Policial solicitar diretamente ao juiz medidas cautelares. Ora, se a Autoridade Policial não possui capacidade postulatória – tanto assim que não poderá recorrer em caso de indeferimento -, e o juiz não pode decretar de ofício as medidas cautelares, o deferimento de qualquer medida cautelar, inclusive a prisão, sem a participação do Ministério Público está eivado de ilegalidade18. Questão que não é pacífica na doutrina e na jurisprudência é se o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante e verificando que é o caso de decretação da prisão preventiva, poderia convertê-la de ofício, nos termos do Art. 310, inc. II, do CPP. Para uma corrente, não se trataria propriamente de decretação da prisão, uma vez que o juiz apenas estaria mantendo um estado prisional anteriormente decretado, de sorte que ele atuaria de ofício. Para outros, aplicar-se-ia a disposição do Art. 282, §2º, somente podendo o juiz decretar a prisão preventiva em substituição à prisão em flagrante se houver pedido ministerial. Por cautela, portanto, urge que o membro do Ministério Público sempre requeira a conversão da prisão em flagrante em preventiva, quando entenda que é o caso, para evitar a
18 Neste sentido é o posicionamento da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, conforme Voto 1008/2010. 06.12.2010: DOUGLAS FISHER; Procedimento nº 1.00.001.000095/2010-86; Autor: Corregedoria-Geral de Polícia Federal – Superintendência Regional de Polícia Federal no Tocantins-TO. Para maior aprofundamento, ver MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais, p. 67/70.
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soltura indevida do agente.
3.3. Adoção do contraditório prévio Até a edição da Lei 12.403, o juiz, ao decretar a prisão cautelar ou qualquer outra medida cautelar, não tinha necessidade de oitiva prévia daquele que seria atingido pela restrição. O contraditório seria exercitado a posteriori, de maneira diferida. A nova legislação, porém, estabeleceu, no Art. 282, § 3º, o contraditório prévio como regra19. O intuito do dispositivo é permitir que o investigado ou acusado possa colacionar aos autos elementos que venham a afastar o alegado risco que sua liberdade possa trazer para o processo ou para a sociedade. Importa destacar que a Lei não previu o procedimento e nem a forma para oitiva da parte contrária. O prazo, portanto, deverá ser fixado pelo juiz. Se ainda estiver durante a fase de investigações e não houver advogado constituído, urge que seja nomeado advogado dativo ao investigado, pois não haveria sentido em ouvir este último, sobretudo se não for advogado. De outro giro, embora o texto legal se refira à oitiva da parte contrária quando houver pedido, o juiz, durante o processo, também deve ouvir as partes antes de decretar qualquer medida de ofício, pois não haveria sentido em tratar as situações de maneira diversa se a finalidade é a mesma. Da mesma forma, embora não seja o texto legal expresso, urge a oitiva da parte prejudicada em caso de descumprimento da medida, antes de aplicar o Art. 282, § 4º. Por fim, o legislador prevê duas situações em que não haverá contraditório Vejamos a disposição legal: “Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo”.
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prévio: nos casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida. Em nossa opinião, a aplicação do contraditório prévio deve se voltar especialmente às medidas alternativas à prisão. No caso de decretação da prisão, a regra será que a oitiva da parte contrária trará ineficácia à medida. Não teria sentido o juiz intimar o investigado ou acusado sobre pedido de prisão preventiva, em vista da ameaça de matar determinada testemunha ou de fuga do país. De qualquer sorte, imprescindível que o juiz motive e indique, concretamente, por qual motivo há urgência ou perigo de ineficácia da medida, sob pena de nulidade.
3.4. Previsão da prisão domiciliar O legislador estabeleceu a prisão domiciliar, como medida substitutiva à prisão preventiva em situações humanitárias. Assim, quando a segregação do acusado se mostre extremamente desumana, o legislador admite a substituição da prisão preventiva pela domiciliar. As situações que a admitem estão elencadas nos artigos 319 do CPP (maior de 80 anos, extremamente debilitado por motivo de doença grave, imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos de idade ou com deficiência e gestantes a partir do 7º mês de gravidez ou sendo esta de alto risco) e somente se deve admitir a prisão domiciliar se demonstrada situação em que aquela se torne extremamente desumana. A interpretação, portanto, deve ser teleológica. Assim, não basta ter mais de 80 anos para fazer jus à prisão domiciliar, por exemplo. Somente naquelas hipóteses em que estiver demonstrada grave situação pessoal é que deverá ser deferida, e o acusado poderá, então, aguardar o processo em sua residência. Embora a prisão domiciliar esteja prevista como medida substitutiva da prisão preventiva (ou seja, é medida que a substitui, uma vez que foi anteriormente decretada, pois as medidas alternativas do Art. 319 se mostraram insuficientes
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ou inadequadas), é possível a aplicação da prisão domiciliar como uma das formas alternativas à prisão, por analogia e com base no poder geral de cautela. Assim, se o juiz entender que a prisão preventiva é muito gravosa para a situação concreta e que a prisão domiciliar poderá neutralizar o risco, não nos parece que haja impedimento em aplicá-la, até porque se estará impedindo a decretação da prisão preventiva em situações desnecessárias. De qualquer sorte, o período que se cumpriu em prisão domiciliar será descontado na pena privativa final aplicada, conforme posição dos Tribunais Superiores20.
3.5. Previsão das medidas alternativas à prisão. Superação do caráter bipolar do sistema. Talvez uma das grandes modificações do sistema tenha sido a introdução de diversas medidas alternativas à prisão cautelar, arroladas principalmente no Art. 319 do CPP21, que previu nove medidas alternativas. Buscou-se superar o caráter bipolar do antigo sistema, que concedia ao juiz apenas dois instrumentos para as mais diversas situações de risco, quais sejam: a prisão ou a liberdade provisória, com tênues vínculos. Não havia instrumentos de gravidade intermediária entre a total restrição da liberdade (prisão cautelar) e a liberdade praticamente total (liberdade provisória com ônus de comparecer aos atos do processo). A nova legislação, com intuito de superar referida deficiência – até mesmo para permitir Vide, neste sentido, STJ, HC 11.225/CE, Rel. Min. Edson Vidigal, Quinta Turma, julgado em 6.4.2000, DJ 2.5.2000, p. 153.
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21 Diz-se principalmente porque há medidas alternativas à prisão em outros dispositivos, notadamente nos artigos 320 (depósito do passaporte), no Art. 310, parágrafo único (comparecimento aos atos do processo, quando o agente atuou em causa excludente da ilicitude) e, para alguns, também nos artigos 317 e 318 (prisão domiciliar)
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relegar a prisão preventiva como ultima ratio - criou diversas medidas alternativas à prisão, que poderão ser aplicadas com o intuito de impedir o recolhimento ao cárcere, sempre que se mostrarem adequadas e suficientes para neutralizar o risco indicado. São medidas que permitirão ao juiz aplicar o princípio da adaptabilidade, dentro de um marco de tutela jurisdicional diferenciada. Como bem lembra Gustavo Badaró, as três características das medidas alternativas são a) preferibilidade; b) cumulatividade e c) variabilidade22. Pela primeira característica – “reverso da moeda” do princípio da ultima ratio da prisão preventiva23 - o magistrado deve preferir as medidas alternativas à prisão, sempre que se mostrarem adequadas e suficientes para neutralizar o risco24. A cumulatividade significa que o juiz poderá aplicar as medidas isolada ou cumulativamente, nos termos do Art. 282, §1º e Art. 319, §4º, moldando-as ao caso concreto (adequação objetiva) e às circunstâncias pessoais do agente (adequação subjetiva). Para tanto, porém, as medidas devem ser logicamente compatíveis. Por fim, a variabilidade significa que o magistrado poderá revogar a medida, substituí-la, reforçá-la ou atenuá-la, nos termos do Art. 282, §5º, adaptando a medida à situação concreta dos autos, que poderá modificar-se ao longo do procedimento. Vejamos, sumariamente, as medidas previstas no Art. 319 do CPP25. Desde 22 BADARÓ, Gustavo Henrique. Medidas alternativas à prisão: comentários aos artigos 319-350 do CPP, na redação da Lei 12.403/2011. In: FERNANDES, OG (Coordenador). Medidas Cautelares no processo penal. Prisões e suas alternativas. Comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011. São Paulo: RT, 2011, p. 222/224.
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A expressão é de Gustavo Badaró, Ob. cit., p. 223.
24 O STF já teve oportunidade de aplicar as medidas alternativas de maneira preferencial à prisão preventiva. Veja , neste sentido, o HC 106446, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 20/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-215 DIVULG 10-11-2011 PUBLIC 11-11-2011)
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Para análise aprofundada de todas as medidas, ver MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras
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logo é importante lembrar que as medidas alternativas à prisão poderão ser aplicadas sempre que houver previsão de pena privativa de liberdade, nos termos do Art. 283, §1º. A primeira é o comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades (Art. 319, inc. I). A finalidade aqui é manter o vínculo do acusado com o processo. A periodicidade não foi estipulada pelo legislador, que deixou ao prudente critério do magistrado. Assim, este poderá fixar o comparecimento de maneira mensal (ou até em prazo maior), semanal ou até diária, caso a situação concreta justifique. A segunda medida é a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações (inc. II). Aqui se busca afastar o investigado ou acusado de determinados espaços que possam estimular a prática delitiva. Visa afastar a chamada “ocasião delitiva”, precavendo-se contra novas práticas delitivas. Assim, por exemplo, poderá o juiz determinar o afastamento de torcedor do estádio de futebol, se demonstrado que o agente sempre se envolve em delitos no local. O que se busca proteger, portanto, é a incolumidade pública contra a prática de novas infrações penais. Será bastante útil em delitos que envolvam lesões corporais e danos a determinados bens públicos ou privados. A terceira medida é a proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante (inc. III). Veja que a proteção aqui pode ser para a vítima ou a testemunha. Pode o juiz, assim, determinar que o investigado não se medidas cautelares pessoais, p. 425/482.
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aproxime da vítima ou da testemunha ou, ainda, que não mantenha contato com ela, em casos de violência. Para facilitar o controle, melhor que o magistrado fixe metricamente a distância, permitindo-se analisar se houve ou não descumprimento da medida. Por outro lado, a proibição de contato pode ser não apenas física, mas também por meio virtual (internet, redes sociais, msn, etc.). Por fim, é possível que a proibição de manter contato seja com comparsa, quando demonstrado que isto poderá levar a novas práticas delitivas. Estas medidas poderão ser bastante úteis em caso de crimes que envolvam violência contra pessoa determinada, em crimes sexuais e em caso de quadrilha (proibição de manter contato com comparsas). A quarta medida é a proibição de ausentar-se da comarca “quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução” (inc. IV). Aqui houve dois equívocos por parte do legislador. O primeiro foi o de restringir a proibição de ausentar-se apenas da comarca, quando deveria ser mais ampla, para permitir a proibição de ausentar-se do país. Esta falha pode ser superada pela conjugação com o Art. 320 do CPP, que previu que a “proibição de ausentar-se do País será comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas”. Deve o juiz, ainda, oficiar à Polícia Federal para evitar a emissão de outro passaporte. Vale relembrar que se o juiz determinar a proibição de ausentar-se do país; no caso de estrangeiros, deve comunicar aos respectivos consulados, para se evitar a emissão de passaportes de emergência. A segunda falha do dispositivo é afirmar que a medida de proibição de ausentar-se da comarca pode ser adotada quando “seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução”. Ora, a regra é que a proibição de ausentar-se
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da comarca seja determinada por outro motivo: para assegurar a aplicação da lei penal. De qualquer sorte, não nos parece inviável a decretação da medida para evitar a fuga, por interpretação sistemática com o Art. 282, inc. I, do CPP, que disciplina a finalidade de todas as medidas cautelares pessoais. A quinta medida prevista é o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos (inc. V). Tal medida poderá ser importante para vincular o investigado ao domicílio e, ainda, para impedir a prática de infrações comumente praticadas no período noturno (estupro, roubos, furtos, etc.). Outra medida, prevista no inc. VI, é a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais. Assim, por exemplo, se o agente exerce alguma função pública ou de natureza econômica e a utiliza para a prática de infrações penais, poderá o juiz determinar a sua suspensão temporária. Segundo o entendimento do STF, em caso de servidores públicos suspensos de suas funções, não é possível a diminuição do salário, em razão do princípio da presunção de inocência26. Não podemos concordar com tal posição, uma vez que a diminuição dos vencimentos decorre da ausência de prestação de serviços por parte do agente público27. Ademais, seria tratar de maneira anti-isonômica servidores que continuam a trabalhar e aqueles que deixam de prestar qualquer serviço. Por fim, imaginem-se dois médicos, um do Sistema Único de Saúde e outro da iniciativa privada. Se ambos forem suspensos de suas funções, em ra-
STF, RE 482.006, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 7.11.2007, DJe 162, divulgado em 13.12.2007, publicado em 14.12.2007, DJ de 14.12.2007.
