Recife na trilha das festas

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RECIFE NA TRILHA DAS FES TAS Edição especial - Dezembro de 2013


>>>>>>>>>> SUMÁRIO

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ABRINDO A PISTA DE DANÇA

A FESTA DA MODA

PRÉ-MANGUE: AS FESTAS PIONEIRAS

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PRODUÇÕES NA ELÉTRICA DÉCADA DE 90

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O DJ DOIS PONTO ZERO

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DAS PISTAS PARA O PALCO

>>>>>>>>>>>>>>> EXPEDIENTE

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RECIFE NA TRILHA DAS FESTAS Faculdade Joaquim Nabuco Curso de Comunicação Social Habilitação em Jornalismo Projeto Experimental Orientadora: Christianne Galdino Aluna: Isiane de Paula Silva (Mat. 11009433) Formato: Reportagem para grande imprensa _02

Redação: Isiane de Paula Diagramação: Antônio Souza


editorial

ABRINDO

a pista DE DANÇA

Cada geração tem os artistas que merece. Esta máxima, geralmente usada para se questionar a qualidade daquilo que se é consumido pelos mais jovens, quer dizer simplesmente que o que cada geração produz na arte é reflexo direto daquilo que ela vivencia no seu cotidiano. Desde sempre, as diversas formas de arte se fazem presentes nas sociedades para interpretar momentos históricos importantes, e a música é, entre elas, uma das quem tem maior poder de comover e agregar as massas. Podemos dizer, logo, que a cena musical de uma cidade é tão mais produtiva quanto maiores e mais profundas forem as questões sociais que enfrenta. O Recife é um exemplo disso. Refletindo na arte os seus problemas urbanos crônicos, se tornou, ao longo dos anos, um dos principais celeiros artísticos do planeta. Foi assim que, nos anos 90, a então “quarta pior cidade do mundo” deu à luz uma cena musical frutífera, que veio a ser chamada de mangue bit - uma cena que, longe de ter terminado, foi se transformando junto com o público. Talvez a música do Recife não tenha necessariamente mudado, mas se tornado mais adequada às suas novas demandas. Essa evolução da música se expressa claramente por meio do entretenimento. Liderados por DJs, os circuitos de festas alternativas no Recife sempre tiveram o papel de vanguarda, criando novas cenas, movimentando espaços e trazendo tendências de fora para dentro da cidade. Observar esses eventos oferece não só um panorama do ponto de vista da produção cultural, mas também possibilita uma análise antropológica da sociedade onde ela se insere. Por isso eles foram escolhidos para ser, ao mesmo tempo, o palco e o personagem dessa pesquisa. Me propus analisar a nossa cena alternativa atual, percorrendo seu circuito de festas e conversando com figuras variadas, desde os precursores do mangue bit até os DJs atuais. O resultado está aqui, em “Recife na trilha das festas”. Nesta série de reportagens, vamos mergulhar no universo das festas alternativas do Recife. Já na primeira matéria, “A Festa da Moda”, uma visita a um evento numa noite de sábado rendeu reflexões sobre o circuito atual: os DJs adquiriram um comportamento empreendedor, e as festas eletrônicas se tornaram uma das atividades mais promissoras financeiramente. Apostando em um conceito, que envolve desde o gênero musical até a identidade visual e escolha dos estabelecimentos, as festas temáticas vêm atraindo grandes quantidades de público, ocupando um lugar que, até alguns anos antes, pertencia aos shows. Para entender melhor o assunto, pedi a opinião de quem faz as festas. Trago aqui declarações de Lucas Logiovine, criador da produtora Golarrolê, além dos DJs e produtores Guilherme Gatis e Bruno Pedrosa, das festas Superingosto e Tropicaos, respectivamente. Na segunda matéria, “Pré-mangue: as festas pioneiras”, volto ao ponto em que tudo começou para descobrir que foi em meio às primeiras festas de discotecagem no Recife que nasceu o mangue bit, o principal movimento cultural surgido na cidade nas últimas décadas, que a inseriu definitivamente no mercado fonográfico nacional e internacional. Foi, inclusive, com a ocupação de velhos estabelecimentos por estas festas que teve início a revitalização do Recife Antigo,

hoje o principal pólo cultural da cidade. E foi, ainda, a partir delas que se começou a dar mais valor à profissão de DJ no nosso meio artístico. A história é contada por dois de seus protagonistas: Helder Aragão, ou DJ Dolores, e Renato Lins, ou DJ Renato L. Essa busca histórica nos anos 90 continua na terceira matéria da série, “Grandes produções dos anos 90”, que conta com depoimentos da produtora Patrícia Cassemiro e do artista plástico e antigo festeiro Fernando Peres. A cidade, já eletrizada pelo movimento mangue, viu seu circuito eletrônico tomar outras proporções com festas que agitavam a cena alternativa algumas vezes por ano. Eram grandes produções, que precisavam de meses de preparação e muita criatividade para chegar ao resultado final. Mesmo que ainda não tivessem o sucesso financeiro conquistado pela cena atual, essas festas atraíram recordes de público e renderam algumas boas histórias, que tentei reproduzir aqui. Com uma abordagem mais técnica, a quarta matéria, “O DJ dois ponto zero”, busca desvendar essa profissão, outrora subvalorizada e hoje glamourizada no meio artístico. A reportagem traz uma retrospectiva do ofício da discotecagem, com a evolução das diferentes mídias, dos equipamentos utilizados e da própria figura do DJ, que, com a nova realidade tecnológica, precisou adquirir outras habilidades para conquistar o seu espaço no mercado cultural. Trago aqui opiniões de diferentes representantes dessa arte na cidade: os DJs 440, Renato L, Bruno Pedrosa, Guilherme Gatis, Guilherme de Paula e Thiago Guimarães. Por fim, em “Da pista para o palco”, quinta matéria da série, trago uma discussão sobre contrapontos entre as cenas eletrônica e autoral - ambas atuais, mas que se mostram ora complementares ora antagônicas no cenário cultural do Recife. A matéria traz opiniões e expectativas de alguns integrantes da Cena Beto, atualmente figuras centrais na categoria de música autoral local: Jean Nicholas, Juvenil Silva e D Mingus. Eles falam sobre as ideologias desse coletivo - que oscila entre cena e movimento, enquanto os críticos ainda estão às voltas para compreendê-lo e classificá-lo. Opinam ainda sobre o tipo de som que fazem, sobre o comportamento do público e expectativas para o futuro da música na cidade. Que esta série de reportagens seja fonte de diversão e informação para o leitor, é o que espero colher como fruto dessa pesquisa, que precisou de boas doses de tempo e paciência (mas proporcionou muitos momentos prazerosos) para ser concluída. Apesar das dificuldades encontradas para reunir todo o material, desde as inúmeras entrevistas até a longa busca ao arquivo dos jornais da cidade, o trabalho foi encerrado trazendo a sensação de dever cumprido - ou pelo menos a certeza de que essa trilha teve um bom ponto de partida. Temos aqui uma análise atual, trazendo pontos de vista que se opõem e se complementam, além de reunir tantas histórias interessantes, que talvez teriam se perdido com o tempo se não tivessem encontrado um lugar para serem contadas. Está aberta a nossa pista de dança. Entrem e fiquem à vontade. Boa leitura! 03_


a festa

>>>>>>>>> DA MODA

Novos protagonistas da noite recifense, os DJs criaram seu pr贸prio circuito de festas, que se mostra financeiramente promissor


