Este suplemento é parte integrante do PUBLICO número 3605 de 30 de Janeiro de 2000 e não pode ser vendido
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A NOVA VAGA DO CINEMA BRASILEIRO MANUEL MOZOS E MIGUEL GUILHERME: A GERAÇÃO "QUASE" TGV: HISTÓRIA DA ALTA VELOCIDADE NA EUROPA
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Dom1ngo. 30 Janeiro 2000
Agora ele tem 57 anos. Agora passa as tardes num sexto andar das Olaias a escutar a voz de uma rapa·
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riga inventada. Agora ele chama-lhe Clara e dá-lhe o tempo que Deus teve. Agora ele risca e escreve, escreve e risca, com uma esferográfica, a que estiver à mão. Agora o telefone toca duas vezes e ele atende e é gentil. Agora os gatos saltam-lhe para os papéis e ele fmge que os sacode e que não sabe o nome deles. Agora ele queria fazer livros como os livros escritos só para nós, como água, como música, como a música de Bach, uma máquina de comover. Agora ele está no rascunho deste, sem saber como lhe chamar, e atira-se para o próximo porque no próximo há-de haver uma história de amor desgarrador como a história daquela senhora que morreu e que se chamou Ruth Bryden e de quem ele nunca dirá que era um travesti. Agora ele é cavalheiro, quase um cavaleiro andante, ama poetas, ouve Dylan Thomas, comove-se com Eugénio e esquece-se que é insolente. Agora ele tem 18 anos e ainda não pensou que os poemas que escreve são uma merda. Agora ele tem 28 anos e está no Malange e aprende o que é o tempo e que os homens morrem e que quando morrem deixam tudo. Agora ele tem 57 anos e um agente na América e muitos direitos e nunca mais voltou a Angola e não fala do Nobel porque não é preciso porque ninguém escreve como ele.
Disse ao "Le Monde" que "Exortação aos Crocodilos" era sobre wn grupo de extrema-direita que também matou Sá Carneiro. As pessoas agarram-se a isso, que é a anedota e não me interessa nada. Qual é a sua convicção sobre a morte de Sá Carneiro? Parece-me claro que é um atentado, uma morte provocada. Como me parece claro que as pessoas não terão muita vontade de levar a investigação até ao fim. Embora o meu coração nunca estivesse nem com aquele partido nem com aquele homem, como não está com nenhum político, são criaturas odiosas, a maior parte das vezes. Gostam dos substantivos abstractos.
Começou apensar no livro a partir de wna história que lhe contaram,de wna galega que meJIJulhava a trança em aguardente. Sim. Tinha-a ouvido a um galego chamado Xesus Franco que um dia foi trabalhar na Dom Quixote. A avó dele chamava-o e dizia-lhe: vou-te ensinar o segredo da coca-cola. Então misturava gasosa com café com açúcar. Esta história ficou dentro de mim uns meses largos. A pouco e pouco o livro foi-se construindo à volta dela.
Porque é que essa história lhe interessou? Todos os livros me começam assim. É como encontrar um botão na rua e andar à procura de um fato para o botão. Um pequeno episódio que se vai ampliando. A história, a intriga, é apenas o prego onde a gente pendura a prosa. O que me interessa é muito mais o trabalho com as palavras, com o texto ... Queria que as páginas fossem espelhos ... pouco a pouco elas [as quatro protagonistas] foram aparecendo umas atrás das outras. Eu tinha a ideia da história rdos atentados bombistas de extrema-direita] e havia duas opçóes: ou a contava pelo lado dos homens que tinham vivido os acontecimentos, ou pelo lado das mulheres. Porque estes homens contavam pouco às mulheres, havia o que elas imaginavam, fantasiavam. Isso permitia-me trabalhar com muito mais registos. Para além de me parecer que as mulheres são muito mais ricas interiormente que os homens. Depois punha-se outro problema: como é que uma miúda vê a primeira menstruação? Como é que uma mulher vive uma relação sexual? O que é a solidão, o que é o amor, o que é no fundo ser mulher? E há a sensação: eu não vou ser capaz, sei lá como
é que uma mulher se sente, como pensa... posso saber teoricamente como é o orgasmo da mulher, mas não o interior de uma mulher. E a partir de certa altura... se trabalharmos bastante a mão fica melhor que a cabeça... a sensação era de estar a assistir àquelas mulheres, de aprender sobre as mulheres com elas, de viver coisas que me eram estranhas.