26
Neste sentido decidiu o STJ, RMS 21.778/MT, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 31.10.2007, DJ de 26.11.2007, p. 247.
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zão da prática delitiva, apenas o que exerce função pública manteria seu salário integral, o que demonstra que o STF não trilhou o melhor caminho. Assim, por estes e outros argumentos, é possível a suspensão parcial dos vencimentos do servidor público enquanto estiver em suas funções28. O legislador previu, ainda, a internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (Art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração (inc. VII). Trata-se de uma verdadeira hipótese de segregação cautelar do inimputável ou semi-imputável, porém para fins terapêuticos. Como a lei não distinguiu, é possível sua aplicação também na hipótese de inimputabilidade posterior ao fato, em caso de suspensão do processo prevista no Art. 152 do CPP. Também a fiança foi arrolada entre as medidas alternativas à prisão, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial (inc. VIII). Dela trataremos em tópico próprio. Por fim, o legislador previu a monitoração eletrônica (inc. IX). Esta medida não estava prevista originariamente no Projeto 4.208/2001, o que explica o texto legal tão sucinto em relação ao tema. De qualquer sorte, o texto é autoaplicável, sobretudo valendo-se, por analogia, das disposições da Lei de Execução Penal que tratam do tema (artigos 146-B, 146-C e 146-D da Lei 7210/1984, introduzidos pela Lei 12.258/2010). Não bastasse, recentemente foi editado o Decreto nº 7.627, de 24 de novembro de 2011, com o objetivo de regulamentar a monitoPara a análise destes e de outros argumentos, ver MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais, p. 445/448.
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ração eletrônica, tanto do CPP quanto da Lei de Execução Penal. Segundo este decreto, “considera-se monitoração eletrônica a vigilância telemática posicional à distância de pessoas presas sob medida cautelar ou condenadas por sentença transitada em julgado, executada por meios técnicos que permitam indicar a sua localização”. A definição somente merece uma ressalva: a pessoa que está submetida ao monitoramento eletrônico não necessariamente está presa, como o texto indica. É possível que o monitoramento seja uma forma de fiscalizar a privação da liberdade, mas não necessariamente. A utilidade do monitoramento dependerá da tecnologia utilizada, de sorte que será possível ser utilizado para detenção, restrição da liberdade ou mera vigilância29. Em verdade, sua maior utilidade será na fiscalização das outras medidas, permitindo ao juízo que verifique se está havendo ou não o cumprimento das demais medidas do Art. 319, notadamente as dos incisos II (proibição de frequência a determinados lugares), III (proibição de manter contato com determinadas pessoas), IV (proibição de ausentar da comarca), V (recolhimento domiciliar noturno e aos finais de semana) e da prisão domiciliar (artigos 317/318). Ao ser deferido, a pessoa monitorada deverá receber documento no qual constem, de forma clara e expressa, seus direitos e os deveres a que estará sujeita, o período de vigilância e os procedimentos a serem observados durante a monitoração, nos termos do Art. 3º do Decreto nº 7.627/2011. Não nos parece que haja qualquer inconstitucionalidade na referida medida. Isto porque se trata de medida que visa justamente a impedir a decretação de medida mais grave e prejudicial, que é a prisão do acusado. Sem dúvidas, o monitoramento é medida menos rigorosa sob todos os aspectos e muito mais benéfica, tanto para a sociedade quanto para o acusado. Tal assertiva é reforçada 29
MACHADO, Rogerio Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas, p. 164.
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pelo fato de ser possível a utilização de aparelhos de pequeno tamanho, que não exponham socialmente o investigado ou acusado 30. Embora a lei não tenha previsto, caso haja decretação, indeferimento, substituição ou revogação de qualquer medida alternativa à prisão, será cabível o recurso em sentido estrito, por força da analogia ao Art. 581, inc. V, do CPP. Para a defesa, será cabível, ainda, a utilização do habeas corpus. De outro giro, vale destacar que as novas medidas alternativas também devem se submeter a prazo determinado. Em outras palavras, as medidas alternativas à prisão não podem ser impostas ad eternum, pois são medidas excepcionais, que restringem a liberdade ou outros bens jurídicos do acusado. Assim, embora o legislador não tenha estabelecido prazo expresso, a jurisprudência deverá analisar se há ou não razoabilidade no tempo de imposição da medida cautelar. O norte que deve guiar o intérprete também deve ser a teoria dos três critérios, baseando-se nos seguintes: a) complexidade do assunto; b) atividade processual do interessado e c) conduta das autoridades judiciais31. De qualquer sorte, o intérprete não pode se olvidar que as medidas alternativas à prisão são menos gravosas que a segregação cautelar, de forma que o prazo máximo de duração daquelas deve ser mais maleável que o da prisão preventiva. Há uma relação inversamente proporcional entre a gravidade da medida e o prazo de sua duração. Em outras palavras, quanto mais gravosa a medida, menor deverá ser o prazo de
30 Tanto assim que o Art. 5º do Decreto n. 7.627 assevera que “o equipamento de monitoração eletrônica deverá ser utilizado de modo a respeitar a integridade física, moral e social da pessoa monitorada”. Ademais, o Art. 6º do mesmo diploma assegura que o “sistema de monitoramento será estruturado de modo a preservar o sigilo dos dados e das informações da pessoa monitorada”.
31 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Genie Lacayo vs. Nicarágua, sentença de 29 de janeiro de 1997, § 77.
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sua imposição e vice-versa.
Por fim, dúvidas surgirão sobre a possibilidade de detração32 no caso das medidas alternativas à prisão. Se estivermos diante de uma pena final restritiva de direitos, será mais fácil defender o cabimento à detração, desde que haja similitude entre a gravidade da medida cautelar e a pena final aplicada. Assim, deve-se descontar na pena de limitação de finais de semana (Art. 48 do CP) o período em que o agente ficou obrigado a recolher-se durante a noite e nos finais de semana. Por outro lado, se houver completa disparidade entre a gravidade da medida alternativa à prisão e a pena restritiva aplicada, deve-se negar a detração. Assim, por exemplo, se o magistrado impôs, a título cautelar, o comparecimento mensal em juízo, tal medida não pode ser descontada da pena de prestação de serviços à comunidade, pois são medidas totalmente diversas em termos de gravidade. Mais complexa é a detração entre medidas alternativas à prisão e a pena privativa de liberdade aplicada ao final. É possível a detração no caso da internação provisória do inimputável (Art. 319, inc. VII) – até em decorrência do Art. 42 do CP – e no caso da prisão domiciliar alternativa (arts. 317/318, c.c. o Art. 282, § 6º). Nas duas situações há total restrição à liberdade ambulatorial, a justificar a detração. No entanto, em geral, nas demais medidas cautelares alternativas, como não há previsão legal e especialmente porque há total ausência de compatibilidade e semelhança entre a gravidade das medidas cautelares e a pena privativa de liberdade, inviável falar-se em detração. Como afirmou o STJ no RHC 17.501/SP, “as restrições inerentes à medida de liberdade provisória, além de não se enquadrarem na definição expressa do artigo 42, não correspondem às hipóteses autorizadoras da
32 A detração significa o desconto, na pena final aplicada, do tempo em que o réu ficou preso cautelarmente. Está disciplinada no Art. 42 do CP, nos seguintes termos: “Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior [internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico].”
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analogia”33. Porém, a situação concreta poderá demonstrar a necessidade de aplicação da detração em situações excepcionais, especialmente quando se verifique que a detração é uma forma razoável de compensação em face dos graves vínculos impostos ao acusado durante o processo. Não se pode esquecer que o fundamento da detração é a própria noção de justiça, que deve guiar o intérprete na análise do tema.
3.6. Previsão do Banco Nacional de Mandados de Prisão. Afirma-se que no Brasil há mais de trezentos mil mandados de prisão sem cumprimento efetivo. Justamente para buscar dar efetividade aos mandados de prisão no país, a Lei 12.403 incluiu o Art. 289-A no CPP, determinando a criação do Banco Nacional de Mandados de Prisão, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Referido banco de dados já foi criado e regulamentado pela Resolução nº 137 do CNJ, embora ainda esteja em fase de testes. A ideia é que os juízes insiram o mandado de prisão no sistema e qualquer agente policial possa realizar a prisão, em qualquer local do território nacional. Para tanto, bastará consultar e verificar que consta mandado de prisão registrado no CNJ em aberto. Veja, portanto, que esta é uma hipótese de prisão sem exibição do referido mandado, que é admitida justamente porque já houve o filtro por parte do CNJ. De qualquer sorte, para cercar o ato de garantias – uma vez que não houve a exibição do mandado de prisão -, o dispositivo exige diversas providências: a) o agente de polícia que efetuou o cumprimento do mandado deve comunicar imediatamente ao juiz do local de cumprimento da medida; b) o juiz do local do cumprimento da medida irá providenciar certidão extraída do sistema do CNJ e comunicará ao juiz que expediu a ordem; c) o preso será informado de seus direitos e, caso não informe
STJ, RHC 17.501/SP, Rel. Min. Paulo Medina, Sexta Turma, julgado em 23.8.2005, DJ de 6.3.2006, p. 442.
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advogado, será comunicada a Defensoria Pública. Interessante notar que o Art. 2º da Resolução nº 137 do CNJ estabelece que “o BNMP será disponibilizado na rede mundial de computadores, assegurado o direito de acesso às informações a toda e qualquer pessoa, independentemente de prévio cadastramento ou demonstração de interesse, sendo de responsabilidade do Conselho Nacional de Justiça a sua manutenção e disponibilidade”. Relembre-se, porém, que o direito de efetivar a prisão não pode ser deferido a qualquer pessoa, mas apenas às Autoridades Públicas encarregadas da segurança pública.
3.7. Alterações em relação à prisão em flagrante Foi estabelecida uma importante alteração no tocante à prisão em flagrante que, com a reforma introduzida pela Lei 12.403, retomou o seu caráter próprio, de medida decretada de maneira temporária e excepcional. A referida prisão possui, basicamente, dupla finalidade: a) impedir a continuidade delitiva, como verdadeira reação social à prática delitiva (o que justifica o permissivo de que qualquer do povo a execute) e b) colheita dos elementos de prova que estão presentes no momento da prisão, evitando sua dispersão. A primeira finalidade está ligada à detenção, enquanto a segunda está ligada à lavratura do auto de prisão em flagrante, que uma vez lavrado perde seu caráter cautelar próprio, ou seja, deixa de existir finalidade cautelar autônoma. Justamente diante desta realidade é que o Art. 310 do CPP foi alterado34. Assim, segundo o dispositivo legal, o magistrado possui três alternativas ao rece34 Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do Art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
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ber uma situação de prisão em flagrante: a) relaxá-la em caso de ilegalidade; b) converter a prisão em flagrante em preventiva ou c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Não pode o juiz, portanto, simplesmente homologar o auto de prisão em flagrante, como se fazia anteriormente, nem aceitar o malfadado despacho: “Flagrante formalmente em ordem. Aguardo a vinda do inquérito policial”. O juiz deve adotar, fundamentadamente, uma das três alternativas indicadas, não podendo mais simplesmente manter a prisão em flagrante, uma vez que a finalidade cautelar desta se esvaiu com a lavratura do auto de prisão em flagrante. De qualquer sorte, embora a Lei preveja apenas três alternativas, há, ainda, uma quarta: a concessão da liberdade total ao investigado (não a liberdade provisória, com vínculos). Como toda medida cautelar deve buscar uma das três finalidades indicadas no Art. 282, inc. I, caso o magistrado entenda que não há nenhum risco, por mínimo que seja, à prova de fuga ou de prática de novas infrações penais, deve conceder liberdade ampla ao réu, sem qualquer vínculo ao processo. Embora não seja expresso, o magistrado possui 48 horas para aplicar o Art. 310 do CPP. Isto se extrai da interpretação sistemática do texto legal, uma vez que é esse o prazo que o juiz possui para fixar fiança (Art. 322, parágrafo único). Se o prazo para uma das hipóteses do Art. 310 é de 48 horas (liberdade provisória com fiança, inc. III), o lapso temporal para aplicação do Art. 310 também deve ser de 48 horas. Por fim, embora o texto legal seja omisso, como o Ministério Público é titular exclusivo da ação penal pública, em razão do texto constitucional, e em razão até mesmo de seu desenho constitucional, deve ser ouvido previamente à aplicação do Art. 310. Do contrário seria inócua, inclusive, a alteração que previu a necessidade de a Autoridade Policial comunicar ao Ministério Público a prisão (Art. 306,
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caput)35. O MP deverá se manifestar no prazo de 24 horas, de sorte que ainda seja possível ao juiz decidir dentro do prazo de 48 horas.
