alemanha caderno especial_
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... seguir pelas ruas e cidades
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e encontrar a inventividade da cena alemĂŁ
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berlim + heidelberg + wuppertal Ruy Filho e PatrĂcia Cividanes viajaram a convite do Goethe Institut e do festival Adelante.
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quem? editores
Ruy Filho [texto] Patrícia Cividanes [arte] agradecimentos realização
ANTRO POSITIVO é uma publicação digital, com acesso livre, voltada às discussões sobre teatro, arte e política cultural.
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Adair Gass Anja Riedeberger Berliner Festspiele Camila Pitanga Ida Steffen Isabel Hölzl Juan Meliá Julian Fuchs Julian Mommert Jünger Berger Katharina von Ruckteschell Karine Legrand Marina Ludemann MITsp Simone Malina Stephanos Droussiotis foto de capa Patrícia Cividanes Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio:
antropositivo@gmail.com aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo
editorial E
sse especial reflete uma curiosidade: o quanto a produção contemporânea alemã permanece influenciando e direcionando as criações teatrais em muitos cantos, inclusive no Brasil, e há tantas décadas. Aspectos
como cenografias, ambiências cênicas, estruturas dramatúrgicas, performatividades, encenações e tantos outros ecoam nomes consagrados e novos como centrais aos interesses dos mais curiosos pelo teatro. Encontrar, então, essas origens e perceber as que certamente se tornarão relevantes em breve é um pouco da expectativa desse mapeamento. Nem tudo que aqui incluído será inesperadamente diferente, e ainda sim, será também. Olharemos como quem carrega a bagagem de outra formação ao olhar, de outros estímulos na construção do imaginário, das leituras dos sistemas simbólicos, das percepções analíticas críticas. Somos diferentes dos alemães, e por isso tal aproximação é tão especial e proveitosa a ambos: pela capacidade em revelarmos outros a eles próprios e decifrarmos a nós mesmos nossos interesses. Não se trata, pois, de julgamentos, mas de acumulações de perspectivas. Tampouco de validações comparativas, e sim de aproximações aonde se quer se percebeu iguais. Aos poucos, e não haveria sentido ser de outra maneira, vamos encontrar e apresentar os caminhos e pessoas, possibilidades e artistas, ideias e instâncias. Serão resenhas críticas, reflexões diversas, entrevistas, ensaios teóricos, ensaios fotográficos e mais. Muito pode acontecer nesse trajeto que durará o tempo que a imaginação permitir. Trocamos a pressa pelos estímulos, e o Especial será construído de maneira mutante, ganhando conteúdo, incluindo. E como são muitos, convido a todos a seguir conosco nessa viagem e dividirmos os cafés, conversas, reflexões e experiências. Afinal, não faz sentido irmos sozinho, esse Especial é para todos. E não estamos sozinhos desde o início, por isso é preciso agradecer profundamente ao Institut Goethe São Paulo por acreditar na nossa curiosidade, por apoiar a iniciativa da Antro Positivo e nos ajudar a criar as condições iniciais para realizarmos. Uma boa viagem a todos, e boas leituras.
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air de casa. E encontrar por aí tantas outra possibilidades de se estar em casa. O que parece para muitos impossível é um tanto mais fácil para nós. Pois não se trata da casa ser apenas
um lugar. É mais. E também não se limita a ser um estado. Há quem diga ser casa todo espaço onde se encontra segurança, intimidade e coisa e tal. Casa, nesse momento, é o lugar-estado em que nos faz habitar a nós mesmo, naquilo que melhor nos reconhecemos. O teatro. A sala de espetáculo. A plateia e palco. Os corredores e bastidores. As ruas. Os espaços improvisados. São muitos, e por serem muitos, e por serem especiais, são impossíveis de estarem limitados em uma lista. São próprios e experiências únicas, e cada um contém em si a própria frase completa, feito uma provocação singular incomparável. Sair da casa lugar, real, concreta, ali no canto de São Paulo, e chegar às casas estados em outras muitas cidades, algumas ainda a serem desvendadas, outras residências antigas ao corpo e lembrança. A viagem começa assim. Em busca do teatro que está
perto, simplesmente atravessando o oceano, muito perto, pois
os espetáculos alemães atravessam-nos de tempos em tempos. E pra lá vamos. Eu, Patrícia e a Antro Positivo. Isso, porque percebe-
mos exatamente o quanto frequentamos diversos criadores da Alemanha direta e indiretamente. Aceitamos, claro. Recebemos, então, convites para que escrevêssemos e pensássemos sobre os espetáculos em festivais e não só, em um diálogo que se abre cada vez mais com seus artistas. Recebemos o convite para experimentarmos junto a eles as formas de críticas mais radicais que desenvolvemos nesses anos. Aceitamos surpresos e estimulados. Desta vez provocado pelo idioma, as diferenças culturais, o ineditismo pelo formato qual propomos aos próprios artistas que, curiosos, provocam e nos devolvem os desafios com suas ideias, em um interessante jogo de fortalecimento a ambos os lados, pensamentos e arte. Medo, como dito, na verdade é uma palavra limitadora demais. Talvez melhor trocá-la por ansiedade. Ansiosamente sedentos por construirmos
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tantas casas nossas por aí, uma vez que entramos e nelas existimos, que os convites amadurecendo nesses anos ganhou ainda mais ares de uma aventura realmente especial. E é. Especial por terem nos permitido, encontrado, observado, reconhecido, o que só podemos agradecer aos festivais, ao Institut Goethe e cada um dos envolvidos. Aventuresca, sim, pois, afinal, cruzaremos o Atlântico, chegaremos de alguma forma ao passado e ao que certamente será descoberta e futuro de muitos artistas no Brasil. Há nesse atravessamento duas possibilidades, apenas. Ficar e se lamentar, fugindo do outro apenas por ser outro, desculpando-se e se protegendo através de acusações de imperialismos e colonialismos, quando curiosamente muito dos pensamentos em que se apoiam os que condenam vêm dos mesmos lugares que tanto ofende aos puristas da cultura local. Sim, já fomos acusados disso, de olhar o artista de outro país como quem é devoto por ele ser de outro lugar; de ser discípulo de críticos de outro lugar, apenas por aceitar ouvir o que diferentemente propõe e reconhecer em bons momentos coisas interessantes e inteligentes. Ou, então, como é mais nosso jeito mesmo, podemos ser ruídos e criação. Preferimos pegar o avião. Levar a revista conosco e ser ela a eles uma deliciosa e irônica subversão. A viagem começa. Ansiosos. Já disse isso? E dispostos a virarmos o velho mundo de ponta-cabeça. A Antro Positivo hoje, com seus seis anos, apenas, começa a ter como casa definitivamente também a Europa. Esse Especial sobre a Alemanha é nosso reconhecimento do quanto o teatro por lá ainda norteia criadores por muitos cantos, inclu-
sive aqui. Voltamos a Berlim. Voltamos ao Theatertreffen. Esse foi o
estímulo. E será apenas o início de um mapeamento do que de mais instigante e de melhor encontrarmos por lá. Esse Especial seguirá para além dos próximos dias, semanas e meses, pretende avançar a 2019 ou 20, veremos. Entrevistas, reflexões, críticas de espetáculos, encontros, ensaios, ensaios fotográficos e tantas outras invenções. A partir de agora, a Alemanha é um pouco mais também de nós.
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Hideous (Wo)men Direção Susanne Kennedy De Toneelgroep Oostpool Haus der Berliner Festspiele
Theatertreffen - berlim 2016
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A artificialidade humana A
proximar o teatro do futuro é subscrevê-lo no presente através de argumentos singulares muitas vezes imprevistos ao que se espera da linguagem; é preciso se aventurar e descobrir o que lhe será
originalmente inevitável para ser material passível de representações. Exige, pois, mais do que a apropriação de ideias: requer suas completas invenções. O problema está no limite dado às formas que necessitam de construções minimamente reconhecíveis pelo espectador, ou nada se estabelecerá como diálogo e a compreensão escapará. O teatro, portanto, ao menos esse voltado a provocar o amanhã, é a soma entre a plausível especulação retórica e a criação de estéticas surpreendentes.