E de onde é que isso vinha? Sei lá ... vinha para o papel... devagar como sempre. [pausa]. Isto parece um bocado pretensioso de dizer, mas outro dia o Eugénio de Andrade, que percebe muito bem o fenómeno literário, dizia-me: o que gosto neste livro é que não se passa nada e a gente fica agarrado. Era isso que eu queria, que não se passasse nada. Neste não se passa literalmente nada .. . ele dizia:
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as pessoas não falam, vivem, e a gente fica a vê-las viver.
Oque éque sabia sobre o livro quando começou? Sabia pouco. Nos primeiros livros sabia quase tudo, na "Memória de Elefante", nos "Cus de Judas", no "Fado Alexandrino" tinha um plano minucioso. Mais tarde, o plano praticamente não existe. Sei o número de capítulos, o nome das personagens principais, nunca as vejo fisicamente, nunca... de resto há poucas descrições físicas ... como também não encontra em nenhum livro meu a descrição de um acto sexual ...
Bem, neste livro há uma descrição terrível, a mãe e o pai da Simone, quando se deitam a primeira vez na cama. Não me recordo.
É, numa página, a concepção e o nascimento da Simone.
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-"vejam a minha habilidade". Abdicar do virtuosismo a favor da eficácia. Que o romance seja uma espécie de máquina de comover, como se dizia que a música do Bach era, implacável, que nos leva e agarra, queiramos ou não. Porque um livro quando não tem charme não tem nada, não é? A questão é estarmos a ler e não sentirmos o trabalho. Num livro bom, aquilo parece água.
Pode falar sobre cada uma das mulheres? Quem é a sua favorita? Aquela que eu gostaria de conhecer? A Celina. E a que me deu mais trabalho foi a Simone.
São as duas melhores personagens. A Celina e a Fátima foram as que deram menos trabalho. Com
Se houver sexo é de forma muito ilegível, aliás todo o livro é ilegível, é todo contado por trás. Há muito poucas descrições de actos sexuais bem feitas em literatura. Uma delas é da Joan Collins ... toda a gente acha que é uma péssima escritora... num livro que tenho ali: as duas primeiras páginas são assombrosas, é a descrição de um "felatio". Nunca vi uma coisa tão bem descrita... é muito difícil de fazer sem cair na vulgaridade e no mau gosto. Ou no exibicionismo. E ela consegue ... Há também uma descrição muito boa no "Amor em Tempos de Cólera" [de Gabriel García Márquez], quando os dois velhos vão para a cama, e o velho não consegue, e aquilo é descrito com uma delicadezaeum pudor...
a Simone houve páginas e páginas riscadas, capítulos inteiros deitados fora, muita ganga. A rapariga surda, com o cancro ... aí foi um bocado profético, porque depois de ter acabado o livro começaram a acontecer coisas que lá estavam escritas ... por exemplo, o José Cardoso Pires teve um ataque igual ao que está descrito, a mãe das minhas filhas teve um cancro exactamente igual, no mesmo sítio, ao da Mimi. Depois estive muito tempo sem escrever. O livro foi acabado no princípio de 98. Em Janeiro de 99 é que comecei o novo. Normalmente levo um ano e meio, dois, para cada livro, sempre ao mesmo ritmo, sábados, domingos, no estrangeiro.
Depois da história da avó e da coca-cola, como é que as quatro mulheres lhe aparecem?
Com um bloco pequenino. As primeiras versões são num bloco. Às vezes faço fotocópias e deixo lá, para o caso de acontecer algumacoisa.
O tempo é muito lento, passa-se tudo num tempo antes das palavras. Visualmente é como filamentos de histórias que se aproximam, que vão confluindo e a pouco e pouco formam o livro. E chega uma altura em que se sente que se pode começar a escrever. Mas está-se longe de ter os dados todos na mão .... Os meus últimos livros têm uma estrutura sinfónica, e as personagens são usadas como instrumentos, porque penso que toda a arte tende para a música ... a linguagem aproxima-se muito mais da linguagem musical, e das emoções, dos afectos.