3.8. Alterações no tocante à prisão preventiva Talvez as alterações mais sentidas tenham sido no tocante à prisão preventiva. A primeira consideração é que essa somente poderá ser decretada se demonstrada a insuficiência ou inadequação das medidas alternativas à prisão. Assim, ao postular sua decretação, o Ministério Público, o querelante ou o assistente da acusação deverá indicar, expressamente, por quais motivos as demais medidas alternativas à prisão não são adequadas e suficientes.
Mas não é só. Para a decretação da prisão preventiva, em princípio, devem ser analisadas as suas condições de admissibilidade, ou seja, em quais crimes é admissível a sua decretação.
Como regra, somente será possível a decretação: “I - nos crimes
dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos”.
A finalidade deste dispositivo está umbilicalmente ligada ao Art. 44 do CP, com redação dada pela
Lei 9714/98, que passou a permitir, em regra, a substituição da
pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nos crimes dolosos com pena de até
4 anos36. Se ao final do processo o agente terá direito a uma pena restritiva
de direitos, não deve ser preso durante o processo, sob pena de violar o princípio da
Esta disposição já era prevista para o Ministério Público Federal, em razão do disposto no Art. 10 da Lei Complementar 75/93, e agora foi ampliada pelo Art. 306 do CPP também aos Ministérios Públicos estaduais. 35
É necessário, ainda, que o crime não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça à pessoa (inc. I), que o réu não seja reincidente em crime doloso (inc. II) e que as circunstâncias judiciais sejam favoráveis (inc. III).
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proporcionalidade.
Mas e como se chegar a esta pena de 4 anos? Embora haja lacuna, não temos dúvidas em asseverar que devem ser observadas as normas relativas ao concurso de crimes, seja somando-as (no concurso material) ou aplicando a majorante no máximo (no caso do crime continuado ou do concurso formal). Em outras palavras, se em razão da aplicação das regras do concurso de crimes resultar pena máxima superior a quatro anos, será plenamente cabível a decretação da prisão preventiva. Realmente, a finalidade da limitação criada pelo Art. 313, inc. I, como visto, é privilegiar o princípio da homogeneidade ou da proporcionalidade entre a medida cautelar e a pena final a ser aplicada, somente decretando-se prisão preventiva se houver possibilidade de aplicação da pena privativa de liberdade ao final do processo. Ora, se há concurso de crimes, as penas não serão consideradas isoladamente para fins de aplicação da substituição por pena restritiva de direitos. Ao contrário, o magistrado, ao final do processo, deverá somar as penas ou aplicar a majorante do concurso de crimes. Somente se na sentença a pena ficar abaixo de quatro anos, após a aplicação das regras do concurso, é que substituirá por pena restritiva de direitos37. Ademais, se o agente comete dois crimes, em concurso, há certamente maior gravidade em abstrato dessa conduta em comparação com outra conduta, praticada isoladamente, o que não pode ser desconsiderada pelo intérprete. Relembre-se, ainda, que as Súmulas 723 do STF Veja, neste sentido, decisão do STJ: “Para a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, exige-se que o réu preencha os requisitos objetivos e subjetivos constantes do Art. 44 do CP. Conforme preceitua o Art. 69 do Código Penal, na hipótese de concurso material, as penas privativas de liberdade aplicam-se cumulativamente. Verifica-se, no caso, a existência de concurso material entre os crimes de receptação e adulteração de sinal de veículo automotor, o que representa 6 anos de reclusão. Dessa forma, considerando o disposto no Art. 44, I, c/c o Art. 69, caput, ambos do Código Penal, não se admite substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, tendo em vista o quantum total da pena, superior a 4 anos de reclusão” (STJ, HC 94.646/SC, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 11.12.2008, DJe 2.2.2009). 37
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e 243 do STJ também são no sentido de que, em caso de concurso de crimes, a majorante e a soma das penas devem ser consideradas para fins de concessão ou não dos benefícios legais, pois alteram a gravidade, em abstrato, do delito. Tal raciocínio é plenamente aplicável na análise das condições de admissibilidade da prisão preventiva. Assim, em resumo, devem ser consideradas as regras do concurso de crimes para fins de encontrar a pena máxima do delito e, assim, verificar o cabimento da prisão preventiva38. Porém, é possível a decretação da prisão preventiva fora desta hipótese (crime doloso com pena superior a 4 anos), nas três exceções estabelecidas no Art. 313, quais sejam: a) se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do Art. 64 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (inc. II); b) se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (inc. III); c) quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. (parágrafo único). Outra questão importante é que a nova legislação estabeleceu, ao lado da prisão preventiva autônoma ou originária, decretada originariamente, a chamada “prisão preventiva substitutiva” de medida cautelar, prevista em dois dispositi-
Apenas devemos distinguir se se trata de concurso material, formal ou crime continuado. No caso do concurso material (Art. 69 do CP), devem ser somadas as penas para análise da pena máxima cominada. Em caso de concurso formal (Art. 70 do CP), deve-se aplicar a majorante no máximo (aumento de metade). Da mesma forma, na hipótese de continuidade delitiva (Art. 71 do CP), a majorante também deve ser aplicada em seu máximo (dois terços).
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vos, quais sejam: Art. 282, §4º e Art. 312, § único. Veja que a prisão preventiva a que faz menção o Art. 312, parágrafo único, c.c. o Art. 282, § 4º, será decretada em caso de descumprimento das medidas alternativas à prisão previstas no Art. 319 do CPP, quando não for suficiente a substituição por outra medida alternativa ou a aplicação cumulativa. Neste caso, a preventiva não é decretada de maneira originária, mas em substituição a uma medida cautelar alternativa à prisão anteriormente decretada, que se mostrou insuficiente, em razão do descumprimento de suas condições pelo investigado ou acusado. Se o agente está descumprindo as condições impostas no Art. 319 e, no caso concreto, não é suficiente substituir a medida alternativa à prisão ou impor outra em cumulação, nos termos do Art. 282, § 4º, o legislador entende presente o fundamento para a decretação da prisão preventiva (Art. 312, parágrafo único). Com razão, inclusive. Se o agente teve oportunidade de cumprir medida alternativa menos gravosa e, mesmo assim, insiste em descumprir as condições e restrições referentes às medidas alternativas à prisão, continuando a colocar em risco os bens jurídicos indicados no Art. 282, inc. I, sua conduta demonstra que há motivo e necessidade da decretação de prisão preventiva. Esta prisão preventiva substitutiva foi criada, inclusive, como forma de conceder eficiência e operacionalidade à nova sistemática de medidas cautelares introduzida pela nova Lei 12.403/2011. Ademais, no caso de descumprimento da medida alternativa à prisão, isto indicará a insuficiência da pena restritiva de direitos, nos termos do Art. 44 do CP, a justificar a aplicação de pena privativa39. Como consequência deste raciocínio – ou seja, de que a prisão preventiva substitutiva poderá ser decretada em substituição a qualquer medida cautelar anteriormente imposta, em caso de descumprimento –, a prisão preventiva subsPara análise profunda destes e de outros argumentos, ver MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais, p. 445/448.
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titutiva poderá ser decretada sem necessidade de observância das condições de admissibilidade do Art. 313 do CPP. Neste caso, a prisão preventiva substitutiva apenas deverá respeitar as condições de admissibilidade das medidas cautelares em geral, em especial o Art. 283, § 1º, observado, é claro, o princípio constitucional da proporcionalidade.
3.9. Alterações no tocante à fiança No tocante à fiança, pode-se dizer que a reforma tentou resgatar a sua importância, que fora perdida com a edição da Lei 6.416/1977. Assim, colocou-se a fiança como uma das medidas alternativas à prisão, nos termos do Art. 319, que pode ser aplicada isolada ou cumulativamente com as demais medidas. O legislador, ademais, tentou inicialmente compatibilizar seu valor com a realidade. Afastou-se o anterior critério de fixação – salário mínimo de referência – e adotou-se expressamente o salário mínimo como indexador da fiança. Ademais, os valores foram sensivelmente ampliados. Em regra, nos termos do Art. 325, o valor da fiança será de 1 a 100 salários mínimos nos crimes com pena máxima de até 4 anos e de 10 a 200 salários mínimos nos crimes com pena superior a 4 anos40. Ademais, poderá, ainda, ser dispensado, nos termos do Art. 350, em razão da pobreza do agente, reduzida até 2/3 ou aumentada em mil vezes. Esta majoração pode levar a fiança a ultrapassar, atualmente, o valor de cem
Este valor, embora não expresso, deverá observar a data da decisão, por dois motivos. O primeiro é que se trata de norma processual. O segundo é que a fixação do salário mínimo é justamente para que o valor seja corrigido automaticamente e sempre esteja adequado à realidade. Caso se utilize valor da data do fato, poder-se-á chegar a uma situação em que o salário mínimo, em razão da distância temporal, não mais seja adequado para vincular o réu ao processo. 40
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milhões de reais. A nova legislação ampliou a possibilidade de o delegado conceder fiança. Antes era possível nos crimes apenados com prisão simples e detenção; agora, nos crimes cuja pena não exceda 4 anos. Não obstante a ausência de previsão legal, o delegado deve sempre motivar o despacho de concessão da fiança. Outra alteração relevante foi a diminuição das hipóteses de inafiançabilidade. Agora, a maioria esmagadora das infrações são afiançáveis, com exceções dos artigos 323 e 324 do CPP41. Fora destas hipóteses, todas as infrações são afiançáveis42. Por outro giro, o legislador ampliou os deveres do afiançado, ao prever diversas outras hipóteses de quebramento da fiança no Art. 341. Assim, além daqueles previstos nos artigos 327 e 328; indiretamente, impõe-se a observância dos deveres estabelecidos no Art. 341.
3.10. Alterações no tocante à liberdade provisória.
Art. 323. Não será concedida fiança: I - nos crimes de racismo; II - nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; III - nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; IV - (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011). V - (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011). Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código; II - em caso de prisão civil ou militar; III - (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011). IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (Art. 312). 41
O legislador trouxe ao Art. 323 todas as hipóteses de inafiançabilidade, revogando as demais hipóteses, inclusive, da legislação especial. Como o dispositivo do Art. 323 foi amplo e incluiu em seu conteúdo infrações inclusive da legislação especial (racismo, tortura, crimes hediondos, etc.) defendemos que houve derrogação das hipóteses de inafiançabilidade não previstas no Art. 323.
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Por fim, mas não menos importante, o sistema da liberdade provisória foi profundamente alterado. Primeiramente, manteve-se, apenas por razões histórico-constitucionais, a divisão entre liberdade provisória com ou sem fiança. Na verdade, ao contrário do regime originário do CPP – no qual, como visto, ter ou não direito à fiança era praticamente sinônimo de ficar ou não em liberdade – hoje há diversas medidas alternativas à prisão. Nesta senda, deve-se deixar claro o que cada um dos conceitos significa. Inicialmente, não há mais dúvidas de que a liberdade provisória é uma medida cautelar, que vincula o agente ao cumprimento de determinados deveres processuais, que, em geral, são os indicados nos Arts. 319 e 32043. Em outras palavras, a liberdade provisória veicula uma ou algumas medidas alternativas à prisão, normalmente indicadas no Art. 319. Assim sendo, a liberdade provisória poderá ter as mais diversas facetas, em razão da aplicação isolada ou cumulativa das medidas alternativas do Art. 319. Pode, assim, ser concedida liberdade provisória com fiança e com comparecimento mensal em juízo, por exemplo. As diversas medidas alternativas previstas no ordenamento poderão ser conjugadas por intermédio da liberdade provisória. Feita esta ressalva, verifica-se que, em verdade, a expressão liberdade provisória com fiança ou sem fiança somente significa a liberdade provisória com a possibilidade ou não de fiança. Na liberdade provisória sem fiança, o juiz poderá impor ao réu todos os vínculos do Art. 319 (e demais previstos no ordenamento jurídico) com exceção da fiança. Da mesma forma, na liberdade provisória com fiança, o juiz poderá aplicar todas as medidas do Art. 319, inclusive a fiança. Veja que é uma possibilidade, pois o simples fato de a infração ser afiançável não significa que o juiz inexoravelmente terá que aplicar a fiança. Isto porque não há em nosso ordenamento jurídico nenhuma medida automática. Como consequência, 43 Excepcionalmente há uma destas medidas no Art. 310, parágrafo único, e também nos artigos 317 e 318 para aqueles que admitem a prisão domiciliar como substitutiva da prisão preventiva.