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No novo século, o qual estamos, a dimensão humana tem sido colocada em desconfiança por muitas maneiras, dentre as mais relevantes a destituição do conceito de sujeito, até então soberano, que tanto oferta ao homem características sobre sua individualidade, por conseguinte de identidade, diferenciando-o entre os pares e também aos demais seres. Todavia, experiências com estruturas fabricadas e programadas com inteligência artificial para auto-reconhecimento já derrotaram a segunda parte do argumento. Até mesmos seres inanimados adquirem ou desenvolvem o que parece ser uma identidade após períodos de convívio limitados a uma mesma ambiência e atividade, ainda que não haja uma definição final sobre essa observação. Nada muito diferente do cão que se firma líder da matilha, é verdade. O curioso e enigmático é ocorrer igual com mecanismos sem emoção: nanorobôs, por exemplo. Mecanismos ou seres? Parece, então, ser a individualização consequência inevitável a quem for revelada percepção de si e de outros. E isso nada tem a ver com sentimentos. Ainda que exista traços de identidade, a primeira parte do argumento ligado ao conceito de sujeito não mais se sustenta. As experiências confirmam a individualização surgir pela percepção de pertencimento frente ao todo e ser circunstancial, mutável à urgência das necessidades e não primeiramente aos desejos. O sujeito, por fim, deixa de ser o argumento maior, ao não ser, necessariamente, o epicentro daquilo que constrói nossa especificidade. A complexidade do assunto exige revisitarmos alguns aspectos do entendido por artificialidade. Quem ou o quê, de fato, é artificial? Aquele construído, programado e não natural, com certeza. Mas a artificialização do homem também está em ampla discussão. Após o advento do virtual como realidade, não seriam artificiais os que determinam suas
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hideous (wo)men identidades a partir de suas virtualizações? Responder tantas questões levará tempo aos filósofos e cientistas. O dilema é nesses quesitos o tempo estar contra nós. Poderemos perceber tarde demais o homem se tornar mais artificial do que natural, enquanto os seres criados parecerão mais reais que seus próprios criadores. Dilemas de nossa época. E que cabe à arte investigar, desconfiar e invadir. É exatamente o que acontece em Hideous (Wo)men, do Toneelgroep Oostpool, apresentado no Haus der Berliner Festspiele, durante o Theatertreffen, em Berlim, dirigido por Susanne Kennedy. Um espetáculo arriscado, imprevisto e em conversa direta aos questionamentos do futuro mais próximo ao que reconheceremos por humano. O experimento cênico apresenta-se ser: sobre como seres originados de maneira artificial investigariam determinados comportamentos próprios de humanos. Para tanto, Susanne utiliza princípios rapidamente reconhecíveis da arte-instalação, escultura e performance, compreendendo a figura humana em cena não mais como representação, mas como instauração de presenças. Acerta ao fornecer às figuras inexpressivas tonalidades de identidades específicas, cujos rostos são máscaras moldadas em silicone de faces humanas que podem ou não ser dos próprios atores, não se sabe, ganhando a narrativa em complexidade ao se valer dos conflitos gradualmente construídos entre os personagens. Por estarem encobertos, os rostos são idealizações de representação, assim como os conflitos são subversões dos personagens que os fabricam, para através deles chegarem próximo ao mais próprio do humano. A circunstância familiar encenada ao espectador e a eles mesmos fortalece a teatralidade, facilita o acontecimento e farsa existirem em iguais medidas. Os conflitos são quase todos da ordem do desejo, esse instinto incontrolável no ser-humano capaz desde ideias brilhantes até
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arroubos destrutivos. Desejos não são escolhas e se diferenciam na naturalidade ou artificialidade de suas verdades sem meios tons. Assim, os personagens fingem desejar para replicarem o humano, e sobretudo pelas expressões mais ordinárias, os instintos sexuais. Fabricam-no. E não nos é possível decifrar haver ali algo sendo descoberto nos gestos ou se as consequências são derivações programáticas com nuanças caricaturais copiadas de nós mesmos: erotização, ausência de vontade, masturbação, sedução, atração sexual, repulsa, fetiche, dominação, submissão, incesto, estupro, aborto, violência física, sangue. A sequência narrativa é forte. Durante boa parte do espetáculo, o cenário, em quase ininterrupto lento movimento de rotação, é composto por três ambientes distintos, coloridos e paradoxalmente assépticos, sem quaisquer características de pessoalidade, radicalmente genéricos, sugerindo ser somente uma cenografia ao exercício dos personagens jovens e idosos, homens e mulheres. Circulam pelos nichos, que por vezes estão simplesmente vazios, obrigando o espectador a observar a ausência mais do que a presença. Ao tirar as figuras do enquadramento, percebemos no retorno o quanto nelas existe de artificialidade, caso contrário inevitavelmente nos acostumaríamos aos contornos das identidades rascunhadas, assumindo-as meramente. Os instantes de esvaziamento, por fim, ampliam o estranhamento e a necessária lembrança de não representarem pessoas, mas seres que representam para si mesmos pessoas quais não são. Contrapondo-se ao contexto dessa experiência metarrepresentacional - e não metateatral, é bom diferenciar -, as figuras passam a surgir em diversos nichos, rompendo a ilusão de convívio temporal de até então, trazida também pelo movimento rotativo. Com a mesma figura em mais de um nicho, a temporalidade ganha velocidade sequencial, a fábula assume a linearidade de acontecimentos e protagonismos
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fotos Sanne Peper
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hideous (wo)men específicos. O próximo movimento de verticalização narrativo ocorre quando um personagem é desdobrado em diversas presenças em um mesmo quadro. Deixa de existir, então, o tempo como linha de sustentação, o espetáculo passa a limitar a ação isoladamente ao protagonismo da presença. É nesse instante que o espetáculo se torna mais interessante e provocativo ao que se propõe. O interesse se dá na facilidade com que subverte a narrativa qual já está acostumado o espectador. Na sequência que passa a ter o corpo e o desejo como discurso, o limite final é a personagem mulher descobrir com curiosidade neutra infantil as próprias entranhas a partir do sexo. Expurga do próprio interior tripas, restos, coágulos, possivelmente órgãos e carnes, lambuzando-se de sangue e líquidos, em um ato longo que traz nojo e desespero a alguns na plateia. Replicada em várias dela mesma em cena, realiza a investigação sobre si simultaneamente e por diversas maneiras, como se assistíssemos ao gesto em suas variantes no tempo e no físico, nessa espécie de reafirmação ao contexto quântico das existências múltiplas. A leitura sobre a violência ao feminino é evidente, e colam-se aos quadros discursos metafóricos sobre propriedade do corpo e, por que não?, do desejar. A performatividade narrativa interessa menos ao gesto dos atores e mais ao entendimento de ser a performance um movimento igualmente artificial. Desse modo, cria-se o paradoxo: como lidar com a performance no futuro se esta tem como principal matéria o corpo, que por sua vez será artificializado frente à realidade? Querer responder, ou ao menos trazer a questão ao teatro, é uma grande e necessária manifestação de incômodo com os mecanismos de representação da cena atual estacionada em regras seguras e bem estabelecidas. No entanto, ao valorizar o feminino expondo suas perspectivas a partir de discursos específicos, o espetáculo acaba recuperando aos personagens o sentido de sujeito, qual descrito inicialmente. Está nisso,
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portanto, o problema a ser investigado. Será esse o aspecto a ser descoberto por nós, o da inversão, quando a identidade determinará ao ser seu estado de sujeição? Alguns filósofos apontam para esse raciocínio. Todavia, sujeito a quem ou ao quê? Hideous (Wo)men parece sugerir tratar-se não mais do desejo ou do corpo, e sim da procura por um estado corpóreo capaz de nos fazer reviver o existir em uma realidade artificializada. Suzan Boogaerdt, Bianca van der Schoot, Susanne Kennedy ainda precisaram do corpo, matéria narrativa e simbólica concretamente presente no palco para nos falar sobre a falta física e o horror do humano quando corporificado após observado à distância. Superar isso (se é possível) seria mergulhar ao mais fundo do oceano e sem fôlego para o retorno. Por enquanto, ainda conseguem voltar à superfície, e com boas doses de uma identidade artística tão particular que, se não soluciona tantos enigmas, ao menos aponta um futuro inteligente e interessantíssimo ao teatro. _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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Por que o Sr. R. Enlouqueceu? Direção: Susanne Kennedy Autor: Rainer Werner Fassbinder, Michael Fengler Teatro Paulo Autran, Sesc Pinheiros
MITsp, São Paulo 2017
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A dimensão crítica de sermos reais O
cotidiano sustenta o indivíduo provocando-lhe principalmente um estado de inação. Precisa que assim seja, ou o perceberíamos, e a reação seria atingi-lo de volta, vingar-se, destruí-lo livrando-se da mo-
notonia. É a apatia manipulada e conduzida quem impede o surgimento das catarses individual e coletiva, cujas presenças instituiriam no ser desdobramentos de sua percepção crítica fundamentando-a apenas em sensações e não mais pelo racional. Ser racional, nos dias de hoje, portanto, tem uma importância ao contexto de poder, é conviver com o tédio aceitando-o, o que torna o existir obviamente superior frente aos que tanto se abalam, ou os apaixonados, os sentimentais, os irracionais. Assim, perceber o cotidiano seria demasiado perigoso à estrutura que