Noite de sábado no Recife. Mesmo com chuva, um número surpreendente de jovens forma uma fila em frente a uma badalada casa de shows da cidade. Aos poucos, eles vão pagando os ingressos de R$80 em troca da pulseira neon que dá acesso ao evento e direito a bebida à vontade. No interior, um DJ abre a festa tocando seu setlist para uma pista de dança que vai enchendo aos poucos. Os que entram, providenciam imediatamente os seus drinks e circulam pelo local, formando pequenos grupos que dançam, conversam, tiram fotos. Mas é cedo, essa festa ainda vai esquentar. Quem acompanha a noite do Recife sabe que já há algum tempo que ela não gira em torno de shows. Embora eles continuem enchendo os roteiros de fim de semana dos jornais, com as atuais políticas públicas de cultura, que deram origem a um calendário de festas que viciou o público à gratuidade, um novo segmento de eventos vem atraindo os pagantes: festas temáticas periódicas, promovidas e animadas por DJs, e que agregam ao seu conceito um nome, um gênero musical e uma identidade visual. Altos Brotos, Tropicaos, Superingosto e Agito Pesado, entre outras que proliferam pela cidade, caberiam perfeitamente no cenário descrito no início da reportagem. Estamos na Malloween, edição de halloween da festa Maledita, promovida pela produtora Golarrolê, que aconteceu no dia 26 de outubro, no bar Vapor 48, zona central do Recife. “A cidade tem ciclos. Recife teve sua época de bandas e agora estamos neste ciclo que é bom para as festas de DJs”, opina Guilherme Gatis, DJ e produtor da Superingosto Festa Rock. Esse novo ciclo teve início há sete anos, com as festas promovidas pelo grupo Golarrolê, criado pelos produtores Allana Marques e Lucas Logiovine. “A gente começou com uma festa de música eletrônica, depois sentiu a necessidade de uma festa de rock, de brega, de música brasileira. A ideia é que todo ano a gente lance uma festa nova”, explica Lucas. O grupo organiza atualmente cinco grandes festas, cada uma voltada para um estilo musical: Putz!, de música eletrônica; Neon Rocks, de rock’n’roll; Brega Naite, de brega; Odara Ôdesce, de música brasileira; e a que estamos visitando nesta reportagem, Maledita, onde o tema é a música pop. Por se tratar de uma edição especial de dia das bruxas, a festa recebe - além dos jovens “descolados” típicos desse tipo de ambiente - algumas pessoas fantasiadas, desde simples mascarados até vilões como a Bruxa má e Freddie Krueger. A modalidade open bar é um atrativo a mais, que garante o sucesso da festa. Em poucas horas, a pista de dança se torna pequena para tanta gente. Com essa quantidade de festas, o grupo Golarrolê está conseguindo trazer variedade até para um mesmo tipo de público. Em certa ocasião, o jornalista Bruno Nogueira fez essa observação em um comentário no Facebook: “Acho sensacional que a Golarrolê conseguiu crescer num ponto que as duas principais opções de festa do sábado sejam eventos promovidos por eles e, ainda assim, sem competir o público. Deram sentido à noite do Recife”, escreveu. Ele se referia à noite do dia 24 de agosto, em que foram realizados simultaneamente a festa Maledita e um show com a banda Los Sebosos Postizos, este sob a marca da Go! Elephants, uma nova empreitada de Allana e Lucas junto ao produtor Thiago Megale, que marca a entrada do grupo no setor de shows autorais. “A Go! Elephants é uma produtora focada em cultura como um todo, desde teatro a shows de bandas nacionais, internacionais, ou daqui de Recife”, diz Lucas, e contesta a suposta polêmica de que as cenas eletrônica e autoral são incompatíveis na cidade: “Eu acredito totalmente nesse mercado e tenho certeza que é proveitoso pra quem explorar, 1.

tanto é que a gente está entrando nele”. Antes mesmo da Go! Elephants, a Golarrolê produziu, em maio deste ano, o show da cantora americana Cat Power. Mesmo as festas de discotecagem já abriam espaço para shows: também em maio, por exemplo, a festa Odara recebeu a cantora Daniela Mercury, e bandas de brega locais, como Musa e Kitara, já marcaram presença na Brega Naite. Essas novas festas do circuito aberto pela Golarrolê, em geral, se identificam pelo caráter conceitual. Além do gênero musical, vários outros aspectos são relevantes para a composição da identidade de uma festa temática: escolha do local, design dos cartazes, compatibilidade com a agenda cultural da cidade etc. São preocupações essenciais para o sucesso - inclusive financeiro - da festa. “Toda festa tem um custo. Existe assessoria de imprensa, designer, som, limpeza, segurança, bilheteiro... A festa tem que se pagar”, explica Bruno Pedrosa, DJ e produtor da festa Tropicaos. Isso indica que, mais do que o gosto pela diversão, essas festas demandam um certo espírito empreendedor e trabalho duro, como sintetiza Logiovine: “Tanto eu como Allana estudamos Publicidade, depois fizemos uma pós em Produção e Gerenciamento de Eventos. Levamos com seriedade nossa empresa. A gente trabalha, tem horários definidos, tem escritório”. Uma das marcas das festas temáticas atuais é a escolha de locais inusitados. Motivados pela escassez de estabelecimentos apropriados para festas na cidade, os DJs criaram, por exemplo, a tendência de realizá-las em restaurantes, cafés e outras comedorias. A Putz!, primeira festa promovida pela Golarrolê, começou no Café Prouvot, na Galeria Joana D’arc. O evento fez sucesso, atraiu um público maior que o esperado e, mais adiante, se juntou à festa Sem Loção. Tiveram, então, que mudar para lugares maiores, conforme o público aumentava, como os bares Novo Pina e Francis Drinks. Atualmente a festa acontece no Sétima Arte, restaurante cuja decoração se inspira no cinema. É lá que acontece também a Tropicaos, que, por sua vez, começou na padaria Brötfabrik. Renato Lins, DJ e produtor da festa ao lado de Bruno Pedrosa, explica: “Quem começou a fazer festa fixa lá fomos nós e a Superingosto. Agora várias festas estão também correndo pra lá, e eu acho isso normal”, diz, relembrando que as dificuldades aumentaram com o fechamento de vários estabelecimentos após o episódio do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria-RS, ocorrido em janeiro deste ano, que resultou em centenas de jovens mortos e feridos. “Não tem lugar pra fazer festa aqui no Recife onde você não corra o risco de ser interditado pela Dircon”, lamenta. A onda de interdições interrompeu outra tendência de localização das festas, que vinham sendo realizadas em coberturas de prédios, chamadas de “roof”, localizados geralmente no Recife Antigo e adjacências, de onde se tivesse uma visão privilegiada desses bairros, com seus prédios antigos e igrejas barrocas. A moda começou com o pessoal da Altos Brotos, no roof do edifício Tebas, que foi provavelmente a cobertura mais frequentada pelo