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nas infrações inafiançáveis é possível a concessão da liberdade provisória com todas as medidas do Art. 319 (e demais do ordenamento jurídico), com exceção da fiança. Nas infrações afiançáveis, por sua vez, o juiz pode aplicar todas as medidas do Art. 319 (e demais do ordenamento jurídico), inclusive a fiança. Porém, para manter a coerência do sistema, o operador não deve aplicar, a uma infração inafiançável, vínculos menos gravosos que para uma infração afiançável, sobretudo aqueles crimes cuja inafiançabilidade decorre do texto constitucional e que estão expressas no Art. 323. Do contrário estaria violando o princípio da isonomia e, ainda, desconsiderando o mandamento constitucional para tratamento mais gravoso das infrações inafiançáveis. De outro giro, outra alteração, pouco percebida pela doutrina. Ao contrário do que se entendia majoritariamente até a edição da Lei 12.403/2011, a liberdade provisória não é mais apenas medida de contracautela (ou seja, substitutiva de um estado prisional anterior), tampouco é contracautela apenas da prisão em flagrante. Realmente, segundo sempre se entendeu, a liberdade provisória era espécie de contracautela, sucedâneo ou substitutivo da prisão em flagrante, exigindo, como pressuposto fundamental a existência de estado coercitivo legal anterior. Assim, uma vez preso em flagrante, dever-se-ia verificar se era o caso de manter a prisão em flagrante, analisando se estavam ou não presentes os requisitos e fundamentos para a decretação da preventiva. Não os havendo, era o caso de concessão de liberdade provisória. Deste entendimento decorriam duas consequências. A primeira é que se entendia, majoritariamente, que era inviável conceder liberdade provisória – com ou sem fiança – para alguém que tivesse sido preso preventivamente ou em razão de prisão temporária. A referida contracautela era ligada apenas à prisão em flagrante, por ausência de previsão legal e no
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caso da prisão preventiva ou temporária não se imporia a liberdade provisória. A segunda consequência é que se entendia como inviável a imposição de liberdade provisória ao investigado ou réu solto. A liberdade provisória era vista apenas como contracautela ou sucedâneo de uma prisão anterior (a prisão em flagrante). Assim, em resumo, prevalecia, na antiga sistemática, a necessidade de dois pressupostos para a concessão da liberdade provisória: a existência de uma prisão prévia e que esta prisão fosse em flagrante. A nova sistemática, porém, afastou-se destas ideias. Primeiro, para afirmar que a liberdade provisória pode se aplicar como contracautela (em substituição a um estado prisional anterior, nos termos do Art. 310 do CPP), mas também comow cautela originária (ou seja, independentemente de qualquer estado prisional anterior). Assim, pela nova disciplina, o juiz pode, no momento do recebimento da denúncia e sem que o réu tenha sido preso anteriormente, fixar liberdade provisória (com a aplicação das medidas do Art. 319). Isto se justifica por várias medidas. Primeiro, porque do próprio Art. 5º, inc. LXVI, da CF já se deflui que a liberdade provisória não deve ser entendida apenas e tão somente como sucedâneo da prisão. Pode ser decretada de maneira autônoma, justamente impedindo a decretação de uma medida cautelar prisional. Veja que o texto constitucional é claro ao asseverar que ninguém será levado à prisão quando couber a liberdade provisória (Art. 5º, inc. LXVI). Portanto, não apenas a liberdade provisória substitui a prisão, mas também impede a sua decretação. Ademais, imaginar que a liberdade provisória fosse medida apenas de contracautela seria o mesmo que afirmar a existência de duas realidades paralelas: no caso de prisão processual anterior, o sistema permitiria a sua substituição por qualquer das medidas do Art. 319; no caso de não ter sido preso, o sistema continuaria bipolar. Ora, não há qualquer razão para a distinção! O sistema justamente visa afastar-se de seu caráter bipolar, para impedir a decretação da prisão cau-
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telar em situações em que se mostra desnecessária. Justamente para assegurar a excepcionalidade da prisão cautelar é que a liberdade provisória deve ser medida com caráter autônomo, justamente para impedir a decretação da prisão. Assim, em resumo, a liberdade provisória não é mais apenas medida de contracautela ou um sucedâneo da prisão cautelar, mas também cautela originária.44 De outro giro, a liberdade provisória não substitui apenas a prisão em flagrante, mas qualquer estado prisional, inclusive a prisão preventiva. Veja que o Art. 282, § 6º é claro ao asseverar que “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”. Como estas outras medidas cautelares serão concedidas mediante liberdade provisória, nos termos do Art. 310, inc. III, do CPP, não há mais dúvidas de que a liberdade provisória não substitui apenas a prisão em flagrante, mas qualquer prisão. Isto vem expressamente indicado pela nova redação conferida ao Art. 321 pela Lei 12.403/2011, que afirma: “ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no Art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do Art. 282 deste Código”45. Do quanto dito, portanto, não há mais dúvidas de que o magistrado poderá substituir a prisão preventiva anteriormente decretada por liberdade provisória, mediante condições. Mesmo em caso de relaxamento da prisão por excesso de 44
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 323.
45 Em verdade, desde a Constituição de 1988 não havia motivos para restringir a liberdade provisória ao flagrante. O Art. 5º, inc. LXVI, afirma que ninguém será levado à prisão quando a lei admitir a liberdade provisória. Veja que ao Poder Constituinte não interessa qual é essa modalidade de prisão cautelar, pouco importando se é flagrante, temporária ou preventiva. O que o texto constitucional assevera e impõe é que a liberdade provisória deve ser a regra, como verdadeira garantia do acusado, que não deve ser levado ao cárcere sempre que a liberdade provisória for suficiente.
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prazo, é possível a aplicação de medidas alternativas em substituição, desde que não signifique total restrição à liberdade ambulatorial. Da mesma forma, nada impede que o juiz, após a prisão temporária, imponha restrições, mediante liberdade provisória. Em síntese: após 2011, a liberdade provisória livrou-se das amarras de ser somente medida de contracautela. Pode ser imposta mesmo sem estado prisional anterior – como cautela originária - e justamente para impedir a decretação da prisão cautelar, resguardando o princípio da subsidiariedade da prisão cautelar, a variabilidade do sistema e superando o caráter bipolar anteriormente vigente.
4. Conclusão Pela análise do quanto foi asseverado até aqui, verifica-se que a Lei 12.403/2011 alterou realmente todo o sistema das medidas cautelares pessoais. É verdade que a potencialidade das alterações e o verdadeiro alcance dependerão de reflexão e de maturação, por parte da doutrina e da jurisprudência. Porém, o que se espera é que a análise seja feita com os olhos focados na principiologia constitucional, evitando-se uma interpretação amarrada aos antigos dogmas e interpretações que perderam sentido desde a edição do nosso CPP. Somente assim se poderá avançar na análise deste tema, tão relevante em termos de garantias individuais e para a eficiência do processo penal brasileiro.
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O trânsito em julgado para a acusação como marco inicial da prescrição da pretensão executória e a impossibilidade de execução provisória da pena: prescrição sem inércia? Isac Barcelos Pereira de Souza
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Introdução
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O trânsito em julgado para a acusação como marco inicial da pretensão executória, a impossibilidade de execução provisória da pena e os fundamentos da prescrição: uma conformação necessária
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Por uma interpretação sistemática do art. 112, i, do Código Penal
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O trânsito em julgado para ambas as partes como marco inicial da prescrição da pretensão executória: precedentes do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais-regionais federais das cinco regiões
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Conclusões
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1. Introdução A partir do cometimento de um fato penalmente relevante origina-se para o Estado o ius puniendi, compreendido como o poder-dever punitivo estatal. A prática de um crime constitui circunstância que, além de lesar direitos individuais, perturba a estabilidade social, incumbindo ao Estado o restabelecimento da ordem, pois detentor exclusivo do poder de aplicação da lei penal. A prescrição, instituto há muito previsto nas legislações, fulmina o ius puniendi estatal, em virtude do seu não exercício no lapso temporal legalmente previsto, tendo por consequência a extinção da punibilidade do agente. Há previsão no ordenamento jurídico brasileiro de duas espécies de prescrição penal, a saber, a prescrição da pretensão punitiva e a prescrição da pretensão executória. A prescrição da pretensão executória refere-se à perda do direito estatal na execução da sanção imposta na sentença, havendo estabelecido a lei penal no artigo 112, I, do Código Penal, o trânsito em julgado da sentença condenatória
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para a acusação como o seu marco inicial. Neste contexto e, considerando o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, vedando a execução da sentença penal condenatória antes do trânsito em julgado da decisão, o presente artigo objetiva analisar a necessidade de interpretação conforme a constituição do disposto no artigo 112, I, do Código Penal, uma vez que sua literal aplicação acarretaria o início do curso do prazo prescricional antes da exigibilidade do título exequendo e, por conseguinte, em momento anterior à verificação da inércia estatal.
2. O trânsito em julgado para a acusação como marco inicial da pretensão executória, a impossibilidade de execução provisória da pena e os fundamentos da prescrição: uma conformação necessária De acordo com o disposto no artigo 112, I, do Código Penal, o trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação constitui o marco inicial da prescrição da pretensão executória. O início do prazo prescricional da pretensão executória antes do trânsito em julgado para ambas as partes tem sido alvo de críticas, uma vez que penalizaria o Estado pelo seu suposto desinteresse na execução da pena, sem considerar a inexigibilidade do título em momento anterior àquele marco. O problema adquire contornos ainda mais graves e evidentes quando cotejado com o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, no sentido da vedação à execução provisória da pena.
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2.1. A vedação à execução provisória da pena O Supremo Tribunal Federal, em 05.02.2009, no julgamento do HC 84.078/ MG, por maioria de votos e em decisão plenária1, reconheceu a incompatibilidade da execução provisória da pena com o texto constitucional vigente, restando assentado que toda prisão antes do trânsito em julgado de condenação guardaria natureza cautelar, in verbis: “HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA “EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA”. ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que “[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença”. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julga-
Relatou o processo o ministro Eros Grau, restando vencidos os ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Carmem Lúcia e Menezes Direito.
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mento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos “crimes hediondos” exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente”. 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que “ninguém mais será preso”. Eis o que poderia ser apontado como incitação à “jurisprudência defensiva”, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- “a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira anteci-
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pação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição”. Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. Ordem concedida.” (BRASIL, 2009)
Até então, era possível se afirmar, com certa segurança, que o entendimento majoritário no âmbito do Superior Tribunal de Justiça era no sentido da admissão da execução provisória da pena. O citado Tribunal, inclusive, já havia editado duas súmulas que, ao menos tacitamente, admitiam a questão, a saber, os Enunciados 09 e 267. Assim sendo, sem adentrar o mérito relativo ao acerto ou desacerto do citado
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entendimento do Supremo Tribunal Federal, é inquestionável a atual vedação da execução de uma sentença penal condenatória antes do seu trânsito em julgado, de maneira que toda e qualquer prisão antes daquele marco processual possui natureza cautelar. Contudo, apesar da absoluta impossibilidade de deflagrar-se o início da execução de pena, de acordo com a expressa dicção do art. 112, I, do Código Penal, a partir do trânsito em julgado para a acusação, inicia-se a fluência do prazo da prescrição executória, como se fosse possível vislumbrar neste momento, inércia, desinteresse ou desídia estatal.
2.2. A inércia como fundamento da prescrição penal A prescrição penal pode ser definida como a perda do direito de punir pela inércia do Estado, em decorrência do seu não exercício dentro de um lapso temporal previamente fixado (PRADO, 2007). Com acerto, Jesus (1991) afirma que a prescrição penal possui tríplice fundamento, a saber, (i) o decurso do tempo, (ii) a correção do condenado, e (iii) a negligência da autoridade. Na perspectiva do Direito Civil, Câmara Leal (1972) enumerou quatro condições elementares da prescrição, quais sejam: (i) a existência de uma ação exercitável; (ii) inércia do titular da ação; (iii) continuidade da inércia durante um certo lapso de tempo; e (iv) ausência de causas preclusivas de seu curso. Certo é que o instituto da prescrição, quer em matéria civil ou em matéria
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penal, encontra-se indissociavelmente ligado à noção de inércia2. Aliás, cabe asseverar que esta vinculação não é nova, podendo ser observada desde as origens romanas do instituto3.
2.3. A prescrição da pretensão executória e o trânsito em julgado para a acusação como seu marco inicial O ordenamento jurídico brasileiro contempla duas espécies de prescrição penal, a saber: a prescrição da pretensão punitiva e a prescrição da pretensão executória. Na hipótese da prescrição da pretensão punitiva, que ocorre antes do trânsito em julgado da sentença final, a inércia do Estado conduz à perda da possibilidade de formação do título executivo judicial contra o autor do fato criminoso. Por outro lado, a prescrição da pretensão executória diz respeito, tão-somente, a perda do direito do Estado de executar a sanção imposta na sentença, sendo válido consignar que seu alcance circunscreve-se à extinção da pena, permanecendo hígidos os demais efeitos da condenação. Esta modalidade de prescrição foi introduzida no ordenamento jurídico penal brasileiro através do Decreto 774/1890 e, desde então, prevista em todos os diplomas legais que o sucederam (GURPILHARES, 2007). Além disso, historica-
2 Observa Guaragni (2008, p. 33): “o castigo à negligência do titular do direito é argumento apresentável em seara civil ou penal (...)”.
