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AlexAndre dAl FArrA + An MArinho + ArkAdi ZAides MArin + CArol Portes + C + ClAuCio André + ClAud CoMPAnhiA oMondé + dAn + FAbiAne de CeZAro + FAb + FeliPe hirsCh + FeliPe FernAndA CAPobiAnCo + d`uMbrA + FernAndo hAd kePPler + gAbrielA soutel vAZ + ineZ viAnA + João CA nin + kiko rieser + lilyAn + luAA gAbAnini + luCAs luCiAno gAtti + MArCelo + MAriA teresA CruZ + M FAnChin + MAriAnA Mun soAres + MArthA nowill FerreirA + noeMi MArinh kosovski + rAChel riPAni lAri + renAtA AdMirAl + re rebouçAs + sérgio roveri + + silvero PereirA + teAtro thiAgo luCiAno + viCto
nA CArolinA s + Augusto CentquAtre diA tAddei + niel tAvAres bríCio liCursi storino + + FernAndA ddAd + FrAnZ llo + gustAvo AldAs + Juão n de souZA s buChile + boursCheid MAriA tuCA niZ + MArtA l + MiChelle ho + Pedro ni + rAFAel di enAto bolelli + sérgio silvA o dA rotinA + or ieMini
agradecimentos Alex Silva Alice Cavalcante Arteplural Bia Paganini Bruno Girello Celso Curi Christiane Jatahy Claudia Marques Claudia Petagna Danilo Grangheia Debora Lamm Eric Lenate Erica Georgino Ernesto – o fusca Faliny Barros Flávia Garrafa Gustavo Gasparani Gustavo Sol Guta Ruiz Henrique Mariano Instituto Capobianco Janaína Leite João Carlos Andreazza Juliana Moraes Leonardo Brant Leonardo Medeiros Luísa Reis Luna Martinelli Luque Daltrozo Maitê Hotoshi Massao Hotoshi MITsp Morena Nascimento Novelas Curitibanas Paula Cohen Renata Mello Roberto Alvim Sarah Salgado Virginie Duval Wesley Kawaai
editorial
H
á uma confusão generalizada. Podemos descrever assim o hoje. Não significa dizer haver uma solução ou respostas concretas. E, talvez, na frase elencada, o mais próprio ao agora seja mesmo a presença da generalização. Do mundo, da história, dos acontecimentos, das estruturas, das pessoas, dos sentidos, dos discursos, das subjetividades. Infelizmente ou não, pouco importam. A confusão existe e está aí, inclusive em cada um de nós. Enquanto, no outro lado do planeta, as questões envolvem o conflito desumano na Palestina, aqui os dilemas raciais berram séculos de opressão. É preciso refletir. Contudo, palavras são deterministas e sustentam conceitos impositivos. Palavras são confusas e podem impor generalizações. E já temos demais as duas coisas. Por isso, mais do que nunca, a arte serve de instrumento para experienciarmos a subjetividade por outros caminhos, dialogando com nossos próprios esconderijos. Interessa-nos isso. A arte que dialoga e provoca. Não aquela que responde ou determina. Fomos buscar outros diálogos, portanto. Visitar quem está mergulhado na complexidade desse instante. Conversamos com Arkadi Zaides, coreógrafo residente em Israel, sobre essas e outras questões; com Silvero Pereira e sua pesquisa sobre o transformismo e transexualismo. E muito mais. No teatro brasileiro, poucos enfrentam o agora com tamanha ousadia e urgência, como Felipe Hirsch. Seus trabalhos recentes exigem aos artistas e espectadores o desnudamento das certezas e valores, provocam o desenvolvimento de maior amplitude ao pensamento. Por isso, o imenso prazer e importância em trazê-lo como nossa capa. Porque é urgente questionarmos das certezas aos instrumentais. Perceber isso é entender diferentemente a presença do artista. Não lhe cabe ser um mero porta voz, mas a problematização dos sentimentos e acontecimentos existentes. O artista se revela cada vez mais um provocador. É por ele que novas experiências podem ser trazidas ao homem. Mas isso depende de reconhecê-lo por inteiro. Como ser, como sentido e também profissional. E nem sempre isso é notado. É a sensação de apropriação do artista pelos interesses equivocados que nos levou a pensar a campanha Artista não Vive de Vento. Antes de serem quem são, são pessoas. E, como pessoas, são iguais, com necessidades iguais, problemas iguais. Estamos em um momento complexo. Fato. E, talvez, começarmos a respeitar os artistas, não mais limitados a serem objetos e serviços, seja a maneira de iniciar a experiência de respeito ao outro. É pouco? Não. Pois, na verdade, não é exatamente isso, a percepção e o respeito ao outro, o que está em decadência no mundo todo? Entrem, leiam, pensem, concordem, discordem. E sigamos juntos. Bem-vindos à edição 13.
ruy filho
patrícia cividanes
maio de 2015
SP / BR
CAChê AtrAsAdo. edital cancelado. PAtroCinAdor desinterAssAdo. estrutura sucateada. esPAço inexistente. mídia superficial.
ArtistA não vive de vento A conta de luz, a conta de água, a conta do supermercado, do condomínio, da farmácia. A escola do filho, os livros para as madrugadas, os estacionamentos, a gasolina, os impostos. um artista não é diferente de qualquer outra pessoa. e, por mais que se tenha criado a imagem de um ser especial, ele tem sua rotina, como todo mundo. vive o mesmo mundo e segue iguais condições. Mas há o vício de imaginá-lo diferente, e, como tal, seu valor é subjetivo. ele entenderá, pensam. ele precisa de nós, pensam. Cada vez mais, os sistemas, as propagandas, os instrumentos, as estruturas os querem. e isso lhes toma tempo. e isso lhes exige superar o próprio limite de tempo. o caminho para o trabalho, para casa, para o trabalho, casa, trabalho, casa. o artista é, antes, uma pessoa igual aquele que o contrata. é, para além de uma imagem, profissional. Por isso, a cada atraso, a cada descumprimento, luz
fotos
patrícia cividanes
apoio
instituto capobianco
e água são cortadas, o cartão de crédito explode em juros, a conta fura, a mensalidade não é paga, a comida diminui, o viver é restringido. e nada é mais importante ao artista do que estar em plena combustão do viver, em sua máxima potência. é no mundo que busca sua criação. sem isso, ele perde como pessoa, o trabalho perde, o público perde, a arte se esgota. e a paciência chega ao fim. que tal mantermos as palavras? que tal assinarmos os contratos? que tal cumprirmos os combinados? que tal respeitarmos os prazos? que tal pagarmos o que é válido e não o mínimo? Convidamos diversos artistas de teatro para gritarmos contra o silêncio que se impõe por mera sobrevivência sobre um problema que é principalmente ético. estamos falando sobre respeito. A campanha Artista não vive de vento berra o óbvio na esperança de ser percebido. Afinal, a esperança é a última...
esta é uma campanha
expediente
editores
Ruy Filho [texto] Patrícia Cividanes [arte]
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acesso virtual e livre, voltada às discussões sobre teatro e política cultural.
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VISITANDo Arkadi Zaides
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PoR Aí CentQuatre
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PoR AQuI Teatro da Rotina
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HoMENAGEM Cia. omondÉ
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DIÁLoGo X2 Deslocamentos
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VISITANDo Silvero Pereira
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ToDo ouVIDo Felipe Storino
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PoLíTICA DA CuLTuRA Claudia Taddei
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CAFÉ DuPLo Sérgio Roveri e Michelle Ferreira
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oBS por Kiko Rieser
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CAPA Felipe Hirsch
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CARTA ABERTA para Fernando Haddad
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DIÁLoGo X2 Ricardo III
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VISITANDo Inominável Cia. de Teatro
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FoTo PALCo Victor Iemini
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CoNTAção Daniel Tavares e Franz Kepller
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PENSAMENTo SoBRE Krum e Desmonte
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oPS ART
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ESTREIA Fringe
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MÁQuINA DE ESCRITA Alexandre Dal Farra
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INFINITo
arkadi visitando
a dança como meio de construir experiências no outro por
ruy filho
intĂŠrprete
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gustavo vaz
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a
o final do espetáculo Arquivo, o olhar melancólico de Arkadi Zaides amplia ainda mais a sensação do que se mostrou no palco. Não se tratava somente de cansaço. Revela também o esgotamento ao lidar com a amplitude de um tema que lhe exigia um nível de envolvimento emocional além do comum em dança. Morando em Israel, trazer ao próprio corpo as formas e movimentos de israelenses filmados por palestinos na Cisjordânia obrigava-lhe a mergulhar em um profundo estado de desconstrução de si mesmo. É como se, apenas quando tornado o próprio corpo, o outro pudesse ser reconhecido. No auditório do Itaú Cultural, sentado muito próximo ao palco, não era somente o outro que Arkadi me apresentava, mas, também, a história em sua dimensão mais amplas e em seus acontecimentos mais terríveis. Por isso, passada a MITsp, voltamos a procurá-lo para uma conversa, agora já mais distante das sensações e emoções sentidas. Até que na manhã combinada, com Gustavo Vaz como nosso intérprete convidado, conversamos sobre a dança, o corpo, a imagem e principalmente sobre violência. Antes de trazer o encontro, porém, faz-se fundamental entendermos a complexidade do conflito na Palestina. Não tenho aqui nenhuma pretensão de diagnosticar, concluir ou explicar demasiadamente. Estamos, no Brasil, muito longe da região; somos, nós brasileiros, ainda mais distantes das questões históricas e regiliosas que entrecruzam tantas vezes o conflito. O fato assim o é porque preferimos, não nos envolvendo naquilo que parece ser um problema do lado de lá do planeta. Engano. O que ocorre na Palestina e em Israel diz respeito a todos nós, pois revela mazelas ainda mais cruéis do que o próprio conflito, não apenas como acontecimento, mas falência da nossa humanidade. Para tanto, apoio-me, sem tomar qualquer partido imediatista e simplista, em dois estudiosos que, recentemente, aceitaram colocar seus pontos de vistas e trocar cartas de réplicas e tréplicas. Todo esse material está reunido e publicado em um mesmo livro. De um lado, Dan Cohn-Sherbok, judeu, com passagem acadêmica na universidade de Cambridge; do outro, Dawond El-Alami, palestino, acadêmico de Oxford. Para Cohn-Sherbok é necessário nos atentarmos serem os judeus perseguidos há muitos séculos, com mais ênfase desde o instante em que o Cristianismo tornou-se a religião dominante na Europa, séculos atrás. Outro instante de horror, mais presente em nosso imaginário, o massacre nazista e a tentativa de extermínio de todos os judeus, com a criação de campos de concentração que permeiam o mais profundo horror já criado pelo homem. Portanto, não seria incomum que se chegasse a um consenso internacional, durante
nas páginas anteriores, arkadi em cena de “arquivo”, pelas lentes de Gadi dagon. À esquerda, seu retrato por Joeri thiry.
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“o perigo do teatro, da performance etc. é somente apresentar algo e não mostrar a coisa em si” a Segunda Guerra, da urgência da criação de um lugar de existência judaico, em busca de sua segurança, afirma. Contudo, El-Alami questiona a maneira e as consequências dessa criação, não a condição de risco. Explica acabar a história palestina judaica em 137 a.C., e que, até a metade do século XX, não eram os judeus então maioria na região. Esses 1800 anos, entre terem os judeus lá vivido e não mais estarem, deram espaço para novos povos e sociedades. Assim, a criação de ser ali um lugar sagrado aos judeus, para onde deveriam retornar, foi baseada na memória de um povo particular e não também dos que lá estavam, levando a urgência do movimento a fazer da ação de chegada uma espécie de colonização da terra habitada, enquanto, paradoxalmente, o mundo se voltava contra o colonialismo. Explica Cohn-Sherbok que a Declaração Balfour, determinante para a criação do Estado de Israel na Terra Santa, tendo a Grã-Bretanha como sua força maior, através do Documento Branco apresentado por Churchill, propunha uma coexistência pacífica entre árabes e judeus, a partir de um ponto de divisão, além da criação de conselhos legais para contemplar os direitos de ambos. Para El-Alami, dois são os equívocos nesse argumento. Primeiro, o fato de não ser a Grã-Bretanha proprietária da Palestina para decidir sobre ela, nem os judeus tinham legitimidade jurídica internacional para estabelecer legislações específicas. Segundo, que a compra de terras autênticas em um país por estrangeiros não lhes dá direito de estabelecer no território adquirido um Estado próprio. E reage, ainda, explicando que um estado baseado em etnia e religião criado em uma terra habitada só pode ser conseguido através de um certo grau de limpeza étnica. Cohn-Sherbok relembra que todas as tentativas de construir um conselho ou dialogar com os árabes foram recusadas, tornando as relações impossíveis de convivências estruturais, legais e morais. E vai mais longe, ao afirmarnão ser a segurança judaica plena e continuar tão ameaçada quanto esteve nos séculos anteriores. Por fim, Dawond pontua que se a ameaça aos judeus ainda é uma latente possibilidade, a da exterminação da Palestina parece verdadeiramente um processo real.
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Cenas do espetáculo “arquivo” pelos fotógrafos Jean Couturier e Gadi dagon respectivamente.
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“é preciso descobrir a violência no potencial de cada pessoa” Cena do espetáculo “Land-Research”, com colaboração de anat Cederbaum e performance de Raida adon, asaf aharonson, sva Li Levy, Yuli Kovbasnyan e Ofir Yudilevitch. Foto de Tami Weiss.
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O longo parágrafo não dá conta nem de perto dos acontecimentos e reviravoltas que construíram o conflito. Serve, ao menos, para mostrar o quanto há de desvios e interesses em cada um dos argumentos, por mais que estejam corretos. Interessa-nos, aqui, compreender como os acontecimentos se colocam simultaneamente propositores e deformadores das tentativas. Para Jean Baudrillard, o problema está no sentimento empregado a qualquer acontecimento. Quanto maior o desejo, maior também a decepção. Isso resume, em certo sentido, o meio século de discordâncias e tentativas construindo e acumulando ainda mais decepções e distanciamentos. Para o filósofo, o homem sonha com acontecimentos insensatos que o liberte da tirania do sentido e da limitação de sempre provocar a equivalência entre efeito e causa. Some a essa frustração constante os conteúdos da informação serem desesperadamente inferiores à potencia dos meios de difusão. E conclui vivermos ao mesmo tempo no pavor do excesso de significação e da insignificação total. Arkadi pesquisa no movimento próprio o corpo do outro, como meio de difusão desses excessos e insiginifcações apontados por Baudrillard. Parte dos corpos naturalizados em convívio com a violência. Os gestos estão lá, diz, os de fora e os dele mesmo.
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E, ao utilizá-los como materiais, procura nos movimentos abstratos derivados da descontextualização símbolos e signos de representação, não do ser, mas da própria violência como vocabulário real de um corpo ressignificado pela guerra. Se apenas representados, seriam os gestos cotidianos reproduções da violência com a dança. Para ir além, utiliza-se do vídeo, de imagens reais quais encontra e retira os gestos, e cujos contextos são divididos com os espectadores. Para Arkadi, o fato do material em vídeo estar presente com ele, confrontando-o, cria maior efeito da violência no trabalho. Por isso, durante o processo, pergunta-se o que seu próprio corpo pode somar às imagens de violência. Busca a construção de uma poesia do corpo e por ela chegar a algo mais interessante. Ao se apropriar, resume, novos sinais surgem e os torna novos. Há sempre o risco de qualquer aproximação com esse assunto ser compreendida como um manifesto em defesa ou acusação. Arkadi se protege da história e dos acontecimentos através da metodologia artística. Ao seu ver, ela quebra o assunto como sendo apenas político, e as imagens terminam por serem desconstruídas. Um dado importante em sua metodologia é a exposição do controle do vídeo estar com
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ele para movê-lo como lhe interessar. Todavia, uma imagem é sempre mais atraente ao espectador do que o próprio corpo em cena. Ele concorda existir sim um consumo da imagem exposta, porém sem questionamento de sua violência. Mas atenta não poder generalizar a audiência. Ainda que mais atrativa aos olhos, também mais rapidamente se conecta. Isso porque a violência não é tão estranha a nós como gostaríamos. E, ainda que muitos dos valores e questões envolvidos no conflito nos sejam estranhos e distantes, existe nele algo maior e mais profundo reverberando em todos. O imaginário de uma guerra permeia mesmo aqueles que nela não estão. Somos submetidos a ela por imagens, ficções, descrições, depoimentos etc. Convivemos, por conseguinte, também com as sensações de terror. Jacques Derrida, um dos pensadores contemporâneos franceses mais influentes, afirma a guerra acarretar a intimidação dos civis e envolver aspectos de terrorismos. E amplia, ainda mais, tal conceituação, ao propor não aplicarmos nenhum tipo de separação rigorosa entre diferentes tipos de terrorismo, nacional ou internacional, local ou global. Argumentando que, ao se apegar à lembrança traumática, a vítima tenta se certificar de ser capaz de suportar o impacto do possível de repetição. É importante perceber aqui que o conflito na Palestina
“arquivo” em fotos de Gadi dagon.
entre israel e a palestina, a complexidade de seres em guerras
Cena do espetáculo “LandResearch”, em foto de Tami Weiss. 20
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dimensionou o impacto da guerra e do terror decorrente à possibilidade de ser uma guerra possível em outra circunstância e lugar, na medida em que os acontecimentos, como trouxe Baudrillard, se acumulam mais por suas decepções do que soluções. Em outras palavras, a permanência por tanto tempo de um conflito torna a experiência de todos um processo de convívio à existência de conflitos insolúveis. Essa é a maior intimidação na atualidade, aponta Derrida. E isso ocorre sobretudo pela maneira como a mídia contribui para multiplicar a força da experiência traumática, explica. Arkadi conta com a relação inconsciente com a violência já intrínseca em nosso imaginário, todavia compreende o quanto desconhecemos a própria parte e responsabilidade na produção dessa violência. Por isso se apropria de lugares específicos e locais para assuntos globais. É preciso desvelar a violência no potencial da pessoa, explica. Assim, utiliza-se do corpo para dialogar não com a percepção meramente, mas com o próprio corpo do outro. De forma mais técnica, fala sobre os neurônios espelhos para justificar por que é com o corpo do outro o seu diálogo. Segundo a neurociência, a humanidade aprendeu por eles a copiar a ação de um corpo semelhante, espelhando-o, e construído assim os instrumentos básicos da linguagem. Ao representar os gestos de violência encontrados nos vídeos, Arkadi provoca o espelhamento da ação no espectador que passa a compreender inconscientemente em seu próprio corpo a violência em si. Por isso, é menos uma questão local e mais de todos, e independe das especificidades da história, entendendo a violência como código estruturante ao homem. Resume, desse modo, potencializando o quanto a dança é capaz de fazer e construir no observador. De certa forma, Arkadi aponta para o gesto como propositor de uma comunicação objetivada. O problema está na generalização ao lidarmos à distância com os referenciais das informações. É comum limitarmos os extremos no Oriente Médio ao fundamentalismo religioso, seja judaico ou muçulmano. Mas isso é pouco.
Cena do espetáculo “Land-Research”, em foto de Tami Weiss.
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“arquivo” em foto de Jean Couturier. 24
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Jügen Habermas aborda tanto a comunicação quanto o fundamentalismo em um mesmo argumento. Diz o filósofo alemão, o fundamentalismo tem menos a ver com qualquer texto específico ou dogma religioso, e mais com a moralidade da crença, sendo, por conseguinte, a reação violenta contra a maneira moderna de entender e praticar a religião. Como toda doutrina religiosa se baseia em um cerne dogmático de crença, a modernidade provoca um violento desenraizamento dos modos tradicionais de vida, levando a uma reação de pânico à modernidade, percebida mais como ameaça do que oportunidade. A violência é uma patologia comunicativa, conclui. Resumidamente, o processo se dá por uma espiral de violência que conduz à espiral de comunicação distorcida, e esta a uma desconfiança recíproca e, então, à ruptura. Quando indagado do por que levar ao palco a violência, já que esta existe de um modo ou outro em todos, Arkadi responde não estar reafirmando sua existência, mas colocando a pergunta do quanto somos culpados e responsáveis. Ao dançar os gestos próprios de um instante de violência, passamos a observá-la por outro ângulo. Afinal, questiona, podemos realmente entender o que vemos ali? As reações e caminhos diferem em ambientes específicos. Se dança em sua cidade, a relação entre Israel e Palestina é evidente, é um israelense fazendo para eles, exlica. Já, em outro lugar, a conexão rápida em casa e seu questionamento no presente dá lugar à tentativa de construir no movimento a própria percepção de ser ele parte do presente. Por último, digo-lhe que sendo o gesto apropriado por ele do vídeo uma maneira de trazê-lo ao nosso próprio corpo, então é como se nos tirasse para dançar a violência e toda a complexidade que o conflito expôs com tanta naturalidade. Ele ri. Não sabe como responder a isso e sugere ser essa seja a nota final do artigo. Mas eu precisaria ter uma resposta a isso também para terminar aqui. Prefiro entregar a função a outro. É o escritor americano Philip Roth quem melhor responde a nós dois: trata-se do gosto de examinar em profundidade um acontecimento social (como o gesto de atirar pedras ou carregar o fuzil repetidos por Arkadi), como se se tratasse de um sonho ou de uma obra de arte. A vida, entendo, então, como sendo a mais própria ao belo e horrível dos dizeres necessários à Arte.
“a gente pode realmente entender o que vê?”
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imagem de divulgação do espetáculo “Quiet”, com direção e coreografia de Arkadi Zaides e colaboração de Joanna Lesnierowska.