Daí os refrões que usa constantemente.
Anda com os papéis todos atrás?
Nunca experimentou escrever em computador? Não. Gosto de desenhar as letras, do contacto físico com o papel, do tocar, do mexer, do ter uma relação animal com as coisas.
Escreve com essas esferográficas... Escrevo com qualquer coisa em qualquer sítio, não tenho rituais.
De onde é que vêm os pormenores? Como os elefantes com suspensórios no fundo do prato da sopa da Celina?
Isso é outra técnica, para acelerar ou desacelerar a narrativa. Há pequenas coisas técnicas que se podem ensinar. Por exemplo: nunca deixar uma frase num ponto final para o dia seguinte, deixá-la a meio de uma palavra até, porque é muito mais fácil continuar. O Hemingway, que cada vez aprecio mais, falava muito disto. No Faulkner vêem-se as costuras todas, enquanto o Hemingway é trabalhado por dentro, só vemos o resultado, temos de ler duas, três vezes para saber como ele resolveu uma dificuldade. O Tolstoi dizia que o bom escritor é o que não sacrifica a eficácia do relato à tentação de uma pirueta verbal
Os elefantes vêm de quando eu era miúdo. Davam-me a sopa num prato azul que tinha uma rã no fundo a saltar ao eixo. Era um alívio bestial ver chegar a rã, o sinal de que aquilo estava a acabar. Da mesma maneira que a água sabia muito melhor quando era servida num copo com desenhos. São pormenores comuns a nós todos. O que é um livro bom? É um livro que eu tenho a sensação de que foi escrito só para mim, de que os outros exemplares dizem outras coisas. Eu leio e digo: bolas, foi isto que me aconteceu e eu não me lembrava. Que me dá a alegria de um encontro comigo. A propósito do seu medo- como vou contar o que elas pen-
Tinha uma péssima relação com a minha imagem, quando era novo, com a minha cara, com o meu corpo. Talvez essa imagem fizesse com que me fechasse para escrever. Na infânciá brincava sozinho... e somos muitos irmãos... nunca tive uma conversa pessoal com nenhum irmão meu, nunca... com ninguém da minha família ... com quem tinha conversas pessoais era com estes amigos que morreram e com os dois ou três que estão vivos.
Só me vinha à cabeça o que a Virgínia Woolf disse ao tD. H. ] Lawrence: o que é que ele sabia do orgasmo de uma mulher? Como é que eu, que ainda por cima cresci entre irmãos, que fui educado em liceus onde não havia raparigas, que tinha primas direitas todas mais novas, vou falar de raparigas? Só comecei a vê-las quando entrei para a faculdade, e a vê-las de longe, porque a minha timidez não me deixava aproximar. Comecei a namorar muito tarde, tive uma iniciação sexual muito tardia... cheguei tarde à vida. Passei a faculdade a ler, a escrever e ajogar xadrez., tudo me passava ao lado. Acho que acordei na guerra. Até então tinha tido uma vida protegida, nunca tinha visto uma pessoa morta.
sam-, não é muito comum um homem escrever assim.
Quando é que aprendeu alguma coisa sobre as mulheres?
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As raparigas eram um mistério ...
Agora já não são? De uma outra maneira. O facto de ter tido filhas ajuda a entender muita coisa, vê-las crescer.
Mas nunca conseguimos saber muito sobre os outros, não é? Ou por se escrever consegue-se saber mais alguma coisa? Quando estou a escrever um livro a única coisa que penso é como me vou desembaraçar dele.
Desembaraçar do quê? Do que tem para contar? Não. Do livro.
Mas o livro é o quê, nesse momento? É escrever. Há bocado estava aí e fiquei parado numa palavra meia hora... É escrever de uma forma que me pareça bem. Acabado o livro, o primeiro mês é agradável porque penso que fiz uma obra-prima. E nunca mais volto a lê-lo, não vejo provas, nada, nada. Depois começo-me a aperceber dos erros e a querer escrever outro para o emendar. Mas às vezes demora meses. E começo a sentir-me culpado, a pensar: bolas, pagam-me para isto e não estou a fazer nada. E o agente telefona-me a dizer que já vendeu o próximo ...