3 Sobre a questão disserta Câmara Leal (1972, p. 15): “Se remontarmos às fontes romanas, ali encontraremos três fundamentos da prescrição indicados pelos textos: a) o da necessidade de fixar as relações jurídicas incertas, evitando as controvérsias; b) o castigo à negligência; e c) o do interesse público.”
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mente, o trânsito em julgado da condenação (para ambas as partes), vinha sendo estabelecido como um dos marcos iniciais desta modalidade de prescrição (GURPILHARES, 2007). Contudo, com a reforma penal de 1984 (Lei 7.209/84), em relação ao artigo 112 do Código Penal, observou-se inovação no ordenamento jurídico pátrio4, passando a estabelecer-se o trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação como o marco inicial da prescrição da pretensão executória5. No direito comparado tem-se que o trânsito em julgado da condenação para ambas as partes é estabelecido, em inúmeros países, como o marco inicial da prescrição da pretensão executória, dentre os quais, Itália, Espanha, Uruguai e Alemanha (GUARAGNI, 2008), bem como Equador, França e Portugal (GURPILHARES, 2007). Assim, é inquestionável que o simples fato do trânsito em julgado “para a acusação” (leia-se, Ministério Público, assistente e querelante) deflagrar o curso da prescrição da pretensão executória, por si só, já constituiria inaceitável quebra no tratamento isonômico das partes processuais. Mas, a questão adquire espe-
4 Para Jesus (1991), a nova redação encontra justificava no entendimento jurisprudencial existente à época, uma vez que “a jurisprudência apreciando o texto do primitivo CP de 1940, decidiu que a expressão 'do dia em que passa em julgado a sentença condenatória' se referia à acusação, prescindindo-se até de intimação ao réu. Daí a Reforma Penal de 1984 haver acrescentado ao texto a expressão 'para a acusação'. Dessa forma, transitando a decisão em julgado para a acusação (Promotor de Justiça, querelante e assistente da acusação), é dessa data que se conta o lapso prescricional, ainda que não tenha sido intimado o réu. Isso, entretanto, depende de uma condição: que a sentença também tenha transitado em julgado para a defesa. Ocorrendo esse requisito, a contagem se faz da data do trânsito em julgado para a acusação."
“Art. 112 - No caso do art. 110 deste Código, a prescrição começa a correr: I - do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional; II - do dia em que se interrompe a execução, salvo quando o tempo da interrupção deva computar-se na pena.” (BRASIL, 1940). 5
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ciais contornos quando cotejada com a vedação de execução da pena antes do trânsito em julgado. Em que pese o evidente e inequívoco contrassenso acima explicitado, qual seja, o início da fruição do lapso prescricional antes da formação do título executivo e, por conseguinte, antes da inércia estatal, certo é que poucos são aqueles que insurgem-se e/ou criticam a injustiça de tal dispositivo. Porém, a questão não passou despercebida a Capez (2008, p. 600) que evidenciou sua perplexidade ante o transcurso de fluxo prescricional enquanto não definitivamente julgada a demanda: “Termo inicial: a prescrição da pretensão executória começa a correr a partir: a) da data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação (é incrível! A condenação só pode ser executada após o transito em julgado para ambas as partes, mas a prescrição já começa a correr a partir do trânsito em julgado para a acusação).”
Em obra que criticou o sistema prescricional brasileiro, assim asseverou Guaragni (2008, p. 135/136): “Retomando-se o tema, a redação do CP de 1984, inovando, andou mal. O motivo pelo qual se inicia o prazo prescricional destinado a reger a pretensão executória com o trânsito em julgado da sentença (sentença firme, sentença irrevogável) é evidente. Enquanto não advém sentença condenatória com força de definitiva, não há que se falar em exercício da pretensão executória, ou jus executionis, que é espécie do jus puniendi. Se não existe espaço para o exercício desta pretensão, automaticamente não pode correr o prazo a ele destinado. Ao revés
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estar-se-ia fulminando a pretensão de executar do Estado, ao pressuposto de seu desinteresse pela pena, sem lhe dar qualquer chance de evidenciar seu interesse, pois está vedada a execução da pena enquanto a sentença condenatória não passa em julgado. Em suma: corre o lapso destinado à extinção do direito em período no qual sequer pode ser exercido.”
No mesmo sentido assinalou Queiroz (2009, p. 48) que: “A prescrição da pretensão executória flui a partir do trânsito em julgado definitivo, porque só aí a sentença se constitui como título executivo. Antes disso, não cabe falar de prescrição da pretensão executória inclusive porque o STF vem, atualmente, repudiando a chamada execução provisória da sentença condenatória, a que já nos referimos. Além disso, faltaria o pressuposto jurídico para tanto: a inércia estatal.”
Partindo-se da premissa de que, o comando condenatório contido na sentença condenatória somente é exequível após o trânsito em julgado definitivo, tem-se como incoerente e desproporcional a fixação do marco inicial da pretensão executória na formação da coisa julgada para a acusação. Ora, sendo a inércia pressuposto lógico e indissociável à ocorrência da prescrição, como justificar o fluxo prescricional em hipóteses em que ausente a inatividade do Ministério Público? A redação do art. 112, I, do Código Penal, deturpa o próprio conceito de prescrição, instituto direta e logicamente ligado à noção de pretensão6. É que, a par6
Como leciona Galvão (2004, p. 956): “A ocorrência do fato punível faz nascer no plano material
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tir do momento em que a comando condenatório encontra-se despido de exigibilidade, ou seja, enquanto não surgida a pretensão, não é possível reconhecer o início do curso do lapso prescricional. Desde logo, verifica-se que, a um só tempo, restam ofendidos os princípios constitucionais do devido processo legal e da igualdade. O inciso LIV do artigo 5º da Constituição da República (BRASIL, 1988) estabelece a cláusula do devido processo legal, de onde podem ser extraídas diversas garantias, dentre as quais, o contraditório, ampla defesa, publicidade e motivação dos atos judiciais. Ademais, como observou Fischer (2006), uma de suas premissas basilares, refere-se à inafastável obrigação de que, na resolução dos conflitos, seja assegurada às partes antagônicas a utilização de todos os suficientes meios para que defendam seus direitos e contraponham aos argumentos opostos. Por outro lado, existem também aqueles que reconhecem o princípio da igualdade como um princípio constitucional autônomo (BEDÊ-JUNIOR, 2009; SENNA, 2009), postulado este que preconizaria um tratamento isonômico das partes. Em ambos os casos, quer sob o prisma do devido processo legal ou do princídas relações sociais, duas pretensões distintas: a pretensão de ressarcimento que, a princípio, devera ser deduzida no juízo cível; e a pretensão punitiva, a ser examinada pelo juiz criminal. No âmbito penal, a satisfação da pretensão punitiva dá-se com a obtenção do decreto judicial condenatório, com o trânsito em julgado. Mas o poder-dever de punir somente se concretiza com a execução da condenação e, assim obtido o decreto condenatório, surge a pretensão executória. É apenas com a satisfação da pretensão executória que o Estado consegue realizar o seu poder-dever de punir. Diante da necessária processualização do poder-dever de punir, sua realização só poderá ocorrer, após a satisfação da pretensão punitiva.”
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pio da igualdade, tem-se que o fluxo do prazo prescricional antes da possibilidade de execução do comando sancionador (leia-se, antes do efetivo surgimento do título executivo), ocasiona flagrante quebra na paridade de armas entre as partes que não pode subsistir. Desde logo, cumpre esclarecer que, por óbvio, em algumas situações e diante de certas peculiaridades, há necessidade da concessão de tratamento diferenciado entre as partes, a fim de se alcançar a igualdade material entre as mesmas. Todavia, no específico caso da deflagração do curso da prescrição executória antes da possibilidade de execução da pena, não se verifica nenhuma situação apta a justificar o tratamento diferenciado conferido à hipótese. Deste modo, na medida em que esta desigualdade não visa a corrigir qualquer distorção no equilíbrio processual, observa-se verdadeiro privilégio da defesa em prejuízo da parte acusadora e, em última análise, do próprio Estado. Detalhada análise da violação do princípio da igualdade pela redação do artigo 112, I, do Código Penal, foi realizada por Gurpilhares (2007, p.112), sendo certo que até mesmo o agravamento da questão ante a impossibilidade de execução provisória da pena foi por ela considerada: “A igualdade entre as partes processuais é um dos traços fundamentais do sistema acusatório, e isso vale para todos os aspectos, e não simplesmente para a produção de provas. O direito à igualdade das partes deve ser respeitado inclusive quanto aos prazos prescricionais e suas causas de redução, suspensão e interrupção. O referido art. 112, inc I, 1ª parte do Código Penal, na forma em que foi aprovado, fere o princípio da igualdade, trazendo um desequilíbrio entre as partes, na medida em que o prazo prescricional começa a correr com o trânsito em julgado para a acusação. A igualdade estaria pre-
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sente se o prazo iniciasse com o trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, com o trânsito em julgado para ambas as partes. Se a acusação pudesse executar provisoriamente a sentença condenatória, não haveria prejuízo algum, mas diante do princípio da presunção de inocência, isso é impossível, assim, o Estado encontra-se impedido de executar, mas tem correndo contra ele o prazo prescricional, evidente desequilíbrio.”
Ademais, a equidade analisada em sua dimensão substancial, deve ser compreendida como “distribuição proporcional de ônus e vantagens” (FISCHER, 2006), o que, a toda evidência, não ocorre no caso em debate. Sob outra ótica, tem-se que o fluxo de prazo prescricional durante o período em que o Ministério Público encontra-se obstado a agir acarreta, também, ofensa à garantia do acesso à Justiça estabelecida no art. 5º, XXXV, da Constituição (BRASIL, 1988). Em obra dedicada ao estudo das garantias do processo penal acusatório, assinalou-se com especial precisão que: “Do ponto de vista do processo penal constitucional, não há dúvida de que a parte acusadora tem o direito de, uma vez ocorrida a infração penal, ter acesso à via jurisdicional para em juízo pleitear o direito de punir estatal. Neste quadro, a ação penal deve ser entendida como parte da doutrina efetivamente a aborda, como um direito subjetivo de postular a prestação jurisdicional do Estado.” (ABADE, 2005, p. 181)
Analisando o direito à tutela jurisdicional do Estado, assim se posiciona
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TUCCI (2002, p. 198): “Assumido, pelo Estado, o monopólio da administração da justiça, há de ser conferido ao membro da comunidade (inclusive, evidentemente, ao próprio Estado), em contrapartida, o direito de invocar prestação jurisdicional com relação a determinado interesse em conflito com o de outrem.”
Mas, para além de malferir os princípios e garantias acima evidenciados, tem-se que há flagrante violação ao princípio da proporcionalidade7, mormente em seu aspecto da proibição da proteção deficiente. Atualmente, vislumbra-se uma dupla perspectiva do princípio da proporcionalidade, uma delas referindo-se a proibição do excesso (Übermassverbot) e outra ao impedimento a proteção deficiente (Untermassverbot)8. De acordo com Canaris (2009, p. 123), inequivocamente um dos precursores de tal teorização: “(...) há, pois, que averiguar se a proteção do direito infra-constitucional é eficaz e apropriada. Aqui não se trata de, por exemplo de medir 7 Para efeitos do presente trabalho, a proporcionalidade será abordada como princípio, a despeito da “discussão em torno da qualificação jurídico-normativa da proporcionalidade, já que se discute a sua condição de princípio ou de regra (tomando-se aqui ambas as noções tal qual formuladas por Robert Alexy e seus seguidores), isto sem falar nas considerações mais recentes questionando a condição propriamente principiológica da proporcionalidade (especialmente em se partindo dos referenciais apresentados por Alexy) que, segundo esta doutrina, notadamente quando se cuidar do controle de constitucionalidade (proporcionalidade) dos atos estatais, assume feições de postulado normativo-aplicativo, razão pela qual se faz referência a um dever de proporcionalidade” (SARLET, 2005, p. 105-149).
8 Para Silva (2002, p. 27): “conquanto a regra da proporcionalidade ainda seja predominantemente entendida como instrumento de controle contra excessos dos poderes estatais, cada vez mais vem ganhando importância a discussão sobre a sua utilização para finalidade oposta, isto é, como instrumento contra a omissão ou contra a ação insuficiente dos poderes estatais”.