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público festeiro no último ano. Depois dele vieram outros locais, como o edifício Juscelino Kubitschek, antigo prédio do INSS, para onde foi levada a festa Kubitscheck Soul, e o Terraço da Moeda, parte superior do bar Novo Pina, na Rua da Moeda, que pertenceu ao produtor Roger de Renor e já foi palco de inúmeros encontros da cena artística na época do mangue bit. Esses e outros locais da cidade se encontram atualmente interditados. “Antes de Santa Maria, você tinha de oito a dez festas alternativas rodando mensalmente na cidade, e essa história foi um baque muito grande, porque desarticulou esse circuito”, analisa Renato. A sincronia com a agenda cultural da cidade é uma das estratégias usadas pelos produtores de festas. Noites em que acontecem shows de artistas populares podem causar um esvaziamento do público, por isso são levadas em consideração na escolha das datas. “Se você tiver um show da Nação Zumbi numa noite de uma festa qualquer aqui, eu sei onde é que o público vai estar: vai ser no show da Nação Zumbi”, afirma Bruno Pedrosa. Por outro lado, várias festas são produzidas como extensão de outros tipos de eventos, como festivais de música e cinema. A Superingosto, por exemplo, com um público predominantemente universitário, já realizou uma edição especial Intercom, em junho do ano passado, em sincronia com o congresso nacional de Comunicação. Foi também no ano passado que o Kubitschek Soul abriu sua cobertura, especialmente para um evento promovido pelo cineasta Daniel Aragão, que tinha o filme Boa sorte meu amor sendo exibido na V Janela Internacional de Cinema. O próprio roof do Tebas foi inaugurado com a festa do IV Janela Internacional do Cinema do Recife, em 2011. Também em 2011, a Golarrolê comandou, no Centro de Convenções da UFPE, o after-party do festival musical No Ar Coquetel Molotov. Uma outra estratégia para atrair o público está na escolha das atrações. Geralmente, celebridades em alta são garantia de sucesso. A já citada participação da cantora Daniela Mercury, por exemplo, se deu justamente no momento em que a mesma ressurgia do ostracismo após assumir um relacionamento afetivo com a sua assessora Malu Verçosa. O movimento também se dá pela via oposta: aspirantes à fama vêem na profissão de DJ uma oportunidade para se promover. Na Maledita, por exemplo, são frequentemente con-

vidados personagens famosos na internet. Para Lucas Logiovine, porém, isso tem uma explicação lógica. “A Maledita tem a característica de ser uma festa de música pop, que envolve cultura pop, e envolver cultura pop é se falar de internet também, então a gente traz vários personagens para a Maledita, blogueiros como, por exemplo, Katylene, Felipe Cruz, Marcelo Cidral do blog Como me sinto quando”. Na festa que visitamos, o convidado foi o DJ Thiago Guimarães, famoso no microblog Twitter pelo nickname @oraporra. Mas, ao contrário dos muitos que pegam carona na fama instantânea para faturar um dinheiro extra tocando em festas, Thiago já atuava como DJ antes de se tornar uma web celebridade. “Ele virou uma celebridade depois, mas já tinha tocado com a gente, antes até de o @oraporra existir. Ele realmente tem um gosto muito refinado, entende muito de música, é um ótimo DJ”, defende Lucas. Não só no Recife, mas no mundo todo, as festas com DJ são a melhor representação da juventude hedonista, em busca de diversão. Como explica Lucas Logiovine, Como explica Lucas Logiovine, “as festas de discotecagem têm uma característica, que é sempre ser sempre o mais animado possível do início ao fim”. O comprometimento com o conceito das festas demonstra que, apesar de se tratar de entretenimento, nem tudo é superficial. Mas, apesar das diferenças de estilo em cada festa, o público segue um padrão de comportamento. Na opinião de Helder Aragão, o DJ Dolores, “são sempre festas onde o clima é de paquera e azaração”. Na Malloween, inclusive, já passam das 2h, a festa está no auge. Vários casais se formaram ali e se distribuíram por lugares mais discretos. A música pop atraiu um público predominantemente formado por mulheres e homens gays. Dos poucos homens que pareciam héteros, posso ter percebido alguns poucos olhares em minha direção, mas nenhum deles me abordou - com exceção do Freddie Krueger, que me perseguiu por alguns instantes. Só por volta das 4h o público dá sinais de cansaço e a pista volta a se esvaziar, enquanto o movimento de táxis aumenta na porta. Os mais resistentes dançam até o último momento, que pode chegar até as 7h da manhã. Os DJs, apesar de visivelmente cansados, têm que honrar o compromisso de tocar até a última pessoa sair do salão.

Uma das características das produções é o capricho na confecção dos cartazes, feitos em parceria com designers, que reforçam o conceito da festa 1. Maledita, por Gustavo Gusmão 2. Tropicaos, por Keops Ferraz 3. Superingosto, por Sílvio Ribeiro 4. Altos Brotos, por Arthur Braga 3.

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para todos os gostos

...OU NÃO

Gustavo Montenegro, Altos Brotos “A gente não se prende muito a estilo musical, mas se prende a um conceito. A premissa é fazer mulher dançar, tocar o que for sensual, dançante, independente do gênero”

Guilherme Gatis, Superingosto Em expandir a gente sempre pensa, mas não vamos mudar o conceito da festa para isso. Claro que se eu tocasse um brega viria mais gente, mas o Recife precisa de uma festa de rock”.

D Mingus, Cena Beto Não acredito que a gente esteja disposto a fazer concessões nesse sentido, uma música que seja mais vendável. Até porque acho que a música que a gente faz já é muito vendável”.


PRÉ-MANGUE: as festas >>>>>>>>> PIONEIRAS Antes mesmo de seu maior fenômeno fonográfico, há mais de vinte anos, a noite do Recife já fazia sua estreia com as festas de DJ

Lucas Logiovine, Golarrolê “A gente começou com uma festa de música eletrônica, depois sentiu a necessidade de uma festa de música pop, uma festa de rock, uma festa de brega, uma festa de música brasileira. A gente passa um ano pesquisando pra no próximo ano lançar, e a gente sentia que alguns nichos estavam vazios”.

Renato L, Tropicaos “Não é uma festa que toca todo tipo de coisa, um som mais comercial. Você não vai ouvir Xuxa na festa da gente. Então tem esse tipo de preocupação, de estar trazendo novidade, de fazer um set que tenha uma qualidade bacana… Mas são sempre sets ecléticos, sem estar preso a um determinado estilo”.

DJ 440, Terça do Vinil “Meu foco é a boa música! Eu tento, em cada festa, mostrar meu diferencial, que é o meu foco na música brasileira”

No final dos anos 80 e início dos 90, o Recife Antigo ainda era um lugar sombrio e decadente. Bares e bordéis eram ponto de encontro entre os trabalhadores portuários, prostitutas e mendigos que ali habitavam com boêmios, poetas, intelectuais e toda sorte de malditos. Nesse ambiente circulava também um grupo de jovens estudantes apaixonados por música e que sonhavam em mudar a realidade de estagnação em que se encontrava a cena cultural da cidade. Entre eles, Helder Aragão, Fred Rodrigues Montenegro e Francisco de Assis França, que, mais tarde, se tornaram DJ Dolores, Fred Zeroquatro e Chico Science. Após atravessarem os anos 80 sem frequentar festas na cidade, por não se identificarem com o tipo de som que era tocado (na época, predominavam as boates com música disco), decidiram criar suas próprias festas. Começaram a se articular com os bordéis do bairro - locais que já frequentavam para beber e trocar ideias, e que quase não tinham mais movimento, mas funcionavam em belos prédios, com arquitetura dos anos 30 e 40. A estreia foi no ano de 1989. Com o pretexto de arrecadar fundos para financiar a ida de uma amiga para a Bélgica, realizaram sua primeira festa no Adilia’s Place, um luxuoso bordel com decoração náutica, famoso entre os marinheiros estrangeiros que ali aportavam para se divertir após meses de solidão em alto mar. Essa foi a primeira edição da festa, batizada como Sexta sem sexo. “Porque naquela noite ninguém trepou”, explica Helder Aragão, o DJ Dolores. “Alguns reclamaram, dizendo que o bordel era sua única diversão após a semana inteira de trabalho”. Talvez não teriam feito nenhuma objeção se soubessem que, naquele momento, se formava o embrião do que veio a ser, nos anos seguintes, o principal movimento da indústria musical do Recife, o mangue bit. Depois daquela Sexta sem sexo, o Adilia’s Place se tornou popular na cena alternativa e recebeu muitas outras festas. Uma das mais memoráveis foi a que chamaram de “O quarto melhor reveillon do mundo”, na época da famosa pesquisa que apontava o Recife como a quarta pior cidade para se viver. A maioria das festas tinha uma única edição, e não havia muitas restrições quanto ao estilo musical. “A gente tocava as músicas que gostava de ouvir”, explica Renato Lins, ou Renato L, um dos primeiros DJs nesse circuito alternativo. “Desde techno até Mutantes. Ou Jorge Ben. O que a gente estivesse ouvindo. Eram várias coleções de discos misturadas”.