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PS: enquanto termino esse texto, pela televisão a notícia do Vaticano ter se dirigido a Palestina como Estado autônomo, e o enfurecimento de Israel. São os desejos e as decepções provocados por novos acontecimentos. Baudrillard deve estar atento. “arquivo” em foto de Jean Couturier.
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doartista
oespaçopúblico
onde centquatre paris/fr
O público ocupa o antigo edifício, que hoje é tomado por várias áreas da arte contemporânea.
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o
edifício de 1873 em Flandres construído pela diocese de Paris é repleto de histórias que permeiam acontecimentos importantes para os trabalhadores e a comunidade local, em instantes como a Segunda Guerra e Maio de 60. Mas foi em 1905, após a separação entre Igreja e Estado, os serviços funerários passaram a ser municipais. Todavia, a criação do monopólio público sobre o serviço terminou em 1993, e foi apenas em 1997 que o último empregado deixou o lugar. De lá pra cá, optou-se por construir um centro cultural contemporâneo para além das atividades culturais e artística com um pensamento inovador ao fazer da cultura. Sob direção de José-Manuel Gonçalvès, o edifício compreendendo diversos espaços abertos, salas e teatro tornou-se uma plataforma colabora-
tiva nas áreas de artes cênicas, dança, música, cinema e vídeo, artes culinárias, digitais e urbanas. Flandres é a fronteira simbólica entre o capital e o subúrbio parisiense, por isso não bastava somente ocupá-lo. Criou-se o conceito de espaço artístico de serviço público, compreendo a cultura como algo a ser ofertado ao outro de modo mais tranversal. Paralelamente, o espaço gerou uma rede entre associações, escolas, agentes sociais, grupos e indivíduos das redondezas, além da cooperação de diferentes estruturas, teatros e festivais. Foi a partir da junção entre o local e sua expansão por diversas outras instituições que se permitiu também abrir o 104 Centquatre para ser a incubadora de novas formas de artes, ideias originais, experimentações e difusão de projetos inovadores, agregando e aproximando artistas, empresários e pesquisadores. Dentre os artistas
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envolvidos no 104 estão nomes interessantes da cena internacional, como Bertrand Bossard e os brasileiros Enrique Diaz e Christiane Jatahy. Um lugar aberto ao pensamento e à criação, onde o artista pode se apropriar da estrutura para de fato investigar a linguagem de modo radicalmente mais profundo. Exemplo de política pública na área da cultura, em que o local se soma ao que pode haver de mais experimental na atualidade, gerando uma ambiência de simbiose positiva aos dois. Eficiência, ousadia e criatividade. Isso sim é política e responsabilidade cultural.
Le CeNTQUATRe-PARIS >> 5 rue Curial, Paris (19e arr.) - metrô Riquet. Tel. 01 53 35 50 00 http://www.104.fr
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acima, a plateia do teatro e, no detalhe, cena de “e se eles fosse para Moscou”, da diretora brasileira christiane Jatahy, artista associada ao centquatre.
onde teatro da rotina s達o paulo/sp
porta, escada, lugar e arte
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nas páginas anteriores, o clássico cavalete de divulgação antecede a escada de entrada. À esquerda, leonardo Medeiros reunido com seus atores. nos círculos, o pequeno a charmoso hall de entrada e as arquibancadas.
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Rua Augusta sobrevive ao tempo. Dos bondes que por ela transitavam outrora às casas noturnas e empreendimentos imobiliários da Baixa Augusta de agora, a cultura se funde à cidade por muitas faces. É nessa pluralidade que surge o Teatro da Rotina. Ao chegar, a porta de entrada convida ao interior do edifício. É preciso subir, se permitir desviar dos trajetos comuns da calçada e noite. Como que guardado por apartamentos, a porta número doze abriga o pequeno e charmoso teatro, recepcionando o público com o café Theatre de la Routine, recém aberto. Está sobretudo na intimidade da sala de apresentação a resposta à proposta da companhia em pesquisar junto ao espectador novos diálogos cênicos, simbólicos e cognitivos. Eles se definem como um coletivo de artistas trabalhando em autogestão com a finalidade de pesquisar e produzir obras de arte performáticas. É o que você encontrará em As Palavras da Chuva, espetáculo atual criado a partir de investigações sobre Tennessee William. A coletividade avança do conceito de ser o trabalho fruto do interesse do público, através de financiamento coletivo, aos sete atores que se revezam nas apresentações, tornando cada noite uma experiência singular. Com o Teatro da Rotina, a Rua Augusta se torna ainda mais interessante de vivenciar, foge-se das especificidades já reconhecidas da cidade, para um mergulho em poética e sensações que modificarão o retorno ao trânsito e ao cotidiano. Se existe uma tradição, nessa que é uma das mais importantes vias da cidade, é a de conduzir as pessoas aos desconhecidos. Agora, Leonardo Medeiros e os integrantes do Teatro da Rotina ampliam ainda mais a Augusta como espaço necessário ao nosso imaginário. Pare, desvie-se e suba as escadas. É incrível.
TEATRO DA ROTINA >> Rua Augusta, 912 - Consolação, SP - SP.
(11) 95489-9836
http://www.teatrodarotina.com.br
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homenagem
5 anos
a divertida condição de ser igual
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á um tanto de todos, em tudo o que aí está. então é preciso ser múltiplo, vestir-se de muitas maneiras, permitir-se a inquietude como valor maior. Do mais escondido ao humor. Pois, somente assim, um espetáculo teatral deixa de ser um momento, para, ao se somar ao seguinte, traçar as estru-
turas daquilo identificável como sendo a particularidade de uma linguagem. e ver a linguagem surgir é sempre um grande momento. Leva tempo ao outro, leva disponibili-
dade a nós. Um, dois, três trabalhos. ou melhor, assinaturas. e surgem os artistas por detrás do pensamento e o pensar feito estrutura propositiva. assim se dá o teatro, na persistência do convívio entre as duas partes. os espetáculos da omondÉ sustentam desde sempre o estado de provocação. ora pelo risível, pelo desenho patético que nos expõe, ora pelo mais profundo esconderijo de nossos temores. não importa. a pesquisa revela a prática de mergulhar no outro como alguém necessário para entender ao próprio artista. o teatro passa a ser o meio de verificar as próprias incertezas. Essa é a potência da companhia formada em 2009 e dirigida por Inez Viana: validar a experiência ao espectador e ao artista. São espetáculos complexos, ao próprio estilo carioca, cuja leveza se contrapõe ao risco fazendo da narrativa o meio de subverter a identificação quase sempre imediata ao real. Tudo o que compõe o contemporâneo lá está, contudo, nunca limitado à lógica da representação. omondÉ, ainda que jovem, em seus cinco anos, já revela aspectos diferenciais. Uma companhia que surge potente, inquieta e desinibida, no melhor sentido da palavra, sem exageros, sem abusos, e voltada ao uso do palco da maneira mais própria ao que pode o artista, sua consciência em ser igualmente um discurso de seu tempo. ruy filho
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Nas páginas anteriores, “os Mamutes” em foto de Jorge Etecheber. Á direita, “Nem mesmo todo oceano” pelas lentes de Juliana hilal.
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Cena de “Nem mesmo todo oceano”, com texto de Alcione Araújo (2013).
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Cenas de “As Conchambranças de Quaderna”, de 2009, com texto de Ariano Suassuna e estreia da direção de inez Viana. fotos de Alvaro Milton e Carlos Cabéra (á direita).
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Com texto de Jô Bilac, os atores da Cia. omondé em cena de “os Mamutes” (2011), por foto de Jorge Etcheber.
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Cia OmondÉ surgiu em 2010, espontaneamente, por conta de um trabalho realizado no final do ano de 2009, para ficar apenas dois dias em cartaz. Mas o encontro foi tão potente e o desejo de continuar tão notório, que ela prosperou. E curiosamente, formou-se um grupo com atores vindos de várias regiões do Brasil, com uma imensa possibilidade de troca e a vontade de trabalhar junto. Eu já havia dirigido 8 peças dentro da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras - RJ), e queria aprofundar uma pesquisa sobre a ocupação e a precisão do ator no espaço vazio, a partir de um texto. Vieram outras referências como os trabalhos de dança-teatro de vários coreógrafos como o grego Dimitris Papaioannou, o francês Angelin Preljocaj, o belga Alain Platel, a mineira Denise Stultz, etc. Temos tido a preciosa parceria da produtora Claudia Marques, da Fabrica de Eventos, e atualmente, a Cia OmondÉ, além de mim, é formada, por 9 atores: um mineiro (Iano Salomão), um potiguar (Junior Dantas), um paraibano (Zé Wendell), um paranaense (Jefferson Schroeder) e cinco cariocas (Débora Lamm, Carolina Pismel, Juliane Bodini, Luis Antônio Fortes e Leonardo Brício). E a cada trabalho, meu desejo de continuar com eles só aumenta. iNEz ViANA CiA oMoNdÉ
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fotos de Carlos Cabéra do espetáculo “infância, Tiros e Plumas”, em mais uma parceria com Jô Bilac.
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o espetáculo “infância, Tiros e Plumas” (2015) comemora os cinco anos da companhia. Aqui, fotos de Carlos Cabéra.
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Cena de “infância, Tiros e Plumas”, em clique de Carlos Cabéra. No elenco, Carolina Pismel/ Karina ramil, debora lamm, leonardo Bricio, iano Salomão, Jefferson Schroeder, Juliane Bodini, Junior dantas, luis Antonio fortes e zé Wendell
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diĂĄlogo. x2
por ana carolina marinho e patrĂcia cividanes
des lo ca men tos Experimento III
o existir entre a partitura ea arquitetura
patrícia cividanes: Oi Carol! Vamos nessa? Perdoe o atrasinho. ana carolina marinho: Oi Pat! Sem problemas. Que lindo fazer contigo! pc: Bom, esta é minha estreia no X2 ... achando interessante! ac: Uau, que lindo! Bem vinda! pc: Merci !! Sabe, é algo muito muito raro, mas em certo momento do espetáculo, eu busquei um papelzinho na minha bolsa para escrever sobre ele. ac: e você chegou a escrever algo? pc: (achei um minúsculo, verde... está quase inteligível, mas... essa vontade foi incrível) escrevi tópicos apenas... coisas que as cenas me levaram a pensar. O que quer dizer que foi muito forte pra mim, pois sou uma pessoa de imagens e não de palavras. ac: rs. sei bem! às vezes, a impressão de que algo pode ser esquecido, ou escapar à lembrança me faz sempre ter um papelzinho e caneta na bolsa. então, Deslocamentos deve mesmo ter sido forte pra você. ele é pura imagem e força visual.
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pc: achei bem interessante o deslocamento das pessoas pelo espaço no início, pois alguns transitavam pelos três, outros, depois de transitarem, escolhiam um, ou não. Eu escolhi. E você? (transitavam pelas 3 duplas... 3 cantos). ac: Essa, inclusive, foi a minha primeira inquietação. O deslocamento estava todo em nós. Era o público que atribuía uma certa ansiedade àquilo tudo. pc: E foi engraçado, pois escolhi uma das duplas, sem saber muito o porque. Quando elas tiraram a máscara, vi que era uma bailarina que gosto muito, a Patrícia. Mesmo sem ver seu rosto, ela me aproximou. ac: Nós nos movimentávamos em um ritmo bem contrário à tudo que víamos. pc: Pois é. O nome condiz demais inclusive com a nossa situação, não? Quando todos sentaram, notava ainda que elas mudavam de posição e nós também. ac: que bacana isso. fui com a minha mãe. lembro do espanto dela cada vez que as
bailarinas tiravam as máscaras. ela achava que eram homens que estavam cobertos e que as mulheres eram as que estavam com as máscaras. pc: Achei esse momento muito instigante. Uma troca de pele, né? E a pele que estava por baixo era transparente, frágil. ac: inclusive, foi muito interessante a reação da minha mãe assim que chegamos. ela disse: minha filha, como faz? pc: também pensei nisso sobre homens e mulheres. O cabelo traz muito do feminino talvez. ac: sim! lembrei muito do filme “A pele que habito” do Almodovar. pc: Como faz é ótimo! ac: hahah pois é. ela ficou perplexa sem saber como agir. disse: movase. o legal é que na apresentação que eu fui, foram várias crianças e elas davam um tom incrível. porque elas estavam super curiosas. e quando se cansavam corriam para outro lugar. pc: Sim, me veio muito Almodovar sim! E algo que não sei se foi intencional, mas algumas poses me
lembravam poses de ensaios fotográficos de moda. (enlouqueci? rs). Mas este fato me trouxe um questionamento sobre padrões de beleza, por exemplo. Nossa, a reação de crianças deve transformar o espetáculo. Bom isso! ac: nem tinha pensado nisso, Pat. Mas faz sentido. Para mim, ficava sempre um incômodo com a forma. com o “belo”, com a “contemplação”. pc: E sobre homem e mulher, por fim era um corpo híbrido, não? Um novo corpo... uma fusão dos corpos... O que me refere também a questão de deformidade, claro. ac: sim! não é um corpo sem formas, mas um corpo fora da forma padrão. um corpo deformado.um corpo que não gera um sentido óbvio. pc: e essa deformidade pode ser física, mas também social. O “não se encaixar”. ac: e são deformações em trânsito. quando nos acostumamos a elas, ou quando as “desvendamos”, elas se modificam. precisamos sempre nos readaptar às novas formas.
pc: Perfeito. E o processo da moda, ou dos modismos é assim também, né? Pensei também sobre o cabelo estar pra fora, mas o rosto estar escondido. É forte esta imagem. Sobre o feminino como objeto ou vaidade. ac: sim. o feminino como expectativa! o cabelo era uma sugestão de feminino. pc: Expectativa é a palavra certa! ac: que se desvelava com a retirada da máscara. pc: o que ele deve ou deveria ser. ac: talvez por isso, minha mãe e eu tenhamos tido a impressão de que dentro tinha uma homem. porque não existia outro cabelo para fora daquela forma. pc: As culturas que escondem os rostos. As faces podem ser escondidas por burcas, por maquiagens, por plásticas... Sim, eu tive essa impressão também, provavelmente pelo mesmo motivo. No segundo momento, quando elas voltam a se vestir (ou quando pessoas as vestem outra
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vez) é interessante também mostrar o segredo, de como aquilo acontece. poderia ser redundante, mas não é. ac: de que tudo aquilo é só um experimento. até porque elas voltam a se mover com a rapidez do cotidiano em certos momentos. pc: é verdade. ac: tive a impressão a todo momento que aquilo não queria me iludir de nada. que ali ninguém estava tentando me enganar. tive a sensação de muita honestidade, sabe? de que tudo aquilo era uma experimentação do tempo, do deslocamento e da velocidade. pc: Sem efeito, nada gratuito. Concordo. E quando uma dupla volta para o figurino/casulo, e começam a moldá-las como esculturas... foi pra mim uma quebra boa. Me remeteu demais a Lygia Clark, por exemplo. Primeiro um bicho que troca de pele, depois um bicho escultural, manuseável. ac: Verdade! inclusive, tive um acesso de realidade rs quando aquele homem começou a moldar as duas mulheres no chão. tudo parecia tão feminino.
pc: E é um momento longo, não? Incomoda, no bom sentido.
ainda imóveis, como cadáveres, não? ac: rsrs
ac: até que ele entra, adentra e rompe essa ilusão. como se conceitos não devessem ter muito espaço ali, sabe? é difícil criar sentido, explicação. tudo ali era tão distante disso, né? pc: O tempo inteiro vão se quebrando os conceitos. E criando outros, na seqüência. ac: sim! tem um momento que eu aquieto, silencio dentro de mim, quase uma meditação, sabe? haha pc: Também, muito introspectivo, solitário. Foi engraçado, pois não fiquei ao lado do Ruy. Por coincidência, ou não, nos distanciamos. ac: nossa! fiquei o tempo todo colada na minha mãe. rs. tava olhando umas fotos do processo. ele aconteceu antes na Casa Modernista. E fiquei imaginando aqueles corpos nas piscinas vazias como nas fotos. achei tão forte também. pc: Algo por ser mulheres? Não, não vamos definir assim... muito raso! rsrs... Quando eles começam a puxar os corpos... elas
pc: Como empilhando corpos mortos, que nascem na sequência... Relação de vida e morte... mas saem ainda imóveis, como um natimorto. Mas o mágico e profundo em um espetáculo de imagens deste é isso - estou aqui, tentando construir definições (parece uma necessidade humana)... e qualquer um pode ver outras coisas naquelas imagens...
ConCEpção E DIrEção: Marta Soares CrIaDorES-IntérprEtES: Carolini Lucci, Isabel ramos, Martina Sarantopoulos, natália Mendonça, patrícia Bergantin e talita Mendonça, com a convidada Lia Mandelsberg FIgurInISta: anne Cerutti DESEnho DE SoM: Lívio tragtenberg ILuMInaDor: andré Boll
ac: elas se moviam super espremidas, com pouco espaço. enquanto nós que as observávamos podíamos percorrer todo o espaço. elas pareciam não ter tanto direito ao deslocamento. talvez aquilo que você disse sobre a sociedade que impõe limites, principalmente às mulheres. exato! pode ser tudo! nada impede que ali seja tudo! isso é incrível! pc: mas sentar num chão frio também não nos deixava confortáveis. Poltronas ali não fariam sentido, né? ac: voltando ao homem. talvez eu tenha me incomodado exatamente porque era um homem moldando as mulheres.
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pc: é, inevitável não fazer essa conexão machista ac: de jeito nenhum. inclusive as cadeiras que tinham, estavam escritas: reservada para as bailarinas. pois é. se fossem dois homens talvez tivesse ficado claro na hora o meu incômodo. mas só agora me dou conta que me incomodei com isso. com a sensação de um homem escolhendo os movimentos das mulheres. rs pc: O som também era algo que ajudava neste clima de incômodo positivo. Não trazia conforto. ac: sim. aquele som grave reverberava no corpo todo, não era? pc: Descolava pequenas partes do corpo... ac: e de repente se fazia silêncio. pc: Eu sei que aqui vai ficar um momento muito Barbara Heliodora versão do bem ...rs... mas amei o figurino! rs (fica de homenagem). no ponto, sem exagero, bem acabado ac: kkkkkkkk in memorian. pc: rsrsrsrs... total! Ah! Um detalhe quase clássico já (infelizmente)
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- uma mulher que não largava o celular!!! E eu ficava pensando: a pessoa entra para ver uma obra dessa, que não, não é fácil, e não larga a p* do celular??? afff.... (este detalhes sim um dia poderia ficar in memorian..rs). ac: kkkkkkkkkkk ps.: vi pessoas tirando selfies
com o espetáculo. pc: isso que não entendo do público, né? A porta estava aberta, nem constrangimento ao sair a pessoa passaria... Caraca! Selfie com o espetáculo é muito... e por falar em narcisismo ou em deformidades...rs... E apesar deste espetáculos de imagens terem me
trazido o desejo de escrever, também me deu uma louca vontade de fotografá-lo... mas como São João Caldas estava por lá clicando, nem me atreveria! rs. Imagens são poderosas... e Marta sabe fazer isso bem demais! ac: pior, Pat, que naquela disposição acho mais fácil as pessoas
falo demais! rs). Como estamos? Você é mais experiente aqui. ac: hahah acho que é isso, Pat! adorei! foi lindo! pc: Bom, muito bom!! Também adorei! Espero que Ruy goste, senão ele me corta! rs ac: kkkkkkkkk! pc: (mas aí vai dormir na lavanderia! rsrs) ac: KKKKKKKKKKK! pc: Que bom que rolou!!!
FOTOS: JOãO CALDAS
ac: siiiim! obrigada, Pat! é sempre tão bom. amei dialogar contigo. boa noite, querida. beijos imensos!
pegarem o celular - não concordo, claro! mas entendo que seja mais fácil do que em outras convenções. como se fosse o jeito de cada uma para atribuir um sentido àquela experiência. o público se sente super livre, inclusive para escolher o que quer. para dar as costas para a cena para poder ver outra.
pc: Estética é sempre algo que me conquista. ac: a mim também! a cena como um espanto visual! pc: verdade, concordo com a sua análise. Eu mesmo me senti livre para escrever. Em outras ocasiões não me sinto assim.
ac: rs pois é. pc: E a cena toda tão bem diagramada! Ah, eu deliro! rs ac: ah, que lindo! que bom que você começou o diálogos com algo que te provoca!
pc: (ah! e eu aqui, falando de corpo e padrões, logo depois de chegar da academia... hahaha... mas é para o colesterol!! rs). besos Carol!! Arrasou! Merci e boa noite!!! ac: olha só! e eu aqui lutando contra os novos vilões: o glúten e a lactose. beijos beijos! pc: ahhh, essa vida no século 21....rs. besos!!!
pc: Carol, já falamos demais? (eu sempre
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todo ouvido
feliPe experimentações do viver sons
d
evo ceder ao irresistível impulso da rasgação de seda? isso porque felipe é um parceiro de coração na vida e na criação com aquela Cia. de teatro. Nesse sentido, o músico talentoso, compositor inventivo e guitarrista virtuoso são predicados inequívocos de todos aqueles que de algum modo compartilharam com ele uma criação. Mas faço desse depoimento o exercício de pensar além. Para mim, a singularidade de felipe é de ser marcadamente um homem de teatro e talvez seja esse o ponto de partida para se pensar além. felipe conjuga uma charmosa introspecção, comum a muitos músicos, e uma poderosa força de ação, comum aos artistas do teatro. aprendi no convivio com ele um sentido renovado para o ato da escuta, não apenas em sua acepção musical, é claro, mas como ato de elaborar um campo receptivo capaz de me guiar intuitivamente na estranha polifonia de vozes e afetos inerente ao fazer teatral coletivo. a prática de felipe se constrói no dia a dia das salas de ensaio, numa observação atenta e troca delicada com os demais artistas do processo criativo, de modo que suas criações estão amalgamadas com a própria dramaturgia das peças. Pode-se pensar que sua obra propõe uma dramaturgia sonora capaz de tocar sensivelmente o público e dilatar o campo dos sentidos sem propriamente encerrar-se em significados. Felipe Storino: doce pessoa, artista brutal. Rasguei?