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a – eventual – insuficiência de proteção, ou a omissão do legislador, da mesma forma que no caso de uma intervenção num direito fundamental, com base na proibição do excesso. É, antes, preciso verificar se a proteção satisfaz as exigências mínimas na sua eficiência e se bens jurídicos e interesses contrapostos não estão sobre-avaliados. Em todo o caso, a eficácia da protecção integra, em princípio, logo o próprio conteúdo do dever de protecção, já que um dever de tomar medidas ineficazes não teria sentido.”
No âmbito do Direito Penal, essa dicotomia aponta para o reconhecimento de um garantismo negativo, a partir da garantia da proibição do excesso e, simultaneamente, ao garantismo positivo, relacionado ao dever de proteção de determinados bens fundamentais9. A questão foi exposta nos seguintes termos: “Por outro lado, o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção Como observado por Streck (2004, p. 250): “(…) o direito penal não pode ser tratado como se existisse apenas uma espécie de garantismo negativo, a partir da garantia da proibição do excesso. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo Direito no Estado Democrático de Direito, o direito penal deve ser (sempre) examinado também a partir de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens fundamentais através do direito penal.”
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do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot).” (SARLET, 2005, p. 132)
E, com invulgar precisão foi sintetizada desta forma por Fischer (2006, p. 48): “Enquanto a proibição de excesso depende da aferição de estar sendo restringido excessivamente um direito fundamental, a proibição de proteção deficiente está em se apurar quando direitos fundamentais – em face de condutas que os atinjam – não estão sendo suficientemente protegidos, ou ainda, quando se está afastando indevidamente o cumprimento dos deveres fundamentais.”
No caso em estudo, admitir-se o início do curso da prescrição da pretensão executória, em momento anterior à possibilidade de execução da decisão condenatória acarreta inequívoca insuficiência na proteção de bens jurídicos constitucionalmente tutelados, uma vez que, ainda que ausentes a inércia estatal e a exigibilidade da condenação, inicia-se o transcurso do lapso prescricional. Logo, tem-se como inafastável que a aplicação literal do art. 112, I, do Código Penal, ofende os princípios do devido processo legal, da igualdade e da proporcionalidade (mormente em seu aspecto da proibição da proteção deficiente), bem como macula a garantia do acesso à justiça.
3. Por uma interpretação sistemática do art. 112, i, do Código Penal: Constatado que a aplicação direta do artigo 112, I, do Código Penal ensejaria inequívoca inconstitucionalidade, impõe-se a necessidade de uma interpretação
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constitucional do citado dispositivo. Desde logo, destaca-se a existência de posicionamento doutrinário que, apesar de reconhecer a incongruência do citado dispositivo, ainda assim preconiza sua aplicação literal em decorrência de suposta “clareza da lei”10. Contudo, com o devido respeito aos posicionamentos contrários, não parece razoável persistir-se aplicando literalmente um dispositivo flagrantemente inconstitucional a pretexto de obediência ao princípio da legalidade, como se os dispositivos penais estivessem imunes ao controle de constitucionalidade (e dos respectivos métodos hermenêuticos). Sobre o tema, Streck (2004, p. 250) assinalou, com acerto, que: “Não há, pois, qualquer blindagem que “proteja” a norma penal do controle de constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as modernas técnicas ligadas à hermenêutica, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao legislador, etc). Ou isto, ou teríamos que considerar intocável, por exemplo, um dispositivo legal que viesse a descriminalizar a corrupção, a lavagem de dinheiro, os crimes fiscais (de certo modo isto já ocorre, desde a Lei 9.249, confirmada agora pela Lei 10.684), os crimes sexuais (estupro e atentado violento ao pudor) em face do casamento (sic) da vítima com terceira pessoa (art. 107, VIII, do Código Penal), tudo em nome do princípio da legalidade, como se a vigência de um 10 Neste sentido, Nucci (2009, p. 564) ao comentar o termo inicial da prescrição da pretensão executória o estabelece como “(...) a data de trânsito em julgado da sentença condenatória, para a acusação. No entanto, é inconcebível que assim seja, pois o Estado, mesmo que a sentença tenha transitado em julgado para a acusação, não pode executar a pena, devendo aguardar o trânsito em julgado para defesa. Ora, se não houve desinteresse do Estado, nem inépcia, para fazer o condenado cumprir a pena, não deveria estar transcorrendo a prescrição da pretensão executória. Entretanto, a lei é clara: começa a ser computada a prescrição da pretensão executória a partir da data do trânsito em julgado da sentença condenatória.”
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texto jurídico implicasse, automaticamente, a sua validade, problemática que, paradoxalmente, em determinadas situações, coloca no mesmo lado penalistas dogmáticos-normativistas e liberais-iluministas. Nenhum campo do Direito está imune a essa vinculação constitucional. Conseqüentemente, na medida em que a Constituição figura como o alfa e o ômega do sistema jurídico-social, ocorre uma sensível alteração no campo de conformação legislativa. Ou seja, a partir do paradigma instituído pelo novo constitucionalismo e a partir daquilo que o Estado Democrático de Direito representa na tradição jurídica, o legislador não mais detém a liberdade para legislar que tinha no paradigma liberal-iluminista.”
Fixadas as premissas de que as normas penais submetem-se ao controle de constitucionalidade e aos métodos de hermenêutica constitucional e, por outro lado, considerando que o produto da atividade interpretativa deve guardar coerência com a ordem jurídica11, há que se proceder a uma interpretação consentânea ao Estado Social e Democrático de Direito do artigo 112, I, do Código Penal. Por tudo que até aqui se sustenta, verifica-se necessário socorrer-se a uma interpretação constitucionalmente adequada do disposto acima citado, de maneira que apenas após o trânsito em julgado definitivo da sentença condenatória (ou seja, para acusação e defesa) seja iniciada a contagem do lapso da prescrição 11 Nesse sentido, as contundentes e precisas observações de Morgado (2008): “Poderíamos começar defendendo a tese de que toda a interpretação que resulte numa subversão ao conteúdo axiológico do Direito, aos primados mais valiosos da Constituição e à realidade social atual deve ser imediatamente rechaçada. Toda a interpretação que transforme o Direito em escudo à impunidade, afastando através de artimanhas a aplicação da sanção jurídica deve ser imediatamente rechaçada. Afinal se a sanção é a característica elementar da norma jurídica, se usamos a norma para nos esquivar da aplicação dessa sanção, estaremos subvertendo a própria razão de ser da norma. Mesmo os sabidamente culpados têm direito de defesa, mas o direito de defesa constitucionalmente assegurado não os pode transformar em inocentes, desde que sabidamente culpados.”
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da pretensão executória. Esta interpretação é a única apta a compatibilizar, num só momento, a garantia da presunção de inocência que impede a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (conforme preconizado pelo Supremo Tribunal Federal), com o poder-dever punitivo do Estado (ius puniendi). A prosperar o entendimento contrário ao que se propõe como única solução prática a obstar a prescrição executória, a parte acusatória deverá, necessariamente, recorrer de toda e qualquer decisão condenatória, ainda que a reprimenda imposta atenda a todos os ditames de justiça. Nestes casos, o recurso visaria, tão-somente, a impedir o trânsito em julgado da condenação e consequentemente, retardar a deflagração do início do curso prescricional. Esta absurda situação vai de encontro ao correto entendimento do papel do Ministério Público no processo penal, bem como sobrecarrega os Tribunais com recursos visando apenas ao prolongamento da persecução penal. Nesse quadro, o Parquet teria por incumbência o dever de recorrer de toda e qualquer sentença condenatória, ainda que com o propósito exclusivo de evitar o trânsito em julgado em relação a ela. Surgiria, portanto, espécie sui generis de interesse recursal da acusação, sem qualquer base no critério de sucumbência processual12. Os esforços passariam a 12 Leciona Oliveira (2009, p. 41) que: “normalmente, a noção de interesse é extraída da definição de sucumbência. Sucumbente é aquele cuja expectativa juridicamente relevante não tenha sido atendida na decisão judicial. Assim como, do ponto de vista dos interesses da acusação, qualquer decisão que não atenda a totalidade da expectativa possível de condenação pode ser encarada como prejudicial a ela, para a defesa, só a absolvição poderia afastar inteiramente a sucumbência do acusado.”
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ser dirigidos para o máximo prolongamento da ação penal e, com isso, retardar o início do curso do lapso da prescrição da pretensão executória. A subversão de conceitos seria tamanha, que se vislumbraria verdadeiro caráter cautelar em tais recursos, posto que não dirigidos à reforma (ou nulidade) de uma decisão, mas tão somente a impedir o início da fluência do prazo prescricional e assegurar o resultado prático da possível execução penal vindoura. Por outro lado, também, a defesa seria estimulada à interposição de recursos meramente protelatórios do trânsito em julgado da condenação, a fim de garantir a impunidade, nos casos em que, por convicção do órgão do Ministério Público, entendendo que a condenação satisfaz os interesses da sociedade, deixasse de recorrer13. Nesta ordem de ideias, até mesmo as inovações administrativas e legislativas adotadas para a racionalização dos trabalhos no Poder Judiciário14 restariam praticamente inócuas, vez que interpretação literal do disposto no art. 112, I, do
13 Esta questão não passou despercebida em julgamento do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, relatado pelo eminente Des. Federal André Fontes, no julgamento do HC 200602010148277 no ano de 2007: “(...) A contagem da prescrição da pretensão executória a partir do trânsito em julgado da condenação para a acusação representaria um indevido estímulo à interposição recursal da acusação com o único fim de evitar a prescrição de um crime e à interposição de recursos procrastinatórios pela defesa em busca da extinção da punibilidade pela prescrição. (…).”
14 Neste contexto destacam-se: as súmulas vinculantes (art. 102, § 2ª da CR/88), o sistema de repercussão geral (art. 102, § 3ª da CR/88 e Lei 11.418/06); o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos (Lei 11.672/08); os esforços de transparência na gestão de recursos públicos e movimentação processual (Resolução CNJ 102/2009); a previsão do interrogatório por meio de videoconferência (Lei 11.900/09); a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (Lei 12.106/09); a informatização do Judiciário e implementação do processo eletrônico (Lei 11.419/06).