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lhe exige. Mas não só. Também ao indivíduo não preparado para viver diferente, livre, distante de seus limites e seguranças. Enfim, para além de um controle ao modo de existir comum, é um constante jogo de poder entre diálogos forjados e concessões falseadas. Foi o filósofo japonês Kuniichi Uno quem atualizou os preceitos de biopoder ao demonstrar no contemporâneo a condição de “deixar sobreviver” imposta ao homem. Ao seu ver, os sistemas de poder precisam de pessoas capazes de produzir e criar possibilidades e desdobramentos a eles mesmos, como meio de renovação e sustentação, sem que conquistem independência e liberdade. Isso se provoca pela mera instituição de uma rotina servil, pela qual o indivíduo tem sua condição de sujeito social ampliada, em uma aparente participação vitoriosa frente à realidade estabelecida. Por que o Sr. R. Enlouqueceu?, espetáculo criado por Susanne Kennedy junto ao Münchner Kammerspiele, importante teatro alemão, parte do filme de Fassbinder, de 1970, quando a diretora ainda não era nascida, para retratar um homem sem grandes interesses e motivações, em uma rotina banal limitada às convivências no trabalho e familiar, que confronta a própria inércia de modo violento e trágico contra todos, e a ele, inclusive. A pergunta no título não requer uma resposta simplista objetiva. Surge como um desdobramento da ausência de utopias que construíram esse indivíduo esvaziado e frio, ao tempo em que as deformações se deram lentamente pelo acúmulo dos espaços emocionais tomados por frustrações e tédio. Se algo lhe existe em excesso, são as concessões diárias decorrentes de sua servidão ao sobreviver de um cotidiano asséptico e nem por isso menos contundente. Alguns desses aspectos tem sido investigados com insistência por Susanne em seus espetáculos recentes. O tempo estendido das cenas; os longos intervalos entre falas e reações; personagens quase
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por que o sr. r. enlouqueceu? estáticos, apresentados quadro à quadro; o contar a história sem lhe permitir formas de envolvimentos emocionais. Nada nisso é fácil. É preciso que o espectador se provoque ao convívio extremo, perceba o convívio que traz estetizado e artificializado sobre o palco a partir de parâmetros não-naturalistas, distantes de como é comumente consumido, quase caricato na maneira como sintetiza o indivíduo e a sociabilidade. Entretanto, é pelo estranhamento estético que o reconhecimento do próprio espectador se faz mais incisivo. Ao buscar a sintetização máxima, alcança o ordinário com eficiência e instigante singularidade. Ao provocar imediato distanciamento das representações literais, aguça ainda mais a percepção sobre o que nos é induzido como próprio. A atualidade com que inventa uma linguagem teatral provoca também o teatro alemão, tão excessivo e acumulativo em seus procedimentos estéticos e retóricos, dessas últimas décadas. Susanne supera essas estratégias, e vai além. Trata o sujeito como algo despovoado de vida, mecanizado, biologicamente artificializado, distante de qualquer sensação e incapaz de reproduzir reações. A síntese atingida em cada momento amplia o universo impessoal e estranho provocado pelo uso de vozes gravadas sem qualquer registro de sentimentos e as faces travestidas por máscaras de silicones que impõem a mesma expressão aos personagens, aconteça o que acontecer. Não se nega, portanto, a teatralidade. O que redimensiona a experiência a outra condição subvertendo a lógica da convivência esperada. É preciso aceitar sua proposição e por ela assumir serem as mais de duas horas, no caso de Sr. R., um ruído, uma interferência. O biólogo Henri Atlan desdobrou, a partir da perspectiva do ruído, todo um arcabouço teórico que se estendeu para matemáticos, físicos e filósofos. Para ele, as especificidades de um organismo vivo se revelam sobretudo por suas capacidades em estruturas princípios
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organizacionais e não propriedades vitais irredutíveis. Essa condição, qual ficou denominada por fiabilidade, é que lhe permitiu perceber o organismo inevitavelmente ser atingido e modificado, de modo a aumentar sua complexidade. A isso, que em alguns autores se denominou por erro sistêmico, em Atlan foi traduzido como ruído. E é frente a aptidão de integrar o ruído sem se levar à destruição que caracteriza os sistemas auto-organizadores, por se enriquecerem com eles e não por se tornarem perturbados. Sem essa reformulação, seja um organismo, seja um indivíduo, portanto, chegará a sua desordem total, provocando sua imobilização tendo para si uma ordem estabelecida e definitiva. Reagir significa, então, agir pela contaminação de ruídos que conduzem o indivíduo à se transformar. Quanto mais agressões, ruídos, mais respostas. É a Lei da Variedade Indispensável, uma equação por sobrevivência e não afirmação, entre a variedade das perturbações das respostas e dos estados aceitáveis. Sem isso, seja por qual desajuste for, se emocional, racional, físico, a ambiguidade acumulada no sujeito forma sobre si um efeito inverso, autodestruidor. Em outras palavras: somos sistematicamente atingidos por estímulos que não nos pertencem, de modo a nos exigir adaptações que se traduzem em mudanças e respostas. Ao não reagirmos, destruímos as próprias características, nossa identidade, e nos tornamos inevitavelmente destrutivos. O cotidiano, como bem mostra a narrativa do espetáculo, sabe disso e se ocupa em fornecer estímulos calculados e programados para produzir respostas específicas. É sua maneira de manter o movimento de transformação na condição de sobrevivente e não de ação. O toque na esposa que estranha o contato, o gesto de aproximação com o chefe que recusa intimidade, a inabilidade de diálogo com o filho são momentos em que o ruído escapa ao previsível e estruturam no personagem sua explosão. Não são cotidianos previstos. Não são
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fotos guto muniz e ju ostkreuz
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por que o sr. r. enlouqueceu? ruídos previstos. E, após tanto silenciar-se, os pequenos movimentos acabam desestabilizando a coerência dessa sobrevivência social. Tudo isso está brilhantemente resolvido na postura dos atores. Não se trata de permanecer estático em cena. Susanne provoca uma qualidade especial ao corpo conduzindo-os a um quase movimento. Todo o tempo parece que algo está para ocorrer, que alguém irá agir de modo inesperado. E é nessa possibilidade que o gesto se formaliza como uma intenção presente em cada um, mas limitada pelas estruturas de um convívio cotidiano que requer distâncias e não variações. É preciso falar sobre os três movimentos da representação. Enquanto o palco se valida da perspectiva dos personagens, o televisor ao lado amplia a presença do real como que intrometendo às cenas o cotidiano. Assim, o que parece ser estranho se faz a exclusão consciente de outras possibilidades de convívio. É a soma entre os dois que provoca o deslocamento de um a outro, quase em uníssono. O cotidiano se realiza na falsificação das convivências, enquanto a convivências se formaliza como a construção do cotidiano. O terceiro, por sua vez, quando a tela frontal recobre a cena e projeta espaços e presenças aparentemente deslocadas do contexto, entramos em uma espécie de possibilidade onírica ou delirante dos próprios personagens ou, que seja, apenas de Sr. R. Muitas vezes, o esvaziamento simples do ambiente é a tradução da solidão. Ali, quando aparecem, os personagens não estão com máscaras. São humanos. Os mesmos que retornarão ao final do espetáculo, implodindo a artificialidade, enquanto dançar parece ser a resposta mais correta de como reagir aos efeitos destrutivos dos ruídos, ou seja apenas sentir e deixar que o sentimento aconteça. Resposta essa, que o Sr. R. não foi capaz de compreender. Em Por que o Sr. R. Enlouqueceu?, a diretora lapida o que tem se firmado como assinatura e cria um espetáculo verdadeiramente
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complexo sobre o mediano de todos nós, questionando e provocando a comodidade de nossa aceitação pela mera sobrevivência apontada por Koniichi Uno frente aos ruídos impostos. Se o incômodo é grande por estender a linguagem do teatro ao seu limite, é de se atentar o quanto, no papel de indivíduos, quais executamos tão simplesmente, aceitamos sem constrangimento ou indisposição os estados a nós fabricados. Ou resolvemos logo tudo isso, esse tudo que fingimos não acontecer e existir, que nos impõe formas e limites de se relacionar com a realidade, ou a tendência será chegarmos ao mesmo fim de Sr. R. Para muitos, simbolicamente isso é já um fato. Para outros, infelizmente, de modo literal, exigindo-lhe ações extremas e inexplicáveis. Por oferecer ângulos inesperados, Susanne nos auxilia a construir novos escapes críticos que inconscientemente nos ajudarão a dar conta da concretude de modo mais problematizador. Susanne suscita o ruído e nos obriga a reagir com inteligência. É impossível sair do espetáculo sem ser atingido. O teatro, por sua provocação, então, se torna radicalmente o urgente meio de revelar e superar o insuportável. _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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As Virgens Suicidas Direção Susanne Kennedy
Volksbühne Berlin - 2018
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O teatro recebe uma nova consciência O
que move ir ao teatro? Sair de casa, talvez enfrentar trânsito e fila, possivelmente não encontrar vaga para o carro e assistir a um espetáculo? Se as respostas são muitas, ao invertemos o vetor da
questão, essas se complicam ainda mais. O que move criar no teatro? Sair de casa, horas de ensaios e estudos, provavelmente verbas insuficientes, erguer ideias na forma de um espetáculo? O confronto entre os polos desse encontro, quando palco e plateia se ocupam juntos, determina as decepções ou encantamentos. É como se, de um lado, o artista tivesse a obrigação de acertar ou chegar próximo das expectativas do espectador, seja ele quem for, amador ou profissional. De todos? Sim, exige o senso comum. Estabelece-se nisso o