Pedro KosovsKi 88
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Autor, Diretor teAtrAl e Professor
foto de haroldo saboia fotos Naoko takahashi
Para conhecer uma das composiçþes de felipe, clique no botão acima
polĂtica da cultura por Claudia Taddei
Novos camiNhos para a gestĂŁo cultural
a
s Organizações Sociais de Cultura sur-
sua função social contribuindo de forma fundamen-
gem no Estado de São Paulo em 1998,
tal para o desenvolvimento de suas áreas artísti-
numa tentativa de dinamizar a gestão
cas: Cia SP de Dança e Osesp.
pública e repensar o papel do Estado,
Em termos de desenvolvimento institucional, a
da sociedade civil e da iniciativa pri-
Fundação Osesp talvez seja a Organização Social
vada em torno desse que continua sendo um dos
mais avançada de todo o sistema. Com um conselho
grandes desafios da sociedades contemporâneas:
ativo, composto por nomes de grande relevância
garantir os direitos culturais a todos cidadãos.
nos mais diversos setores e esferas da sociedade, a
Diante dos inúmeros modelos de gestão existen-
Osesp consegue colocar na mesa praticamente me-
tes no Brasil, o de contrato de gestão entre Estado
tade dos recursos necessários para a gestão da mais
e Organização Social (OS) tem se mostrado bastan-
importante orquestra do país, cabendo ao Estado
te eficiente no cumprimento de metas e busca de
apenas a outra metade.
resultados. O Estado se obriga a declarar e perse-
A Associação Pró-Dança, gestora da São Paulo
guir uma política ou uma ação programática com
Companhia de Dança é um exemplo de inovação
certa clareza. E um corpo gestor, envolvido por inú-
em gestão cultural. Além de propor um corpo de
meros agentes da sociedade civil, fica incumbido
reconhecida qualidade e com uma ampla capacida-
de apresentar resultados concretos, mensuráveis
de de desenvolvimento de repertório, possui uma
por metas e indicadores de eficiência e qualidade.
sólida ação programática na área educativa, em
O credo do modelo de gestão por OS prevê a rela-
memória, publicações e discussões públicas sobre
ção do Estado com uma organização pré-existente,
toda a temática que envolve a produção de dança
de comprovada relevância, envolvida e sustentada
no Brasil, bem como um trabalho ativo de pesquisa
idealmente por um conselho voluntário e indepen-
e feed back de público.
dente, de preferência formado por agentes sem
Percebemos por esses dois exemplos, como é
vínculos partidários, e um corpo gestor profissio-
fundamental que as Organizações Sociais de Cultu-
nal, com experiência e qualidade técnica. Um me-
ra compreendam seu papel para além do contrato
canismo capaz de separar a política propositiva da
de gestão, ampliando seu horizonte estratégico e
política partidária. Essa autonomia do conselho de
seu papel social.
administração é expressamente garantida pela Lei
Outro exemplo que podemos explorar com mais
de OS do Estado de São Paulo, mas não o é em mui-
profundidade, por falar de dentro da instituição,
tos Estados brasileiros.
na qual integro o Conselho, é sobre o Instituto Pen-
Como todo sistema, o modelo de OS corre o ris-
sarte, que diferentemente dos casos citados acima,
co de se transformar em um braço mecânico do go-
é uma instituição com quase 20 anos de atuação,
verno, podendo servir de reduto político-partidário,
mas com apenas 4 anos de estrada como OS. Apesar
como organizações criadas em ambientes contamina-
de debutar na gestão pública não estatal, o trajeto
dos por interesses privados ou agendas ideológicas.
percorrido foi de intensa aprendizagem.
Entre um extremo e outro, há aquelas criadas
O Pensarte desde 1998 desempenha um papel
com o objetivo explícito de gerir equipamentos
articulador e reflexivo sobre as inferências entre
públicos, mas nem por isso deixam de ser proposi-
mercado e setor cultural. Foi palco de discussão e
tivas, inovadoras, autônomas e institucionalmente
problematização de muitas pautas que entremea-
bem estruturadas. Em São Paulo temos dois exem-
vam a cena cultural brasileira. Ao se tornar OS no
plos interessantes de OSs que procuraram ampliar
final de 2011, a Instituição, que assumiu a gestão
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política da cultura
governo do estado de são paulo
rede pensarte instituto pensarte
corpos estáveis, equipamentos e estruturas
conselheiros
gestores
colaboradores
de importantes corpos estáveis de música e do Thea-
dos colaboradores; diálogos constantes em torno
tro São Pedro, passou por uma importante adapta-
de padrões e hábitos incorporados no modelo de
ção estrutural, ampliando sua capacidade gestora.
gestão; estar atento ao impacto gerado por suas
Sem perder de vista seu DNA e sua função so-
ações, buscando expandir os positivos e minimizar
cial de dialogar com suas redes e seus públicos,
os negativos; e, refletir constantemente sobre a re-
o Instituto realizou no segundo semestre de 2014
levância pública de suas ações.
um Seminário, que foi resultado de um trabalho
O modelo OS representou e representa um avanço
estratégico de codesign realizado ao longo do ano,
inquestionável na gestão pública não estatal da cul-
e propôs abrir para a sociedade seu modelo de ges-
tura; no entanto, é fundamental para sua própria ma-
tão convidando ainda outros parceiros e agentes a
nutenção e aprimoramento que se compreenda e atue
discutir modelos. Assim, buscou criar uma relação
não apenas como um braço gestor do governo, mas
aberta, direta e transparente de reflexão e crítica
como um organismo em si – interdependente de um
com seus públicos, para dentro e para fora, apro-
sistema de relações – se colocando como um aliado
fundando a compreensão sobre seu sistema de re-
no fortalecimento dos equipamentos culturais que ad-
lações interno: conselheiros, gestores e colabora-
ministra e procurando deixar um legado à sociedade.
dores e externo: governo, setor da música e Rede.
No caso do Instituto Pensarte, esse caldo tem um im-
Esse exercício exigiu do Pensarte a abertura de
portante compromisso com o desenvolvimento de todo
um espaço interno de pesquisa e investigação sobre
o setor cultural, o que faz com que se empenhe cada
seu modelo de gestão. Talvez mais do que um exer-
vez mais em tornar seus protocolos de gestão disponí-
cício, incorporar a investigação sobre a ação como
veis, torne sua administração cada vez mais transpa-
uma prática, um jeito de ser, também expresso em
rente - o Pensarte foi a primeira OS a implementar uma
seu manifesto: Somos uma organização dedicada à
política de compliance - e contribua, como parte de sua
pesquisa e desenvolvimento de modelos de gestão
missão, com uma rede de pessoas interessadas em dis-
cultural, integrando o bom uso de recursos econô-
cutir e desenvolver um novo paradigma de gestão públi-
micos, com qualidade nos processos artísticos e be-
ca de cultura, de maneira livre e participativa.
nefícios socioculturais. Para se tornar efetivo esse posicionamento im-
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Claudia Taddei
plica num grande e contínuo esforço no sentido de:
Gestora e empreendedora cultural
criar mecanismos internos, reais, de participação
Conselheira do Instituto Pensarte
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café duplo
sergio roveri & michelle ferreira _ Existe essa herança do pós-dramático que ninguém entendeu e continua fazendo. _ Eu nunca entendi. Sou dramático mesmo. por
ruy filho
fotos
patrícia cividanes
S
abíamos ser ele um cara divertido, com senso de humor fino e uma ironia no ponto certo da crítica sobre as coisas. Então, mandamos o convite. Ele não saberia com quem dividiria o café. Mesmo assim, aceitou. Sabíamos ser ela uma mulher de opiniões fortes e igualmente divertida. Mandamos o convite. Ela também não saberia com quem. E igualmente nos respondeu positivo. Arrumamos a casa, esperamos ansiosos e fizemos as apostas sobre quem chegaria primeiro. Era o terceito Café Duplo da Antro Positivo, e sim, os homens continuam invictos. Tudo bem, Michelle não demorou mais do que dois minutos. Mas Roveri chegou primeiro. Fato. A escolha por ambos não fora meramente pela diversão. Os dois são vozes presentes nos palcos brasileiros. Dois dos mais interessantes dramaturgos com produção em São Paulo e cada vez mais espalhados por aí. Basta pensar que Michelle, nesse instante, estreia uma peça em Curitiba. Roveri acaba de chegar do Salão de Livros de Paris, onde esteve como escritor brasileiro convidado. Como sempre, a proposta desse encontro não é pautada por perguntas. O importante é realmente o encontro. E descobrir o que ele provoca conversar. E assim foi. Nos dois minutos em que aguardávamos Michelle, falamos sobre o quão é interessante a cidade em dias de feriados. Roveri diz se sentir feliz em permanecer em São Paulo, ao invés de levar seis horas até o litoral. A campainha toca. Ela entra. Nem sei por que já estamos rindo. E, muito menos, o que nos levou a saber que seu gato se chama Pirulito, se não me confundo. Michelle é deliciosamente imprevisível, tal qual seus textos; enquanto Roveri é gentil e preciso, assim como sua escrita. Não haveria de ser diferente. Afinal, somos aquilo que escrevemos, acredito; e não somente escrevemos aquilo que somos. Entre comentários sobre nosso beagle que se foi, gatos e cachorros, é Michelle quem dá o resumo perfeito, enquanto começamos a comer e servir os cafés. Sim, o café de Roveri deu errado, acabou utilizando a colher
o que une Michelle e sérgio? Quem disser dramaturgia, quase acertou. Mas o amor pelo timão seria a melhor resposta. nas página anteriores, posam dentro de enesto, o fusca 1970 de Maria teresa cruz.
Michelle traz o telefone vermelho para o ensaio fotográfico. Elemento dramatúrgico para sérgio improvisar um divertido (e censurado) diálogo. com a qual mexi o pó e contaminou a xícara com os grãos crus, deve ter ficado horrível. Mas, como escrevi, é um homem gentil. Nada disse. Percebi ao final e fiquei com a sensação de lhe dever uma xícara decente. Enquanto isso, Patrícia e Michelle concluíam sobre os bichos. O resumo definitivo dava conta de justificar os motivos que levavam Michelle a gostar mais dos felinos. Cachorro é muito parecido com gente, diz; gato é superior, ele olha para a rua com quem diz haver uma vida lá fora. Entre goles e mastigadas, escolhas e animais, chegamos aos sonhos. A conversa fluía sem responsabilidade de criar sentidos, e isso era incrível. Resolvo muito dos meus problemas
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nos sonhos, falei. Patrícia, por sua vez, quando os recorda, tem os mais loucos e incompreensíveis. Michelle confessa buscar significados dos detalhes. Sonhou que morreu algumas vezes. Isso é bom, esclarece. Ainda que eu permaneça imaginando o quanto há nisso de assustador. Quem nunca manteve as sensações dos sonhos depois de acordado? Roveri concorda, ele influi no humor do dia. Mas alguém já criou em sonho? Sim, os dois. Já escre-
“estou sem vácuo da necessidade de criar” – michelle vi peças inteiras no sonho, diz Roveri. Entusiasmo-me. Sobrou algo depois? Não, nada. E rimos. O que parece ter sido a tônica recorrente no encontro. No meio de uma frase qualquer, talvez a maior revelação do dia. A patente. Exatamente, mais respeito com o cara. Afinal, o Cabo Roveri, para além de dramaturgo, é também um militar. Pausa. Recuperamo-nos. Escrever é um processo complexo. As palavras possuem a propriedade de ser simultaneamente informação e possibilidade. Aos poucos, a escrita escolhe uma metodologia ou sistematização que acabará por revelar a forma da pessoalidade da linguagem. Nos textos de Roveri percebe-se o acabamento e precisão exatamente na palavra em seu estado de informação. Isso não significa ser literal ou explicativo. Ao
o coração de Michelle e a leitura de cabeceira de sÊrgio.
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contrário. A informação bem construída sustenta um alto grau de subjetividade e oferece ao espectador uma dimensão humana mais evidente. Roveri constrói a dimensão poética da subjetividade, e isso é raro. Michelle, por sua vez, radicaliza a dimensão da possibilidade, e faz da informação difusa a ambiência perfeita para subverter a lógica comum e surpreender o espectador. Seus espetáculos investigam a complexidade não óbvia das dimensões psicológicas, sociais e culturais do indivíduo contemporâneo. Entender, então, o quanto o escrever se relaciona com essas interpretações em seus trabalhos é uma curiosidade natural. Roveri conta ter dificuldade em escrever, mas, quando começa uma nova peça, ainda que encomendada, torna seu o projeto. E se diverte, ao afirmar sempre se arrepender de aceitar qualquer encomenda, no começo do trabalho. Michelle escreve a partir do meio da tarde, e assume enrolar para iniciar. Diz ter o prazo como seu melhor amigo, sobretudo em trabalhos encomendados. Eu, surpreendendo a todos, confesso a minha questão sobre o quanto é chato escrever. Eles me olham, desconfiam. E acho que fingem me entender, já que certamente estariam se perguntando como, se eu passo o dia inteiro escrevendo por opção. Quem disse serem os artistas simples? Ambos tiveram diversos trabalhos encenados nos últimos anos. Seus nomes estão em espetáculos espalhados por várias salas, companhias diferentes e cidades. Essa é uma questão importante para Michelle, que se sente entediada muito rapidamente: o vácuo da necessidade de criar. Pois a quantidade
retratos casuais (ou não) de dois dramaturgos pela lente de patricia cividanes.
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“sempre me arrependo de aceitar um projeto. depois se torna meu” - roveri
e trabalho não lhe dá tempo de sentir tal vontade. Muitos são os artistas com quem converso com a mesma inquietação. O paradoxo é fazer teatro para conquistar a liberdade de criar, e o reconhecimento trazer ao artista uma demanda tão maior que seu desejo. Sem o tempo da vontade, o artista corre um risco de ser conduzido mais pelo mercado ao qual foi incluído, e não por suas inquietações. A constância produtiva traz ainda dois outros dilemas: respostas aos trabalhos e o desapego quando transferidos aos outros artistas. Só pergunto para quem é muito íntimo, responde Michelle. E se incomoda com a resposta acompanhada de jus-
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tificativa a cada frase. Perguntar para a pessoa errada pode acabar uma amizade. É como aplaudir de pé, é meio histérico, conclui. Em sua experiência, falta verdadeiramente respostas aos trabalhos. Roveri, diferentemente, vem da experiência de trabalhar também em jornal diário, onde define ser muito difícil administrar e entender todos os egos envolvidos na cadeia. No teatro, ego e paixões constroem um universo mágico e perigo-
Kubrick, Glauber, fusca e corinthians? por que n達o?
não se engane. estes óculos são de acervo pessoal de sérgio roveri.
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“a pessoa se justificando a cada frase é como aplaudir de pé, é meio histérico”- michelle
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“o teatro envolve ego e paixões, é um universo mágico e perigoso” – roveri so, por isso confia no diretor, entendendo ser a montagem de qualquer texto seu o momento de criação do outro. Assume ter tido surpresas boas e ruins, e muito mais boas. Por não dirigir, não saberia o que fazer no lugar do diretor, então é sempre uma surpresa descobrir como sua escrita pode provocar o outro. Michelle, atriz e diretora, vem somente do teatro. Afirma criar muito também no desenho da cena como imagem completa. Por isso, busca trazer na escrita um formato definitivo às ideias escolhidas, de modo a tornar a forma final inevitável de como a peça deve ser encenada. Mas nem sempre consegue atingir tal objetivo, e a criação do outro é sempre uma intervenção inevitável, por mais direcionada que sua escrita procure ser. Vocês ficam ansiosos para escrever? Sim, dizem. E descubro que por motivos diferentes. Ele, passa o dia pensando ter deixado em casa as crianças esperando. Ela, de estarem lá os monstros. Entre a metáfora lúdica infantil e o grotesco, muito se revela com clareza dos dois, e novamente rimos com as diferenças, enquanto Patrícia traz para a mesa uma torta gelada de chocolate. Há uma revolta geral em relação à presença do doce. Mas ninguém deixa de se servir de um bom pedaço, é claro. A conversa continua e surge o quanto a cidade de São Paulo é pouco aberta ao experimento da palavra. Michelle é
respeitar um texto significa verdadeiramente entendĂŞ-lo
Michelle segura suas luvas de Beisebal, usadas quando morou nos eua, e flerta com o cabo roveri, que posa sobre a moto.
enfática ao definir como ditadura da escrita colaborativa, quando começou a escrever. Uma herança do pós-dramático que ninguém entendeu e continua fazendo, diz. Eu nunca entendi, completa Roveri, sou dramático. Mesmo estando corretos em suas avaliações, o certo desvalorizar do dramaturgo solitário, como se lhe coubesse apenas a função de servir ao coletivo das criações conjuntas, Roveri e Michelle afirmaram suas vozes e fizeram de suas ideias a provocação de ser interessante o texto propositivo, autoral. Afinal, observada a produção recente, realmente quantos textos colaborativos superaram os pessoais? Fica como reflexão ao futuro à revista, quem sabe.
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É Sérgio quem traz a última história do encontro. Isso, enquanto nos preparamos para fazer as fotos em frente ao espelho, tradição aqui em casa, e Patrícia combina o ensaio fotográfico que aqui está. Pouparei os nomes por ser uma história real. A grande atriz perguntou à empregada se ela já havia ido ao teatro alguma vez. Não. Convidou-a, deixou-lhe os convites. Ela foi. Assistiu à montagem de um clássico de Shakespeare. No dia seguinte, a atriz lhe pergunta como foi. Ela gostou. E lhe devolve com outra, mas e hoje, o que acontece com a história? Isso não é novela, nada acontece. É apenas isso? Sim, todo dia igual. Credo, e a senhora sai de
casa pra fazer todo dia a mesma coisa? Sim. E eu que achava meu trabalho chato. Já eu, não posso reclamar. Foi um encontro divertido e uma conversa ótima. O que eu achei das fotos? Maluco que é maluco ou faz teatro ou é viciado em futebol. Imagina quando junta os dois. Michelle e Roveri, vocês são absolutamente sensacionais. A casa está sempre aberta à vocês. Já conhecem o endereço. É só aparecerem.