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CP constituiria verdadeiro estímulo à interposição de recursos protelatórios. Não se pode argumentar, também, que a necessidade de conformação entre o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal e a expressa dicção do art. 112, I, do Código Penal, importariam no estabelecimento de uma causa impeditiva da prescrição não prevista em lei. O próprio Supremo Tribunal Federal já enfrentou questão similar por ocasião do julgamento do habeas corpus n° 81.611-8/DF, oportunidade em que reconheceu o esgotamento da via administrativa como condição para a instauração de processo criminal em determinadas hipóteses de crimes contra a ordem tributária, mas ressalvou de modo expresso que o curso da prescrição permaneceria suspenso até a constituição definitiva do crédito tributário. No ponto destaca-se trecho do voto do eminente ministro Sepúlveda Pertence, in verbis: “De qualquer modo, aos que a tudo antepõem o temor da prescrição, é preciso observar que ele é menor do que, à primeira vista, pode parecer. Estou em que enquanto dure o processo administrativo fiscal por iniciativa do contribuinte, aceito o decorrente empecilho à instauração do processo penal, a prescrição terá suspenso o seu curso. (...) Tem-se, pois, que – antes que a Constituição explicitasse a solução – a suspensão da prescrição, na hipótese em que a imunidade formal do parlamentar impedisse o processo penal, o Tribunal já extraíra daí a suspensão da prescrição, independente de texto constitucional ou legal que a estipulasse. Incidentemente, aventei a mesma solução no RE 159230, quando se afirmou a necessidade de autorização da Assembléia Legislativa para a
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instauração, no STJ, de processo penal contra Governador de Estado, como consignado na ementa – RTJ 158/280: (...) Estou em que nada impede que a mesma conclusão se estabeleça, relativamente aos crimes materiais contra a ordem tributária, enquanto a definitividade do lançamento do tributo esteja obstado por iniciativa ou recursos administrativos do contribuinte. A construção alvitrada apenas não cobre a hipótese do lançamento por homologação, enquanto pender o prazo de sua revisão de ofício: é que, aí, é a inércia da administração tributária que, retardando a definitividade do lançamento, impede a ação penal. Esse o quadro, reitero o voto proferido na primeira assentada deste julgamento e defiro a ordem para trancar a ação penal: suspenso, por isso, o curso da prescrição, nos termos referidos: é o meu voto.” (BRASIL, 2005)
Portanto, a única interpretação constitucionalmente adequada do disposto no art. 112, I, do Código Penal é aquela que estabelece o início do prazo da prescrição penal executória, após o trânsito em julgado definitivo (leia-se, para ambas as partes) da condenação. Ora, se há atualmente firme jurisprudência no Supremo Tribunal Federal vedando a denominada execução provisória da pena, forçoso reconhecer que o título executivo penal somente é constituído após o trânsito em julgado definitivo da decisão condenatória, momento a partir do qual é possível iniciar-se a fluência da prescrição da pretensão executória. Por outro lado, não se desconhece o entendimento doutrinário e jurispruden-
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cial que vem emprestando à expressão “trânsito em julgado para a acusação” contida no artigo 112, I, do Código Penal a acepção de “último” trânsito em julgado para a parte acusadora15. Com a maxima venia, tem-se que tal raciocínio, apesar de solucionar em parte o equívoco constante da redação do aludido dispositivo legal, não se compatibiliza totalmente com os pressupostos teóricos de prescrição. Veja-se que a prosperar esta compreensão, admitir-se-ia o início da contagem do lapso prescricional, antes mesmo de surgir exigibilidade da execução da pena e, via de consequência, da inércia estatal. No caso em questão, a exigência do trânsito em julgado definitivo da condenação para o início da contagem da prescrição executória é medida que conforma-se aos fundamentos do instituto da prescrição, que fulmina a pretensão executória em virtude do não exercício do poder-dever estatal16. Essa interpretação coaduna-se com uma perspectiva integral do garantismo penal, que contrapõe-se ao garan-
15 De acordo com Queiroz (2009, p. 201), “não se pode confundir 'trânsito em julgado da sentença' com 'trânsito em julgado da sentença em primeiro grau', uma vez que a prescrição da pretensão executória pressupõe irrecorribilidade da decisão necessariamente”. Na jurisprudência tal entendimento foi reconhecido por ocasião do julgamento do RSE 200135000011268, JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO (CONV.), TRF1 - QUARTA TURMA, 03/03/2009
16 A corroborar este entendimento, cumpre transcrever a precisa lição do Tribunal Regional Federal da 2ª Região: “(...) A interpretação que deve ser conferida à primeira parte do inciso I do art. 112 do Código Penal é a compatível não apenas com o método da análise sistemático-literal do dispositivo, mas também com os métodos lógico, sistemático e teleológico, a fim de evitar conclusão que afronte a própria natureza da prescrição, instituto disciplinado pelo referido dispositivo legal, que, por sua natureza, faz desaparecer a pretensão não exercida pela inércia do seu titular. A contagem do prazo prescricional anterior ao trânsito em julgado definitivo constitui um contra-senso insuperável pela lógica, em se tratando de prescrição da pretensão executória relativa a pena restritiva de direitos, cuja execução só é permitida após aquele marco processual, antes do qual não é possível caracterizar a inércia do titular da pretensão executória. (...)” (HC 200602010148277, Desembargador Federal ANDRÉ FONTES, TRF2 - SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, 09/04/2007)
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tismo hiperbólico monocular, na feliz expressão cunhada por Fischer (2006)17. O mesmo autor adverte ainda que: “Se a Constituição é o ponto de partida para (também) a análise (vertical) do influxo dos princípios fundamentais de natureza penal e processual penal, decorre daí que o processo hermenêutico não poderá assentar-se sobre fórmulas rígidas e pela simples análise pura (muito menos literal) dos textos dos dispositivos legais (inclusive da própria Constituição).” (Fischer, 2010, p. 32)
No mesmo sentido Freire Júnior (2004, p. 06), em artigo destinado a análise da aplicabilidade ao processo penal do princípio de que veda o benefício da própria torpeza, sintetizou: “Efetivamente, o Processo Penal deve ser garantista a fim de permitir um justo equacionamento entre o direito de punir do Estado e os direitos fundamentais do réu, até porque os inocentes também podem ostentar a figura de réu no processo penal. Ocorre que o garantismo do Processo Penal não pode chegar a ponto de servir de mecanismo para impunidade ou deleite de criminosos.”
Portanto, a partir de uma interpretação constitucional do disposto no artigo 112, I, do Código Penal, tem-se que o início do transcurso do prazo da prescrição de pretensão executória deva ocorrer somente após o “trânsito em julgado da condenação para ambas as partes”, hipótese em que se atende ao postulado da presunção de não-culpabilidade (a impedir execução da pena antes da formação 17 “Quando dizemos que tem havido uma disseminação de uma idéia apenas parcial dos ideais garantistas (daí nos referirmos a um garantismo hiperbólico monocular) é porque muitas vezes não se tem notado que não estão em voga (reclamando a devida e necessária proteção) exclusivamente os direitos fundamentais, sobretudo os individuais.” (FISCHER, 2009)
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da coisa julgada) e, simultaneamente, respeitam-se os interesses estatais relativos à persecução penal e punição daqueles que cometem atos ilícitos. É preciso e, mais do que isso, é possível alcançar um ponto de equilíbrio entre o garantismo penal (em sua perspectiva negativa) e a efetividade do processo penal, de maneira que os direitos e garantias do acusado sejam respeitados, sem que isso acarrete uma absoluta desproteção dos interesses da sociedade e imponham o descrédito no direito penal e, em última análise, na própria ordem jurídica.
4. O trânsito em julgado para ambas as partes como marco inicial da prescrição da pretensão executória: precedentes do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais-regionais federais das cinco regiões Atualmente, há julgados na quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça que atribuem ao “trânsito em julgado para ambas as partes” a deflagração do lapso da prescrição da pretensão executória18. Corroborando este entendimento: HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO PARA AMBAS AS PARTES. LAPSO PRESCRICIONAL NÃO TRANSCORRIDO ATÉ O PRESENTE MOMENTO. ORDEM DENEGADA. 1. O termo inicial da contagem do prazo prescricional da pretensão executória é o trânsito em julgado para ambas as partes, porquan18 Neste sentido: (i) HC 200900165738, JORGE MUSSI, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:13/12/2010; (ii) RHC 200703059785, JORGE MUSSI, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:16/11/2010; e (iii) HC 200901056637, JORGE MUSSI, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:02/08/2010.
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to somente neste momento é que surge o título penal passível de ser executado pelo Estado. Desta forma, não há como se falar em início da prescrição a partir do trânsito em julgado para a acusação, tendo em vista a impossibilidade de se dar início à execução da pena, já que ainda não haveria uma condenação definitiva, em respeito ao disposto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. 2. Na hipótese vertente, considerando-se que a pena aplicada ao paciente foi de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, a prescrição da pretensão executória ocorre em 12 (doze) anos, nos termos do art. 110, caput, c/c art. 109, inciso III, ambos do Código Penal. E, examinando as alíneas do art. 117 do Código Penal, constata-se que desde o trânsito em julgado para ambas as partes - termo inicial para a contagem do prazo - até o presente momento, não houve o transcurso do lapso prescricional de 12 (doze) anos, motivo pelo qual, ao contrário do aventado na impetração, não se vislumbra que a pretensão executória estatal esteja fulminada pelo instituto da prescrição a ensejar a extinção da punibilidade do paciente. 3. Ordem denegada. (HC 200900147385, JORGE MUSSI, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:14/02/2011)
Outrossim, há precedentes nos Tribunais Regionais Federais das cinco regiões, conferindo interpretação constitucional ao disposto no art. 112, I, do Código Penal e adequando-a de modo correto aos fundamentos da prescrição e compatibilizando-a à vedação e à execução provisória da pena. No âmbito do Tribunal Regional Federal da 1ª Região há inúmeros precedentes19, dos quais destaca-se: PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRA19
Neste sentido: (i) AGEPN 200138000333632, JUÍZA FEDERAL CLEMÊNCIA MARIA ALMADA
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ZO PRESCRICIONAL DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA/ACÓRDÃO PARA AMBAS AS PARTES. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PROVIDO. 1. A data do trânsito em julgado da sentença/acórdão para ambas as partes deve ser considerada como o termo inicial do prazo prescricional da pretensão executória, tendo em vista que somente neste momento é que surge o título penal passível de ser executado pelo Estado, em respeito ao princípio contido no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Aplicação de precedentes jurisprudenciais do egrégio Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal Regional Federal. 2. No caso dos autos, verifica-se que, embora a sentença condenatória tenha transitado em julgado para a acusação em 04/04/2007 (fl. 183), tem-se, todavia, que, em relação ao delito do art. 299, do Código Penal, o acórdão confirmatório da condenação em primeiro grau de jurisdição transitou em julgado em 31/01/2011 (fl. 234). Deve também ser mencionado, in casu, que, na linha do que indicou o MM. Juízo Federal a quo, “JOSÉ CARLOS PIGNATON e SAULO PIGNATON, já qualificados, foram definitivamente condenados à pena privativa de liberdade de 01 (um) ano, 02 (dois) meses, 12 (doze) dias de reclusão [pena base de um ano, acrescida de mais 02 (dois) meses e 12 (doze) dias, a titulo de acúmulo pela continuidade delitiva: f. 148-155]” (fl. 236), o que acarreta, na forma do art. 109, V, do Código Penal, um prazo prescricional de 4 (quatro) anos, em decorrência da desconsideração do acréscimo decorrente da continuidade delitiva, para fins do cômputo do lapso LIMA DE ÂNGELO (CONV.), TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 DATA:17/10/2011 PAGINA:078; (ii) AGEPN 199938000402217, JUIZ FEDERAL MARCUS VINÍCIUS REIS BASTOS (CONV.), TRF1 QUARTA TURMA, e-DJF1 DATA:02/08/2011 PAGINA:179; (iii) RSE 200132000017432, JUIZ FEDERAL JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA (CONV.), TRF1 - TERCEIRA TURMA, e-DJF1 DATA:29/01/2010 PAGINA:85.
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prescricional. Assim, na hipótese em discussão, quanto ao delito inscrito no art. 299, do Código Penal, tomando-se a data do trânsito em julgado do acórdão confirmatório da sentença proferida em primeiro grau de jurisdição - 31/01/2011 (fl. 234) - como marco inicial da prescrição executória, constata-se, na espécie, que, até a presente data, não transcorreu o lapso prescricional de 04 (quatro) anos (art. 109, V, do Código Penal), pelo que não se vislumbra a ocorrência, na espécie, da extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão executória. 3. Recurso em sentido estrito provido.(RSE 200541000006022, DESEMBARGADOR FEDERAL I’TALO FIORAVANTI SABO MENDES, TRF1 QUARTA TURMA, e-DJF1 DATA:08/05/2012 PAGINA:346.)
PENAL. PROCESSUAL PENAL. SENTENÇA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE. TRÂNSITO EM JULGADO. AMBAS AS PARTES. PRESCRIÇÃO. PRETENSÃO EXECUTÓRIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. INVIABILIDADE. 1. O Supremo Tribunal Federal sustenta o entendimento segundo o qual, em consonância com o princípio constitucional da não-culpabilidade, é impossível a execução provisória de sentença condenatória (HC 84078). 2. Descabe falar em prescrição da pretensão executória com base na interpretação literal do inciso I do art. 112 do Código Penal, pois tal exegese não se coaduna com o texto da Constituição, sendo mais apropriada a análise sistemática do dispositivo, exigindo-se, também, o trânsito em julgado para o réu. 3. A necessidade de recolhimento ao cárcere para apelar (antigo art. 594 do Código de Processo Penal) encontra-se superada e esta era a razão porque não se previu, ao tempo do Código Penal, a condenação em segundo grau ou a con-
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firmação da sentença de primeiro grau como causas interruptivas da prescrição (Prof. Eugênio Pacelli de Oliveira). 4. Extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão executória inviabilizada por não terem transcorrido mais de 08 (oito) anos entre a data do trânsito em julgado do acórdão que desproveu a apelação interposta pelo condenado e a da expedição da carta precatória com guia de execução e fiscalização das penas impostas. 5. Agravo em execução provido. (AGEPN 200138000368589, DESEMBARGADOR FEDERAL TOURINHO NETO, TRF1 - TERCEIRA TURMA, e-DJF1 DATA:29/07/2011 PAGINA:27.)
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região, também, tem precedentes20 conferindo interpretação sistemática do artigo 112, I, do Código Penal, dentre os quais: HABEAS CORPUS. PRESCRIÇÃO EXECUTÓRIA. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO. AMBAS AS PARTES. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. 1. O termo inicial do prazo prescricional da pretensão executória é a data do trânsito em julgado para ambas as partes, pois é apenas a partir deste momento que a pena pode ser executada. 2. Com o advento da CF/88 e a consagração do princípio constitucional da inocência ou da não culpabilidade, o art. 112, I, do CP, não foi recepcionado, não sendo mais admitido o cumprimento antecipado da pena antes do trânsito em julgado definitivo da sentença condenatória para ambas as partes. 3. Indubitável a ausência de constrangimento ilegal, vez que a audiência para definir o cumprimento da pena foi realizada antes que fosse consumada a prescrição
20 Neste sentido: (i) TRF2 HC 200602010148277, Desembargador Federal ANDRÉ FONTES - SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, 09/04/2007.