Ter acesso a essas músicas para levá-las às festas não era tão fácil naquela era pré-internet. “A gente ia pra casa de Helder ou de Mabuse, outro amigo que participou dessa fase heróica, e lá a gente encontrava os vinis e saía gravando fita cassete”, lembra Renato. Quando não tinham os vinis, improvisavam uma gravação diretamente do rádio - eram ouvintes do programa do radialista inglês John Peel, transmitido semanalmente pela BBC, que trazia o que havia de mais recente no mundo da música naquela época. “Algumas músicas a gente gravava com uma qualidade razoável, que permitia que a gente colocasse pra tocar nas festas”, explica Renato, que lembra de como foram as primeiras experiências como DJ. “A gente se juntava, armava as sequências e botava já pronta. A gente ainda não tinha despertado pra o barato que era fazer na hora. Mas rapidamente, já na terceira ou quarta festa, a gente começou a realmente discotecar ao vivo”. Apesar dos empecilhos tecnológicos, eles foram os responsáveis por inserir o Recife no cenário mundial de música eletrônica que havia explodido naquele momento, trazendo consigo uma filosofia positiva e hedonista, que colocava a diversão em primeiro plano. “Tudo isso coincidiu com a explosão das raves, da acid house, da música eletrônica na Inglaterra. E a gente tinha acesso a alguns discos, e lia sobre também, em jornais ou revistas, e isso foi muito importante pra gente”, analisa Renato. Foi depois dessas festas chegarem no Recife que começou a mudar a forma como era vista aqui a figura do DJ. “Pela primeira vez, você tinha um movimento musical, cultural, onde o DJ era tão importante quanto o guitarrista ou vocalista de uma banda, e eu acho que somos os primeiros aqui no Recife a valorizar o DJ. Por exemplo, a gente colocava com destaque no cartaz ‘DJs Renato L e fulano de tal’. Isso não era comum”. O clima de improvisação não era só na discotecagem. Esse pequeno grupo não só tocava nas festas, mas cuidava de toda a produção, desde o aluguel dos lugares até a confecção dos cartazes e a divulgação. A informalidade na preparação das festas revelava que as preocupações com a estrutura eram mínimas: o foco era a diversão, não só para o público mas também para os realizadores. Sem ter despertado ainda para ambições financeiras, viam as festas menos como uma oportunidade de negócios do que de troca de ideias e lazer. O pouco dinheiro que entrava vinha, geralmente, do que combinavam da divisão dos lucros com o proprietário da casa, que geralmente ficava com o bar, enquanto os rapazes ficavam com a bilheteria. “Era uma coisa ainda bem improvisada, alternativa, e bem feito às próprias custas. Nessa festa do quarto melhor reveillon do mundo, o porteiro da festa foi o zelador do prédio de Helder, sabe? Não tinha segurança, não tinha nada…”, recorda Renato. “É algo inimaginável hoje em dia você fazer uma festa nessas condições e não ter segurança. Mas depois foi se profissionalizando e hoje é uma outra estrutura”. Uma outra característica das festas daquela época era a diversidade de público. “Quem pagasse, entrava, então entrava de tudo, desde o público universitário até marinheiros, as 07_


H.D.Mabuse - Flickr

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©FredJordãoImagens

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Jornal do Commercio - arquivo

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próprias putas…”, explica Renato. “Então tinha todo tipo de público na pista, mas numa boa, nunca teve confusão, briga, nada disso. Mesmo sem segurança!”. Além do público variado, o ambiente dessas festas proporcionava o encontro de artistas que começaram a formar ou consolidar suas bandas, como foi o caso de Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. Em um blog que escreveu até o ano de 2005, Helder Aragão publicou vários artigos que falam sobre essa época. Em um deles, lê-se o seguinte trecho: “Foi em torno dessas festas que se reuniu um grupo de pessoas tão bem descritas no manifesto de Fred Zeroquatro: ‘interessados em design, teoria do caos, acid house....’ (...) chegamos a fazer alguns dos primeiros shows envolvendo toda a equipe, com cenários, projeções e cartazes bacanas. Isso é o que chamávamos de Mangue Bit”. Foi aí que o movimento iniciou seu circuito de shows, partindo das festas alternativas para os palcos da cidade. “O primeiro show em que Nação e Mundo Livre tocaram juntos _08

foi numa festa nossa”, conta Renato Lins, explicando que o circuito de festas não só antecedeu mas também abriu as portas para a cena de bandas autorais. Essa interação acabou quando a mídia se apropriou do mangue bit, transformou-o em mangue beat, e as gravadoras assumiram o controle das bandas. Helder Aragão continua no artigo: “O fim dessa utopia coincide com a profissionalização da Nação e Mundo Livre, então contratadas por gravadoras, com empresários e tudo mais que envolve uma longa e respeitável carreira. Era impossível manter diálogo com a Sony ou a Warner e as tentativas de absorção do resto do time foram em vão”. Mas não significa que a produção de festas parou por aí. Esse movimento propiciou a revitalização do Bairro do Recife, e os estabelecimentos, antes abandonados, passaram a receber eventos culturais de todo tipo, num momento de efervescência que perdurou por toda a década. Depois do mangue bit, a cultura do Recife não seria mais a mesma.

1-2 Detalhe do Adilia’s Place, bordel que recebeu grande parte das festas da época pré -mangue bit. Anos depois, tornou-se Francis Drinks, e mudou de local depois que o prédio original foi destruído em um incêndio em 1996.


Jornal do Commercio - arquivo

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Jornal do Commercio - arquivo

Jornal do Commercio - arquivo

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produções NA ELÉTRICA

A agitação cultural que o movimento mangue provocou no Recife reverberou durante toda a década de 90. Em pleno processo de revitalização, o Recife Antigo passou a ser o principal pólo da cena alternativa. As casas e bares do bairro ganhavam um movimento cada vez maior, atraindo, todos os fins de semana, multidões em busca das festas e shows que agora eram frequentes; ou que iam simplesmente passear, beber, enfim, serem vistos nos locais mais badalados da cidade. Foi nesse contexto que novos produtores culturais entraram em cena, criando festas animadas por DJs que, inspiradas naquelas do começo da década, tinham como marca registrada a revitalização de velhos estabelecimentos do bairro. Mas agora tinham, além disso,

>>>>>>>>> década de

90

Após as primeiras festas alternativas com DJs, o Recife entrou na onda com produções mais profissionais

maiores ambições conceituais: contavam também com exibições de filmes, exposições e desfiles de moda, entre outras performances artísticas. As grandes protagonistas desse circuito de festas foram as jornalistas e produtoras Patrícia Cassemiro e Manoella Valadares, que realizaram, entre os anos de 1996 e 2000, grandiosas produções, que atraíram recordes de público. O Brasil, e mesmo o mundo, mal conheciam a e-music quando as jovens chegaram de uma temporada em Londres com a novidade, prontas para compartilhá-la com o Recife. Realizaram, então, em dezembro de 96, a primeira rave da história da cidade: “Sister Rose - a salvação”, no pátio de containers, dentro da área de segurança máxima do Porto do Recife. O nome veio de uma lenda sobre uma freira inglesa, conhecida como Sister Rose, 09_


Jornal do Commercio - arquivo

Nas páginas anteriores 3. Jornal do Commercio, 1997: Os DJs tinham destaque na divulgação das festas. A do Túnel contou com a participação de Jorge du Peixe e Lucio Maia, da Nação Zumbi, e Renato L 4-5 Para os locais inusitados, nos jornais também eram divulgados mapas para situar o público. Nas imagens do Jornal do Commercio, orientações para chegar à Festa do Túnel (4) e da Mata (5) 6. Patrícia Cassemiro e Manoella Valadares apostavam na irreverência para atrair o público...