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“a gente nunca sai, e quando sai vê um artista só?, ela disse” - roveri
nossos agradecimento especiais ao fusca enesto, a incrível iluminadora Maria teresa cruz e a todo equipe de seu condomínio, ao irmão de sérgio, pelos recortes de jornais históricos, e também ao seu instrutor da academia, por disponibilizar a camisa do timão (não há tempo, mas o que vale é a intenção!).
obs
por kiko rieser
o negro, a mulher eo
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n
ão tentarei determinar o que é racismo, nem julgo conhecer para além da teoria e da observação a condição dos negros no Brasil, que só pode ser definida através do conhecimento empírico. Tampouco considero o teatro ou a arte em geral sagrados a ponto de serem inquestionáveis. Não acredito em nenhuma sacralização, nem mesmo dos movimentos sociais, cuja luta é, mais que bem-intencionada, fundamental. O artista tem tanta responsabilidade social quanto qualquer profissional formativo. Percepções, sensibilidades e visões de mundo moldam-se e modificam-se pelo ato artístico. Por isso, é mais que salutar o debate sobre o espetáculo “A mulher do trem”, do grupo Os Fofos Encenam. O reprovável é que ele substitua a apresentação da peça, em vez de complementá-la. Acusada de racismo por ter na foto de divulgação um ator com o rosto pintado de preto, a chamada blackface, uma apresentação da peça no Itaú Cultural acabou por ser cancelada, após dezenas de manifestantes do Movimento Negro se posicionarem na página do evento no Facebook. Alguns combinavam de ir à apresentação para tacar frutas podres nos atores, um enorme contingente chamava não só a obra mas também o grupo de racista e a esmagadora maioria pedia o cancelamento da sessão. Quase todos diziam não ter assistido ao espetáculo, que tem 12 anos de carreira. Sem exceção, declaravam que blackface implica racismo. O nome como ficou conhecido o signo surgiu nos EUA no século XIX e serviu durante décadas para alimentar a segregação racial. Como negros eram impedidos de pisar em palcos burgueses, acabavam representados por brancos, em tom de deboche e humilhação. É compreensível, portanto, que a foto tenha gerado desconfiança e repulsa na população negra. No entanto,
a História também prova que é falsa a máxima de que a blackface necessariamente denota racismo. Cito quatro, entre inúmeros outros exemplos, de quando o recurso foi usado para combater o racismo: – No vídeo de “A mão da limpeza”, canção de Gilberto Gil sobre a condição do negro no país, Chico Buarque usa blackface e Gil, whiteface, invertendo suas cores naturais. – No filme “Bamboozled”, Spike Lee, diretor negro, usa a blackface para ironizar seu significado histórico. À época do lançamento, Lee foi inicialmente acusado de racismo, porque a foto do cartaz trazia atores com o rosto pintado – caso bastante similar ao de agora. Quando o filme estreou, no entanto, se tornou símbolo de resistência negra. – No Cavalo Marinho, tradição secular da cultura popular nordestina, brancos pintam o rosto de preto, junto a negros, como forma de homenagear os escravos que criaram a dança para festejar seu único dia de folga do mês. – O musical londrino “The Scottsboro Boys” denuncia um caso verídico de 9 negros condenados por estuprar duas mulheres brancas, mesmo depois de elas admitirem ter inventado tudo. Em dado momento do espetáculo, os 9 atores negros fazem um número em que se caracterizam com blackface para que a barbárie da situação seja revelada de forma ainda mais cruel. Nenhum recurso ou signo é estanque. Todos podem ser ressignificados e subvertidos, dependendo do contexto e da operação que se faz sobre eles, assim como uma foto ou um trecho não têm significado autônomo, podendo inclusive, e talvez propositalmente, induzir a uma leitura diametralmente oposta àquela a que a obra se propõe. Em “A mulher do trem”, a personagem com o rosto pintado de preto na foto é representada
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por Carlos Ataíde, ator negro, o que traz outras camadas de significação e foge do uso histórico da blackface por brancos. Todos os personagens têm o rosto pintado, apresentando os tipos clássicos do circo-teatro na encenação desse vaudeville francês do século XIX. Os Fofos, em suas sete montagens de circo-teatro, buscaram explorar possibilidades de operação dos tipos e convenções dessa tradição popular sobre diferentes gêneros dramatúrgicos. Em “A mulher do trem” almejaram ironizar, em chave paródica própria da cena circense, os paradigmas do vaudeville, desde o telão pintado ao fundo, até os personagens e suas relações de poder. O objetivo autodeclarado era uma crítica ampla, a que não escapasse nenhum dos elementos que compõem a obra, o que não significa que a meta tenha sido cumprida e que o grupo não possa ter incorrido na reafirmação daquilo que pretendia combater, mas isso só pode ser confirmado ou rechaçado quando se assiste à peça. Desde que eclodiu a polêmica, contabilizei 7 negros que disseram ter visto o espetáculo. Uma garota se sentiu ofendida e saiu no meio da apresentação. Os outros, 5 homens e uma mulher, adoraram o trabalho e refutaram a existência de racismo ali. Ambas as reações são igualmente legítimas, nenhuma delas está certa ou errada. Se partirmos do pressuposto – correto – de que apenas os negros e as negras têm condições de determinar o que é racismo, como discernir quando os
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alvos do suposto preconceito divergem entre si? Como fica, ainda, quando um negro, como Carlos Ataíde, é um dos criadores do trabalho? Talvez seja necessário que a maioria dos negros considere algo racista para que possa então ser definido como ofensivo? É uma equação bastante complicada. No entanto, é certo que mesmo que haja uma única pessoa ofendida, ela deve ser ouvida e seu sentimento de injúria, levado em consideração – nesse sentido, vale frisar que os Fofos demoraram a propor o diálogo, colocando-se de início mais na defensiva do que em posição de escuta. Um crítico negro considerou “Preto no branco”, encenada no ano passado, uma peça racista. Sua exegese é possível e deve ser respeitada, assim como a de diversos negros que estiveram na plateia e apoiaram a peça. A obra, que se pretende um libelo contra o racismo e foi montada em diversos países com esse objetivo, é polissêmica, tem diversas camadas e permite múltiplas leituras. Se, ao sofrer racismo, um negro não é discriminado por ser um indivíduo, mas por ser negro, ou seja, um coletivo, ao ver uma obra de arte e refletir sobre ela, um espectador tem apenas a expressão de sua subjetividade, ainda que imbuída de sua experiência coletiva. Os negros e os brancos que assistiram à peça certamente foram impactados de maneira diferente, pois a fruição artística também é um ato de identificação; mas, para além disso, exerceram tal ou qual juízo porque analisaram e relacionaram de tal ou
qual maneira os aspectos que compõem a obra. O resultado de uma séria pesquisa artística tende a não ser um panfleto maniqueísta que tenta catequizar seu público, mas a resultar em infinitas possibilidades de apreciação. É mais complexo do que uma piada rasa e descaradamente preconceituosa como as de alguns humoristas de stand-up. Mas, se é fácil opor teatro de pesquisa a uma piada que independe de contexto, a coisa fica mais difícil de definir quando se trata de espetáculos de entretenimento que podem, em sua superficialidade, ter um significado unívoco. Como determinar o que é arte e o que não, e, portanto, o que pode ser lido de uma única forma e o que permite diferentes decodificações? A linha que traça essa fronteira é tênue. Quando se pede a proibição de uma peça de teatro por supostamente conter racismo, tendo a discordância de diversos negros, está-se pleiteando que uma interpretação seja tomada como verdade absoluta e irrevogável, com estatura suficiente para legislar sobre o direito de o outro exercer o seu trabalho. É ainda mais grave quando a acusação e o pedido de cerceamento vêm de quem não assistiu ao espetáculo. O julgamento prévio é exatamente o que embasou, ao longo da História, todo tipo de opressão. Quando se reproduz o mesmo método de quem oprime, ainda que com finalidade nobre, fica difícil defender a clássica, e ótima, frase que nos exorta a não confundir a reação do oprimido com a violência do opressor.
Ser oprimido, embora explique muita coisa, senão tudo, não é salvo conduto nem confere razão a qualquer tipo de atitude. Toda atividade humana é sujeita a erro, logo, tanto uma peça de teatro como um movimento social são passíveis de crítica, que, no entanto, só pode se dar sobre um objeto que antes tenha sido contemplado. Ter autocrítica, debater internamente as contradições e ouvir tudo que venha de fora de quem está disposto a dialogar e a desconstruir seus preconceitos são mais que salutar, necessários em qualquer movimento, porque o ativismo, assim como qualquer signo, não é, ou não deveria ser, estanque, automatista e monolítico. A visão de terceiros pode até ajudar a apontar problemas impossíveis de serem vistos de dentro, como costuma ser na esfera pessoal e em qualquer outra instância, inclusive no trabalho artístico – e isso não significa tirar o protagonismo de quem lhe é de direito, tampouco deixar a definição de racismo a cargo de quem não é por ele oprimido. Julgar sem conhecer os autos do processo é prática condenável, própria do totalitarismo, o que é ainda mais gravemente contraditório quando vem de quem é pré-julgado todo dia por cor de pele, orientação sexual, identidade de gênero, condição social ou deficiência. Que venha o debate. Que ambos os lados ouçam, abertos: só têm a ganhar. kiko rieser é dramaturgo e diretor e está produtor.
* o texto foi escrito antes do debate realizado no Itaú Cultural e do encontro com artistas no espaço dos Fofos.
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capa
hirs felipe
sch O criar como gesto de inquietação por
ruy filho
retratos
patrícia cividanes
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le não estava aqui. Sua reunião era nos Estados Unidos. Eu sim, em São Paulo, avançando a madrugada e aguardando o Skype informar sua chegada. A conversa com Felipe Hirsch havia começado há algum tempo. Foi em uma certa noite, dividindo as risadas e pensamentos em uma mesa de bar, o surgimento da certeza de que valeria ir mais à fundo. Então marcamos o momento, desmarcamos, remarcamos, e é também sobre as duas horas de conversa se tratar esse texto. Também, porque existe mais. Antes, a aproximação que me levou a acompanhar seu processo criativo, ao seu trabalho. O convívio durante as montagens dos espetáculos do projeto Puzzle fezme descobrir um artista muito mais interessante. E um gigantesco prazer ao mergulhar em parte de seus pensamentos. Agora, a tentativa de dar conta dessa incrível experiência de convívio. Então, que seja. Sinta-se à vontade para participar conosco desses momentos. omeçamos, por ele por lá, sobre as perspectivas de levar seus trabalhos a outros países. Felipe pondera uma série de aspectos que envolvem esse trânsito. Diferencia Europa e Estados Unidos, observando que, mesmo com a ida de espetáculos quais
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dirigiu para diversos países europeus, a América se coloca mais limitada aos próprios interesses. Significa dizer, então, não bastar ter um espetáculo com nível internacional, mas do quanto aquilo que nele é tratado ou retratado interessar para a confirmação dos valores locais. Dentre os trabalhos criados com a Sutil Cia. de Teatro, durante duas décadas como diretor artístico, possivelmente Avenida Dropsie, a partir da obra de Will Eisner, provoque um interesse mais direto, pois, para além de ser uma narrativa passada em Nova York, Eisner é, sem dúvida alguma, um dos grandes quadrinistas americanos. Mas acredita que Puzzle, de um modo muito particular, após as críticas positivas publicadas em importantes veículos internacionais, provoque igualmente interesse nos dois principais mercados fora do Brasil. de voltarmos à Sutil, perguntolhe mais sobre sua permanência aqui, o quanto isso lhe satisfez como estratégia. Felipe apresenta as outras questões complementando o pensamento sobre como funciona o mercado internacional. Meu teatro não era exatamente brasileiro, diz. A constatação refere-se ao fato do interesse dos outros mercados por certos cacoetes. De alguma maneira, por muito tempo buscou-se o estrangeirismo no teatro brasileiro; aquele representativo de especificidades
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Nas últimas páginas, imagens do espetáculo “puzzle (d)”, de 2014.
culturais, estéticas e dialéticas não tão presentes nos sistemas internacionais de produção. Se voltarmos ao tempo, a colocação de Felipe revela a contradição dos nossos sucessos fora de casa. Dois dos nossos maiores criadores, Antunes Filho e Zé Celso, saíram pelo mundo exatamente por seus trabalhos apresentarem certo exotismo quando comparados à hegemonia cultural europeia. Antunes, cujo marco internacional sem dúvida fora a montagem histórica de Macunaíma; Zé Celso em suas atuais tragicomediaorgias recheadas de antropofagia e devoração simbólica pode ser um exemplo recente. Ao olharmos a trajetória de Felipe, no entanto, tais característica realmente inexistem. Suas criações foram sempre menos regionais e localizáveis nas especificidades de uma única cultura. Por não ser reconhecido dentro da esfera “cultura brasileira”,
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escolhera se concentrar mesmo no Brasil. oje, no entanto, o teatro contemporâneo assumiu definitivamente a face da encenação como construção estética mais próxima às artes visuais. Ainda que o trabalho de Felipe mantenha uma presença forte no uso da estética, sobretudo a partir de sua relação criativa com Daniela Thomas, o mundo se coloca, enfim, como um espaço mais propício ao seu ruído. Puzzle, em sua tetralogia, apresenta um Brasil por vieses inovadores e radicalmente inesperados, sem necessitar em nenhum momento dos estereótipos da tal brasilidade. É sobre aqui e não somente como aqui. De algum modo, o projeto transforma a assinatura de Felipe em algo ainda mais particular, mesmo aos padrões
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de lá. Se não pela estética propriamente - uma vez que a maneira como a cena se coloca dialoga com uma tradição iniciada nos cabarés dadaístas e as performances futuristas, como ele próprio identificou certa vez, enquanto assistíamos o entrar do público em um dos seus espetáculos -, mas pela maneira como o discorrer sobre nós, incluindo aí cultura, política, história, religião, comportamento e arte, valida-se pela originalidade da apropriação e uso. Em resumo, sempre enfrentou um tipo de previsibilidade do mercado. Com a Sutil, o mercado em si era o Brasil. Com Puzzle, descobriu a possibilidade de enfrentar também o mercado internacional sem ser o exótico. Esse não se encaixar somado às muitas dificuldades técnicas envolvidas em seus trabalhos e as criações constantes que lhe exigem todo o tempo, tornam o sair de casa um processo ainda mais cuidadoso e responsável. Postura essa correta e infelizmente rara. onversar com Felipe sobre teatro é perceber seu convívio com a pluralidade contemporânea. É raro um diretor assistir a tantos espetáculos, frequentar círculos diversos, não permancer limitado aos seus. Não ele. Transitando pelos principais circuitos, conhece os nomes mais interessantes, discorre sobre suas produções recentes,
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Á direita, cena do espetáculo “avenida Dropsie”, de 2004.
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questiona as trajetórias, valida escolhas. E é com essa capacidade em enxergar a esfera maior do mercado que afirma haver pouca originalidade nos trabalhos contemporâneos. teatro era tão bacana que não era teatro, comenta. A dificuldade em ser encaixado na produção vigente lhe é comum, portanto, desde sempre. Contudo, reage, questionar o teatro é uma estupidez, pois é ele a base de formação daquilo que se processa em suas criações. Para ele, o teatro, ao ser sua principal expressão, é principalmente o mecanismo para pensar onde está. O problema em si é o determinar de fronteiras a todo instante. Explica suspeitar enormemente das fronteiras, dos limites. Interessa-lhe ainda mais quando as fronteiras estão nubladas. Por isso cria a partir de uma ideia como centro, sem expectativa de que dê certo. Começa sem saber por onde, acreditando na ideia em si, mais em sua profundidade do que resultado. Criar dessa maneira exige assumir serem as escolhas extremamente pessoais. Não há problema em lidar com isso. Meu trabalho é pessoal, mas não é solipsista, explica. Fazer teatro é um processo de salvação. A história de cada um é também a história de suas perdas, pode-se concluir. E Felipe diz o quanto não é fácil viver perdendo as coisas, os amigos, as essências da vida. De modo geral, perdemos o viver pequeno, ganhamos o grande, e você não para as coisas,
Meu
4% do teatro 96%
“COM NOSSO CÉREBRO, EXPLORAMOS
ESTÁ PARA SER DESCOBERTO”
Leonardo Medeiros em cena de “Não sobre amor”, de 2007 (no topo) e “O Livro de Itens do paciênte Estevão”, de 2012 (à direita). acima, no detalhe, cena de “O avarento”.
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responde, recuperando alguns preceitos de Søren Kierkegaard. maneira como Felipe coloca a criação como um estado pessoal de salvamento sugere um estado inerente ao movimento de criar em um profundo existir melancólico ao ser. Talvez por isso a perda seja-lhe a condição a ser superada, o instante de percepção da catástrofe humana inerente ao viver. Para o catalão François Tosquelles, a matriz catástrofe-criação revela uma função mais ampla no homem: a angústia. Todavia,
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não é ela o fim, mas a condição própria para um novo começo. Criar, portanto, conduz o homem a outro começo, ou a acreditar verdadeiramente construir para si acontecimentos, falsas estruturas de substituição às perdas incontroláveis. Mas, o que revela ser o acontecimento um desdobramento da melancolia? Gilles Deleuze explicou vivenciarmos no contemporâneo a inversão da relação entre o acontecimento e o possível. Enquanto outrora o possível dava lugar a um acontecimento, agora o acontecimento
é o que cria um possível. Para o pensador francês, o acontecimento tem o movimento de gerar uma nova existência, uma nova subjetividade. A consequência imediata a isso é a mutação subjetiva naquilo presente como cotidiano e tornado intolerável. Assim, o inimaginável se torna pensável, desejável, visível, conclui. Ao apontarmos essa reflexão à necessidade do teatro, qual comentara Felipe, verifica-se o quanto o criar torna-se para ele um gesto de tolerância às perdas inevitáveis reais. pessoalidade das escolhas pode ser a
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Imagem de “a Vida é cheia de Som & Fúria”, de 1999.
resposta a importância do gesto da criação, então. Felipe conta fazer sempre seus próprios projetos. Dois, entretanto, foram sugestões. A montagem de O Avarento, com Paulo Autran; Viver sem Tempos Mortos, com Fernanda Montenegro. Conhecera Paulo aos 14 anos, quando levou sua primeira peça para que lesse. Vinte anos se passaram até dirigí-lo. A dificuldade estava em encontrar um texto que satisfizesse o ator.
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Espetáculo “pterodátilos”, de 2010, em foto de carol Sachs.
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O clássico pareceu a possibilidade de provocar a ambos, e a montagem trouxe modernidade a Molière. Com Fernanda, foi diferente. Disse-lhe que gostaria de montar o que estivesse mais próximo à sua cabeceira. O espetáculo partiu das cartas de Simone de Beauvoir para Jean-Paul Sartre, em um instante em que Fernanda perdia Fernando Torres. Ao contrário da montagem com Paulo em cenário grandioso de Daniela Thomas, o trabalho com Fernanda, ensaiado sozinhos em quartos de hotéis, bastou-se somente com tablado e cadeira. De um modo ou outro, explica Felipe, é bonito quando estimula a criação, o juntar de ideias. Aprendeu a lidar com atores com eles, acessando a paixão mais infantil do fazer teatro, comenta. Desde então, percebeu a importância de acessar no outro algum tipo de jogo que sensorialmente desperte a memória que o levou a fazer teatro. Esse é o aspecto infantil da criação, a provocação do casual, desconhecido, emocional. Afinal, como lhe disse Fernanda, ela mesma tem mais de 80 e a cabeça de adolescente. comum entender a emoção como contraposição à consciência e dar ao infantil o sinônimo de lúdico. Contudo, David Lapoujade, a partir de estudos sobre as reflexões de Henri Bergson, explica o equívoco. Aponta o filósofo francês ser o nomeado por emoções, antes de tudo, os dados imediatos da consciência; ou seja, é a própria duração que em nós é emoção. Se toda experiência é emocional, como disse John Dewey, segundo explica Lapoujade, a emoção assegura a cada experiência sua própria especificidade, portanto é sempre
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acima, cena “O Livro de Itens do paciênte Estevão”, de 2012. No canto superior direito, a chuva de “avenida Dropsie”, de 2004.
imediatamente estética. Por conseguinte, os dados imediatos da consciência se colocam ao ser como sínteses vivas, estruturas de emoções esteticamente experienciadas, ou, em outras palavras, representações. Isso porque o homem só percebe a vida através das formas pelas quais sua inteligência a representa para ele, conclui. Nesse sentido, ao provocar no outro a emoção infantil da criação, Felipe está construindo acúmulos de dados imediatos, sínteses vivas, em sua consciência. A ideia de jogo, portanto, é mais a provocação e intromissão do que necessariamente o lúdico desprovido de interferência profunda.
É preciso
provocar conhecimentos diferentes se se quer representações novas. Jorge Albuquerque, relacionando arte e complexidade, explica ser o artista aquele diferente exatamente pelo tentar representações diversas do real, uma vez ser a arte, em sua potência de amplitude de experienciação de emoções, a forma refinada de conhecimento. A arte surge por precisarmos da complexidade frente ao real e não a conseguirmos diretamente por ele. Assim, a simplicidade, por exemplo, deixou de ser provável e o próprio reconhecimento do homem se torna um tanto mais obtuso.
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“SENTAR EM UMA CADEIRA DE TEATRO É UM
t
problema maravilhoso”
homas Nagel aponta um caminho para entendermos um pouco mais. O homem reconhece perceber e pensar o mundo por uma perspectiva marcada por suas disposições como membros individuais de uma espécie. E toda instância de reconhecimento conduz à percepção de uma categoria; nesse caso, a da própria subjetividade. Pela arte, seguindo o pensamento proposto, confronta-se o real com a possibilidade de outras subjetividades. Reconhecer, então, é um impulso objetivo, a percepção de ser possível obter uma compreensão ilimitada, emoções ilimitadas. E, para tanto, experiências estéticas são os mecanismos fundamentais. , pois a linguagem desenvolvida por Felipe sempre foi e continua radical e estruturalmente estética, imagética. O teatro não é para ele necessariamente o meio para investigar uma ideia, mas é possível afirmar ser um dos recursos que mais o atrai esteticamente nessa investigação. Então, o teatro é consequente a um interesse, nunca o ordinário. Prova dessa disposição é a imensa variação de Felipe no trânsito por outras linguagens e expressões. Ópera, cinema, rádio, minissérie para televisão, colunas para jornal, curador de livro, show. Se fosse muito pragmático, diz, seria limitador. E, dentre as linguagens
trago isso
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experimentadas, confessa que gostaria de filmar mais. Esses anos todos no teatro construíram uma maneira propositiva de ser também no cinema. Vai para o set de filmagem sem roteiro, explica. Permite-se descobrir durante a própria criação. No entanto, a diferença está no encantamento trazido pela cerimônia cinematográfica ao processo. Sem isso, pouco lhe interessa se envolver. Exemplo são os musicais. Nos últimos anos tem sido sistematicamente convidado para dirigir as montagens brasileiras, principalmente pelas especificidades de suas encenações. Contudo, são espetáculos voltados às performances dos atores, não pelas ideias, e, sobretudo, pela vaidade do performer. Não é a linguagem musical em si o desinteressante, explica acrescentando ter vontade de em algum momento a experimentar, mas não no formato como se dá pelo mercado. ssa consciência se fez ao tempo. Durante os vinte anos da Sutil, desde o surgimento da companhia em Curitiba, fora muito controlador estética e emocionalmente sobre os projetos realizados, explica. Chegou a adoecer, conta, frente ao pânico e depressão de perder o controle e se expor ao caos. Após os trabalhos mais recentes, sobretudo em Puzzle, compreendeu a importância de jogar com os riscos e provocar. Em Puzzle (d), por exemplo, o
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Imagems de “avenida Dropsie”, de 2004.
quarto e mais recente espetáculo, havia a presença e interferência de um convidado diferente, implicando em imprevisibilidade, já que invariavelmente a mera presença induzia o trabalho a se valer de condições e emoções singulares a cada apresentação. Pergunto-lhe sobre como deixar o mesmo ocorrer em uma ópera, visto ser ela muito mais rígida em estrutura e processo. Felipe revela que as cinco direções anteriores, sendo sua preferida O Castelo do BarbaAzul, de Béla Bartók, realmente não serão iguais as próximas. As novas estarão sob os aspectos do risco e provocação, inevitavelmente, confirma. Sobre de que compositor gostaria de dirigir uma ópera,
a resposta é direta, Arthur de Faria, com quem tem realizado diversos trabalhos. Vê nele um artista diferencial, cuja pesquisa inclui do interesse pela música atonal a Radamés Gnatalli e Villa-Lobos. Gostaria de provocá-lo à ópera, comenta se divertindo.
característica
em muitos trabalhos de Felipe, a literatura é mais utilizada para a construção de narrativas do que a dramaturgia. Ele começou a fazer teatro porque lia, explica. Ao ter contato com Dias Felizes e Esperando Godot, de Samuel Beckett, o teatro se revelou possibilidade de experimentar ideias. Descreve sua
juventude como um instante disléxico complementar, onde convivia com as literaturas de Dostoiévski e Camus, por exemplo, e também com a cena punk rock e mesmo o samba marginal carioca. A ampla gama de interesse, e quem convive minimamente com Felipe sabe de seu profundo interesse pela música, por exemplo, ampliou-se cada vez mais para a literatura. Na virada do século chegou a ler as peças produzidos pela British Council e a investigar a dramaturgia anglo-saxônica. Contudo, explica, se entediou com as temporadas redundantes alemã, francesa e inglesa sempre retornando ou se utilizando dos mesmos dramaturgos. Assim, voltar
à literatura lhe foi um caminho natural, passando, com o tempo, a se interessar mais pelas pérolas brasileiras, como as descreve, estendendo cada vez aos latinoamericanos. tetralogia de Puzzle radicaliza sua experiência no uso da literatura. Convidado para criar um espetáculo inédito para a Feira de Livros de Frankfurt, aonde o Brasil seria homenageado, o argumento para a literatura ser a fricção do teatro se justificou plenamente. A ideia já existia, assume. Não a
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cena de “a Memória da Água”, de 2001. No detalhe, acima, “Temporada de Gripe”, de 2003, em foto de João caldas.