Ainda continua a achar que "Exortação aos Crocodilos" é o melhor que fez? Que fiz até agora, não tenho dúvidas. É onde estou mais per-
to do silêncio, da vida, das pessoas, de uma simplicidade que nunca atingirei ... Onde o que ficou realizado é mais próximo daquilo que esperava fazer. Quando acabei, lembro-me de ter telefonado ao Tom [o agente] a dizer: este é o meu melhor livro, não conheço nenhum romance tão bom, escrito em português ou em qualquer outra língua, é dos melhores livros que já se escreveu. Mas agora existe uma expectativa que me angustia. E se eu lhes dou um mau livro? Aqui em Portugal não tem grande importãncia ...
Mas está a pensar nisso? Penso, penso, tenho medo de dar um mau livro, de desiludir as pessoas que têm em mim uma fé que nunca tive. Como o Tom ... ele ia com os meus livros às editoras e ninguém os queria. Eu dizia-lhe que não valia a pena ser meu agente e ele respondia [imita a pronúncia americana]: você vai conquistar o mundo. Isto durou anos! Finalmente houve editoras que aceitaram, a crítica era muito boa, mas os livros não se vendiam. E pessoas que admiro como a minha tradutora sueca, Marianne Eyre- que é uma excelente poetisa, uma mulher encantadora, tem 67 anos e tem 20 anos ... uma mulher espantosa, corajosa, modesta, doce, encantadora... -, tenho um medo horrível de as desiludir. Era o Ernesto [Melo Antunes], é a Marianne, são alguns editores que tenho, é o Tom... Não lhe acontece não querer desiludir as pessoas de quem gosta?
É nesse medo que vivemos todos. Mas uma coisa seria dizer: eu ainda tenho este livro para fazer. Outra coisa é: eu não quero desiludir as pessoas que esperam um livro. Mas ninguém me impõe nada. Quando me telefonam, pergunta invariável: como é que está ô livro? Resposta invariável: uma merda. E invariavelmente me dizem: se me diz que está uma merda, fico tranquilo. Bolas ... porque sei que posso fazer coisas muito boas, que ninguém escreve como eu ... não sou vaidoso, mas tenho esta certeza, para mim é tão evidente ... sei que se trabalhar muito posso fazer melhor do que fiz.
Aonde é que está a tentar chegar? Não tenho muitos sonhos, o que podia sonhar já me aconteceu, de bom e de mau. Estes dois últimos anos foram os piores da minha vida. Nunca pensei em ter tantas mortes, pessoas a quem eu queria tanto ... o que relativiza muita coisa ... Eu sei
que quando morrer não levo nada comigo, fica tudo aqui.
O que é que a morte de quem amamos nos ensina? Sinto uma falta terrível dessas pessoas, só no último ano foram cinco mortes. Quatro delas fazem-me muita falta. Fezme ver na carne que há realmente tão pouca coisa importante. E o sucesso não é certamente uma delas. Mas fez-me pensar ainda mais: tenho que fazer livros bons. Talvez porque seja o melhor que lhes possa dar.
Aos II anos anunciei aos meus pais que queria ser escritor. Foi um alarme bestial. De maneira que escrever era clandestino, eu escrevia nuns blocos em que ainda escrevo, com o livro de hi tória ou de geografia, e quando ouvia barulho trocava a ordem para não me apanharem no delito horrível de escrever. Ainda hoje escre o com um livro aberto ao lado. Como se continuasse a fazer algo de clandestino.