Nesta página 7. …desde as fantasias até a escolha do local perfeito para a produção

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que, ao ten-

Novos produtores tar converter culturais entraram em almas perdidas, acabou cena, criando festas se perdendo animadas por DJs que ela mesma. E era com esse tinham como marca mote, “à proregistrada a revitaliza- cura das almas ção de velhos estabele- perdidas”, que as produtoras cimentos.

s aí a m p elas ruas do Recife Antigo distribuindo os flyers de divulgação da festa, vestidas com hábitos de freira e sapatos de salto plataforma cor-de-rosa. Depois da Sister Rose, as festas promovidas por elas ficaram marcadas pela irreverência. “Eram festas únicas, divinas, além dos dias de hoje”, lembra Patrícia. “Tudo era muito conceitual, mas sutil, com fantasias e música de qualidade”. Para criar cada projeto, levavam cerca de um ano desde a concepção até a realização. A preparação envolvia ofícios, licitações no Diário Oficial e reuniões com a Prefeitura e outros órgãos competentes para conseguir os lugares e toda a estrutura necessária. “Eram projetos com fundamentos, usávamos nosso poder de convencimento. E, em um dia, fazíamos uma verdadeira maratona para transformar o lugar em festa com estrutura de banheiros, segurança e saída de emergência”, explica Patrícia. “Produzir uma festa era como ter filhos”. Mais um desses grandes projetos foi a segunda festa da dupla, em junho de 1997: “Outside - A fuga”, que ficou mais conhecida como “Festa do Túnel”, já que foi realizada dentro do túnel Augusto Lucena, em Boa Viagem. Nessa produção, novamente apostaram numa divulgação peculiar: entregaram os flyers circulando pelas ruas do Recife Antigo em um camburão da Polícia Militar, acompanhadas por policiais de verdade, algemadas, fantasiadas de Irmãs Metralha (personagens do programa da Xuxa na época, que usavam roupas de presidiárias). Isso foi feito com o

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apoio da PM e do Detran, que ainda garantiram a segurança necessária para uma produção em local público, e, de quebra, usaram a festa para transmitir vídeos educativos sobre no trânsito. A memória dos visitantes dessas festas pode ajudar a relembrar outros fatos curiosos - em alguns casos, nem tanto, mas ainda assim render boas histórias. “Não lembro de tudo porque fiquei muito bêbado… foi uma loucura!”, se diverte o artista plástico Fernando Peres, antigo frequentador das festas, sobre a Festa do Túnel. “Fui para a festa convidado, como o personagem do ‘tarado da bicicleta’, que era uma lenda que tinha em Recife na época. Lembro que, na hora da entrada, eu botei vários amigos pra carregar a bicicleta e a gente entrou em grupo, como se fosse eu, porque eu ia entrar de graça”. Peres, que também produziu algumas festas alternativas nos anos 90, hoje é proprietário do Lesbian, um bar que abre somente às quartas-feiras e funciona no quintal de sua própria casa. É um dos poucos estabelecimentos onde ainda costumam se reunir os remanescentes daquela época, muitos dos quais hoje, já não tão jovens, não têm mais o mesmo pique para frequentar noitadas. “Por onde andam agora as pessoas daquela época?” - perguntei em certa ocasião, durante as entrevistas, a Helder Aragão, o DJ Dolores. “Devem estar em casa, com medo da mulher!” - respondeu, aos risos. Fernando Peres lembra ainda de outra produção, que superou as duas anteriores no quesito polêmica. A festa “Xikrin - entre o céu e a mata”, mais lembrada como simplesmente “Festa da Mata”. Desta vez, o acordo foi feito com a Cia de Policiamento do Meio Ambiente, que concedeu permissão para realizar a festa no Açude do Prata, dentro da mata de Dois Irmãos - uma reserva ecológica que não recebia visitantes há 150 anos. Isso rendeu protestos e acusações de crime ambiental. “Um grupo de artistas e amigos meus foi protestar, por causa do som muito alto, porque era uma reserva. E eles ficaram gritando de fora da festa: ‘o silêncio da mata é tombado!’”, conta.


“Depois alguns deles acabaram entrando e ficando lá”. Patrícia Cassemiro também recorda: “Lembro até de gente que foi enrolada em serpente de verdade para a festa. Se era seguro, você podia viver lá sua fantasia”. Esse mundo de fantasias ficou muito distante da realidade atual. As novas festas, apesar de partirem de temáticas diferenciadas, terminam por seguir um mesmo padrão de produção e, por consequência, de público. Os novos produtores têm o seu mérito menos pelo aspecto artístico do que pelo mercadológico de suas festas, ao contrário daquelas nos anos 90 que, apesar de todo o potencial - chegaram a reunir 9 mil pessoas em uma das festas, intitulada Festa do Fim do Mundo - ainda não conseguiram dar lucro às produtoras. “Não tínhamos patrocinadores, oxalá soubéssemos ganhar dinheiro! Mas não era um comércio, era como se vivêssemos uma história de amor”, declara Patrícia. Além dos locais e esquemas de divulgação inusitados, as produtoras apostavam em recursos diferenciados para incrementar as festas. Na Sister Rose, por exemplo, a produção envolveu exposições de fotografias e imagens. Tinham, inclusive, um fotógrafo de lambe-lambe para fazer o registro da festa, além de cabeleireiro e maquiador à disposição do público, que, se estivesse cansado,

“Eram festas únicas, divinas, além dos dias de hoje. Produzir uma festa era como ter filhos!” Patrícia Cassemiro, jornalista e produtora de festas épicas nos anos 90

para todos as tribos

...OU NÃO “As festas promovidas por Patrícia Cassemiro e Manoella Valadares levavam cerca de um ano desde a concepção até a realização. A preparação envolvia ofícios, licitações e reuniões com órgãos competentes para conseguir toda a estrutura necessária”

poderia relaxar em um espaço com massagista de plantão, ou, ainda, navegar na internet nos computadores disponibilizados no local. Na Festa do Túnel, além de exibição de vídeos e instalações de artistas plásticos, o público podia contar com estilistas exclusivos para caracterizá-los como vilões do cinema. Já na Festa da Mata, as produtoras instalaram cabos aéreos para que os convidados pudessem deslizar e ter uma visão panorâmica do espaço. Para tornar o momento ainda mais exótico, levaram à festa verdadeiros índios da tribo Fulni-ô para dançar e vender artesanatos. Todos esse atrativos eram uma estratégia necessária para uma época em que ainda não se contava com certas facilidades dos dias atuais. A criatividade na divulgação e na produção se mostrava bastante eficaz, em se tratando de uma época anterior à explosão da internet e das redes sociais, que permitem atingir instantaneamente milhares de pessoas. Além disso, muito antes desse contexto atual de fácil acesso a equipamentos fotográficos, os eventos não eram tão bem documentados. Por isso, já não sobra muita coisa além de arquivos pessoas e cópias de curtas matérias veiculadas nos jornais da época. Mas, se os documentos se perderam, os momentos certamente continuam preservados na memória de todos que fizeram parte dessa elétrica época.

Lucas Logiovine, Golarrolê “Existem divisões. A gente tem um público que vai em todas as festas, Odara, Maledita, Brega Naite, Neon Rocks. E a gente tem também um público que só vai na Putz!, só vai na Odara, só vai na Brega Naite. Isso é legal”.