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primeiro dilema ao impossível, pois sendo tantos e tão diversos sempre haverá os contrários e os realizados. Por espelhamento espera-se o espectador como alguém disponível e preparado para abrir mão de seus julgamentos prévios, pelo sabor da experiência oferecida. Esqueça, nenhuma das partes é completamente decifrável, e diante disso surgem os especialistas para mediar as qualidades de ambos e produzir melhores aproximações. Ocorre, por fim, mesmo os estudiosos se defenderem quando expostos a artistas e públicos, servindo-se insistentemente por argumentos tecnicistas e historicistas. É como se o teatro devesse ser de um jeito ou de outro, tivesse limites e permissões às suas quebras, houve nele certezas fundamentais. Susanne Kennedy, mais uma vez, explode a tudo isso. Não se importa em cumprir qualquer trato prévio com as regras teatrais consolidadas, tampouco se rende às vontades da plateia. Sem facilitar o acontecimento, o recente espetáculo As Virgens Suicidas subverte geral e alcança a assinatura já peculiar à diretora: respire fundo, aqui você será levado ao intraduzível. Prefiro isso. Como espectador, gosto de ser conduzido ao desconhecido e de modo inesperado, de sentir as interrogações sobre meus próprios argumentos e colidir de maneira definitiva minhas expectativas com a obviedade pela qual se firmaram nesse amplo contexto cultural dado e manipulado por mercados e sistemas diversos. Como crítico, ainda mais; ao encontrar uma substância que me obriga destituir minhas certezas, avisando-me do meu envelhecimento, enquanto me prepara às descobertas e outras qualidades de percepções. Portanto, ainda que o teatro se alternasse ao meu redor entre três grupos bem desenhados de espectadores após a apresentação de As Virgens Suicidas – os que se sentiram traídos e saíram expondo suas revoltas, os que se sentiram realizados e mantinham seus aplausos aquecidos, os que simplesmente permaneceram sentados em silêncio ao término da função perdidos na ausência de suas próprias
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as virgens suicidas conclusões –, sobrepunha-me o convívio entre meu existir ali em ambas as categorias. E dizer qual delas, se espectador ou crítico, foi a mais abalada é desnecessariamente tentar resolver a mistura explosiva entre muitas sensações. Sei que sorria na calçada, minutos depois; e horas mais tarde, ainda falava sobre a peça com amigos. Aqui estou, agora, mergulhado em suas tramas sem qualquer tentativa de as solucionar. Olho-me e percebo, desde já: não me livrarei facilmente desse espetáculo. E isso é mesmo ótimo. Susanne Kennedy se coloca à beira do precipício por três vezes em seu novo trabalho. Precisa lidar com a existência do romance homônimo de Jeffrey Eugenides, também do filme de Sophia Coppola e, por fim, da própria linguagem que tem construído em sua trajetória como encenadora. Escolhe não ser seduzida pela facilidade em resolver nenhum deles e se lança aos três precipícios de uma vez. Utiliza apenas frases do escritor americano sem se preocupar em adequar a narrativa original ao palco, procedimento mais próximo ao realizado em Warum läuft Herr R. Amok?, montagem de 2014, a partir da película de Fassbinder, (no Brasil, Por que o Sr. R. Enlouqueceu?); também não registra um percurso plausível de reconhecimento ao narrado, pelo qual as consequências surgem como desdobramentos ainda que inusitados, como em Women in Trouble (inédito para os brasileiros). Dessa maneira, se livra do risco de ser o teatro apenas meio de adaptação da história e de exposição dos personagens apresentados por Eugenides. Escapa com fundamental urgência da filmagem de 1999, de Coppola, distanciando-se dos naturalismos possíveis ao como representar contextos, sentimentos e pessoas; e, muito menos, ainda, de instituir uma espécie de documentário ficcional de nossa época, a partir das cincos garotas da família Lisbon e seus percursos psicológicos rumo ao fim revelado logo pelo título. Nem o livro, nem o filme, portanto, estão no palco do Volksbühne, o que, evidentemente, frustra explicitamente parte da plateia jovem
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que, talvez, estivesse ali para reviver aquilo com que se identificara por meio dos outros meios. Dessa vez, ainda mais que os espetáculos anteriores, mesmo mantendo as máscaras e vozes pré-gravadas, a diretora reinventa seu vocabulário estético enfrentando certa assepsia proposital presente em outras de suas encenações. O palco tomado pela provocativa ambiência de Lena Newton, sobretudo, traz à cena um futurismo do presente, e não da ficção científica, evidenciado nas estruturas mais caricatas de nossa época, às quais estão máquinas e telas diversas, cores e luzes, brilhos e excessos de toda sorte em busca de seduzir o olhar e velar o imaginário do convívio com o real. Faz-se precisa, então, as máscaras-faces com seus olhos de mangá, auxiliam a recortar as garotas às irrealidades do agora pelas lentes das histórias em quadrinho. Soma-se a isso, duas perspectivas de virtualização que ora se servem de extensões de seus arquétipos, ora apenas se traduzem como deslocamento da racionalidade: na primeira, vídeos trazem garotas supostamente reais diante de câmeras, em ações cotidianas (mas nada banais) como meio de se exporem ao mundo na forma de originalidades, são meninas youtubers que se projetam ao real pela ficcionalização de suas identidades e presenças; e na contraposição, o avatar idealizado de um rosto que pode ser lido mais feminino do que masculino cuja aparição nos convida a nos libertarmos de nossos egos e consciências. É pelo avatar nu que surgem as pistas mais precisas ao como Susanne investiga as meninas-mangás em cena, trazendo através dele falas de Tymothy Leary e suas proposições ao uso do LSD para expansões da mente, da percepção e de investigações espirituais. Há um paraíso lisérgico erótico artificial que o acompanha em contraponto ao refrigerante disponível no cenário, pelo qual o prazer é sobretudo uma oferta produtificada de substituição aos sentidos autênticos. Por isso, se espectador quiser encontrar traços de sua própria realidade no es-
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as virgens suicidas petáculo – ou ao menos a que lhe é oferecida como sendo real – entrará no vazio de uma não representação. Nada em As Virgens Suicidas é representativo à maneira como comumente se entende o termo, tudo é a constituição de uma alegoria simbólica a ser desvendada a partir de preceitos não simplificados. Evidentemente, o espetáculo se confirma um alucinante labirinto de escolhas e códigos, e nem sempre isso é agradável a quem quer explicações definitivas. Todavia, como tal, passagens e caminhos se desdobram paralelos não para conduzir às saídas ou respostas, mas, principalmente, para ampliar os dispositivos do próprio teatro existir ao convívio estético por um profundo e necessário outro deslocamento cognitivo. Susanne conquista, por conseguinte, a liberdade de não estar mais aprisionada ao real em nenhum de seus menores aspectos, e de tornar realizável outros paralelos ao potencial poético de uma experiência cênica. Se expandir o pensamento, a consciência, liberar-se do ego e glorificar a ritualização de fim parece distante de ser compreendido, é preciso aceitar nada disso estar escondido do público ou crítico. A eleição pelo Livro Tibetano dos Mortos, que se serve de estrutura ao roteiro da ritualização das garotas ,está explicitada no programa do espetáculo entregue. É fato ninguém ser obrigado a lê-lo e de, em certa medida, o palco ter de ser capaz de suportar as informações essenciais por si. No entanto, também é escolha ao artista sua pesquisa não ser explicitada de forma literal e os códigos com os quais trabalhou e criou estejam presentes ao espectador, ainda que por outros dispositivos. Segundo esse livro, a consciência necessita de 49 dias, após a morte, para se libertar de seu estado anterior e estar disponível ao início de outra reencarnação. É sobre esse intervalo, então, que Susanne ergue o espetáculo. Os dias são identificados individualmente ou agrupados esclarecendo não se tratar mais a narrativa apenas do que levara as garotas aos suicídios, e sim também do processo de suas reinvenções após mortas. Tudo é uma espécie de ritualização preparatória ao pla-
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no de consciência pós-morte e não de fim, enquanto o homem-guru assiste aos corpos das meninas se transmutarem regurgitando a materialidade que lhes deixou de pertencer, tendo em mãos um coração brilhante, tanto o quanto da Virgem Maria ao fundo, potencializando o contexto sagrado dessa cirurgia de morte, tal como definem os tibetanos. O corpo exposto ao fundo, em nudez mórbida, que sugere ser a primeira das meninas, permanece em luto sem se esquivar do ocorrido. É a elas cenário e possibilidade em iguais medidas. É a dimensionalidade mais explícita da ritualização de uma liberdade que não virá se não assim. Querer morrer, tratado no contemporâneo tão insistentemente como ato de desistência ou consequência depressiva, amplia-se ao ser o sistematizar ritualisticamente os instrumentos para, enfim, emancipar-se da consciência. O espetáculo não defende o suicídio ou potencializa a possibilidade do fim auto-infringido ser uma resposta melhor, ele observa a desistência do indivíduo em atuar junto ao real e para sua construção, subvertendo a percepção da consciência que, agora, e mais do que nunca, a contemporaneidade lhe exige. Não é uma manifesto pelo morrer, é um gesto em busca da compreensão de como reiventarmo-nos a essa outra condição do existir que nos exigem as múltiplas faces quais rascunhamos por tantos meios artificiais. Somos inevitavelmente as representações de nós mesmos em uma espécie de história em quadrinhos ilógica e despropositada, entregues a uma jornada aparentemente sem sentido ou finalidade. Em outras palavras, passamos somente a estar e não mais a existir, o que demanda uma profunda reinvenção da consciência se quisermos transgredir e alcançar outra possibilidade de vida. De forma inesperada, o espetáculo é mais otimista, portanto, que livro e filme, pois encontra nessa outra qualidade de consciência a dimensão de retorno desse corpo em estado cirúrgico de morte ao qual estamos submetidos. Se os tibetanos e Susanne estiverem certos, talvez no futuro nos descubramos de volta ao real. Por hora é preciso aceitar o ritual de fim.