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liberdade NO BRASIL PORqUE “A ARTE TEM
mercado” NãO EXISTE UM
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Frames da série criada para MTV “Meninas sem Qualidades”e do filme Insolação.
oportunidade. Os quatro espetáculos reúnem grandes nomes da literatura brasileira e latina e colocam pela exposição do texto, via a fala dos atores, uma dimensão de urgência surpreendente. escreveu que a literatura, ao rachar as palavras, libera Visões e Audições. Isso seria propiciar ao sujeito um existir fora da linguagem, e que, no entanto, unicamente através dela pode emergir. Para o filósofo, a imagem decorrente da apropriação da palavra desafia a linguagem que nos aprisiona e sufoca. Pois é ela, a linguagem, repleta de cálculos, lembranças, histórias, significações, intenções, hábitos. Lembrando o que fora trazido aqui de Lapoujade de ser a estética o espaço da emoção, é possível, então, estabelecermos a correlação entre os dois pensadores. Nessa aproximação, a literatura, ao se tornar livre de sua estrutura de linguagem, pode igualmente provocar às palavras a potência de construir emoções estéticas, e não literais. Portanto, assim como se apropria da literatura e da palavra, Felipe realiza o processo de tornar a estética o desafio em atingir a extrema determinação do indefinido como intensidade pura, qual aponta Deleuze.
Deleuze
novo é sempre algo que lhe interessa. Por isso faz sentido quando diz falar para o jovem, sobre e na forma. Todavia, como lidar com uma juventude cada vez menos interessada na leitura profunda? Felipe inicia a reflexão afirmando, por exemplo, gostar de fazer palestras e não workshop, por gostar de conversar. Tratam disso, então, seus espetáculos. Meios de conversar com os espectadores sobre determinadas ideias. Mas reconhece um distanciamento no quanto esse diálogo pode existir, em uma geração cada vez menos interessada pela leitura, conhecimento, informação e imaginação. Para ele, a situação é mais complexa quando se trata dos próprios jovens artistas. A escola de teatro deveria ensinar o artista a aprender a ler, afirma. O problema está no fato dos jovens terem vergonha por não saberem ler, esconderem a dificuldade, optando, frente à dificuldade natural de toda leitura, pela falta de interesse. Ou seja, não se trata de não haver interesse, mas de não saber como, então finge-se a falta de interesse. A gente vive, em muitos aspectos, hoje, desses cenários falsos. E dizer ser isso uma exclusividade de uma geração, é um equívoco. A questão é mais cultural, conclui.
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“gOSTO DOS SE DISPõEM ARTISTAS qUE AOS
s
abismos ”
em a perspectiva da ampliação da consciência, o artista acaba limitado a replicar os processos com quais possui alguma empatia. O que não se percebe, explica, é a diferença do Brasil em relação aos outros mercados. Nos Estados Unidos, por exemplo, o artista teria a obrigação e condição de seu trabalho atingir determinados objetivos desenhados pelo mercado. Aqui, não. Podemos jogar com o fazer de modo mais imprevisível. Pode-se fazer tudo e exatamente porque o país está todo errado. A arte tem liberdade no Brasil por não ter verdadeiramente um mercado, diz. está, possivelmente, no uso ideológico que se busca empregar à construção desse mercado local. Thomas Nagel questiona a aproximação ao diferenciar realismo e idealismo. Segundo sua teoria à cerca da natureza da realidade e nosso lugar na realidade, reconhecer nossa subjetividade como instância de um fenômeno revela nossa relação com o mundo, nossa mera inserção, na qual somos parte do mundo e com o qual travamos qualquer outra relação mais específica. O dilmea é não estarmos limitados a uma única subjetividade. Compreendendo a multiplicidade dos pontos de vistas subjetivos, Nagel aponta para o que denominou por torção paradoxal. E conclui sermos partes integrais da realidade, mas a compreensão dessa relação é mais
o dilema
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informativa sobre nós mesmos e o mundo, do que necessariamente o meio para intervir sobre ela. O realismo é onde e como estamos e nosso reconhecimento disso; ideologia é a tentativa de reformar esse existir, o que, paradoxalmente, é impossível, pois mesmo a ação sobre a realidade ocorre apenas nas permissões oferecidas por ela própria. teatro de Felipe Hirsch enfrenta tanto a condição de existir ao real, superando a imagem na aproximação emocional de uma experiência única e inesperada, quanto a ideologia determinista que implica à arte um papel específico. Escapa aos dois por se valer principalmente do teatro como fim a uma ideia. E só é possível acumular tantas ideias durante o tempo se estiver em convívio incessante e criticamente com ambas as relações. Um artista, antes de diretor. pós duas horas e mais um pouco de conversa, era preciso terminar. A madrugada avançava o dia seguinte, já fazia tempo. Mas a vontade de novos encontros permanece. Assim como a mesa do bar provocou o desejo que nos trouxe a produzir esse encontro, este provoca o desejar de novas mesas de bar. E que venham. Conversar com Felipe é estar mais perto do mundo sem tantas certezas prévias e mascaramentos. E isso tem sido inacreditavelmente incrível e delicioso.
o
A
cena da ópera “O castelo do Barba azul”, de 2006.
vaidade
“EU NAO vOU fAzER TEATRO PARA
DE NINgUÉM, NEM A MINhA”
ca r t a a b e r t a remetente destinatário
Ruy Filho
Fernando Haddad
oi
, Fernando, tudo bem? Você não se lembrará de mim, com certeza. Nós nos conhecemos durante um almoço e, na época, você ainda nem era candidato. Faz tempo, e como vida de político é dia-a-dia, aquele dia já era. Tudo bem. Sei como é isso. Sou conhecido entre meus amigos também pela falta de memória. Agora, o senhor é o prefeito e tudo acaba tomando outro tamanho. E é por isso que te escrevo. Talvez o senhor nem saiba, o que também não é problema algum. Eu tenho uma revista digital sobre teatro. Bom, esqueça. Se o senhor está lendo esta carta, só pode ser via a revista. Fui previsível, perdoe. Mas, os assuntos, claro, são exatamente as questões da cultura e do teatro, incluindo nossa cidade. Gosto de dizer que ela é nossa, e não sou muito afeito ao políticos, sobretudo nesse instante, então isso é muita coisa, entende? Bom, o que quero lhe contar, tem a ver com o que era uma sensação minha. E foi por conta de uma desconfiança que, meses atrás, convidei uma série de artistas e gestores de espaços teatrais para participarem da
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campanha Deixem o espaço do teatro em paz. Será que o senhor a viu por aí? É aquela com as pessoas fotografadas em uma parede feita com fita-zebrada. Então, esse foi o primeiro momento, alertar as pessoas que algo estaria para acontecer. E não é que aconteceu? Tô falando das companhias que perderam suas sedes por conta da especulação imobiliária e coisa e tal. Esse era o momento um, alertar e tornar público. Foi incrível. Tivemos que fazer novas fotos pra incluir a imensa quantidade de artistas que pediram pra participar. E acabou que a campanha se espalhou também para o Rio e Belo Horizonte. Aí o senhor chegou, o Juca ainda era Secretário, a classe se mobilizou mais ainda junto ao barulho provocado na imprensa e pronto, passamos para o segundo nível da coisa, o reconhecimento das companhias como bens imateriais. Caramba, que coisa incrível e importante pra todos nós. Mas, pensando na realidade em si, resolveu o que mesmo? Nada. Os grupos dançaram, os espaços sumiram e ficou claro que o imaterial agora vai bem, mas é preciso também cuidar do material. Aí, surpresa geral
de novo. Conseguir aprovar a isenção do IPTU pros teatros de rua, isso é maravilhoso. Porra, muito bom. O bacana é os artistas poderem utilizar essa grana para investir em seus trabalhos, em melhorias nos espaços, quitar suas dívidas ou partes delas. Foda de bom, esse terceiro momento. Opa, desculpa aí o palavreado. Essas cartas são assim, meio soltas e divertidas mesmo. Poder-lhe-ia escrever corretamente, como bem pede a educação, mas assim é mais legal de bom mesmo, não? Tudo legal, até aqui. Só que tem um porém. Eu sei, parece que eu nunca me dou por satisfeito. O senhor não será o primeiro a me achar um pentelho. O problema é a importância imaterial e a isenção serem perfeitas aos grupos, mas não garantirem que os proprietários dos espaços ainda prefiram mantê-los onde estão. Tem um quarto passo, percebe? Seduzir é a palavra certa. Conseguir seduzir o proprietário a querer a permanência do grupo. Dar a ele vantagens quando isso acontecer. Depende de lei, depende de vontade política. E é exatamente nessa parte que conto com o senhor, ou melhor, contamos. Ajuda aí a
fazer uma pressão, pra coisa toda dar certo. E pode dar. E será histórico. Imagina o seguinte quadro: grupos valorizados, auxílio para manutenção e sedução de proprietários dos espaços. Perfeito, não, prefeito? Ok, não resisti ao trocadilho. Acho que ainda não. Ih, lá vem o cara outra vez... Seguinte. Precisamos de outros passos ainda, o quinto e o sexto. O quinto e urgente é rever as lógicas e estruturas dos editais municipais de financiamento ao teatro. É sério. As pessoas reclamam quando eu falo sobre isso, dizem que sou contra. Não. O sistema é fundamental, óbvio, mas tá viciado e precisa ser revisto ponto por ponto. Nem se trata de acusar ninguém, porque isso seria olhar as coisas apenas circunstancialmente. Deixo isso pro Ministério Público. É preciso rever a participatividade junto às comissões de setores diretamente interessados, os vínculos disfarçados entre jurados e inscritos, parar com essa ideia de contrapartida que não serve pra nada (já que a arte é a contrapartida em si), e precisa muito aumentar a grana. Talvez, nem mesmo pra ter mais selecionados, mas pra dar mais estrutura aos vencedores. Pen-
sa, que tal maior verba e exigir um plano de sustentabilidade pra médio prazo? Imagina em dez anos, cerca de quinze ou vinte das principais companhias de teatro da cidade independentes dos sistemas de financiamento e maior vínculo estrutural com a cidade e o município? Agora, imagina em vinte anos, em trinta? Que cidade do mundo teria cinquenta grupos criando uma rede como essa? Sei lá como, preciso pensar mais no assunto. Na verdade, até tenho umas ideias, mas daria um carta imensa. Podemos sentar e pensar nisso juntos, sem problema, se te interessar. Por último, o passo final. Não dá pra falar em revisar os sistemas de financiamento e melhorá-los sem olhá-los em sua totalidade. Então, o gesto mais radical e inevitável. Tá mais do que na hora de uma imensa auditoria nessas prestações de contas e uso dos recursos públicos, não acha? O país está vivenciando um momento em que gritamos cada vez mais alto pelo fim da corrupção, por transparência etc e tal. E esse é um país onde os artistas têm muita presença na formação do imaginário popular. Então, tudo a ver. Porque os artistas acabam sendo exemplos muito rapidamente. Se
começar a mexer em coisas por aí é claro que uma ou outra descoberta vai surgir. E não é exatamente isso que todos queremos? Só que pra isso, Fernando (posso te chamar assim?), precisamos de um cara que enfrente o dilema, que tope a empreitada. Não vai ser fácil. Nem imagino o tamanho da bagunça que uma auditoria geral poderá gerar. Mas é melhor isso, não? Meio “doa a quem doer”? É, muitos amigos meus ficarão chateados com essa minha proposta, mas fazer o quê? A vida é isso. Escolhas. E prefeito, quero deixar claro uma última coisa, eu tô aqui, vou contigo nessa, enfrento junto o que aparecer. É só o senhor querer. Tô dentro. E espero muito que o senhor também. Aí sim o teatro de São Paulo vai se tornar a história de uma revolução radical. E arrisco dizer, pelo mundo afora. Legal, vai, espalhar o nome por todo canto desse jeito? Bom, qualquer coisa me liga ou escreve um email, fica à vontade. Podemos marcar um café aí na prefeitura, ou na sala do Secretário, que, aliás, caramba, parabéns, Nabil foi uma escolha brilhante. A cidade merece o cara faz tempo. Então, é isso. Tô aí. Pronto pro que quiser. É nóis. Vamos mudar essa porra pra melhor.
diĂĄlogo. x2
por claucio andrĂŠ e renaTa adMiral
ri car do iii canetas, quadro branco e o horror rascunhado no poder
cláucio andré: Tenho motivos para curtir e motivos para questionar. Isso é um aspecto de escolhas que têm suas consequências, pro bem ou pro mal. renata admiral: Então comecemos pelos pontos positivos. ca: Ou melhor: para eu curtir ou para eu descurtir. (sem bem e mal - estou me policiando nos
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termos.) O que eu vejo de positivo é que a montagem desmistifica. Gosto de abordagens que nos aproximam dos autores clássicos. Então, nesse sentido, sem cair na qualidade de interpretação ou de encenação, a proposta amacia a obra, sem deixar de se preocupar com a qualidade. O que acha? ra: Gosto também desta proposta....
eu veria como Shakespeare para os “leigos”. Entre aspas, porque imagino que quem leu a obra já tenha uma perspectiva da peça. Acho importante o que eu ouvi de muitas pessoas: “agora eu entendi Ricardo III”.
suas nuances, tem musicalidade e é de um entendimento perfeito....
ca: Tipo isso, uma aula de Ricardo III, a peça.
ca: Então nisso entra a tal questão do épico, mais especificamente do comentado, da quebra da ilusão e tal (esses termos que enchem o saco no estudo do teatro épico, rs).
ra: Isso mesmo. O texto é muito bem colocado, com
ra: e poderia ser utilizado tanto para a forma didática
fOTO nIl cAnInÉ
quanto para a forma clássica.. (ainda sobre o texto). Tem muito Brecht aí né... na questão da quebra, da interatividade....o teatro como forma de aprendizado.
ra: então... eu gosto... mas me dispersa um pouco sabia... a luz bate no quadro branco e perdemos nuances de sombras... da semi luz....
ca: Mas ele também se utiliza de “recursos extra-professor” e “extra-texto”, por usar quadro branco, canetas como objeto cênico etc, quando esses recursos aliviam a carga da narrativa.
ca: É uma luz quase crua, né. ra: não consigo embarcar na história... me deixar levar.... nem acho que essa é a proposta.
ca: É. Então. Ganhase na narrativa, mas perde-se (acho) na «catarse», rs. ra: Apesar de ser rico em milhões de coisas.... acaba me passando algo frio, não me remete a imagens, não vejo os lugares, as personagens... não enxergo nada... enxergo o trabalho do ator, sim, não estou nem questionando isso.
ca: Então, mas acho que isso é o objetivo. É um trato menos mitificante do Shakespeare. Porque são escolhas de direção que planificam, infografiza uma história complexa, e, por consequência, perdese a real dimensão dos personagens entre si. O ator de fato faz esse trabalho homérico, claro, também não questiono.
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ra: ok... rs. mas vamos lá... todos tem amado o espetáculo, você percebe que a plateia se diverte.... gosta da parte cômica quando há a quebra.... ca: Sim. ra: acho que a direção e o ator atingem o objetivo que é essa aproximação.... acho que atrai um público não somente de teatro... mas principalmente aqueles que querem ter, nem que seja um primeiro contato com Shakespeare... por ser um clássico. para o ator em si... imagino que seja uma aula de interpretação... necessária. ca: Sim, eu até recomendei pros meus alunos que querem ver umas coisas de Shakespeare, hehe. Sim, dentro de um gênero, é um trabalho bastante completo de interpretação. A plateia, no seu dia, interagiu bastante, ou ficou mais tímida? Teve uns saidinhos? ra: A plateia no dia deu muita risada, interagiu sim... o público gosta de se sentir participativo dentro de um espetáculo assim, de saber que está
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contribuindo de alguma forma...de fazer parte. Acho que isso agrega e muito ao espetáculo...o torna mais popular... Ao mesmo tempo que eu vejo a presença do clássico ali dentro... de alguma forma. Sejam nos gestos grandiosos e marcados da realeza, dos cumprimentos, das reverências... ali vejo um teatrão. ca: Hum... depende. O quão realmente essas pessoas estão interagindo? no meu dia elas apenas reagiram a estímulos. Teve um ou outro que arriscou algo diferente, mas não saiu da torcida comandada. ra: Ah mas eu considero o reagir com interagir... e ele conquistou quase 100% da plateia. Eu particularmente não me atraio para participar junto... gosto de observar. Tem a ver com a escolha do espaço. Acho que ali, no auditório do Sesc pinheiros, o ator fica bem pertinho do público e facilita o chamamento. Mas, sim, você tem razão, pensando ou reagindo, público se envolve. eles atingem o objetivo... e na verdade... vejo o público ter uma
certa empatia pelo Ricardo.... quase uma torcida pela próxima morte.... ca: Hehehe, pode crer. A galera curte o Ricardo III. (Estranho, não?) ra: não sei se chega a ser um riso de nervoso. mas que todo mundo adora quando ele aparece... ahhhh adora.... ca: acho que, por ser épico, ninguém sente de fato o peso da tragédia. ra: é que o afastamento é tão grande.... o deslocamento da obra clássica para a didática... que o público não se dá conta da tragédia que está ocorrendo ali...... e os pontos altíssimos da peça.... o personagem do norte e do sul.... quer algo mais cativante? ca: não entendi sua colocação. Você quer dizer que, por tirar o peso da tragédia, o personagem fica cativante? (tô realente verificando se foi isso mesmo). ra: calma... cativante os personagens do sul e norte... com os sotaques
característicos e sim, acho que o afastamento do clássico é tão grande.... que durante a «aula» eu sinto como se o público não se dá conta da tragédia que está ocorrendo ai.... e acaba simpatizando com o Ricardo. ca: ah tá, saquei. Tendo a concordar. Acho que dentro da proposta deles, funciona. Só que a proposta deles é uma ideia que valoriza bastante o ator, e menos a tragédia. São escolhas. Também não quero dizer que é bom ou ruim. Acho que peças assim são necessárias para não deixar esses clássicos sempre no âmbito dos inatingíveis. ra: concordo plenamente, é necessária ca: Só uma coisa. na interpretação, você arrisca falar de algo? Escolhas, movimentação... ra: Em alguns momentos, alguns personagens me confundiam.... e eu ficava muito atenta se a mão estaria ainda dobrada.... esses detalhes... para perceber a sutileza da troca. é aquilo que
Autor: William Shakespeare
direção MuSicAl: Marcelo Alonso Neves
AdAptAção: Gustavo Gasparani e Sergio Módena
direção de MoviMeNto: Marcia rubin
direção: Sergio Módena
ceNário: Aurora dos campos
Ator: Gustavo Gasparani
FiGuriNo: Marcelo olinto iluMiNAção: tomás ribas
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ca: isso que você falou de diferenciar os personagens, é o maior desafio do ator. Principalmente para diferenciar os personagens médios entre si, e as diversas rainhas. Acho que ele poderia explorar ainda mais a questão dos sotaques, para não depender só dos gestos. Porque algumas mudanças de personagens se perdiam, e acabavam num tom farsesco, algumas vezes.