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" . o proXImo romance
deus é uma rapariga de 18 anos O registo de "Exortação aos Crocodilos", com as várias ,·ozes, os refrões, mi tão ao limite que rem que ser o fim de qualquer coisa. Foi a última vez que fiz um livro com mais de uma pessoa a falar. É uma técnica que já domino. já nào me interessa. julgo que não posso ir mai,- longe. Este [pega nos papeis do novo li \To I e só uma pessoa a falar. Será o último deste ciclo e é completanwnte diferente. Está di\·idido nos dias da cria\ão do mundo. no primeiro dia deus não sei quê. no ::egundo dia deus não sei que mais. por aí fora. Pa::;sa-se ao me,;mo tempo quando ela tem 18 anos e mai~ tarde. quando ela já tem :28. está ca,;ada e tem um filho. :\,.: pessoas existem. depois não existem. \·oltam a existir. Tecnicamente põe problema,.: muito curioso:-. interessava-me fazer para saber se era capaz. Porque é tão ambicioso! Supunhamos: o pai é pé:-simo. mas afinal não é o pai que é péssimo é a mãe. mas afinal não é a mãe nem o pai ... E como dar credibilidade. uma e:'pe;;;;ura de carne às per;;onagen::; que ela \·ai criando e destruindo ... Como é que se escreve a dez anos de distância para a frente? Pois. [ri -;;e]. Kão sei como vai ficar a forma definitiva. Ela chama-se Clara. Preci,-ava de um nome composto que des,.;e \·ariantes: :\Ia ria Clara. Clarinha ... r~ uma pessoa de clas;;e média. como todos nó,;. mora no Estoril. Xo primeiro dia o pai dela entra no ho::;pital para ser operado e no sétimo dia o pai tem alta. O li\To é o que ela vive nes:'a =-emana. Estou na fase de corrigir. O rascunho e::<tá pronto. agora falta tudo. _-\o mesmo tempo é um romance sobre o romance. tudo se passa dentro dela. atribui \·idas às pessoa:- que vão mudando. E como tornar isto tudo comovente ... Se este li\To me comon'r r~tá hem. se resistir à=- ~e:; sões que faço de !é-lo em voz alta. com uma \"OZ de desenho animado [ri-se J. fazendu troça das pala \Ta:'. Porque se resiste a isso. o li\To aguenta. Dá-se conta das repeti\Ões. do mau go:<to. Xo fundo o que é que uma pessoa quer? É reno\·ar a arte do romance. há mil maneiras de o fazer. A minha é deixar de mar o fio narratiYo. a corda e a picareta de alpinista. e fazer personagens e situaçõe:; sem fio narratin1. le\·ar o desafio cada wz mais longe. :\este. é uma rapariga dt• lS anos. \·irgem de qua,;e tudo: como pôr nela o mundo inteiro? I
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Eu tinha uma péssima relação com a minha imagem, quando era novo, com a minha cara, com o meu corpo. Talvez essa imagem fizesse com que me fechasse para escrever. Na infância brincava sozinho ... e somos muitos irmãos... nunca tive uma conversa pessoal com nenhum irmão meu, nunca ... com ninguém da minha família ... com quem tinha conversas pessoais era com estes amigos que morreram e com os dois ou três que me restam, que estão vivos. Os meus irmãos não sabiam que eu escrevia, um deles, o Pedro, com quem me dava muito bem, sabia porque me via ir ao jardim queimar papéis. Levei a vida a queimar papéis... Agora com a morte da mãe delas [as filhas] , encontrámos ali um romance que andei dez anos a escrever... montes de poemas de miúdo, planos de livros ... porque ela guardava tudo ... O Pedro às vezes ia à gaveta e roubava papéis. Aos 11 anos anunciei aos meus pais que queria ser escritor. Foi um alarme bestial. De maneira que escrever era clandestino, eu escrevia nuns blocos em que ainda escrevo, com o livro de história ou de geografia, e quando ouvia barulho trocava a ordem para não me apanharem no delito hon·ível de escrever. Ainda hoje escrevo com um livro aberto ao lado, pode ser a lista telefónica, qualquer coisa. Como se continuasse a fazer algo de clandestino. Eu queria ir para letras, claro, e o meu pai disse que era melhor um curso técnico. Nos primeiros três anos de faculdade nem ia aos exames, passava o tempo a escrever... depois pensei: bom, tenho que tirar uma especialidade. E queria cirurgia, achava aquilo bonito. Mas é um mundo muito competitivo, com muitos bancos no hospital e isso tirava-me o tempo para escrever. Então pus-me a pensar: qual é a especialidade que dá menos trabalho, com mais vagas, menos concorrentes. A minha escolha