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as virgens suicidas No último segundo de As Virgens Suicidas revela-se aqueles por detrás das máscaras. Aqueles, pois são homens, são atores. É como se aquelas meninas suicidas fossem construções de um mundo masculinizado que lhe impusessem tal resposta de solidão e gesto de reação. O homem ainda como a estrutura de um feminino que se aprisiona como eco aos anseios e desejos que não os próprios. É a parte mais triste do espetáculo. E é nos últimos segundos, durante os aplausos, que sabemos disso. Afinal, estivemos lá, nesses 80 minutos, por elas e não por eles. Descobrir que as meninas já se foram e não mais as encontraremos é ter de aceitar a transmutação física do feminino morto em seu trajeto de reinvenção. Rompe-se mais ao serem atores homens, também o teatro, a ilusão. A concretude do masculino exposto reativa ao espectador a realidade inegociável que se estende para fora da sala e nos espera sem pudor. Susanne arranca dessa maneira a utopia e nos impõe a verdade. E ficam ali, os que precisam de um pouco mais, durante as luzes acesas, o público se retirando da sala, sem saber como abandonar as poltronas ou sem querer reativar as verdades inevitáveis de sua própria realidade. Entre os que aplaudiram e reclamaram, houve aqueles que se perderam em sua própria ritualização e conquistaram profundamente outra consciência, e nem sequer perceberam isso acontecer. Não chama-se religião, esse processo, nem mesmo alucinação, delírio, devaneio. Chama-se, especialmente, Arte. Susanne Kennedy é mesmo um perigo necessário. Aceite. Afinal, o que lhe move mesmo a ir ao teatro? _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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visita A face de um teatro do presente, pelo encontro com a manifestação real ruy filho renato parada intérprete isabel hölzl por
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onstruir uma cena propositadamente política requer reconhecer a qualidade do quão específico é o momento atual. Nada fácil, portanto. E impossível de ser resolvido com a elaboração de um
resultado simplista e superficial. É preciso ir além das perguntas iniciais, invadir outras percepções sobre o momento, para, partindo de um ângulo diferente, estruturar um discurso que igualmente seja a demonstração estética em pleno diálogo com os mesmos princípios norteados nas criações. Nada fácil, portanto. Aproveitando a presença de Thomas Ostermeier em São Paulo, a revista Antro+ foi conversar com o diretor alemão. Final da tarde, céu em crepúsculo, acomodamo-nos em uma das mesas externas do Instituto Goethe, e com ajuda de uma intérprete, dividimos nossas reflexões. Ele, acompanhado ainda por uma xícara pequena de café. Eu, por uma xícara dupla sem açúcar. Mas, confesso, já era aquela a terceira da tarde. Começo por suas observações recentes aos jornais europeus sobre vivermos um período de crises estéticas e de conteúdo, mas não necessariamente do teatro como manifestação. Para Ostermeier, a complexidade se fez no momento em que se opôs o teatro dramático ao pós-dramatico, levando a uma espécie de contentamento imediatista com a construção de estéticas afirmativas. Sua argumentação, no entanto, necessita ser localizada em tempo e espaço para ser melhor compreendida, sem que pareça mera generalização. Conta ter acompanhado diversos movimentos na Alemanha de desconstruções da cena e de criações de estéticas originais que fugissem aos ditames do teatro convencional. Isso, quando ainda estudante universitário, décadas atrás. Sua escolha, então, foi fugir dos novos desenhos tornados igualmente referências e construir o descontruído. Recuperar a essencialidade de uma realidade quando posta em cena. Para tanto, a pergunta correta não deveria mais ser sobre qual aspecto do realismo, e sim sobre pelo qual entendimento de realidade.
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No Brasil, vivemos o caminho oposto. Por serem as últimas décadas as afirmações de textos cada vez mais realistas em cena cotidianas, sob o pretexto da representatividade do social, temos por iniciativa opor-se artisticamente por desconstruções do drama e da realidade. Interessante, ao fim, perceber o quanto os julgamentos necessitam ser atribuídos pelos valores que norteiam as escolhas e não os trazidos por quem julga. Em uma espécie de círculo previsível, onde a espiral existe o retorno ao contraponto, sempre produzindo a renovação das estruturas originais. Depois de experimentar a dramaturgia contemporânea, os espetáculos criados a partir de Henrik Ibsen e William Shakespeare ofereceram-lhe as aproximações necessárias ao entendimento de como a realidade poderia ser novamente aproximada pela estética, através do que denominou por Realismo Capitalista. Fundamental ao projeto dessa exposição realista está a formulação de uma poética do cotidiano, atuando por meios comuns em construções próximas as nossas ações e reações reais. Para o diretor, os dois autores com quem tem mais trabalhado nos últimos anos somam a representação de como a consciência ocupa os espaços nessa nova realidade. A primeira, demonstrada em Hamlet, traz a consciência política como estado de inquietação e descobrimento, refletindo um indivíduo arqueado sob o peso das próprias percepções. A segunda difere-se exatamente por sua capacidade de reação, a consciência da ação política, como pode ser visto em O Inimigo do Povo. A importância está no não se limitar à construção meramente tecnicista do realismo como linguagem histórica, tampouco como sua atualização. Não se trata tanto de realismo, explica. Os espetáculos são, ao seu ver, laboratórios do comportamento humano,
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pelo qual se busca pelo jogo a veracidade desse existir. Ou seja, conclui, a utopia possível de realidade no interior dos jogos travados com os espectadores. Todavia, nada disso faria sentido se não houvesse no movimento do jogo uma instância premeditada de configuração política sobre o outro. Por isso, o realismo capitalista redimensiona o outro a partir da nova lógica de configuração política, pela qual o capital econômico se impôs. Ao construir por tais argumentos sua arte, o diretor junta-se a um panorama dos mais relevantes do pensamento recente, no qual surge, dentre outros, Antonio Negri, como um dos mais significativos. Para o filósofo italiano, vivemos o declínio progressivo da soberania dos Estados-Nações nas últimas décadas, levando à subordinação real da existência social pelo capital. Esse novo indivíduo, agora descentralizado de sua capacidade participativa, mantem-se refém aos desejos econômicos, sem muitas possibilidades de agir ou se contrapor. É preciso que o indivíduo aceite sua condição, como forma de consciência sobre sua realidade, para construir mecanismos de destruição dessa separação entre o social e o político. A isso, Negri nomeia por Multidão. Para o teórico, portanto, a Multidão se confirma como poder constituinte das massas desejantes, apoiando-se na perspectiva de ser a democracia a expansão do que venha a ser o comum a todos. A linguagem do realismo capitalista desenhada por Ostermeier, então, dialoga com a necessidade de atuar sobre o instante presente dos acontecimentos. Não lhe interessa construir o futuro como algo que lhe exija inventá-lo pelo uso de reflexões artísticas calcadas sobretudo na originalidade estética, afirma. O presente é seu estado de presença e ação. É preciso ser e estar real em cena, tanto quanto se quer reais e representativos os discursos nela expostos. Desse modo,
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“O TEATRO SE COLOCA AO OUTRO COMO LUTA DE BOX.”
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o que Ostermeier costura é a realidade como manifestação de uma identidade imposta ao presente por forças em conflito de poder. Não é a toa, exemplifica o teatro como a realização de uma luta de box entre o palco e a plateia. Não mais pelo conflito físico direto, mas no surgido pela exposição da realidade e sua farsa conduzida por outros interesses. Negri afirma, no entanto, que reunir novamente social e político não deve gerar outra unidade. Pelo contrário. É preciso buscar a produção de diferenças, de invenções, de modos de vidas, de explosões de singularidades, nas palavras do filósofo. Se trouxermos isso à arte, então a escolha de Ostermeier em negar as combinações vanguardistas parecem fugir dos princípios da Multidão. Mas essa seria uma leitura simplista de associação literal de um conceito a uma prática. O teatro realizado por Ostermeier reproduz a incapacidade do homem em atingir esses estados, exatamente pela dominação da política pelos interesses do capital. A falta de ação, como tanto se pode ver em Hamlet, não significa desconhecimento, mas a perda referencial do homem atual em como reagir a um sistema tão impositivo. O realismo de Ostermeier produz o efeito de perturbação dessa impossibilidade ao tornar a ação reconhecidamente um processo estético sobre a política, o social e o capital. E é por esse aspecto, que a diferença requerida por Negri não se faz necessária mais como invenção ou criação de novos modos de vidas, mas pelo mergulho vertical na essência daquilo que impede a Multidão de existir em plenitude. Em outras palavras, ainda que os textos de Ibsen e Shakespeare escolhidos por Ostermeier, ou mesmo dos seus contemporâneos como Sarah Kane, exponham as estruturas dessa capitalização da realidade, o mais importante em Ostermeier é o redimensionamento humano daquilo que deixa ou falta existir. Não se trata de um realismo
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como busca moral. Se algo pode ser mais específico ao seu invento, talvez possa ser denominado por um realismo pós-dramatico. Mas isso necessitaria de muitas outras páginas mais, para nos debruçarmos na consistência da criação desse conceito. Perguntado sobre a facilidade em se aventurar e desprender dos textos, Ostermeier responde sobre a importância de se compreender a narrativa como um processo de colagem, cuja liberdade em lidar com os elementos lhe permite chegar ao núcleo da própria dramaturgia. Incomoda-o o quanto demasiadamente respeitados são os textos clássicos. É preciso não atualizá-los. Mas recriá-los a partir do reconhecimento de seus núcleos, em discursos outros reverberados durante a história e em seus formatos presentes. Por isso, a colagem não se refere especificamente a reunião de códigos de representação. São, sobretudo, os próprios códigos manifestados em roupagens atuais. Essa aproximação com a urgência do instante oferece mais desenho ao realismo capitalista, pois configura a cena instaurada pela instantaneidade dos acontecimentos em plena presença de suas imaginações. Talvez seja esse o ponto possível a um mergulho no entendimento do que venha a ser um possível realismo pós-dramático, visto que a simultaneidade das ocorrências reais e de suas representações não podem dar conta de sustentar a dramaticidade envolvida nas consequências absorvidas pelos indivíduos, já que elas, ao se revelarem fato e cena, se confundem com a possibilidade de criações reais de realidades possíveis. Há nas subjetividades envolvidas nesse trâmite do reconhecimento do fato real apenas pela sua demonstração estética, ainda que esta seja uma cópia do ocorrido, a afirmação de subjetivas leituras da realidade. Não necessariamente como verdade, mas como fato, portanto, destituída de sua relação imediata ao sujeito e aos valores dramáticos correspondentes nessa relação.
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Se, para Negri, a imaginação da Multidão predispõe a subjetividade para uma ação comum diante das crises, o realismo capitalista amplia a ação comum para as crises de conteúdo e estética, acreditando na relevância de provocar no espectador instantes de utopias sobre o homem e a sociedade. Antes de terminarmos nossos cafés e seguirmos às despedidas, pergunto-lhe se não seria, então, a utopia mais importante agora o acreditar ser possível existir ainda utopias, sejam elas quais forem, sobre quem e para o quê. O olhar de Ostermeier se perde ao profundo do céu noturno. Momentos como esse, silêncios em busca de palavras precisas, foram a tônica de todo o encontro. Ostermeir é cuidadoso ao correr o risco de construir conclusões. É noite. Estamos todos cansados. Ostermeier permanece em silêncio longos minutos. E simplifica tudo com um esperançoso “acredito que sim”. Então que o teatro seja também a utopia possível ao desenho de uma realidade do agora. Gosto disso. Café terminados, abraços. Últimas palavras. Ele, a caminho de Buenos Aires. Eu, de casa. Mas, no meu caminhar de volta, a dúvida. Não me lembro de ter pago os cafés. E percebo o quanto fundamental é ao indivíduo ampliar sua consciência dos mínimos meandros que determinam sua própria realidade. Esteja ele no palco, na plateia ou comprando uma dose de café. _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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“OS TEXTOS CLÁSSICOS PRECISAM SER MAIS DESRESPEITADOS.”