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ca: Sabe, eu curto muito Shakespeare porque eu acho que ele toca em pontos humanos que não mudam na essência, apenas na roupagem. Só que o cara escreveu em versos (o que duplica sua genialidade) para um público que, mesmo iletrado, tinha muito da cultura oral e de contações de histórias. Então, nesse sentido, não vejo problema algum de uma cia. fazer um Shakespeare mais didático nessa forma de contação de história, pois tem ainda a ver. E reitero que acho importante essas abordagens porque, repetindo, é
um autor que, mesmo morto, diz muito, mas diz por vias que hoje temos dificuldade. É um puta trampo “reduzir” Shakespeare sem reduzir a essência do Shakespeare. (não estou dizendo que Ricardo III consegue; mas acho que ele escolhe uma linha e a abraça, o que é mérito). concordas? Discordas? Acrescentas? ra: Eu tive quase uma missão impossível hoje né, falar de Shakespeare contigo. Por mais que eu tenha todos os livros, os livros da Barbara Heliodora que nos traz um aprofundamento inenarrável, nunca
interpretei uma obra deste autor, então imagino que meu «aprofundamento», neste caso, seja bem raso, quase superficial. concordo com seus apontamentos, incluso obra e autor, acho sim que deva ser revisitado sempre, de formas ainda não inventadas até, e sim, a proposta deste espetáculo, da forma como foi apresentado tem todos os seus méritos, chega a ser quase uma inclusão de Shakespeare na vida das pessoas, uma cultura que deve existir. Mérito total para todos os envolvidos.
foTos:divulGação
falei acima... alguns gestos me remetiam a um teatrão... os grandes gestos. A movimentação não me agrada tanto na verdade.
cia. de teatro
ino mi nรก vel
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visitando
Entre o livro e a cena, o surgimento de um teatro aberto por fotos
ruy filho
patrĂcia cividanes
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m dos grandes prazeres ao ir ao teatro está no fato de poder ser surpreendido a qualquer instante. Falo especificamente de um tipo de surpresa, a ocorrida ao se deparar com artistas novos, jovens, inquietos, e cujos trabalhos apontam desde cedo uma busca particular. Ao entrar no casarão, onde a Inominável Companhia de Teatro se apresentaria, tendo conhecimento de estarem incluídos em uma mostra de artistas curitibanos, fazia-o livre de julgamentos e expectativas. Tenho o costume de ler os programas das peças antes de vê-las, afinal, se estão ali é para nos informar de algo que julgam precioso. Mas, quando desconheço os artistas, provoco-me a deixar para o final. Prefiro que o espetáculo os apresente. E assim foi. Do Cão fez-se o Dia, criação a partir do universo literário de Valter Hugo Mãe, surpreendeu a todos na plateia. As lágrimas e emoções ao final eram visíveis em rostos muito diferentes. E dialogavam com minha emoção, o que é difícil ocorrer quando se vai tantas vezes ao teatro, pois acaba-se viciando em analisar e muito pouco em permitir. Dessa vez, nada me impediu. E as qualidades das escolhas, interpretações, texto, estrutura narrativa, profundidade dos assuntos e a sensibilidade no trato de temas complexos que compõe um desenho do homem foram tamanhas que, ainda guardando as sensações do espetáculo nos dias seguintes, decidimos por visitá-los no mesmo casarão.
Café em mãos, Lilyan e Marcelo, diretora e dramaturgo da companhia, respectivamente, chegam e nos apresentamos. Aos poucos, também os atores. Enquanto as aproximações ocorriam, as primeiras falas davam contam de revelar outras. Marcelo esteve no Núcleo de Dramaturgia do SESI, o mesmo que ministrei aulas à convite de Roberto Alvim. O curioso é o quanto no SESI investigou-se a questão de uma dramaturgia transumana, e o distanciamento provocado também a isso por Marcelo no espetáculo. Há no trato da palavra uma atitude particular do escritor ao subtrair os exageros da narrativa, enquanto não abre mão de narrar. Essa precisão incomum torna a fala uma ação mais poética, e Lilyan, acertadamente, soube construir uma cena praticamente esvaziada de elementos e compões com o corpo a dimensão mais própria à materialidade da poesia. Para ela, o importante era não produzir uma estética detestável, explica. Sendo os temas abordados por Valter Hugo Mãe sempre profundamente doloridos, o excesso realmente poderia causar um movimento de agressão. Escolha precisa e eficiente de Lilyan, então. No exercício de ser o teatro ali realizado um mergulho na literatura, explicam que os livros participam do universo da companhia desde sempre. Alguns estão envolvidos diretamente em um projeto de formação de leitores na cidade. Esse aprender a ler acabou sendo conduzido como princípio também ao fazer teatral. Se na leitura enxergam o leitor como sujeito, em cena, o ator existe
os integrantes da jovem companhia inominável, de Curitiba, (Lilyan de souza, Lucas Buchile, Fabiane de Cezaro, Rafael di Lari e Marcelo Bourscheid) em ensaio fotográfico exclusivo.
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como instrumento permeável. Contar uma história, portanto, além de fazer parte de um processo de encontro com o outro, significa também o respeito pela potência e singularidade de cada leitor, ou, no caso do teatro, espectador. É provocando essa analogia entre o ler e assistir que optaram por espetáculos que partem da literatura, afirmam. Sendo o leitor sujeito, conclui-se que a literatura em si só se concretiza radicalmente no leitor. Assim como a plateia no
teatro é o sujeito, e não a cena. Tal inversão do como é tradicionalmente tratada a cena, amplia a potencialidade da narrativa ao outro, e lhe exige participação cognitiva na construção simbólica para que se efetive. É fundamental assistir ao público, explicam. Afinal, o espectador preenche com suas próprias experiências, o que libera a narrativa para não ser meramente explicativa ou ilustrativa. Entendem ser dessa maneira mais literá-
“o tEatro não prEcisa Explicar nada ao EspEctador” rios do que teatrais. E, talvez, exatamente por isso, por se distanciarem do teatro qual se espera, consigam atingir o espectador tão mais profundamente. O dilema estabelecido na experiência ao assistir a Inominável Companhia é da linguagem do teatro se sustentar há muito com padronizações já tão esvaziadas que talvez o passo seguinte não seja mesmo simplesmente negá-las, mas reconstruir seus processos a partir de como podem ser compreendidas, quando submetidas às outras linguagens. O teatro ressurge sem exagero ou estereótipo de modernidade, e se realiza no outro, e não mais para o outro, na medida em que permite ao outro esquecer a própria presença do teatro. É o ocorrido ao lermos uma narrativa instigante. Esquecemo-nos do livro em mãos e passamos a vivenciar a trajetória e as falas como se caminhássemos juntos e conversássemos na mesma sala. Nada é mais ambicioso e difícil do que
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isso. E em Do Cão Fez-se o Dia, a Inominável consegue, em muitos instantes, eliminar a sensação de teatro, enquanto permanecemos em nossas poltronas transpostas a outro instante. A resposta sobre o por que temas tão complexos e escolhas tão difíceis surge de modo natural, “fazemos o que gostamos de assistir”. Diria mais. A Inominável Companhia faz o que gostaríamos de não gostar assistir. Os temas fortes, a humanidade aprofundada em seus labirintos, partem da constatação de ser preciso encarar a realidade de modo também brusco. Isso é respeitar o espectador, concluem. Trazer para a cena, e portanto espelhar do outro, os traumas que constituem o homem e pelo quais agora nos reconhecemos. Seria muito mais simples, é fato, se tudo isso se fizesse por discursos objetivos, como tantos espetáculos propõem, ainda que poucos com bons resultados. Mas, o quanto o discursar
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provoca sobre o outro uma experiência ao que se discursa? A Inominável Companhia utiliza-se da construção de instantes poéticos, aos quais se somam palavra, presença, simplicidade e silêncio. E a experiência em si, muito além do que o discurso poderia, invade o espectador de modo radical e íntimo. E existe nisso sim uma imensa carga de brutalidade e respeito. Para Lilyan, o fundamental é observar o contexto e, a partir do outro, ressignificar a propriedade do gesto. Então é possível entender ser o gesto também um discurso poético, desta vez traduzido ao corpo, sem malabarismos ou artificialidades, apenas assumindo-o como presença e imagem. Por sua vez, Marcelo explica, ainda que brutas as narrativas, haver humor no triste sim. Ao final, as faces dos espectadores abalados são tristes, porém preenchidas por melancolia e tons de agradecimentos. Vence a poesia do existir humano e do se reconhecer igualmente horrível, mas com a dimensão de, ao se tornar evidente a própria face, existir saídas, desde que se queira mudar. A conversa precisa ser rápida, pois entraríamos em um novo espetáculo. O suficiente, porém, para perceber ser a Inominável Companhia diferente e inquieta. São jovens, novos. E daí? O futuro certamente a aguarda de braços abertos.
Em preto e branco, retrato dos atores (Lucas Buchile, Lilyan de souza, Fabiane de Cezaro e Rafael di Lari) junto ao escritor valter Hugo Mãe, quando assistiu ao espetáculo “do Cão fez-se o Dia”.
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foto.palco
Alexandre Paes Leme, ĂŠ aquele tipo de ator que fica escondido no teatro depois de fechar, ensaiando e descobrindo possibilidades com o recĂŠm recebido figurino.
victor os escuros esconderijos daqueles chamados atores
O ator Chico Carvalho em “Ricardo III”com direção de Marcelo Lazzaratto.
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stímulos à inércia já nos são concebidos pelo cotidiano reiterado na televisão. O teatro, no entanto, é a chamada primeira à ação: da expressão facial do ator à trajetória silenciosa da atriz, o detalhe sutil é antes um incômodo que precede a catarse exposta. O enquadramento quieto de uma cena é por infinitas vezes o convite certo à surpresa, ao movimento turbulento interno do espectador. A precisão do ínfimo em cena introduz a quem assiste um susto: e é essa linha inesperada e esse clique instantâneo que busca o fotógrafo Victor Iemini. Com um acervo de cerca de 10 mil fotografias de momentos únicos em diferentes peças, Victor acompanha grupos do cenário teatral paulistano há 3 anos. O que hoje é registro do agora, daqui 20 anos será memória, e é essa função histórica, unida à vontade de fazer parte do ambiente familiar do teatro que incentiva o fotógrafo a, toda semana, clicar milhares de fotos em uma mesma peça na busca por esse estralo não elaborado – e, antes de tudo, impressionante. Os registros do autodidata, experimentais em essência e com a técnica lógica e dedutiva herdada do pai – que ensinou as propriedades físicas da fotografia antes mesmo dos primeiros cliques de Victor – são todos em preto e branco. Além de provocar maior isolamento do entorno, tirando proveito dos cantos escuros e paredes pretas dos teatros, a ausência de cor, segundo Victor, torna a fotografia atemporal: pode tanto ter sido tirada há três horas quanto há três décadas. O sensorial é parte fundamental do estético – e é nesse conjunto “estático” que está o vivo: o movimento em êxtase do teatro de São Paulo. Victor Iemini, nascido em Taubaté, preza pela expansão popular da cultura e pela valorização dos teatros de grupo. Sua fotografia está longe de ser um elemento substituível da peça, mas nem por isso perde a presença como uma manifestação artística de igual grandiosidade: é a representatividade do teatro em um momento ímpar, carregado de tensão, história e autenticidade. GabRIeLa SOuteLLO
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Nesta página, cena de “Ninguém no Plural, com texto de Mia Couto e direção de Rita Grillo. À direita, a atriz Nathália Corrêa em “a História Nesta página, Heleno do Comunismo Contada aos Doentes Prestes em cena de “O Mentais” de Matéi Visniec, e direção de balcão”, 1969. andré abujamra e Miguel Hernandez. À Direita, Raul Cortez em “ah! américa”, de 1985.
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Os atores Gabriela Duarte e Lucas Lentini em cena de “através de um espelho”, com direção de ulysses Cruz.
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Na primeira imagem, Kleber Montanheiro e Paulo Vasconcelos no camarim. abaixo, Kleber Montanheiro se maqueia para encenar Kabarett. Ă€ direita, a atriz bruna Longo em “Cada qual com seu barrilâ€?.
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À esquerda, cena de “São Paulo Chicago”com a atriz Luciana Canton. Nesta página, “Consertando Frank”, com Henrique Schafer, Chico Carvalho e Rubens Caribé, e direção de Marco antônio Pamio.
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Cena de “assim é (se lhe parece)”, com direção de Marco antônio Pamio e atuação de Regina Maria Remencius, amanda Hayar, ella bellissoni, João Carlos andreazza, Martha Meolla, Fábio espósito, bete Dorgam e Rubens Caribé.
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acima, o ator Cassio Prado momentos antes de apresentar “Ninguém no Plural” de Mia Couto, com direção de Rita Grillo. À direita, o ator Julio adrião em “a Descoberta das américas” de Dario Fo e direção de alessandra Vannucci.
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À esquerda, o ator Ricardo Henrique em “Só... entre nós”. Nesta página, Cena de “O Ponosamba e a bossa Nova Metafísica” da Cia. teatro do Incêndio.
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Cena de “Stifters Dinge”, teatro instalação de Heiner Goebbels. abaixo, o ator Julio adrião em “a descoberta das américas” de Dario Fo.
À esquerda, Cleide Yaconis em “Medéia”, de 1970, com direção de Silney Siqueira. acima, Renato borghi em “Galileu Galilei”, de 1968, com direção de José Celso Martinez Corrêa.
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Cena de “O Ponosamba e a bossa Nova Metafísica”com direção de Marcelo Marcus Fonseca.
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Os atores Cassio Prado, anna Zêpa e tania Reis em “Ninguém no Plural”.
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acima, cena de “Plínio à Paris”, com Mariana Rodriguez e Maria Ruth Santos, no Globe-SP | Centro de Formação do ator. aqui, a atriz e dramaturga Michelle Ferreira momentos antes de apresentar “Reality Final” dirigido por Ramiro Silveira
À esquerda, Cleide Yaconis em “Medéia”, de 1970, com direção de Silney Siqueira. acima, Renato borghi em “Galileu Galilei”, de 1968, com direção de José Celso Martinez Corrêa.
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Cena de “Plínio à Paris”, com texto de Plínio Marcos e direção de Miguel Hernandez. Na foto, a atriz Karine Luiz.
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a atriz Gabriela Duarte em cena de “através de um espelho” de Ingmar bergman.
contação por daniel tavares e franz kepller
amanhã, hoje não!
(KEPPLER)
no Paraíso e no Inferno (TAVARES)
Q
uando saiu do teatro, após o último ensaio, antes da estreia no dia seguinte, Bruna já sabia como seriam as suas próximas horas: insuportáveis. “Tudo o que deveria ser prazeroso se torna uma tortura”, ela vomitou para sua terapeuta logo de manhã. Fazia parte de seu ritual pré-estreia uma sessão de terapia no dia anterior. Assim como também fazia parte do ritual sair do consultório batendo a porta e se questionando por que os psicólogos nunca diziam o que ela gostaria de ouvir. “A gente paga a sessão porque no fundo quer afeto, e não tapa na cara”, disse uma vez para Lucas, seu namorado há três anos. Mas logo encerrou o assunto quando percebeu o seu ar de desdém, o que ele imediatamente negou. “Não mente. Vi você revirando os olhos e o seu músculo depressor, esse aqui, do ângulo da boca, ficou caído, bem assim”. E repetiu para ele a expressão que havia visto. Antes que Lucas tentasse se defender, ela o lembrou, irritada, que sabia o que estava dizendo, porque havia feito um workshop de linguagem corporal com Paul Sanders. E se irritou mais um pouco ao se dar conta de que o namorado, um advogado, nunca tinha ouvido falar no mago do teatro pós-dramático. E quase chegou à loucura quando ouviu que ela teatralizava tudo. Bruna odiava ouvir isso. E vindo de Lucas era muito pior, porque ele odiava teatro. ******** “Um lugar bem no fundo!”. Foi o que pedi pra moça que estava com a lista de convidados em mãos. Como todos sempre querem ficar perto do palco em uma estreia, ela pareceu até feliz com a minha solicitação, mas, assim que falei meu nome, foi categórica: “A
própria Bruna fez uma recomendação para que você sentasse no melhor lugar da sala. A sua poltrona é na fileira C, bem no meio”. Agradeci com um sorriso decepcionado e peguei o papel retangular já com as mãos trêmulas e suadas. Quando entrei na sala, houve uma troca cúmplice de olhares com o cara que recolhia os ingressos. Ele deve ter percebido o meu desconforto. “Desculpe, é que eu tô um pouco nervoso, é a estreia da minha namorada”, justifiquei, para logo depois me sentir um estúpido. Sempre falo coisas que nunca precisariam ser ditas para pessoas que jamais precisariam ouvir qualquer coisa de mim, quando estou nervoso! E que fique bem claro: não estou assim pela Bruna...Sei que ela vai dar conta do recado. O que não sei é se EU vou dar conta. Não suporto teatro. Quando a luz começa a diminuir e a cortina a abrir (quando tem cortina), meu coração já começa a querer sair pela boca. Se eu não gostar da peça (99,9% de chance disso acontecer), acabo me obrigando a ficar sentado para não constranger os atores que estão lá –infelizmente - ao vivo. Talvez tenha gostado de duas ou três peças durante a minha vida inteira. Mas ainda era criança. Todas as minhas outras muitas tentativas, já adulto, foram em vão. Odeio quando o ator finge que existe uma quarta parede (aprendi com a Bruna que é assim que eles chamam a parede imaginária que divide palco e plateia), ignorando o fato de ter algumas pessoas na frente dele, e também me sinto constrangido quando não existe a tal parede e eles se dirigem a mim diretamente com uma intimidade que não lhes dei – isso quando não te pegam, tocam ou coisas piores do gênero.
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******** - Como é que você consegue namorar um cara que odeia o que você faz? - perguntou Maria Laura, sua melhor amiga. - Eu também odeio o que ele faz! Os advogados são muito chatos. E os amigos dele, então? Não são pessoas. São processos. - E o que ele diz dos seus amigos? - Que a gente só fica falando de teatro e ele se sente um estúpido quando está conosco. Bruna ficou um tempo em silêncio enquanto devorava o resto da sobremesa, para depois concluir: - Mas o sexo é muito bom! Foi exatamente a mesma coisa que disse para sua terapeuta. Mas, antes, contou o que havia acontecido na última noite. Ela tinha ido para a casa de Lucas depois do ensaio. Preocupada, achava que havia cometido um erro ao escrever e encenar um monólogo e o fato de não achar que estava com o corpo ideal para ficar completamente nua em cena a deixava muito insegura. “E a pior coisa quando a gente tá insegura é saber que não tem mais ninguém no palco jogando com a gente”. Para não começar uma discussão, Bruna fingiu que não havia percebido que o namorado não entendera o que ela quis dizer com jogando com a gente, deixou que ele a abraçasse e, quando se deu conta, estavam transando. Mas, depois, com ele quase dormindo, voltou no assunto. “Puta que pariu, é foda não ter com quem jog... dividir, não ter com quem dar risada no camarim pra relaxar, não ter com quem fazer uma roda antes de entrar em cena e gritar Evoé”, ao que Lucas, sonolento, respondeu: “Também não te-
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nho ninguém pra fazer roda nem gritar Evoé comigo antes de entrar num tribunal, e não sofro por causa disso”. “Não sofre porque advogados não são sensíveis como os atores. São frios e não sentem o menor remorso quando fazem os outros acreditarem numa mentira pra inocentarem seus clientes”, era isso que Bruna queria ter dito. Mas preferiu o silêncio, virou-se para o outro lado da cama e fingiu que dormia. Na manhã seguinte, continuou fingindo, mas sem que Lucas percebesse, abriu os olhos no momento em que ele colocava a gravata. Ela adorava observá-lo colocando a gravata e admirava os seus movimentos precisos e o nó perfeito que ele sempre fazia e o deixava ainda mais bonito. Depois de contar tudo isso, a terapeuta jogou a primeira pergunta devastadora: “no fundo, você sabe que ele não é o cara certo pra você mesmo gostando dele, não é?” Sim , ela sabia. Era impossível namorar alguém que não suportava teatro e que fazia questão absoluta de dizer que o cinema era muito melhor, pois não precisava ficar fazendo o tempo todo um exercício de imaginação, já que os filmes, eles sim, conseguiam criar uma realidade. Mas ela também adorava cinema e gostava quando percebia que ele discretamente enxugava as lágrimas nos filmes mais emocionantes. Era nisso que ela pensava quando veio a segunda e última pergunta devastadora: “e você fica ainda mais tensa nas suas estreias porque sabe que ele vai estar na plateia e não vai gos-
tar do que vai ver, né?” Neste momento, Bruna se levantou, olhou fixamente nos olhos da terapeuta e antes que dissesse: “escuta aqui, sua vaca, é pra me deixar mais tensa ainda na hora em que estiver no palco que você estudou?”, ela saiu batendo a porta. De lá, foi para o restaurante encontrar a Maria Laura, depois esteira, banho e finalmente seguiu para o último ensaio, de onde saiu direto para sua casa. ******** “Eu preciso gostar, preciso gostar, preciso gostar”, fiquei repetindo pra mim mesmo, após o terceiro sinal. Mas, como gostar de uma coisa que me faz ter de imaginar tudo? No cinema – arte que realmente admiro muito, me emociona, e me faz viajar para dentro da história –, você paga o ingresso e quando o ator diz, por exemplo: “chegamos em Marte”, o filme MOSTRA o planeta vermelho em seus detalhes. A gente se transporta pra lá diretamente. Já no teatro, o ator pega, sei lá, uma bolinha de tênis na mão – pintada ou não de vermelho – e diz olhando para o objeto: “chegamos em Marte”. Sabe o que eu tenho vontade de dizer? “Não, meu amigo, essa porcaria de bolinha não me leva nem por um milésimo de segundo pra lá”. Tentei dizer isso uma vez pra Bruna, mas ela nem deixou que eu explicasse, saiu batendo a porta e ficou uma semana sem falar comigo. Até pensei em terminar de uma vez, quan-
do isso aconteceu. Não é fácil namorar uma atriz. Mais difícil ainda quando é uma atriz DE TEATRO. A Bruna faz questão de dizer isso de uma maneira até teatralizada. Primeiro diz “Sou Atriz”, depois dá uma pausa na respiração, e com certa impostação se coloca: “De TEATRO”. “Você é linda. Ficaria perfeita na telona. E na telinha também”, disse imaginando o meu orgulho ao acompanhá-la numa pré-estreia de um filme ou numa dessas festas de novela. “Lucas, já disse. Não troco o palco por nada”. E como ela emenda uma peça atrás da outra, o meu sonho parece não ter mesmo espaço na vida dela. Pronto. Agora ela chegou ao palco. Aí vem o monólogo! Existe coisa mais pavorosa e entediante do que alguém falando para o além? E pior! A peça, que ela mesma escreveu, não tem cenário nenhum e o figurino é um pano amarrado no seu corpo nu. E pior ainda é ela achar que esse será o trabalho de sua vida. Pode até ser. Mas da minha parte será apenas mais um martírio trazido por esse namoro. Não, não posso pensar nisso agora. Eu tenho que pensar em coisas boas. No quanto sou apaixonado por esta mulher. Gosto do seu cheiro, dos seus cabelos longos, dos olhos azuis, do jeito como se movimenta na rua e da sua falta de pudor na cama. Dizem que todas as atrizes são assim, não sei, é a primeira vez que me relaciono com uma. Eu a conheci em uma festa de advogados. Mal sabia eu que ela estava lá fazendo um laboratório (como?) para uma personagem que ela
contação
estava investigando. Acabamos aos beijos naquela noite, e só no segundo encontro ela me diz “Sou atriz. De TEATRO”. Eu já estava louco por ela e pensei: “Vou conseguir passar por isso”. E tenho conseguido. Mesmo que a minha vida seja um inferno e um paraíso ao mesmo tempo. Nossos momentos de intimidade são positivamente indescritíveis (desde que o assunto não seja teatro). Já os nossos momentos em “sociedade” com os amigos atores dela (que só falam de teatro) ou com os meus amigos advogados (que ela considera um bando de coxinhas) têm sido um inferno. Mas o pior mesmo é ver as montagens estreladas por ela. E, se já tenho que fazer um esforço enorme pra fingir que gosto das peças mais normais que faz, enfrentar um monólogo vai ser demais pra mim. ******** Até que Bruna tentou dormir, mas na única vez que conseguiu, sonhou que estava no palco olhando para a plateia lotada e não sabia o que dizer, pois não havia decorado o texto. Acordou num sobressalto e ficou virando na cama até o amanhecer, quando finalmente pegou no sono. Foi acordada pelo interfone, era o porteiro avisando que havia flores na portaria. Bruna sorriu ao ver o maço de girassóis com o cartão onde estava escrito “Boa sorte hoje à noite. Te amo. Lucas”, e lembrou-se de quando ela disse que não se dava boa sorte para os atores, mas sim desejava-se merda, e o namorado retrucou: “não dá pra desejar merda pra mulher que eu amo”. Ela gostou de ter ouvido isso, e até hoje gosta quando ele lhe deseja boa sorte. ******** Estava tão entretido com meus pensamentos que nem percebi as primeiras falas, nem minha camisa se encharcando de suor. Olho para o palco atentamente e me concentro. A música até que é boa, a Bruna parece segura, mas não a vejo com clareza porque a proposta da luz,
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pelo que ela havia me dito, era não ter quase luz. Falas e mais falas. Sem pausa. Sem uma pontuação assertiva. Monólogo verborrágico e no escuro não vai dar. Foram 75 minutos tentando manter os olhos abertos. Talvez tenha fechado os olhos por alguns segundos. Segundos, eu juro. Acho que ela me viu neste cochilo micro. Não tenho certeza. Se ela me perguntar, nego até a morte.