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alegada. 4. Ordem denegada.(HC 201202010052481, Desembargadora Federal LILIANE RORIZ, TRF2 - SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data::18/06/2012 - Página::60/61.) PENAL. AGRAVO INTERNO. PRESCRIÇÃO. PRETENSÃO PUNITIVA. ACÓRDÃO CONFIRMATÓRIO. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. IMPOSSIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA. TRIBUNAIS SUPERIORES. CÓDIGO PENAL. SISTEMA ADOTADO. INTERPRETAÇÃO. CARÁTER RESTRITIVO. ACÓRDÃO CONFIRMATÓRIO. PRETENSÃO PUNITIVA. ENCERRAMENTO. NÃO OCORRÊNCIA. 1. A jurisprudência dos Tribunais Superiores é uniforme quanto ao entendimento de que apenas o acórdão condenatório que reforma a sentença absolutória é capaz de interromper a prescrição, visto que aquele que meramente confirma a condenação não se qualifica como causa de interrupção do lapso prescricional. 2. Analisando o sistema adotado pelo Código Penal, podemos observar que o diploma penal diferencia acórdão condenatório de acórdão confirmatório, tanto que preconiza em seu art. 117, II e III, respectivamente, que a prescrição se interrompe pela pronúncia e pela decisão confirmatória da pronúncia, ao passo que, no inciso IV, prevê como causa interruptiva a sentença condenatória recorrível ou o acórdão condenatório. 3. Não foi observada pelo legislador a mesma técnica antecedente abraçada pela doutrina e jurisprudência dominantes, uma vez que, para que fosse concedida a mesma interpretação dada à decisão confirmatória da pronúncia, deveria ter sido incluído ou criado um inciso para consignar como causa interruptiva o acórdão confirmatório de sentença condenatória. 4. Como tal não foi realizado, não se pode ampliar a interpretação se apenas foi consignado como causa interruptiva o acórdão condenatório, inclusive porque,
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não se pode olvidar que a lei penal, por ter caráter restritivo, há de ser interpretada restritivamente, sem alargamentos. 5. Se considerarmos que o acórdão confirmatório da condenação, prolatado antes de fluído o prazo prescricional, obsta a prescrição da pretensão punitiva, ou como sustenta o Parquet, encerra tal fase, estaremos, do mesmo modo, concedendo à decisão colegiada o efeito interruptivo que acima foi rechaçado, embasado em jurisprudência amplamente dominante. 6. Não se pode alegar que a prescrição da pretensão punitiva se encerra antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, da mesma forma que não se pode sustentar que a prescrição da pretensão executória se inicia em momento anterior ao surgimento do título penal executório, ocorrente com o trânsito em julgado da sentença condenatória para acusação e defesa. 7. A manutenção da decisão recorrida, que reconheceu a prescrição da pretensão punitiva, acarreta o não conhecimento dos embargos de declaração opostos pela defesa do acusado, que postulavam por tal providência. 8. Agravo Interno do Ministério Público Federal improvido. (ACR 200551014903618, Desembargadora Federal LILIANE RORIZ, TRF2 - SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data::27/09/2010 - Página::182 – grifou-se)
Por sua vez, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, também, há julgados21 estabelecendo o trânsito em julgado para ambas as partes como o marco inicial da prescrição da pretensão executória, in verbis: PENAL: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. TERMO INICIAL DO LAPSO PRESCRICIONAL. I
Neste sentido: (i) AGEXPE 00066285520104036104, DESEMBARGADORA FEDERAL RAMZA TARTUCE, TRF3 - QUINTA TURMA, TRF3 CJ1 DATA:19/10/2011.
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- A prescrição da pretensão executória verifica-se após o efetivo trânsito em julgado da sentença, para ambas as partes (CP, art. 110). II Prevalecia o entendimento de que o prazo da prescrição da pretensão executória começava a fluir da data em que transitou em julgado a sentença condenatória somente para a acusação, orientação que não pode prevalecer considerando que não há execução provisória da pena. III - Na hipótese dos autos, a pena definitiva foi fixada em 02 (dois) anos de reclusão, que prescreve em 04 (quatro) anos, conforme o art. 109, V, do Código Penal. IV - O v. acórdão confirmatório da condenação transitou em julgado, para ambas as partes, em 26/09/2007 (fl. 42), a partir de quando se verifica a prescrição da pretensão executória (CP, art. 110). V - Considerando que o trânsito em julgado da condenação para ambas as partes ocorreu em 26/09/2007 (fl. 42), e que até a presente data não houve interrupção do curso do prazo prescricional, impõe-se reconhecer que decorreu lapso temporal superior a 04 anos, tendo ocorrido a prescrição da pretensão executória estatal. VI - Recurso provido. De ofício, reconhecida a ocorrência da prescrição da pretensão executória estatal, declarando-se extinta a punibilidade do delito. (AGEXPE 00010522120094036103, DESEMBARGADORA FEDERAL CECILIA MELLO, TRF3 - SEGUNDA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:30/08/2012 ..FONTE_REPUBLICACAO:.) PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ARTIGO 171, § 3º c/c 14, II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL. CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO. PRESCRIÇÃO EM 08 ANOS - ARTIGO 109, IV, DO CÓDIGO PENAL. INOCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I - O paciente foi processado e condenado em definitivo pela prática do crime previsto no artigo 171, § 3º c.c. 14, II, ambos do Código Penal, à pena privativa
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de liberdade de 02 (dois) anos, 02 (dois) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, em regime aberto, e à pena pecuniária, na mesma proporção da pena privativa de liberdade. II - Assim sendo, o prazo prescricional aplicável ao caso é de 08 (oito) anos (artigos 109, IV e 110, do Código Penal). III - É de se considerar como marco inicial da contagem da prescrição da pretensão executória o trânsito em julgado para ambas as partes, posto que somente a partir desse momento é que passa a ser possível a execução da pena, em respeito ao princípio previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal. IV - No caso em tela, não há que se falar na ocorrência da prescrição. V - Ordem denegada. (HC 201103000070710, DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES, TRF3 - SEGUNDA TURMA, DJF3 CJ1 DATA:20/06/2011 PÁGINA: 673 – grifou-se)
Do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, colhe-se o seguinte precedente: Penal. Artigo 112, inc. I, do CP. Prescrição da pretensão executória. Termo a quo. Trânsito em julgado para ambas as partes. Interpretação conforme a Constituição. 1. O trânsito em julgado não deve ser considerado como marco interruptivo apenas para a acusação, quando a pena deixa de ser executada em face da pendência de recurso interposto pela defesa. 2. Entendimento contrário levaria à ocorrência, em diversos casos, de extinção da punibilidade sem que o Estado, em momento algum, tenha sido desidioso ou inerte. 3. Registre-se ainda que não é hipótese de declaração de inconstitucionalidade do artigo 112, inc. I, do CP, mas mera interpretação do referido dispositivo de acordo com a norma constitucional vigente, conforme, aliás, já decidido pela Corte Especial deste TRF (HC nº 0025643-59.2010.404.0000/SC). ( 50033355620114047000, ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO, TRF4 - SÉTI-
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MA TURMA, D.E. 07/02/2012.) PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. TRÂNSITO EM JULGADO PARA A ACUSAÇÃO E PARA A DEFESA. MARCO INICIAL. O prazo da prescrição da pretensão executória tem como dies a quo o momento em que a sentença se torna imutável tanto para a acusação como para a defesa. Interpretação consentânea com a Constituição Federal. Precedente do STJ. ( 50069972820114047000, PAULO AFONSO BRUM VAZ, TRF4 OITAVA TURMA, D.E. 30/11/2011 – grifou-se)
Finalmente, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região também já reconheceu a necessidade de interpretação constitucional do art. 112, I, do Código Penal, in verbis: PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO INTERPOSTO PELO RÉU EM SEDE EM EXECUÇÃO PENAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. INOCORRÊNCIA. DIES A QUO A PARTIR DO TRÂNSITO EM JULGADO PARA AMBAS AS PARTES E, NÃO, APENAS PARA A ACUSAÇÃO. ACERTO DA DECISÃO MONOCRÁTICA, EMANADA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO COLENDO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ. 1 - O direito estatal de punir, traduzido na imposição efetiva da sanção, concretiza-se com o advento do trânsito em julgado da condenação não apenas para a acusação, mas para ambas as partes, significando dizer que o apelo interposto pelo réu, bem como o recurso especial agitado pelo Ministério Público, postergaram o advento prescricional. 2 - Precedente deste Regional: AGEXP nº 1311 (200783000140400), 4ª Turma. Rel. Des.Fed. Margarida Cantarelli. Julg. 28/07/2009. unânime. DJ - Data:12/08/2009
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- Página::205 - Nº::153. Precedente do Superior Tribunal de Justiça STJ: HC - HABEAS CORPUS - 137924. QUINTA TURMA. Relator ministro JORGE MUSSI. DJE DATA: 02/08/2010. 3 - Impossibilidade de se reconhecer o fenômeno prescricional, em suas modalidades superveniente ou retroativa. 4 - Agravo em Execução Penal a que se nega provimento. (AGEXP 00161572320104050000, Desembargador Federal Marcelo Navarro, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::04/05/2011 - Página::233.) PENAL. AGRAVO EM EXECUÇÃO. PENA RESTRITIVA DE DIREITO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. IMPOSSIBILIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA. TERMO INICIAL DA CONTAGEM. TRÂNSITO EM JULGADO DEFINITIVO. COISA JULGADA. INÉRCIA DO ESTADO NA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA. AGRAVO PROVIDO. PRECEDENTES. I. A contagem do prazo da prescrição da pretensão executória não tem início com o trânsito em julgado da sentença condenatória apenas para a acusação, eis que, pendente de apreciação recurso interposto pela defesa, impedida a execução da pena, não se podendo falar, assim, em inércia do Estado. II. Ao não se admitir execução provisória da sentença criminal condenatória, a contagem da prescrição da pretensão executória há de ter início com o trânsito em julgado para ambas as partes, a fim de se evitar um indevido estímulo à interposição recursal pela acusação com o fito unicamente de evitar a prescrição de um crime, e à interposição de recursos meramente procrastinatórios pela defesa, em busca da extinção da punibilidade pela prescrição. III. No caso presente, o decurso do prazo entre o trânsito em julgado para a acusação e a execução da pena não se operou em face à inércia do Estado, mas em decorrência de recursos interpostos pela defesa. IV.
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Agravo provido para afastar a prescrição da pretensão executória da pena restritiva de direitos aplicada. (AGEXP 200783000140400, Desembargadora Federal Margarida Cantarelli, TRF5 - Quarta Turma, DJ - Data::12/08/2009 - Página::205 - Nº::153 – grifou-se.)
5. Conclusões Analisou-se o impacto do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da vedação da execução provisória da pena, na questão relativa ao estabelecimento do trânsito em julgado para a acusação como marco inicial do fluxo da prescrição da pretensão executória (estabelecido pelo art. 112, inc. I, do Código Penal), concluindo-se que: 1. Estabelecida a vedação à execução da sentença penal condenatória antes do respectivo trânsito em julgado, não há que se falar em início da prescrição executória a partir da formação da coisa julgada para a acusação, uma vez que o título exequendo ainda carece de exigibilidade e não configurada inércia estatal, corolários lógicos e indissociáveis do instituto da prescrição. 2. A possibilidade de fluência do curso da prescrição executória a partir do trânsito em julgado para a acusação, ou seja, a aplicação literal do art. 112, inc. I, do Código Penal, constitui ofensa aos princípios do devido processo legal, da igualdade e da proporcionalidade (mormente em seu aspecto da proibição da proteção deficiente - Untermassverbot), bem como macula a garantia do acesso à justiça. 3. Uma interpretação constitucional do artigo art. 112, inc. I, do Código Penal impõe o estabelecimento do trânsito em julgado da condenação para ambas
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as partes como o marco inicial da prescrição da pretensão executória, sendo a única apta a equacionar os direitos do acusado (princípio da não-culpabilidade) e, ao mesmo tempo, manter íntegro o ius puniendi estatal e garantir a efetividade processual. 4. Há precedentes no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais das cinco Regiões reconhecendo o trânsito em julgado para ambas as partes como o marco inicial da prescrição da pretensão executória, ou seja, conferindo interpretação sistemática ao disposto no artigo 112, I, do Código Penal.
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Referências ABADE, Denise Neves. Garantias do Processo Penal Acusatório: o novo papel do Ministério Público no Processo Penal de Partes. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BEDÊ JUNIOR, A mérico. SENNA, Gustavo. Princípios do Processo Penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: RT, 2009.
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