da psiquiatria foi ditada por isso. Fora dos livros, com quem é que aprende? Gosto de assistir às pessoas espantado. Com este aparelho de ouvir laponta para a orelha direita], ouço coisas incríveis, mirabolantes. Muitas, aproveito. A gente fermenta aquilo e transforma. Depois há outra coisa: o facto de escrever protegeme do sofrimento. Há a pessoa que está a sofrer, e há o observador a pensar: como é que vou aproveitar isto. A partir do momento em que sou dois, o que sofre e o que tem esse lado de gatuno, diminui o sofrimento. Se a gente não deixar que o sofrimento e a dor sejam bicicletas de ginásio que a gente pedala, pedala, pedala, no mesmo sítio ... se o tornarmos fértil ... Quando está a conversar com as pessoas ... É muito raro estar com pessoas, estou sempre com as mesmas. Seja. Com as pessoas que escolhe ou com as que lhe aparecem - espero que lhe apareçam pessoas ainda ... Não me aparecem muitas. Não vou muito a bares, não bebo, nunca bebi. Não estou a falar de bares. Também não vou a festas, a jantares. O meu universo é limitado. Eu gosto das pessoas ... o que tenho é pudor de o dizer. Mas as pessoas de que gosto são muito poucas. Dos poucos amigos escritores que tinha, o mais íntimo era o Zé [Cardoso Pires], nunca falávamos de trabalho, era raríssimo, falávamos de futebol, sei lá, de tudo, mas tínhamos um pudor em relação à literatura. Quem são os prosadores que lê com prazer? Sempre os mesmos e cada vez menos. Hawthorne, Jane Austen, Emily Brõnte, algumas coisas do Julio Cortazar, Felisberto Hernandez, um escritor uruguaio, com uma obra muito pequena... O "Ulisses" do Joyce, por exemplo, interessa-me mas IJiil>
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1J> não me apaixona. Há pessoas que confundiam o requinte com bric-a-brac... aquilo tem proezas técnicas espantosas, é fascinante, mas não é um romance a que eu adira como adiro ao Proust, aí está um grande romancista, gosto muito de o reler.
Quando foi a última vez que esteve em Angola? Nunca mais lá quis voltar. Cheguei a Portugal em 73, estive lá 27 meses. Malange, a cidade que conheci melhor, não existe ... é o país mais bonito que conheci ... se tivesse que escolher uma nacionalidade escolhia ser angolano.
Nunca lhe passou pela cabeça voltar? Gostava de voltar, viver lá, morrer lá. Mas não é possível, com a guerra civil.
É possível ir Já. É possível ir a Luanda. Mas Luanda está destruída. Não é só possível ir a Luanda. Pouco mais, segundo me disseram ... tem que se ir de avião. Eu estava habituado no tempo da guerra, com minas e emboscadas, a andar por terra. A guerra é uma coisa atroz, eu participei activamente em coisas atrozes. Não quero voltar a ver a morte e o sofrimento, não quero reviver isso. O que vivi é de uma violência, de uma crueldade, de uma injustiça... gostaria de voltar para um país em paz e viver lá. Por causa do clima... porque as noites são imensas ... os horizontes não acabam.
O presente não lhe interessa? Opresente é a única coisa que existe. O seu movimento é sempre para trás. Não. O que tento fazer é misturar aquilo a que se chama passado, aquilo a que se chama presente e aquilo a que se chama futuro. Este livro [o que está a escrever] passa-se em 1999, mas ao mesmo tempo em 2009 e na inf'ancia dela. Isso eu aprendi em África: no sítio onde estava, nas terras do fim do mundo, que é um sítio quase deserto, sem vegetação, com areia, um frio horrivel à noite... é o país daqueles que falam assim [faz estalinhos com a língua], o tempo para eles era um imenso presente elástico que continha tudo. Um enterro, por exemplo, só havia quando chegava a família toda, às vezes moravam a 200 quilómetros e vinham a pé! E então ali estava o morto sentado, à espera.... Isso ajudou-me muito para os livros.
guiar o rebenta-minas. Eram miúdos! Agora vão para as docas, na altura estavam na guerra.
Parece haver uma espécie de pacificação sua, recentemente... Não, não.AminhanãoidaaFrankfurt [em 1997], nunca pude explicá-la. Foi uma coisa infame que me fizeram. De tal maneira infame que escrevi uma carta ao António Mega Ferreira, na altura o comissário.
Que coisa infame foi essa? Escrevi a carta. Como ele não a divulgou seria extremamente indelicado eu falar disso. A carta era para ele.