casa, perguntou o que havia achado de uma cena que nunca existiu. “Do caralho, achei do caralho”, ele respondeu, para então abraçá-la carinhosamente. Ela até que começou a dizer qualquer coisa, mas o beijo na boca a impediu de prosseguir. E mesmo certa de que não havia como continuar com ele, transou ali mesmo, no chão da sala. “Puta cara gostoso! Amanhã eu termino. Hoje não. Hoje não”.
******** Como já havia previsto, seu dia foi difícil. Não conseguiu comer direito, repassou o texto em voz alta em casa, no elevador, na rua, fez com que ela mesma prometesse para sua imagem refletida no espelho que nunca mais faria um monólogo, mesmo achando que seria o trabalho da sua vida, e repetiu por vários minutos um mantra indiano, a cada vez que pensava em Lucas na plateia odiando a peça. “Se isso acontecer, será o fim”, pensava. Esta possibilidade logo a abandonou quando chegou ao teatro e lá estava mais uma maço de flores, desta vez rosas vermelhas. “Ele não gosta de teatro, mas gosta de mim, é o que importa”, refletia enquanto se maquiava. E, se entrou no palco certa de que pequenas diferenças não importam num relacionamento, mudou radicalmente de ideia quando, em um momento do monólogo em que as luzes da plateia se acendiam, ela viu Lucas acordar assustado. O seu humor piorou durante o jantar de comemoração com a equipe, no qual o namorado praticamente não abriu a boca, possivelmente pensando no que diria para ela depois, já que até então não havia dito nada além de um “parabéns, meu amor”. Finalmente, decidiu mandá-lo à merda quando, já em
******** Fim da peça. Não quero mentir. Não quero falar a verdade. “Parabéns, amor”. Foi o que consegui dizer. Vi o ódio no rosto dela. Ela começou a me falar de uma cena que não lembrava. Vou mentir. “Achei do caralho”, disse sem pensar. Os olhos dela ficaram marejados. Fiz a coisa certa. Menti de leve e deixei a Bruna feliz. De repente, a expressão dela se fechou e senti que vinha um novo monólogo. Já tinha ouvido essa mulher demais essa noite. Antes da primeira palavra, puxei a boca dela na direção da minha. Transamos ali mesmo. No chão da sala. Sintonia perfeita. Nessa hora, não tem teatro que nos separe. Ficamos horas abraçados depois. Respirando juntos. Antes de dormir, disse de novo bem baixinho no ouvido dela: “Parabéns, amor”. E depois pensei que por ela valia viver no paraíso e no inferno ao mesmo tempo.
O dramaturgo Franz Keppler e o jornalista, ator e dramaturgo Daniel Tavares, também escreveram juntos a peça ATÉ O FIM, que tem estreia prevista para este ano em SP.
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KrUm a dimensão física da poética por Ruy Filho
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fOtO: divUlgAçãO
u
m espetáculo pode ser somente um exercício formal ou mera tentativa. Se um pouco mais interessante, se avançar além, um acontecimento. E há, ainda, aquele que ultrapassa a isso e se faz real experiência ao espectador. Para tanto, três são os fatores fundamentais: técnico, estético e conceitual. Falar de experiência pode parecer um tanto genérico, mas o que a difere de um acontecimento é a potência de invasão no espectador em níveis mais profundos. Aquilo que configura um objeto único é capaz de conduzir o espectador ao sentir absolutamente particular. Então, não se trata de produzir apenas sensações, mas provocá-lo em níveis tão mais intensos que não é possível se manter estável e passivo. A particularidade é condição inicial e última da experiência, portanto. E quando ocorre um reconhecimento plural de particularidades; quando a experiência de cada um, com todas suas evidentes nuances, reverberam simultaneamente em pessoas distintas, pode-se dizer ter algo acontecendo de fato. Krum é desses espetáculos que supera o acontecimento da reunião de um elenco talentoso, com um diretor interessante e um texto inteligente. Torna-se rapidamente uma proposição experiencial aos espectadores, construindo para a plateia uma ambiência única e singular. O espetáculo revela-se o rasgo comum, invade a todos ampliando solidões e a condição de coletivo formado pelas deformidades de infinitas diferenças, enquanto narra a desesperança sobre o existir de um futuro inevitavelmente imutável e melancólico. E isso ocorre exatamente pela potência no equilíbrio entre os três níveis determinantes. Técnica, estética e conceito magistralmente se confundem. É impossível desassociá-los. No espetáculo, os elementos estruturais técnicos são, antes de serem recursos de luz ou cenário, por exemplo, linguagens e proposições estético-narrativas. Descompassos propositados interverem na cognição do espectador, de modo a tornar o ouvir e ver algo mais complexos que apenas o movimento passivo de presenciar imagens e sons. Existe provocativo nos desencontros, tanto quanto nos personagens representa certo deslocamento ao devir. A maneira como as fusões dos elementos técnicos impõem independência às cenas torna a narrativa o processo de acompanhamento literário e de convívio estético. Desse modo, o espetáculo inverte a sustentação do diálogo pela palavra, ainda que esse exista, e passa também a narrar os encontros e desencontros pela subjetividade daquilo que resta à fala ou falta ser dito. O discurso revela-se o paradigma entre o desejado e o inalcançado. Resta somente ao espectador produzir o equilíbrio entre o visto e o escutado pelo movimento consciente de aceitar a experiência como processo de invasão. Por isso, o espetáculo, ao fim, confirma sua presença como experiência e não mero acontecimento. Um
TexTo: Hanoch Levin Direção: Marcio Abreu
elenco incrível; um texto singular e radicalmente original na maneira de construir e destruir estruturas; uma cena que confirma Márcio Abreu como um dos mais talentosos desenhistas de palco no teatro brasileiro. Como constrói a imagem de cada instante, cada quadro, torna o ator dimensão espaço-narrativa. O existir em cena como um discurso simbólico sobre aquilo que não se revela na objetividade de uma história. O palco de Márcio deixa de ser um espaço teatral ou tela e se revela pela presença do ator uma dimensão humana surpreendente em vazios e preenchimentos. O corpo em cena é presença, imagem e também o próprio espaço. O ator, tal como utilizado por Márcio, funde-se ao sentido da espacialidade, e é pelo seu corpo que somos capazes de perceber os vazios mais profundos da própria narrativa. Ocorre nessa subversão da presença o paradigma de representar o estar pela completude da ausência. Em Krum, o espaço revela-se estrutura técnica e o corpo ampliação narrativa ao indizível. Experiência expandida ao somar a presença do ator com a sonoridade, igualmente materializada, absorvida pelo espectador, tanto pelo ouvir, quanto pelo contato físico das ondas que o atingem. Ainda sobre a presença dos atores é preciso dizer a importância do trabalho os colocar em potência de coletivo. Márcio consegue equilibrar cada um, de modo a substituir as expectativas prévias que poderiam limitá-los. Ao ter Renata Sorrah, tal valor se faz ainda mais evidente. Carregamos um imaginário ricamente preenchido de seus trabalhos na televisão e, como acontece em muitos outros exemplos possíveis com grandes atores, trazê-los anteciparia a sua presença em cena. Todavia, Márcio consegue desestruturar esses sentimentos muito rapidamente deslocando a expectativa para um conviver mais aberto e disponível com a atriz. O que pode ser dito certamente também aos atores como Danilo Grangheia, Rodrigo Bolzan, Grace Passô e Inez Viana, pelos espectadores mais acostumados com o teatro, o que sustenta a sensação de maturidade de Márcio também ao que se refere à direção de ator. Há um equilíbrio, portanto, entre personalidade e personagem, sem que um apague o outro. E, sobretudo Renata Sorrah, por tudo o que já identificamos aqui, magistralmente permite tal movimento acontecer. Se a técnica surpreende ao se fazer conceito de estética, a experiência ao assistir Krum se valida principalmente por conquistar ao conceito sua ampliação narrativa. Um espetáculo como pouco se tem nos palcos brasileiros, simples em proposições e radicalmente profundo em soluções e pensamento. Sem dúvida, um trabalho que pode se tornar ao tempo o início e afirmação de outro caminho na trajetória de Márcio Abreu. É torcer para que sim, pois Krum é simplesmente um resultado inteligente, provocativo e especial.
eLenco: cris Larin, Danilo Grangheia, edson rocha, Grace Passô, inez Viana, ranieri Gonzalez, renata Sorrah, rodrigo Bolzan, rodrigo Ferrarini iLuMinAção: nadja naira cenário: Fernando Marés TriLHA e eFeiToS SonoroS: Felipe Storino FiGurino: Ticiana Passos Direção De MoViMenTo: Marcia rubin
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Des mon te o esfacelamento sublime da dor por Ruy Filho
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fOtO: criS lyrA
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quilo que Juliana ouve, não ouvimos. Não ouço. o fone de ouvido leva ao seu corpo o som, e o corpo traduz em movimento, não as falas, mas as memórias e sensações. Ela sente aquilo que ouve. Deixa de ser apenas som. Assume-se, assim, ensurdecido ao público, outro estado. Ao atravessar seus gestos, o som é a latência do indizível. Aquilo que move e dança é, portanto, a deformidade do movimento entre o sentir em si e o existir ao outro. E, sim, trata-se principalmente disso. Sentir em si o outro. Não um alguém qualquer. Gustavo, como identifica logo ao início, é seu parceiro também no próprio trabalho. E meu também. Somos irmãos, desde muito cedo. Ao dançar, ao se deformar como tentativa de compreensão sobre o enfrentamento da doença sofrida por Gustavo, Juliana resolve a minha impossibilidade em expressar minhas emoções. Porque não é simples racionalizar o impossível de ser aceito, e vivenciei esse dilema de querer dizer e não o saber. Mas o é infinitamente mais amplo e verborrágico torná-lo poética e expressão. De fato, lidar com a presença dela em cena, enquanto seu corpo reage distorcendo a lógica do movimento e das expressões comuns, foi radicalmente triste e lindo. A arte serve ao unir os dois sentidos. E, por ser sobretudo arte, a dança conquista e supera as questões primeiras, e passo a assistir verdadeiramente a dançarina. Ao desmontar as estruturas básicas de equilíbrio e sustentação do corpo, provoca-se viver o limite físico, como se o corpo fosse simetricamente a dimensão emocional. Há mais poesia nesse deslocamento, uma vez sermos informados no início do espetáculo das questões pessoais e estratégias conceituais que incluem O Diário de Nijinsky, de praticamente um século atrás. Tratar do gesto como pulsação necessita compreendê-lo em suas duas faces: afirmativa e reativa. A primeiro configura ao movimento valores discursivos a partir daquilo que se deseja reiterar ao espectador. A segunda, por sua vez, revela a condição de ser a dançarina a interpretação estrutural final de um discurso trazido a ela. Ao impedir a diferenciação entre elas, Juliana constrói dialeticamente a possibilidade como dimensão maior. Pode ser uma ou outra. Pode ser as duas, quem sabe. Apenas ela, e, ainda assim, talvez. O espetáculo, então, torna-se a apreciação de um corpo em latência de narratividade e não mais da roteirização de si próprio. Vale-se pela dimensão estética e não emocional, ainda que se reconheça o processo emotivo envolvido para provocar sua necessidade de criação. O falso paradoxo se faz pelo costume em ler-
Direção: Juliana Moraes e Gustavo Sol
mos inevitavelmente tudo como imagem, portanto significativo ao discursar. Contudo, o que Desmonte comprova é nem sempre ser a imagem necessariamente uma construção metafórica, representativa. Pode ela revelar-se estrutura pré-significação. O corpo, desse modo, fortalecesse a dimensão primeira elencada por Peirce. Ela dança, o corpo move-se, reconhece-se a distorção e descontrole. E nada disso importa realmente, pois não cabe a ele oferecer respostas concretas. O que se assiste é a supressão do tempo na permanência da imagem. É nesse intervalo de existência poética que o gesto se valida apenas por ser uma realidade e não tradução. A esse movimento de presença na elasticidade do tempo é possível denominar por pulso. E é no uso do pulso o maior acerto ao conceito do espetáculo. A iluminação desenha, ora um ambiente, ora uma ambiência. Ou seja, transita entre a construção da percepção de um espaço ocupado pelo espetáculo para o de um espaço capaz de ampliar e dialogar com a subjetividade da dançarina. O movimento praticamente constante entre um e outro gera o estado pictórico e visual do pulsar. A luz sustenta em si a narrativa possível dos estados de maior ou menor interiorização. Do círculo ao quadrado, estende pelas formas sutilmente provocadas à inclusão e distanciamento do espectador. A incrível sutileza no intercalar os desenhos revelam perfeita sincronia da iluminação com as questões corporais, intérprete e narrativa apontadas anteriormente. Valendo-se do excesso, Juliana provoca o acúmulo também na própria história. Aquilo que sente, e que não sabemos, pois não somos induzidos, já que não ouvimos, potencializa diversas camadas de sensações. Uma dor que não se resolve. Um lamento que não cessa. Um sentir que não se esgota. Se por um lado somos desafiados pelo corpo, gesto, movimento, ritmo e luz a não construirmos significados definitivos, apenas aceitando o pulsar do seu sentir como expressão de presença; por outro, a introdução da composição de Tchaikovsky transborda de emotividade e leva a um estado de suspensão poética de rara delicadeza. Ela sai do palco como quem termina uma dança, chega ao esgotamento máximo do sentimento, cala-se. Deixa o público preenchido por uma espécie de solidão tão profundamente construída e indescritível só possível de ser traduzida como a sensação de esfacelamento. desmonte supera as especificidades da dança e faz pelo dançar o instrumento mais preciso para silenciar e gritar. Há beleza na dor, já disseram. E Juliana nos faz compreender exatamente a profundida disso.
concePção, coreoGrAFiA e inTerPreTAção: Juliana Moraes PrePArAção corPorAL: Gustavo Sol iLuMinAção e Direção TécnicA: cristiano Pedott cAnção: none but the lonely heart (op.6 no.6), de Pyotr Tchaikovsky. interpretação de christianne Stotijn e Julius Drake.
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ops art
Não existe uma única explicação para o que seja a cadeira, de Joseph Kosuth.
AQUILO QUE EU VI
ou como vejo aquilo que poderia ser
ops art
A guerra escondida, por Anselm Kiefer.
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Preto com amarelo, de Malevich.
s
abe aquele momento em que você percebe na exposição se perguntar se aquilo no canto é uma obra ou não? Então. Arte é um processo individual de experiência mediada por um artifício produzido por alguém. Por isso, arte pode ser tudo aquilo que nos provocar tal sensação. Essa é a confusão. Partindo desse princí-
pio, a revista Antro Positivo passa a se divertir em espaços e exposições buscando o que neles pode trazer intencionalmente uma experiência estética e a sensação de contato com um suposto conceito. Ops Art, essa nova seção, busca seu nome como brincadeira aos movimentos Op Art e Pop Art. E já iniciamos bem. SP Arte e Inhotim. Porque arte, na verdade, é tudo aquilo que você quiser que seja, já explicaria Marcel Duchamp.
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ops art
Toque a mulher, de Lygia Clark.
A paisagem pode queimar como uma foto, de Jean-Marc Bustamante.
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antro+
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ops art
AcĂşmulo anti-natural, de Richard Smithson.
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estreia
Fringe a primeira vez... a gente nĂŁo esquece
pelos cantos de um festival
por maria teresa cruz fotos de sĂŠrgio silva
Maria Teresa Cruz em foto para o espetáculo “A ordem partiu de quem?”, que se apresentou no Fringe - Festival de Teatro de Curitiba em 2015.
Q
uando percebi que havia uma boa oportunidade de levar a peça “A ordem partiu de quem?” para o Fringe, mostra paralela do Festival de Curitiba, conversei com meu grupo e todos, embora um pouco receosos, toparam. Receosos porque, como é muito comum, os atores da companhia têm outras atividades que não o teatro. Houve o período de inscrição, as datas foram acertadas e quando menos percebemos já era março. Sabe aquela brincadeira que costumamos fazer: tenho duas notícias, uma boa e uma ruim. Qual você quer primeiro? Então. Vou fazer isso para falar dos pontos positivos e negativos. E, por isso, vou começar com os negativos. O Teatro Cleón Jacques, onde nos apresentamos, era distante do centro do festival, do Largo da Ordem, de onde todas as coisas aconteciam. Acabei conseguido alojamento do apartamento de um amigo do teatro que vive em Curitiba, mas está passando temporada no Chile – nessas pindaíbas, os atores mostram toda a solidariedade da categoria – que ficava pertinho do teatro, o que foi muito conveniente, mas igualmente longe do circuito do Festival. O resultado foi que, com exceção da minha peça, não consegui ver mais nada da programação. Por outro lado, a estrutura e equipe do teatro, e também a pes-
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soa encarregada da produção do Fringe naquele local, foram extremamente profissionais e solícitos. Não há uma vírgula de crítica. Portanto, em que pese que precisava de um teatro de arena, com mobilidade de plateia, para desenvolver o meu trabalho e também um espaço para exposição de imagens do parceiro de caminhada Sérgio Silva - que sempre leva a exposição “Piratas Urbanos” nas nossas apresentações – e isso foi atendido na totalidade, considero boa a avaliação nesse quesito. Ao mesmo tempo, na tentativa de espalhar o festival, criou-se um certo gueto, distante do resto, sem um diálogo eficiente e necessário com o restante. No primeiro dia, quando fui ao Memorial para pegar as credenciais do grupo, senti uma Curitiba que respira o festival de teatro naquelas semanas. Havia uma intervenção de palhaços bem ao lado do “cavalo babão” – os curitibanos são mesmo engraçados! Para mim, aquilo não passa de uma fonte de gosto duvidoso – e um trio se arrumando em alguns banquinhos para começar a tocar o repertório daquela manhã. Fui tomada de um lirismo nada comedido que me fez sentir feliz por estar participando daquilo. E pela importância da mostra e a pujança artística curitibana, é esse o sentimento que precisa permear as ruas e espaços onde
Acima, equipe de “A ordem partiu de quem?” reunida. Abaixo, fotos de cena e tela da divulgação do espetáculo no site oficial do Festival de teatro de Curitiba 2015.