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A Gaivota Direção Thomas Ostermeier De Anton Tchekhov Theater Odeon
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a gaivota
É IMPOSSÍVEL PREVER O VOO DE UMA GAIVOTA P
ara quem espera assistir o encenador da impactante montagem de Hamlet (2008), desista. A Gaivota está mais próxima a trabalhos como O Inimigo do Povo, em que o palco valida a narrativa e sua
desconstrução. O que quer dizer que Ostermeier inverte a dinâmica que o levara a ter reconhecimento internacional, e agora, dedicado ao fortalecimento da dramaturgia, permite-se investigar outros artifícios próprios ao teatro, a saber, a relação de como apresentar a narrativa não apenas por representações substitutivas, mas pela sensibilização do espectador aos princípios fundamentais elaborados pelos autores. Volto um pouco. Em O Inimigo do Povo, Ostermeier utilizou a plateia como audiência pública durante o discurso do Sr. Alasken, médico
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que busca demonstrar à cidade a contaminação da água, o que provocaria enorme prejuízo ao balneário, tornando-o o inimigo indicado pelo título de Ibsen. No espetáculo, a apropriação do espectador se dá como coerência simbólica ao suscitar ao teatro agir outra vez como ágora. Contudo, tal recurso não é novo e se faria enfadonho não fosse a capacidade de construção da transição para além da quarta parede de modo sutil e inesperado. É de repente que o público se percebe participante e opinativo, assim como também o instante em que deixa de atuar. A capacidade em deslocar o espetáculo e inserir o outro revela um propósito maior: desvela o quanto todos ali, concordantes ou não aos argumentos do protagonista, são facilmente conduzidos pelo diretor para figurarem seus interesses. E é exatamente dessa manipulação que fala a peça. Em sua montagem, Ostermeier problematiza ser ele mesmo o inimigo maior, ou melhor, o teatro, a representação, a arte; como quem é capaz de conduzir e determinar participações e comportamentos. Essa mudança de estratégia cênica propõe uma ousadia peculiar. Ao ser referência a outros artistas, Ostermeier nega sua linguagem, em certo sentido, e surpreende consciente e inquieto com as conquistas do passado. Ainda assim, deixa espaço para o espectador compreender o jogo e sua inclusão, o que lhe confere certa proteção como criador. Em O Inimigo do Povo, portanto, o diretor deu um passo gigantesco se distanciando da iconoclastia hamletiana, o que não resume em melhor ou pior escolha ao teatro, contudo sem se colocar verdadeiramente em pleno risco. Tudo isso foi para atingirmos, enfim, a A Gaivota, em que o risco é mais profundo e perturbador. Chegarei a ele mais adiante também. Antes, o espetáculo. Elenco em cena, objetos e mobiliários disponíveis ao olhar. O início reitera a busca desse outro movimento de Ostermeier pela exposição
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a gaivota sem artifícios teatralizados e exageros propositais. Ao fundo, a parede que cobre a extensão do palco fechando a caixa cênica recebe a delicada pintura negra, traço à traço, revelando uma paisagem bucólica e isolada. É de fato o único elemento menos diretamente informativo, quando comparado à mesas e cadeiras. As montanhas, vales, bosque e lago pintados levam boa parte do tempo do espetáculo para se concretizarem. O diretor utiliza a lentidão, então, para nos convidar a viajar à Rússia de Tchekhov, seus ambientes e características. Assim, o tom negro do traço que escorre em tinta aguada lembrando desenhos orientais dialoga com o vazio de palco ocupado pelos conflitos existenciais dos personagens. A bela pintura oferece fugas aos espectadores, que podem se esquecer dos atores e dos dilemas humanos ali expostos, para se aterem à viagem rumo ao poético da natureza. A delicadeza e precisão do gesto durante a execução é encantadora, e Ostermeier sabe disso e utiliza igual deslocamento da iluminação em tons mais frios de branco e penumbras. No entanto, o que serve como desvio poético é brutalmente destruído, tornado um quadro gigantesco negro. A anulação da paisagem se concretiza inevitável como a perda de Kóstia pelo desejo de reinventar o teatro como linguagem. Para os não familiarizados com a peça, Kóstia, filho de uma consagrada atriz clássica, apresenta à família e amigos sua proposição de um novo teatro, através de uma peça interpretada por Nina. A cena é ridicularizada e Kóstia menosprezado por sua vontade de modernização. Durante a montagem de Ostermeier, Kóstia descreve o teatro que idealiza, e parece mesmo um tratado do que de mais mercadológico se encontra nas experimentações atuais. Luzes frias, máscaras de animais, ausência de personagens e uma casualidade performativa, por exemplo, são elementos que levam a plateia às gargalhadas. Fica claro que o espectador reconhece cada um dos artifícios citados por Kóstia. E talvez devamos entender o riso como um recado de quem
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não suporta mais tais fórmulas. Afinal, basta sair um pouco das listas dos espetáculos mais comerciais para encontrar diversos desses itens no que comercialmente se traveste por vanguarda. É com esse olhar crítico, e que também se volta a ele mesmo, que Ostermeier atinge maior grau de profundidade. Ao colocar o estereótipo da vanguarda como objeto de banalização pelos personagens e público, Kóstia se encontra irremediavelmente vencido. A única interessada em sua arte é mesmo Nina. No entanto, como a peça revelará, capaz de conviver e aceitar as condições medíocres que dominam a ambiência artística, presa ao tradicionalismo, enquanto se mantém fiel ao seu intuito de conquistar reconhecimento e sucesso. Kóstia, não. E a falta da liberdade em criar e de viver a arte a partir de novos valores o levará, ao fim, à desistência e suicídio. Para o personagem, é impossível viver sem ser artista, e não sendo possível sê-lo, nada mais resta. Ostermeier responde silenciosamente essa questão. Ao tempo em que Kóstia inicia sua desistência da arte, o espetáculo reassume as coxias, entradas e saídas de cena, realiza-se mais próximo ao proscênio na correta centralização do palco, ganha luminosidade sutilmente mais dramática, quente e frontal, e passa a sustentar a narrativa principalmente por diálogos. Em resumo: deixa de ser belo e inventivo para ser tradicional e quase insuportável. Aqui está o elemento perturbador. Assistir a esse segundo momento é cansativo, repetitivo, previsível. E inevitavelmente tem-se o público deixando o teatro e com comentários mais interessados sobre a primeira parte, como se fossem espetáculos distintos. E são. Propositadamente, acredito. Novamente, Ostermeier se apropria do espectador. Contudo, dessa vez, sem que este perceba, sem dar-lhes pistas de sua participação e
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fotos Arno Declair
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a gaivota perigosamente sem revelar o jogo que realiza. Ocorre que, ao tornar correto e careta a cena, o espectador é induzido a querer não esse tipo de linguagem, mas o assistido inicialmente, o experimento, o poético, o inesperado. Em sua versão de A Gaivota, o diretor conduz o público a sentir o mesmo desejo que Kóstia, enquanto é obrigado a conviver com a frustração de um teatro que já pouco ressignifica a linguagem. Por não se expor explicitamente, como fizera em O Inimigo do Povo, Ostermeier se arrisca ao entendimento superficial de ter um trabalho irregular ou incompleto. Pelo contrário. Aperfeiçoa sua metodologia em tornar o espectador um objeto narrativo e o espetáculo somente o estímulo ao deslocamento das sensações. Até aonde essa estratégia chegará, teremos de esperar. Certo é Ostermeier provocar novos desequilíbrios àqueles que o assistem. E já com reconhecíveis influências em espetáculos aqui e ali. Caso queira mudar de direção em algum momento, e isso certamente ocorrerá, pois é de sua natureza a inquietação, só é possível imaginar que será igualmente imprevisível. A gaivota morta, como morto está Kóstia e a expectativa de um outro teatro, renasce em Ostermeier e sua provocação em fazer com que o público deseje um teatro que não apenas o comum. Difícil mesmo é conseguirmos definir o que não é mais aos palcos o comum. Bom, esperemos. Ostermeier certamente deverá surgir com provocações a isso também. _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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foto jean louis fernandez
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Dimitris Papaioannou,
primeiro diretor convidado a dirigir o Tanztheater
Wuppertal Pina Bausch ruy filho julian mommert por
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Seit Sie Neues Stück I Direção Dimitris Papaioannou Com Tanztheater Wuppertal Opernhaus Wuppertal
wuppertal 2018
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as sombras do humano depois dela D
entre algumas impossibilidades a um crítico, talvez a mais cruel seja mesmo a necessidade de apresentar por palavras aquilo que, por essência, dela se libertou. Sem reativar princípios explicativos, o
que por si seria limitar o escrito à simplificação didática, uma resenha (sempre prefiro denomina-la assim, e não por crítica) exige da escrita descobrir outras qualidades em como encontrar obra e artista. Dialogar, ao meu ver, é uma dessas descobertas possíveis. No entanto, cobra-se em demasia do crítico suposta neutralidade e distanciamento, e muito disso advém do próprio ambiente jornalístico cujo interesse está em existir somente para informar. Ora, apresentar ou aproximar alguém ou algo, artista ou espetáculo, não é nada eficiente quando efetuado por descrições e julgamentos. O diálogo que proponho é de fato
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trazer o leitor ao mais próximo do outro, a partir da realidade de meu próprio encontro. O restante surge pelos interesses, curiosidades, espelhamentos e empatias de cada um. É preciso começar por esse tangenciamento ao próprio texto, pois não se trata de algo simples o espetáculo. Em suas muitas camadas construídas por códigos e simbologias, Neues Stück I – Seit Sie sedimenta outras mais enquanto acontecimento. Por isso, o tema ou título que se queria a esse artigo (que, como pode ser verificado, desisti, dada sua enigmática abstração) seria: o Homem, a Mulher, uma mulher, um homem, homens, mulheres e nós. Em outras palavras, a tentativa de mergulharmos no masculino e feminino do espetáculo, em Pina Bausch e Dimitris Papaioannou, nos dançarinos e dançarinas e no espectador, não necessariamente nessa ordem e tampouco tão individualizados. Excessivo, eu sei, já aceitando meu provável fracasso em atingir tanto. Sendo complexo trazer por palavras o apresentado em presença, mais ainda o é por serem os artistas quem são. Tanto Pina quanto Dimitris são criadores de obras singulares, cada qual ao seu modo, por suas capacidades em instituir sensações ao espectador. Em seus espetáculos não se deve buscar conclusões sobre o assistido, mas permitir aos sentidos somarem o acumulado para, então, configurar a emoção final muitas vezes inominável. Ambos conquistaram a qualidade nada simples de subjetivar as sensações a tamanha particularidade de quem as sente que o diálogo travado individualiza radicalmente as experiências. Pina se tornou uma referência icônica aos apaixonados pela dança clássica e contemporânea, conseguiu instituir popularidade universal ao objeto artístico. Dimitris, por sua vez, tem reativado na dança a perspectiva de um mergulho estético-narrativo, ao qual não importa categorizar; seu espectador é sobretudo o sedento por imagens belas e inesperadas, pelas quais se afasta da banalidade para encontrar novas abordagens de como se sentir e perceber.