Renato L, Tropicaos “A Tropicaos é diferente, lógico, do público das outras festas, a começar pela faixa etária. O povo acompanha em parte o envelhecimento da gente, então parte do público que vai pra Tropicaos é um público que vai pras festas da gente desde os anos 90.”

Gustavo Montenegro, Altos Brotos “O público da Altos Brotos varia de 20 a 40 anos, é uma vantagem ter esse leque. É um povo que já tem independência financeira, tem dinheiro pra gastar… Não gosto de falar isso, mas a Altos Brotos não é uma festa pra playboy, tanto pelo som quanto pelos lugares. Mas é uma festa pra classe média”.

Juvenil Silva, Cena Beto “Eu acho que o público é bem específico mesmo. São jornalistas, algumas pessoas que amam música… Pessoal mais do meio artístico também, atores, músicos de outras bandas, artistas plásticos. É um publico restrito.”

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>>>>>>>>> O DJ dois PONTO zero

Com o tempo, mudaram as atribuições da -outrora desvalorizada e hoje glamourizada - profissão do DJ Dos discos de vinil aos arquivos de mp3,

muita coisa mudou na forma de se consumir música. A chegada da internet nos proporcionou acesso rápido e gratuito a uma quantidade de fonogramas nunca antes imaginada, ao mesmo tempo em que a popularização dos aparelhos agora nos permite ouvi-los enquanto fazemos inúmeras outras tarefas. À medida que mudou o comportamento do ouvinte, mudou também a figura do DJ. Se antes, para exercer a profissão, era necessário o domínio de complexos equipamentos e técnicas de mixagem, hoje ferramentas bem mais simples dão conta do recado, o que terminou por causar a multiplicação daqueles que se auto-intitulam DJs e a banalização do termo. Os primeiros disc jockeys datam da década de 50. Assim eram chamados na época os locutores de rádio, que tocavam vinis enquanto interagiam com os ouvintes. Ainda nessa década surgiram os DJs jamaicanos, denominados selectors (até hoje, na Jamaica, os DJs são chamados de selectors, e o termo DJ, ou deejay, é usado para a figura que, no Brasil, chamamos de MC, popular no hip hop). Nos anos 60, os DJs chegaram às pistas de dança com a popularização das discotecas no mundo todo. O Recife também aderiu à tendência mundial, mas, como nos outros países, o DJ ainda não era valorizado artisticamente - o que só veio a acontecer nos anos 90, com a explosão da música eletrônica, que chegou aqui através das festas pré-mangue bit (ver Pré-mangue: as festas prioneiras, na página 7). Hoje, os DJs atraem multidões em casas de show, bares e boates. No Recife, viraram produtores e criaram seu próprio circuito de festas. Essas mudanças na figura do DJ acompanharam as transformações da tecnologia. Nas últimas seis décadas, os vinis foram sucedidos por fitas cassete, CDs e, finalmente, por arquivos digitais. Mas essa evolução das mídias sempre foi marcada pela resistência: os consumidores de música mais ortodoxos relutam em aceitar os novos formatos, por acreditarem que sua qualidade é sempre inferior à do anterior. O som do vinil é reproduzido de forma analógica, a partir da vibração da agulha nas ranhuras da superfície do disco. Já nas fitas cassete, o som vem do movimento de fitas magnéticas sobre os carretéis, e, no CD, as faixas armazenadas são reproduzidas através de um leitor digital. Em termos técnicos, di_12

z-se que o áudio contido no vinil possui uma maior dinâmica, isto é, uma maior diferença entre seus pontos graves e agudos. No CD, como esse áudio é comprimido, a dinâmica se torna menor, o que resultaria numa experiência auditiva inferior. Hoje, apesar de as mídias serem quase todas digitais, o vinil ainda persiste, para grande parte das pessoas, como a de som imbatível. Entre os DJs do Recife, porém, não encontrei muita resistência. Mesmo o principal representante da mídia tradicional na cidade, que comanda um evento semanal denominado Terça do Vinil, o DJ 440, está aberto a outras mídias. “Eu acho que uma pessoa pode se dizer DJ se, independente do aparelho ou formato que toca, tiver verdade e empenho no seu trabalho. Conheço DJs incríveis que tocam de vinil, também que tocam com CD. Isso não importa, o que importa é o homem atrás da máquina”, opina. É a mesma opinião de Renato L, outro DJ atuante na cidade, que, por sua vez, toca com CD. “A mídia que se usa não define o DJ. Isso é a maior balela. Tem gente que diz isso como uma maneira de tentar garantir uma reserva de mercado”, diz. “Eu tenho acesso a uma quantidade de música infinita, se fosse tocar com vinil eu não teria condições”. Por outro lado, com a evolução da tecnologia, não só o DJ mas o ouvinte também tem acesso a uma grande quantidade de material. Aí entra um novo papel do DJ: o de ser um filtro de qualidade. “Acho que esse papel do DJ como o cara que traz a novidade perdeu um pouco a importância no mundo de hoje por causa dessa facilidade de acesso. Mas o DJ ainda funciona como uma espécie de curador, que faz uma espécie de triagem do que realmente é legal”, diz Renato L. Mas a principal discussão se dá em relação à técnica usada para execução das músicas nas festas. Afinal, junto à evolução das mídias, evoluíram também os equipamentos e, consequentemente, as técnicas de mixagem foram ficando cada vez mais fáceis. Nos seus primórdios, ela era feita de forma manual, com os toca-discos, que, mais tarde, foram adaptados para os CDs com os CDJs (compact disc jockeys). A chegada dos mixers veio facilitar esse processo, que, hoje, pode até ser feito de forma automática, através de programas que podem ser baixados na internet. “Tem programas que mixam automaticamente. É só colocar as faixas, o programa equaciona a batida e sai tudo alinhado”, explica Renato L. “É lógico que a tecnologia hoje em dia facilita o DJ ‘embromador’”. Apesar de não ter me deparado, nessas festas do Recife, com o tal DJ “embromador”, que simula a mixagem ao vivo, encontrei vários que não se intitulam DJs, por acreditarem que o termo não é adequado ao tipo de trabalho que fazem. É o caso, por exemplo, de Guilherme Gatis, da Superingosto Festa Rock: “Não sou DJ, sou botador de som”, admite.

para ganhar dinheiro

...OU NÃO Lucas Logiovine, Golarrolê

“A Golarrolê vem numa fase muito boa. Há uns três anos, basicamente 90% das festas da gente são sold out. De público, acho que o maior que a gente fez foi 5 mil pessoas”.

Renato L, Tropicaos “O circuito de festas que Allana Marques e Lala K fazem, a Golarrolê, são festas com uma estrutura profissional inimaginável na época da gente, e muito lucrativas. Também sempre foi um problema, a gente nunca conseguiu fazer grana com as festas. A Tropicaos faz, mas é uma festa pequena”.

Bruno Pedrosa, Tropicaos “Recife é uma cidade que, financeiramente, é muito difícil pra quem vive de arte, e pro DJ não seria diferente. Pra sobreviver como DJ em Recife, eu acredito que você tem que ter uma herança de família que lhe permita fazer qualquer atividade que você vá também trabalhar como DJ, mas eu não conheço ninguém em Recife que vive exclusivamente da profissão de DJ.”


DJ 440

Embaixador do vinil no Recife, o DJ 440 nãose opõe ao uso de diferentes mídias. “O que importa é o homem por trás da máquina”

DJ Bruno Pedrosa

DJ 440, Terça do Vinil “A Terça do Vinil em especial começou de graça e permaneceu assim até os seus 5 anos de existência, quando fomos para Fábrica, e lá cobrávamos um couvert simbólico. Na Casa da Moeda também cobramos um valor simbólico, que vai para a custear o projeto. Não tivemos uma noite fraca sequer desde agosto. Em outras das minhas festas, como A Noite dos DJs Maliciosos e a Reunião de Bacana, procuro cobrar um ingresso justo, que varia de R$ 10 a R$ 25, dependendo dos custos de cada evento”.