Mas depois de Frankfurt houve um período grande em que disse uma série de coisas: que não voltaria a publicar livros em Portugal ... Tenho falado muito pouco. E tinha pensado não publicar mais em Portugal, de facto.
O que é que aconteceu? Não podia resistir ao apelo do Nelson [de Matos].
E Paris, a ida ao Salão do Livro? Segundo o que me foi proposto, acabei por dizer que sim sem nenhuma vontade. Agora, resta saber o que vai acontecer até lá. Pessoalmente não tenho nenhuma vontade de ir, nenhuma. São 40 escritores, perguntei porquê, responderam-me que era o número necessário. Quantos escritores suecos conhece? Ou finlandeses? Não há 40 escritores em parte alguma.
O que é que lhe dá prazer? Dava-me muito prazer o futebol, agora já não, até porque o
Escrever protege-me do sofrimento. Há a pessoa que está a sofrer, e há o observad-6r' a pensar: como é que vou aproveitar isto. A partir do momento em que sou dois, o que sofre e o que tem esse lado de gatuno, diminui o sofrimento. Se a gente não deixar que o sofrimento e a dor sejam bicicletas de ginásio que a gente pedala, pedala, pedala, no mesmo sítio ... se o tornarmos fértil. ..
Está sempre a dizer que nunca fez o livro sobre Angola. Não é possível porque a guerra era horrivel. Pode-se fazer um documento, um ensaio, mas um romance não. Quero acabar este livro e depois fazer um romance de amor desgarrador. Agarrar naquela história daquela senhora, Ruth Bryden, e transformá-la numa história de amor. Lembro-me de ter lido numa viagem de avião, na revista do PÚBLICO, uma reportagem quando ela morreu. E fiquei fascinado, ficou-me na cabe-· ça com uma intensidade enorme ... é uma história de amor, como diria o Faulkner, instantâneo e absoluto, como acho que o amor só pode ser. Mas é muito arriscado, corre-se o risco do mau gosto, da lamechice ... os livros que tenho escrito estão cheios de pudor... como escrever isto? Com muita delicadeza... pareceu-me um amor que merecia o maior respeito. Também gostaria de fazer um romance sobre o grupo do multibanco, aquele que assaltava e matou a miúda. Mas o da Ruth Bryden não me sai da cabeça.
Vai ficar a viver cá em Portugal? Não sei. É dificil escrever sem estar aqui. Por causa da língua. E gosto do clima. E das pessoas do meu país. Porque somos feios, pequeninos, mas ao mesmo tempo ... fiquei com uma grande admiração pelos rapazes gue estavam comigo na tropa, nunca vi ninguém recusar-se a ir para o mato. Diziam: amanhã não sei se a gente se volta a ver porque sou eu que vou
Benfica está muito mal [risos]. Sofria horrores. Para ser honesto, ainda sofro. Dá-me prazer ler, muito, quase sensual ... estar com os meus amigos, nunca muito tempo, ao fim de duas horas apetece-me estar sozinho ... viajar... viajo mais do que quereria.
Quando foi a última viagem que fez sem ser por causa dos livros? Just for the fun? Nova Iorque, talvez. Ao fim de três horas de avião apetece-me sair, abrir a porta. O que gosto mais nos aviões é a comida. Deviam abrir um restaurante.
Quando acaba um livro dá-o a alguém para ler? Dou ao agente.
Antes: a um amigo, a uma sua filha ... as suas filhas lêem-no? Penso que não muito, porque é incómodo. Se eu fosse filho do Malcolm Lowry também não ia ler os livros dele. Quando a gente conhece a pessoa, os livros ficam diferentes. Normalmente os livros são muito mais interessantes que as pessoas que os escreveram. Graças a Deus não conheci o Camões, que me continua a maravilhar. Mas o Cortazar, por exemplo, era um homem encantador, cheio de charme, daquelas pessoas que o nosso corpo começa a ir para elas, modesto, com um sorriso muito bonito, um homem tão homem que não tinha medo de ser mulher, um homem muito raro. Como o Ernesto Melo Antunes, o homem mais corajoso que vi debaixo de guerra I
''tomara eu ter talento para ser poeta ''