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seit sie Não é estranho, portanto, ser Dimitris o coreógrafo do novo espetáculo para o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. A companhia que foi dirigida pela coreógrafa alemã desde 1974, morta há nove anos, é invadida pela primeira vez por um estrangeiro, alguém não da própria casa, por outro. Ou melhor, abre-se ao diálogo com o presente por meio de Dimitris e com a própria atualidade. O estrangeiro, em sua qualidade de percepção, relembra as coreografias sobre cidades que Pina se dedicou nos últimos anos. Se escrever sobre é o construir pontes de diálogo, criar distintos diálogos é tanto quanto vontade de comentar o agora. Mantendo em circulação internacional uma quantidade extensa de espetáculos do próprio repertório, o Tanztheater não apenas quer se reinventar com o outro, quer erguer maior elasticidade à sua dança. Pina era conhecida pela estratégia de perguntar aos seus performers e a partir das respostas físicas e verbais recolhidas encontrar estímulos e argumentos a seus espetáculos. A companhia olhou ao mundo de volta – mundo esse tão inesperadamente diferente ao aguardado e tão igual ao tido por superado –, e se perguntou: quem agora pode nos trazer as interrogações? Dimitris, ao seu modo, faz as perguntas pelo uso do deslocamento onírico da representação, sobretudo. E ao ver as respostas de ambos, diretor e dançarinos, na forma dada a esse espetáculo histórico por tudo aqui dito, viu-se a confirmação do quanto o encontro foi saudável a todos, principalmente à dança. Sendo comum um coreógrafo ser convidado a dirigir companhias que não as próprias, habita o convite do Tanztheater algo mais ousado: ainda que Dimitris e Pina sejam criadores estetas, que suas obras contemplem narrativas simbólicas a serem desvendadas, não são os mesmos no uso dos corpos. Pina traz e insiste em ter a dança pela qualidade do movimento e do bailar; Dimitris encontra-a pela perspectiva do gesto em sua capacidade de composição e presença. Por conseguinte, Neues Stück I – Seit Sie não é a tentativa de adequá-lo a ela, a um repertório, mas de submeter o performer
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ao seu reinvento por outra condição de execução da própria dança. Não significa distanciar-se de Pina, todavia. Ela perpassa todo o espetáculo como uma co-criadora silenciosa que surge de tempos em tempos para reapresentar sua assinatura. Na delicadeza com que Dimitris a inclui surgem cenas que, inequivocamente, poderiam ser também da coreógrafa, e, quase sempre, é pelo humor que ambos os criadores se esbarram e confundem, quando os olhares dos dançarinos revelam disposição ao espectador convidandoos a entrar: são cenas que remetem a momentos inesquecíveis de Pina sem precisar repeti-los, demonstrando o quão profundo foi o entendimento de Dimitris da linguagem da anfitriã, ao ponto de encontrar nele mesmo aquilo que é parte dela. Como em outros espetáculos do repertório de Dimitris, os performers dançam pouco produzindo certo estranhamento àquele mais íntimo do Tanztheater. Afinal, Pina não apenas preenchia os espetáculos com coreografias e solos como as repetia na mesma apresentação, oferecendo-as em mais de uma possibilidade de contexto. No entanto, o que seria Neues Stück I – Seit Sie se Dimitris buscasse incluir o dançar apenas para cumprir expectativas? É preciso, assim, ater-se aos corpos em cena e não apenas os movimentos. Entre os dançarinos e dançarinas persiste Pina como quem conduziu a construção de seus vocabulários físicos por décadas, não sendo verdadeiramente necessário muito mais do que apenas revivermos a convivência com seus corpos. Habita em cada um suas histórias e identidades, suas tentativas e afirmações, e Pina é fundamental ao que erigiram. Dimitris, por fim, sem replicar diretamente danças e coreografias, permite reconhecermos Pina a partir da humanidade dos dançarinos. Trata-se de oferecer a eles e elas a possibilidade de serem próprios, e aos espectadores um delicioso jogo de descobertas de como certas características, por vezes mínimas, instituem entre um e outro o vocabulário comum. Inclua nisso também o andar, o movimento,
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seit sie a delicadeza do gesto que se provocam sutilmente irônicos e desconfiados, o tempo dado à presença, o coletivo assumido específico e curioso sobre si. A história de Pina está nos detalhes desses homens e mulheres, de suas características e disposições, de seus treinos e subversões. Por isso, a proposta de Dimitris consolida principalmente a humanização de suas identidades, assisti-los é como se, após tanto tempo ou pela primeira vez, estivéssemos (re)encontrando os homens e mulheres que sustentam os artistas formados em Wuppertal. Talvez não houvesse melhor homenagem a Pina, nesse primeiro espetáculo sem ela, que reativar a presença de cada performer. Dimitris faz de suas presenças o reconhecimento daqueles que por tanto tempo responderam. São, agora, eles/elas, e não mais o que disseram. Por conseguinte, são profundamente mais a Pina da origem do projeto desejado pela artista à companhia. Para além disso tudo, existe ainda um espetáculo. Neues Stück I – Seit Sie aproxima outras referências a Pina Bausch e com a história da arte. A sensação, muito própria da arquitetura cênica de Dimitris Papaioannou, é de um corte transversal percorrendo movimentos artísticos diversos, pelos quais, cena a cena, parece reconhecermos sem ter tanta certeza disso, de termos convivido por meio de imagens, mesmo sendo tão inesperadas. Assim, o coreógrafo grego consegue em sua nova criação provocar no espectador uma memória que, até estar diante do espetáculo, não sabia possuir. Um universo escuro, denso, íntimo e amplo compõe uma paisagem surpreendente. Tina Tzoka ergue a ambiência precisa aos interesses do diretor para os performers habitarem, superando o que poderia limitar-se a ser uma boa cenografia. Na imponência do ambiente desdobra-se a qualidade de uma narrativa que não necessariamente está ali para contar algo, mas para conduzir a imaginação ao percurso do simbólico, onírico e, ainda assim, real. Sem qualquer necessidade de priorizar corpo ou ambiência, Dimitris produz uma saudável disputa estética-narrativa;
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seit sie ora é o palco quem reafirma a presença, ora é o performer quem nos lembra o contexto. A dinâmica entre um e outro estado narrativo gera o movimento de espera e ansiedade que tanto se percebe na plateia: Qual a próxima imagem? Qual o próximo corpo? Qual o próximo corpo-imagem? Qual o próximo segredo? “É preciso não respirar para não contaminar ou interromper a amplitude que apenas a poesia é capaz de conter; respirar seria demasiadamente humano ao sublime estado ao qual a sensibilidade se encontra”, escrevi logo ao sair do espetáculo, ainda tomado pelo assistido. Dias depois, a sensação é exatamente a mesma, e lembrar o espetáculo movimenta minha respiração ao seu quase esvaziamento na tentativa de recuperar o convívio poético pela memória física daquilo que permaneceu. A cena inicial traz o percurso como inevitável, quase instituindo um prólogo ao argumento. Um a um, as 10 dançarinas e 8 dançarinos surgem carregando cadeiras. Não pisam no chão. Articulamnas construindo um caminho possível pelos qual todos passarão pelo proscênio, até sumirem novamente na porta oposta. Após isso, o caos que antecede o ato criador - do mundo ao homem, da natureza ao civilizado -, surge como ambiência e se realiza pela tentativa de habitá-lo, domá-lo, justifica-lo. Tanto quanto em Café Müller, de 1978, de Pina, um dos espetáculos mais fundamentais à dança contemporânea. Se, naquela época, a coreógrafa criava a mulher cega que se confrontava por um palco preenchido por cadeiras, enquanto o homem lutava por abrir-lhe caminhos; agora estão juntos erguendo a ponte de um lado a outro. Não mais perdidos, mas errantes, enquanto as cadeiras tornadas suportes aos pés distancia-os do palco e o sacraliza como lugar. São também as cadeiras de Medéia, montagem do próprio Dimitris, de 1994, pelas quais mulheres se equilibram na busca em suportar a própria condição diante um palco-realidade alagado. É possível e inevitável ao espectador intuir elos como esse fazendo com que todo o tempo