Gustavo Montenegro, Altos Brotos “A Terça do Vinil em especial começou de graça e permaneceu assim até os seus 5 anos de existência, quando fomos para Fábrica, e lá cobrávamos um couvert simbólico. Na Casa da Moeda também cobramos um valor simbólico, que vai para a custear o projeto. Não tivemos uma noite fraca sequer desde agosto. Em outras das minhas festas, como A Noite dos DJs Maliciosos e a Reunião de Bacana, procuro cobrar um ingresso justo, que varia de R$ 10 a R$ 25, dependendo dos custos de cada evento”.

D Mingus, Cena Beto “O que a gente busca no momento não é nem viver apenas disso, mas poder pelo menos pagar o que você faz. Ou seja, se não lucra, pelo menos não sai perdendo”.

Segundo Bruno Pedrosa, O novo DJ também é um produtor. Tem que pensar em todos os detalhes, desde a música até a identidade visual da festa

Nas festas em que discoteca, ele não faz mixagens, mas toca uma playlist selecionada previamente, sem interferir nas músicas. Já Guilherme de Paula, o DJ Guigs, também não se considera DJ, apesar de fazer mixagens. “Botador de som eu não sou, mas eu também não gosto de me intitular DJ. Não é porque eu sei mixar que eu me considero DJ”, diz. Existem ainda aqueles que se denominam DJs apesar de não dominarem a técnica de mixagem, aquecendo a polêmica na cidade. Para esse outro tipo de profissional, a ausência de técnica pode ser compensada de outras formas. “É importante sim ter a técnica, mas se você não tem, que se importe com a curadoria, com a qualidade do que vai tocar, uma coisa meio que tentando compensar a outra”, opina o DJ Guigs. É a mesma opinião de Thiago Guimarães, o DJ @oraporra. “Tem gente que não mixa mas faz um trabalho de pesquisa, sempre traz alguma coisa diferente pra tocar, mesmo que seja só o, entre aspas, apertar o play, mas tem uma coisa de autoral só da pesquisa e da curadoria”. No circuito de festas do Recife, a figura do DJ parece estar mudando e ganhando novas atribuições. Além do papel de curador, esse novo profissional vem agregando também especialidades de produtor cultural. Afinal, são os próprios DJs que produzem suas festas atualmente, como explica o DJ Bruno Pedrosa. “A gente pensa em tudo. No cartaz, no designer que vai fazer o cartaz, no tipo de som que vai tocar, no equipamento que vamos alugar. A gente conversa com o dono do bar pra saber qual o tipo de bebida que ele vai vender, se o local tem ar condicionado, se

DJ Renato L

Para Renato L, alguns DJs defendem o vinil para garantir reserva de mercado. Mas os arquivos digitais têm o diferencial de proporcionar uma quantidade de música infinita

No novo circuito de festas do Recife, a figura do DJ parece estar mudando e ganhando novas atribuições. Além do papel de curador, esse novo profissional vem agregando também especialidades de produtor cultural.

tem banheiro extra…”. Esse é, portanto, mais um aspecto da profissão de DJ na atualidade: ele cria a própria festa para tocar, se diferenciando dos demais artistas locais, que terminaram se habituando à dependência dos editais para gravar discos e fazer shows. Eles já vinham produzindo, aliás, desde aquelas primeiras festas, no início dos anos 90, mas só agora estão aprendendo a fazê-lo de uma forma economicamente viável. Apesar das conquistas nessa década, os DJs atuantes no Recife ainda têm bastante desafios. Um deles é conseguir conciliar as expectativas do público com um repertório que lhes agrade, como explica Renato Lins. “As festas abrem pouco espaço para a produção contemporânea ou o que é desconhecido. Atualmente, são festas muito presas ao que é sucesso. É uma reclamação que eu escuto muito das pessoas da noite do Recife atualmente”. Outro desafio é a manutenção dessa boa fase na cena cultural, pois, se a cidade tem ciclos, a cena de festas com DJ também tende a acabar e ser substituída por outra. Além disso, existe ainda a necessidade de se fazerem respeitar, não apenas fora do seu circuito de festas, mas também dentro dele. Até ter um nome consolidado no mercado, o DJ precisa trabalhar o seu diferencial e demonstrar conhecimento no assunto, como completa Bruno Pedrosa: “O aspirante a DJ, que quer fazer ou que já faz festas, tem que pesquisar mais, conhecer mais músicas. Não tem que ser preguiçoso! Porque, na cultura do artista em geral, as pessoas tendem a ficar acomodadas”. 13_


da pista

>>>>>>>>> PARA o palco Assim como há 20 anos, uma nova cena autoral se forma à margem das festas de DJ e tenta se manter

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Já vimos no início desta série que o man-

gue bit, antes de chegar ao palco, começou nas pistas de dança. Chico Science e Jorge du Peixe, antes de formar uma banda, frequentavam as festas promovidas por DJ Dolores, Renato Lins e cia. Lá, dançavam como b-boys, daqueles que fazem passos de hip hop. As primeiras apresentações públicas de bandas como Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, inclusive, aconteceram nessas festas, como ressalta Renato Lins: “As festas vieram antes dos shows. Era engraçado, eles eram a atração de uma festa; não era um show onde a gente discotecava, era uma festa onde eles se apresentavam. Entendeu a diferença?”. A sincronia entre as cenas de DJs e autoral atravessou as décadas, mas acabou gerando uma polêmica: o sucesso das festas faz com que parte da classe artística se sinta traída pelo seu velho público, que estaria sendo roubado pela nova onda eletrônica. Enquanto existe a dúvida sobre qual das duas cenas é mais promissora, são feitos movimentos de aproximação de ambos os lados. A Golarrolê, principal representante do circuito de festas com DJs, vem conseguindo resultados igualmente positivos com a produtora Go! Elephants, através da qual realizou dois eventos bem-sucedidos, primeiro com a banda Los Sebosos Postizos, que não tocava no Recife há três anos, e depois com Cidadão Instigado e Otto. Ao mesmo tempo, a cena autoral, que vem ganhando força após as articulações do movimento que se auto-intitulou Cena Beto, já estreou há tempos a parceria com DJs de festas, que são presença constante em seus eventos. A festa da coletânea O.N.I. (objeto não-identificado), por exemplo, teve discotecagem do DJ Cláudio N. Já a festa anual A noite do desbunde elétrico, assim como o mais recente, a temporada de shows O Boratcho é mais embaixo, no bar Boratcho, contaram com participações, entre outras, de DJs de festas como a Agito Pesado. Essa tal Cena Beto tem vários pontos em comum com a cena mangue. Em primeiro lugar, a incompreensão de público e crítica. Anos depois, os ícones do mangue bit vieram explicar o movimento: “Nunca existiu”, dispararam em entrevistas artistas como DJ Dolores e Fred Zero Quatro. Eles queriam dizer que não havia uma unidade estética que os definisse como um gênero musical, mas antes uma unidade ideológica, como resume DJ Dolores no artigo “O mangue nunca existiu”, que publicou em seu blog (djdolores.blogspot.com.br) em 2005: “A imprensa, sempre atrás da novidade fácil, nunca entendeu o que