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Maria Teresa Cruz em cena do espetáculo “A ordem partiu de quem?”.
acontece a programação do festival. E falando nela... cabe destacar o número de trabalhos cômicos. Nunca soube que era tão fácil fazer comédia! Ou melhor, é fácil? Creio ser necessária uma avaliação dos espaços destinados à mostra que se pretende paralela como a Fringe, que ainda que tenha esse caráter experimental, lado B, não pode estar na programação só para fazer volume. Até porque, os profissionais que se deslocam até lá, não têm nomes fortes para estar na programação principal, mas levam com dedicação o trabalho desenvolvido, como uma oportunidade de mostrar a um público desconhecido. Conosco foi assim. A Fringe não pode ser um depositório daquilo que não merece estar na programação oficial. Será que não vale um olhar mais atento aos trabalhos de grupos menos conhecidos? Será que um rigor mais na seleção dos trabalhos daria mais estofo aos que vão? Por outro lado, uma peneira quebraria em absoluto o encanto do ser e estar que é a essência da proposta da Fringe. São reflexões, apenas reflexões. Se tivesse ficado durante
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todo o festival, talvez até tivesse condições e melhor embasamento para trazer pistas menos nebulosas. E aqui vale abrir um parágrafo para salientar o quanto é salutar o exercício de sair de São Paulo e ir para um outro ambiente, desconhecido, diferente, com signos não necessariamente iguais aqueles que te formaram – ou estão formando – na arte. Esse foi o ponto que posso colocar como mais positivo e gratificante: apesar da distância e da divulgação insuficiente, o público foi até o teatro Cleon Jacques, inclusive lotando a plateia no segundo dia, se interessando pelo tema e buscando mais informações a respeito do nosso trabalho. Fomos procurados por alguns veículos de imprensa local para destrincharmos o assunto tão atual do nosso trabalho: as manifestações. E foi bom poder falar, já que muitas vezes precisamos ficar calados em São Paulo. No meio da concorrência grande com centenas de trabalhos, a gente se deu ao luxo até de se sentir importante. Nem digo tanto a gente, mas o que estamos fazendo. E era uma plateia desconhecida quase que em sua totalidade. E os aplausos, talvez, tenham sido mais sinceros do que são, na maior parte das vezes, os que vem de uma relação onde há interesses envolvidos – da ordem financeira ou de outra qualquer – ou às vezes, simplesmente, puxa-saquismo. Se vale a pena o Festival de Curitiba? Muito. Ser e estar na capital paranaense por esses dias foi realmente muito bom. Sem medo algum falo em nome da Cia do Ernesto. Todos voltamos de lá com ideias e cheio de vontade de voltar a tentar virar várias coisas em São Paulo, além do desejo de irmos para outros festivais. E teve aquele gostinho de estreia, de primeira vez, que como em todas as experiências da vida, a gente nunca esquece. Ou demora pelo menos até a próxima.
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máquina de escrita EscrEvEr uma pEça não é construir uma história. cabE como sE rElacionará com o EspEctador. nada fácil. alExandrE dal farra sE firma como um dos bons nomEs da dramaturgia atual. E muito também pEla capacidadE Estética da Escrita, provocativa E surprEEndEntE. Então o convidamos. E com EnormE prazEr.
máquina de escrita
o filho escrito por
Alexandre Dal Farra fevereiro de 2015
livrEmEntE inspirado na carta ao pai, dE franz KafKa. EstE é um fragmEnto do tExto Escrito para o grupo TEATro DA VErTigEm. a pEça tEm EstrEia prEvista para julho dE 2015, Em são paulo.
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razer o cotidiano ao palco requer
não é possível mais assistir ao conflito.
a escolha por determinados re-
o espectador necessita, então, imaginá-
cursos. oferecer pela represen-
-lo com as mínimas informações surgidas
tação os elementos de reconhecimen-
em frases cada vez mais curtas. Se o coti-
to ao espectador, de modo a produzir a
diano necessita do reconhecimento para
sensação de possibilidade concreta aos
se colocar como ambiência, esta agora se
argumentos e comportamentos. Em o fi-
sustenta pela capacidade de construí-la
lho, cena construída por Alexandre Dal
ao ser imaginada. o trânsito constante
farra para o Teatro da Vertigem, aponta
entre as duas escritas provoca uma cena
estratégias na escrita que dialogam com a
possível de reconhecimento apenas nos
maneira de representação tradicional do
intervalos das duas experiências. É pre-
cotidiano, enquanto, simultaneamente,
ciso assistir e oferecer, portanto. o tea-
expande os recursos, ampliando o próprio
tro de Dal farra exige do espectador sua
mecanismo. A voz realista dos persona-
presença consciente e subjetiva, racio-
gens, sobretudo durante os diálogos, ofe-
nal e imaginativa, objetiva e simbólica.
rece o primeiro momento de aproximação
Ao permitir que o imaginário de cada um
com o universo representado. localiza,
costure os acontecimentos, relações sub-
organiza, esclarece os participantes das
jetivas formalizam tanto a temporalidade
cenas, sustenta linearmente o conflito
quanto a intencionalidade narradas. isso
dramático e configura estados de reco-
não é pouco. Sobretudo, quando somado
nhecimentos de um cotidiano, ainda que
ao interesse do dramaturgo em apontar
particular, muito próximo ao dado na rea-
para questões complexas de nossos com-
lidade. Contudo, sem qualquer interven-
portamentos socioculturais sem impor
ção para sua transformação, o dizer deixa
julgamentos e antecipar condenações.
de ser ao outro e passa a compreender o
o filho é, ainda, apenas uma cena. E,
espectador. É a ele que os personagens se
dentro da provocação de nos tornarmos
dirigem ao descrever os acontecimentos e
igualmente ativos na construção dessa
não mais representá-los. Dal farra assume
imaginação do cotidiano, imaginemos en-
a aceleração das ações e consequências
tão a potência de experiência que está
construindo artificialmente o movimen-
por vir. Afinal, não bastasse isso, ainda é
to de adiantamento da narrativa. Assim,
para o Teatro da Vertigem.
ruy filho
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máquina de escrita
- você está com dívidas? 1 - sim. - Quantas. - algumas só. por quê? - isso é ruim. (tempo) - você tem como pagar essas dívidas? - Estou tentando. (tempo) - tem namorada? - não.
(tempo) - Eu estou querendo mudar. - vai sair da casa da sua mãe?
- mas está com mulher.
- vou lá para são vito acho. casa da minha tia. alguma coisa assim.
- um pouco.
- sei. tem muita coisa ruim lá também.
- novinha?
(tempo)
- mais ou menos.
- ...e até coisa boa, também. todo lugar tem coisa boa, coisa ruim. todo lugar é igual. Em todos os lugares você fica lá tentando dar conta de viver, e não consegue direito. aqui também. a vida é assim. mas a gente vai fazendo o que dá. não pode parar de fazer esporte. Eu caminho cinco quilômetros por dia. olha isso. não deixo a barriga crescer. sequinha. não é? por isso eu tenho charme. as mulheres gostam. Quer que eu te apresente umas?
- tem peitinho bonito? Eu adoro quando elas tem aqueles peitinhos assim. ou peitão, mesmo. sabe? ficam fazendo assim, ó. sabe como é? - não. Ela tem a minha idade, pai! - Então! é disso que eu estou falando. olha. - Prefiro não olhar isso. - Olha. Assim, ó, elas ficam fazendo assim, sentando em você, olhando pra sua cara, batendo com os peitos na sua cara assim, pá, pá, pá... e vai embora!...
- não precisa.
- tá, sei.
- ah, tudo bem. Elas já te adoram mesmo assim, porque você é meu filho. Você se deu bem nessa.
(tempo) - você precisa pagar essa dívida. uma dívida dessas é a pior coisa na vida da pessoa. o seu tio, irmão da sua mãe. Está atolado em um barraco com uma dívida dessas enfiada no meio do cu dele, casado com uma professora gorda e sebosa. se você cai nessa, de repente está morando em um barraco sujo e fedido, com câncer no joelho e uma mulher horrível cuidando de você. E aí você olha para a sua própria vida e pensa, “meu deus, como eu vim parar aqui, como é que eu consegui de repente 1 Sugestão de divisão das personagens para três atores e duas atrizes. Ator 1: Pai (que depois vira avô); Ator 2: filho (que depois vira pai); Ator 3: neto e Júlio (o "homem de verdade"); Atriz 1: mãe e Paula (mulher que o pai chama); Atriz 2: todas as outras mulheres. 246
olhar para essa coisa oleosa e cheia de banha, com essas dobras no corpo, assim, de banha mesmo, você olha para ela, para essa gorda e diz, “eu te amo”, e até não é uma mentira completa, de certa forma você ama ela mesmo, por conta da sua situação como um todo, ela foi o que te restou, a sua única opção!... tudo por causa de uma dívida dessas. Às vezes é dez, quinze reais no começo. depois vai, vai, vai... Essas coisas te fodem totalmente pro resto da sua vida e te transformam em um arrombado que não tem onde cair morto.
antro+
- tem umas muito gostosas. Elas te adoram. - não me conhecem.
- isso não garante nada, pai. - como não garante!! Eu garanto. Eu falo pra elas: “olha esse aqui. É meu filho. Puxou tudo de mim.” E aí você entra em cena e pá, pá, pá, no lugar do papai. Elas vão gostar! deixa eu ligar para a paula. sabe a paula? - não, pai. - Espera aí. paula? (...) oi. tá à toa? (...) Então, por que você não dá uma passadinha aqui em casa? (...) - Eu vou embora, pai. - não... (...) é que tem um rapaz aqui. Ele disse que quer te conhecer. (...) isso. (…) uns... quinze
o filho
anos?... (...)puxou tudo do pai. (...) Quem?... (...) Quem você acha? Eu! (...) isso que eu estou te dizendo! vem pra cá! Ele está louco pra te conhecer!... (tempo) - o que foi isso? - Ela está vindo. (tempo) - Eu te falei para não chamar! - acabei chamando, agora ela vem para cá. Ela já vai querer cair de boca no seu pinto de cara, para ver se é igual ao meu. (tempo) - ...mas pai, é ruim isso... Eu fico me sentindo mal... não sei se eu quero isso... Quem é essa mulher? Ela é velha? - Que velha! é linda! vai ser bom, você vai ver. Ela vai te ensinar umas coisas boas. - mas, como?... - você vai ver. vai entender na hora. (tempo) - nossa! são dez e meia já?! - é... - preciso sair. fica aí. - Eu? - é. preciso resolver umas coisas. fica aí. mas você vai se virando, tá? fala pra ela que você é meu filho, tal... Se não gostar manda ela embora!... - mandar ela embora? - depois eu volto e te explico mais umas coisas sobre a vida. você tem muito o que aprender. agora não dá tempo, mas eu vou te explicar, te ensinar umas coisas aí, que eu aprendi com o tempo. Eu tenho experiência para te ensinar umas coisas. - Pai, eu não quero ficar aqui esperando, eu preciso sair, também!... - fica com essa chave. - mas, que horas você volta? Espera um pouco mais, essa paula, ela... vai saber que sou eu? pai? já foi embora. Agora fiquei aqui sozinho, na casa do meu pai. Esperando uma mulher que costuma ser dele. Eu não quero fazer isso. faz muito tempo que estou
sozinho aqui. É isso que eu sou então, um filho que sobrou na casa vazia do pai, esperando o retorno dele. agora ela já chegou. Está examinando o meu corpo. Ela puxou a minha camisa. depois tirou a minha calça. Eu fiquei olhando. Eu não sei o que fazer. Ela percorreu o meu corpo inteiro com a língua. me deitou na cama, como se eu fosse uma espécie de refeição dela. Ela degustou o meu corpo inteiro como se eu fosse um frango, ela me mastiga. Ela poderia ser a minha mãe. Ela chupa os meus dedos do pé, um por um, como se fossem as asinhas do frango. Ela geme e me mostra que tem prazer com isso. você está tendo prazer? (tempo) - O que significa isso, essa risada? Ela me deixou aqui deitado depois de ter me degustado inteiro, começou a rir e saiu de cima de mim. pegou bebidas no armário do meu pai. nós bebemos as bebidas. Ela conhece bem essa casa e lida com tudo com naturalidade. Ela sabe o que fazer. faz muitos dias que estamos aqui já. aprendi algumas coisas sobre viver aqui. já sei me locomover pela casa no meio da noite, quando está escuro. aprendi que ela gosta que eu passe a língua de forma circular nos mamilos. Ela me ensinou isso na verdade, me disse assim, “passa a língua assim nos mamilos, roda a língua assim”. Eu obedeci, e como resultado ela ficou gritando de prazer. Ela é bem mais velha que eu, e tem uma barriguinha pequena, projetada para frente. comentei com ela que nunca tinha beijado uma mulher com uma barriga dessas. - meu útero tem cinquenta anos de idade. já saíram dois seres humanos bebês daqui de dentro. - Mas então você tem filhos? - preciso dar uma saída rápida, volto em meia hora. - tá bom. Ela sai e volta muitas vezes. nem sempre ela dorme aqui. me ligaram do trabalho do meu pai. Ele não foi lá. Eles disseram que ele é empacotador lá. Eu fui no lugar dele. agora eu trabalho lá também. mas vão me demitir hoje. Eu não sirvo para o trabalho dele. Eu arrumo outro, eles disseram. me deram um dinheiro pela demissão, o pagamento pelo que trabalhei no mês. agora eu tenho que achar um outro emprego. Eles disseram que eu tenho que fazer uma coisa que exija menos das mãos. Eu disse que vou tentar. pelo menos eu tenho onde morar, eles disseram. mas, eu não sei o que eu estou fazendo nessa casa há mais de dois anos, vivendo com essa mulher que não é minha, é do meu pai. Ela me diz que isso não importa mas muitas vezes eu já disse
máquina de escrita
isso para ela, que ela não é minha. Que mesmo essa casa não é minha. nada disso é meu. nem eu mesmo sou meu. Eu disse isso para ela também. - como assim? - você está me controlando demais. Eu acho que é isso. como se eu fosse seu. mas eu não sou. Eu não sou seu, nem meu! Eu só estou solto por aí, vagando de um jeito estranho, por lugares que eu não conheço. mas você está me guiando o tempo todo ultimamente. - não consigo entender o que é isso que você está dizendo, bruno. - você me indica os caminhos, sabe? tudo o que eu faço passa por você antes. Eu tenho a impressão de que isso é ruim.... aí, às vezes eu tenho muito medo de você sumir, porque eu só sei fazer as coisas que te agradam, e só sinto prazer quando eu te agrado, sabe? (tempo) - o que você disse é a coisa mais estranha que eu já escutei. - você precisa ir embora. sabe? você escutou isso? Eu não sei se você me escuta quando eu digo isso. você às vezes não escuta. Eu peço para você ir embora mas muitas vezes não funciona, são palavras que não geram nada! Eu quero que você vá embora. você não escutou? - sim. - Então? - Eu não acredito que seja verdade. é mentira. você me ama. Eu sinto isso aqui, olha. você não quer que eu vá embora. - mas eu quero que você vá embora... porque eu preciso estar longe de você para aprender umas coisas. o meu pai me deixou um monte de coisas, casa, mulher, mesmo o meu corpo de certa forma foi ele que deixou para mim, de repente eu me dou conta disso, ele deixou para mim mãos, pés, unhas, garganta, pinto. mas não me ensinou como usar nada disso!!! Eu olho para essas mãos aqui, que eu não sei para que servem!... Estamos sentados comendo, na mesa da sala. tem um prato na minha frente. Ela cozinhou uns peixes. tem um peixe em cima do meu prato. o meu papel agora é comer esse peixe aqui. pegar um pedaço dele com a ponta do garfo. colocar dentro da boca. mastigar, engolir, digerir... Esse tipo de coisa. Estou comendo o peixe que você cozinhou. - gostou? é para você gostar. gosto de te alimentar de todas as formas possíveis. Eu te amo. 248
antro+
(tempo) - obrigado. você não vai mais comer? por que você está vindo aqui? por que está ajoelhada aí? Ela abriu a minha calça e agora me puxa para fora de mim, pelo pinto, colocando ele na boca. Ela me mostra como eu ocupo espaço dentro dela, faz isso sempre. Ela me mostra o quanto eu existo realmente, porque senão às vezes eu acho que eu poderia ficar em dúvida. Já que realmente a única coisa que me dá algum tipo de certeza é a presença dessa mulher. já faz mais de dois que é assim. hoje ela disse que vai embora. como assim, vai embora? Eu já pedi muitas vezes para ela sair, mas ela não saiu quando eu pedia. achei que ela não iria mais e aprendi a aceitar. Eu ia morrer com ela aqui. mas agora ela disse que vai embora. por quê? - Eu preciso ir. - por quê? - cansei. - por quê? - cansei de você. - Por quê? Você precisa me dizer o que eu fiz de ruim!... Eu preciso saber dessas coisas, vai ser um aprendizado para mim... - você não fez nada de errado. Eu me cansei de você, mesmo. do seu jeito, sabe? - mas por quê?? - é um jeito chato e repetitivo. Eu preciso de um homem de verdade. - por quê? um homem de verdade? o que é repetitivo em mim? - Ele está chegando para me pegar. - Ele?? - É. O Júlio. Você não precisa ficar andando de um lado para o outro assim pelo apartamento, só porque eu estou dizendo que vou embora. aceite isso. Ele foi ao banheiro agora e me deixou um pouco sozinha aqui, o que é um alívio. Ele fica o tempo todo em volta de mim, agarrado, mesmo até sem perceber que está fazendo isso. Eu gostava dele. mas depois começou a ficar cansativo, porque eu gosto de ter liberdade própria. no fundo ele é muito dominador, me demanda demais. você me força a ser sua, não pela força, mas pela necessidade. o que é ainda pior. Olha aí, já voltou do banheiro, não precisa ficar com a cara vermelha de chorar. Estava chorando? - É. Fiquei chorando e olhando para o reflexo da
o filho
minha cara no espelho, vendo as lágrimas brotarem de dentro dos meus olhos, dos cantos dos meus olhos. (tempo) - ...o que é um homem de verdade? - você vai ver. Ele está vindo para cá. Eu já estou tendo relações com ele há muito tempo, porque é melhor para mim ficar com ele do que ficar aqui com você. - por quê? - porque não dá para responder. por isso! - como assim. - Ele já chegou. Está aqui. olha para ele. vê se você entende. o nome dele é júlio. - júlio? você veio buscar essa mulher?
cara. é isso que eu faço com você. Quer? - não. acho que não. - Então é por isso que eu mando em você. Quer ver? - Quero. - Espera. olha. pega aqui. pode pegar. agora mexe a mão. deixa eu abrir o zíper e colocar ele para fora. olha pra ele. abre a boca. fica com a boca aberta. fica parado assim mesmo. olha o que eu faço. Olha o que eu faço. Viu? Eu enfio ele na sua boca e tiro. Enfio de novo. Sentiu? Está sentindo? viu o que eu faço? não se mexe não. agora eu vou tirar. Viu como eu faço? E você fica quieto. Você faz o que eu mando. (tempo)
- Essa mulher aí! Ela morava aqui comigo, eu não sei como eu vou fazer agora.
- Espera. você vai embora? Ele foi embora. Ele organizou o lar aqui um pouco. mandou em mim. Enfiou o pinto na minha boca aberta. Ele sabe como dominar um lugar. Eu preciso aprender a fazer isso. pelo jeito não é tão difícil assim. é só ordenar. dar umas ordens. Eu não sei quais são as ordens para serem dadas. agora por exemplo. o que é para se fazer?
- é, eu sei. agora ela é minha. vou usar bastante.
(tempo)
- como você fez para conseguir levar ela embora?
- não sei. agora estou sem mulher aqui. vivendo nessa casa que não é minha. com esse corpo que no fundo também não é meu. Esse corpo era dela, ela foi a última dona dele. agora ela deixou ele aqui, virou um tipo de resto. faz muito tempo, mais de um ano que eles foram embora, mas eu ainda lembro de tudo. continuei vivo, andando, comendo, dormindo. conheci outras mulheres. tenho a sensação de que naquela época eu era mais completo. minha vida continua acontecendo, mas eu não sei como. sei que eu tenho ido a alguns lugares, onde me dão dinheiro em troca das coisas que eu faço ali. Empilho coisas, lavo talheres. outro dia uma dessas mulheres que eu conheci veio aqui e disse “você vai ser pai”. Ela ficou grávida do meu pinto. a sua barriga já está grande e ela veio morar aqui. a barriga está crescendo mais. vai nascer uma pessoa de dentro dela. um tipo de pessoa. Que nem eu, por exemplo. Ela fica o dia inteiro jogada na cama. Eu não sei o que fazer com isso. Quando vai nascer?
- vim. - Ela morava comigo até agora! - paula, vai pro carro e espera lá. o que você disse?
- Eu sou um homem de verdade. não sou um imbecil sem vida própria. - como é isso? - cala a boca. - não, é sério, eu quero saber... - cala a boca mesmo. sabe por quê? porque eu estou mandando. Eu sou o homem de verdade aqui. Eu sei chegar e dizer assim: “vem cá. pega aqui. senta aqui. vira. abre a boca. vira de costas. não mexe. fica parada. levanta. anda até ali.” coisas assim. Entendeu? sou homem de verdade. Ela gosta porque onde eu estou eu boto ordem. - mas como você sabe se ela vai gostar? - o que eu gosto, eu vou lá e faço. pego as coisas que eu quero para mim. vou até as coisas e pego elas para mim. coisas, pessoas. agora você não pode mais falar. - por quê? Eu queria ir com vocês. - Porque se você não ficar quieto eu vou quebrar a sua cara. sabe como quebra uma cara que nem a sua? Eu cato você assim e arregaço com a sua
- não dá para saber. acho que hoje. - hoje? - é. talvez agora. [segue]
Ant么nio Abujamra 1923 248
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1932
Barbara Heliodora
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Judith Malina 1926 250
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Chris Burden
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Maya Plisetskaya 1925 252
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Todos os inocentes mortos neste paĂs
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