era um coletivo ou uma cooperativa cultural e o mangue (agora já Mangue Beat, por um erro de compreensão de algum jornalista) passou a ser tratado como ‘movimento’, virou fenômeno de massa sem diálogo e pouca reflexão além dos clichês curiosamente bairristas ao contrário de uma idéia originalmente cosmopolita. E efêmera”, desabafou. É basicamente o mesmo processo que se repete agora com a Cena Beto. Ávidos por um rótulo, jornalistas abraçaram o novo nome do grupo que, no início, abrangia artistas das redondezas dos bairros de Estância e Areias, como André Conserva (que utiliza o pseudônimo Jean Nicholas), Ângelo Souza (conhecido como Graxa), Juvenil Silva e Zeca Viana, e depois se estendeu para artistas de toda a cidade e que tocam gêneros musicais distintos entre si. “Um monte de jornalistas já tentou classificar, por isso que surgiu o nome cena beto. Foi Graxa quem disse: ‘Bota qualquer nome aí, bota Cena Beto’! Coisa de mesa de bar mesmo, e acabou pegando”, explica Jean Nicholas. Há, no entanto, quem não concorde com esse rótulo. Evandro Sena, por exemplo, que atua como DJ e também como músico na banda Monstro Amor, sintetizou sua opinião contrária, certa vez, através de um comentário feito em um artigo sobre a Cena Beto publicado no blog Outros Críticos, que vale reproduzir aqui: “Entendo que pode se chamar de cena a um fenômeno onde há um recorte local, temporal, que envolve vários elementos da cadeia produtiva e que estão associados a uma certa estética e/ou público. Não a um coletivo de artistas (que acho que é o que está acontecendo) e suas ações isoladas diante de tudo que a cidade vem produzindo e diante de tudo que o mesmo público destas bandas vem consumindo esteticamente”. Mas, da mesma forma que as bandas da cena mangue, é difícil que os artistas façam alguma objeção a algo que está funcionando para atrair a atenção da mídia. Devido ou não à estratégia do rótulo, o fato incontestável é que, antes do nome, não recebiam a mesma atenção que agora, quando passaram a figurar nos grandes jornais da cidade e até mesmo em blogs de coluna social - principalmente depois de ter aparecido em outros jornais do país, como o carioca O Globo. “Aqui ninguém sabia quem a gente era, e depois disso todo mundo veio atrás. Sendo de Recife, você tem que sair primeiro em algum lugar fora pro pessoal começar a dar atenção a você. É assim desde Alceu”, alfineta Jean Nicholas. Para Juvenil Silva, porém, o que atrai


a atenção da mídia não é o novo nome e sim a mudança de comportamento. “A visibilidade veio depois que a gente se juntou. Não tem nada a ver com o nome, mas sim com a união. Eu acho que o que está realmente chamando atenção é a interação”, diz. Essa interação é outra característica que assemelha a Cena Beto ao movimento mangue bit. Estes começaram como uma cooperativa cultural, que reunia artistas de várias áreas com o intuito de viabilizar o lançamento de discos, livros, vídeos e outros produtos. A Cena Beto, da mesma forma, não se resume à música. “Cada um interage muito com o outro”, explica Juvenil Silva. “Um ajuda na passagem de som, outro faz uma capa de disco, outro faz um ensaio fotográfico, alguém manda uma letra pra mim eu faço a música”. O coletivo de músicos, do qual fazem parte ainda artistas como Matheus Mota, Ex-exus, German Ra e Aninha Martins, conta também com a participação dos coletivos de audiovisual Ostra Monstra e Vicioclipes, responsáveis pela produção e divulgação de seus videoclipes. Em comum com a cena de festas eletrônicas, a autoral tem a necessidade de estender suas habilidades para além do campo artístico, passando a atuar também com uma visão empreendedora - e talvez seja nisso que os DJs saem na frente dos músicos, demonstrando maior habilidade para produzir eventos pagos que atraem um grande público. Mas, aparados pelas facilidades tecnológicas, esses artistas seguem à risca o conceito de independentes: produzem seus próprios discos em estúdios improvisados e realizam seus eventos com os escassos recursos próprios. O músico Domingos Sávio, o D Mingus, explica a criação de seu estúdio caseiro, o Pé de Cachimbo Records, onde gravou seus discos e o do colega Graxa: “O lance é você ter independência, gravar sem custos, enfim. Mas, além da questão financeira, tem a questão artística. Em casa você tem a possibilidade de gravar na hora que quiser, e também é onde você está mais à vontade, e isso influi diretamente na forma de você executar a música, então é

muito mais que uma questão de economizar dinheiro”. Ao contrário dos DJs e produtores de festas, porém, eles não vêem essa situação como a ideal. “Na verdade, o que eu gostaria mesmo era só tocar, só fazer minhas músicas. Só que não dá, não ia rolar nunca, então a gente faz da maneira que pode”, confessa Juvenil. É a mesma visão de D Mingus. Para ele, tem se cobrado muito dos artistas novas atribuições que não deveriam caber a eles. “As pessoas cobram pouco, por exemplo, dos produtores, porque acham que o artista tem que se autoproduzir”, reclama. “De repente, você está sendo cobrado de outras coisas, às quais você não está acostumado nem preparado. E aí você é rotulado de ‘metido a estrela’, porque se propõe a se concentrar só na arte, que é algo que demanda bastante tempo pra chegar num resultado interessante”. A Cena Beto deve encontrar pela frente, portanto, um grande desafio para encontrar o caminho de volta ao público. “Eu vejo o público do Recife de uma forma muito passiva”, analisa D Mingus. “É um público que se acostumou a não ir pra shows. Mas, ao mesmo tempo, não sei se seria culpa dos DJs, pois eles estão atendendo a uma demanda de público”. Para Gustavo Montenegro, o DJ Guthera, produtor da Altos Brotos, existe um motivo para isso: “Aqui em Recife as bandas têm medo de ser pop. Muita banda tem medo de fazer refrões pra galera cantar junto e dançar. Tem muita música contemplativa, viajada, mas ainda falta música pop de qualidade”. Do que D Mingus discorda: “Acho que a música que a gente faz já é muito vendável. Acho que a gente tem uma linguagem que, ao mesmo tempo que é popular, se propõe a quebrar o padrão de música popular”, diz. Popular ou não, coletivo ou movimento, a Cena Beto se esforça para manter viva no Recife a clássica figura do artista autoral. Enquanto não descobrem a fórmula do sucesso, continuam fazendo o que sabem e gostam: boa música, como arte acima do simples entretenimento. Keyse Menezes

para todos os DJs

...OU NÃO DJ Renato L

“Tecnicamente, digamos assim, sou um DJ bastante rudimentar. Minha abordagem de discotecagem sempre foi muito punk, nunca privilegiei muito técnica, no sentido de mixar, ou usar o mixer pra mexer com frequências, filtros e tal. Mas eu acho que eu tenho um repertório muito bom, que eu sei dialogar bem com a pista, e que sei construir uma boa sequência”.

DJ Bruno Pedrosa “Aprendi a mixar ainda adolescente, e pesquiso até hoje, é algo diário na minha profissão. Quando sou solicitado, faço curadorias e incluo DJs em trabalhos que nem sempre eu mesmo toco. E com a banda que faço parte, Café Preto, produzo música autoral”.

Juniani Marzini, DJ 440 “O meu trabalho eu classifico como sério, empenhado. Eu sou um pesquisador, um arqueólogo da música popular brasileira e acho que minha missão é o resgate”.

DJ Guilherme Gatis “Não me considero um DJ, digo que sou um ‘botador de som’”.

Guilherme de Paula, DJ Guigs

Cena Beto: o grupo de artistas se esforça para manter viva no Recife a clássica figura do artista autoral

“Não é porque eu sei mixar que eu me considero DJ, sabe? Mas mixagem, isso a gente faz, a gente não só chega e aperta o play”.

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