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Pina e Dimitris conversem. Parece mesmo estarmos assistindo ao resultado de boas tardes entre os dois, inventando o humano pela dança em um íntimo café alemão. Enquanto o homem é criado, esculpido, produzido, provocado sobre a mesa, no fundo do palco a montanha feita por espumas escuras ergue o monte aonde será plantada a árvore. Se o tom parece bíblico, logo é incitado a ser ainda mais: a mulher cercada de homens enquanto devora a maçã; o corpo nu que escorrega pela espuma em direção ao chão; a mulher e homem que, em um primeiro momento, ornamentam círculos dourados atrás de suas cabeças, como que santificados, depois vestem máscaras de bodes e espiam e incitam os demais. Os dispositivos parecem menos com uma leitura de Dimitris sobre o texto religioso e mais sua investigação sobre os masculinos e femininos em suas qualidades arquetípicas propondo nova cosmogonia ao ser. É novamente a incursão pelo que existe de mítico no humano, então, o que exige especial presença da ambiência em sua qualidade de caos organizado. Organizado por quem? Trata-se disso, do aceitar o antes como principio, o que é instigante sendo esse um espetáculo também em homenagem a Pina. Seria ela o antes? Será ela o divino? Será ele o depois, a resposta, a criação, agora humana, em busca de sua própria historiografia mítica? Dimitris repete acontecimentos, imagens, como fez Pina com danças. Ao seu modo, alguns momentos não possuem outro caminho que não serem tentados novamente. Ao tempo em que se inquieta sobre a existência humana ou da humanidade no ser, através de presenças aparentemente alheias a isso (não me parece interessante atribuir aqui a ideia de que seriam personagens, e sim personas), revelando uma humanização ainda em construção em corpos não humanos, inacabados ao que conhecemos hoje, desafia-se a mudar o existir. Assim, o monte ao fundo sugere-se o primeiro, espécie de paraíso
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seit sie atemporal sombrio, aonde de um lado possivelmente está o mundo qual conhecemos e para onde as figuras desaparecem, e de outro, tomando o palco, o mundo de Dimitris. A árvore plantada, arrancada e arremessada ao abismo, ao lado de lá do mundo pós-homem, à realidade, contrapõem-se pelo onírico que persiste em cena. O espetáculo provoca a permanência das profanações sagradas que não aceitam o comum e nem o simples. Por repetir, insistir, pela árvore ser novamente plantada, arrancada, arremessada, pelos corpos continuarem a escorregar do monte ao palco, talvez não haja ao fim outra saída. Talvez não a nós. A eles sim. Pois a humanização está exatamente na condição de pertencerem e serem a poética. O mundo sombrio de Dimitris, o escuro de uma montanha que nos retira a paisagem e o futuro adiante nos atenta à arte como existência maior. A humanidade, tal como nos apresenta, é fundamentalmente a descoberta no ser do caos de sua natureza poética. O resto é a irrealidade de um pragmatismo desumanizador que nos foi imposto por crenças e valores que não deveriam pertencer com tanta ênfase às nossas mitologias. Não existe muitas outras possibilidades de reconhecer o mundo se não por sua regulação, pelas formas quais criamos de estabelecer estabilidades, ou seja, crenças e hábitos. É por meio deles que operamos a história, de modo a determinar ao tempo alguma capacidade de compreensão. Ao fixarmos a crença, dada essa vontade defensiva do indivíduo de ordem e previsibilidade, regulamos também a alucinação, a invenção, a representação. Por propor a experiência de outra organização, ainda que sem distorcer os códigos como os reconhecemos – homem, mulher, divino, humano, natureza, civilizado, cultura, arte -, Dimitris subverte as crenças ao como compreendermos cada um desses provocando fissuras à regulação e operação da história. Não se trata de criar outros argumentos a acontecimentos, como se tornou comum em muitos espetáculos, o
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que, muitas vezes, limita-se a oferecer versões, e sim o de instituir desvios às crenças e hábitos, desordem e imprevisibilidade, e o reconhecimento do humano sobretudo a partir de sua condição e não mais por sua natureza. E essa condição é intrínseca ao modus como determinou sua própria civilização. Segundo nos explica Edgar Morin, na origem do processo civilizatório, rompeu-se a submissão à ordem biológica pela criatividade de um imaginário angustiado, submetendo o indivíduo a interditos e hábitos duráveis paralelamente à repressão no inconsciente das crenças que os prescreviam, tal como a morte, por exemplo, que se firmou ao homem na forma de censura linguística e gestual. Portanto, diz Morin, não se trata de uma evolução linear, uma vez que insiste ao homem uma estreita ligação entre o sentimento da morte e a emergência da consciência de si. A resposta historicamente se faz através do esforço de inscrição do homem no mundo por meio de manifestações que busquem e afirmem quaisquer sentido. Contudo, a condição necessária para dimensionar a ação, esse desejo de inscrição, leva o homem a fabricar mundos, emprestando-lhe sentidos capazes de modifica-lo e torna-lo ambiência familiar. Esse é o delicioso e provocativo enigma dos espetáculos de Dimitris: a familiaridade do contexto, ainda que seja o mundo oferecido radicalmente particular. Por ser singular, permanece o espectador em movimento de descoberta de algum aspecto de sua própria consciência; por ser familiar, convida ao convívio de seus mistérios e possibilidades. Não são espetáculos simples. Dependem do quanto o espectador está aberto a se desfazer de suas crenças para conquistar outras qualidades de percepções e consciências daquilo que entendia conhecer. Se Pina inclui em muito de seus espetáculos a fala como corporalidade de encontro com a plateia, teatralizando, de certo modo, a presença
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seit sie dos dançarinos, Dimitris permanece em silêncio. Mas é preciso perceber ser esse outro tempo. A palavra que outrora provocava encontros, agora envolve riscos de uma expressão diminuída que se definiria mais pela ausência do que pela presença. Assim, diz Franklin Leopoldo e Silva, nessa insuficiência das palavras, passamos a nos expressar tanto pela afirmação das palavras quanto pela negação envolvida no silêncio. Em Neues Stück I – Seit Sie os dançarinos são conduzidos a outra qualidade de deslocamento à aproximação, portanto, não mais para se pôr ao estado e lugar do espectador, mas, no espelhamento de seu reconhecimento, para fazer-se outro, inaugurando perspectivas inesperadas de encontro e reconhecimento. O espetáculo reafirma Dimitris como criador em busca de algo mais inquieto, cujas criações fundem as fronteiras das linguagens da dança e artes visuais; tanto quanto, um dia, Pina aproximou dança e teatro. E o novo espetáculo do Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, aguardado por todos ansiosamente, reacende a qualidade de uma companhia pronta para continuar a traduzir o presente, e agora disponível a reinventar o humano naquilo que lhe é mais fundamental: o existir poético aos tempos incompreensíveis. A dança assume outra vez, com essa parceria, a capacidade de ser sobretudo a experiência de uma inquietação. Cada um ao seu modo, a verdade é que não se sai o mesmo depois Neues Stück I – Seit Sie. _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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Um pacto pela presença 25
anos depois, Frank Castorf deixou a direção do Volksbühne Berlin. É importante começamos por isso. Sua presença no comando foi, inegavelmente, essencial à
projeção internacional da sala. Entre os insistentes por seu retorno e os que assimilaram a decisão política, o icônico diretor, já com mais de 65 anos, permanece central à compreensão de uma transição que se limitou a ser pela interrupção. Troca-se e pronto. Ao menos assim se revelou ao público. É fato a programação ter ganhado abertura junto às produções atuais, incluído artistas com perspectivas mais diversas, modernizando-se. Todavia, também lhe é o risco aos espetáculos em repertório, aos corpos estáveis e tantas outras características que tornaram o Volksbühne ser ao mundo referencial, argumentaram os
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artistas da própria casa. O incômodo sobre Chris Dercon, atual ex-diretor (porque, por aqui, as coisas andam rápido, mesmo não significando resolvidas), no entanto, incluiu uma série de adjetivos nas muitas resenhas dos jornais locais e não só: belga, Tate Modern (sua casa anterior), artes visuais, mercado, liberal. O questionamento acumula, portanto, seu estrangeirismo tanto local quanto à linguagem do teatro, além de sua inclinação a outro exercício da Cultura. Os tempos mudaram e nada é fácil ser debatido quando não há apenas dois lados. Sem nada disso significar desinteresse pela arte, a aritmética que trouxe o resultado da equação antes de completada a soma, só plausível de ser verificada ao tempo, é mesmo curiosa. Ao seu modo, Castorf reagiu ao próprio fim respondendo com uma última criação no Volksbühne: sua versão para Fausto. E nela cabe olharmos também um pouco mais adentro do que apenas os manifestos evidentes. Afinal, em toda criação escondem-se os paradoxos das subjetividades que até os próprios criadores não podem controlar. A narrativa de Fausto, tal qual nos apresentou Goethe, em cruel resumo apenas para situar o leitor aqui, apresenta o erudito que busca adquirir o máximo de conhecimento existente e, para tanto, realiza um pacto com Mefistófeles oferecendo sua alma ao Inferno em troca. No poema dividido em duas partes, iniciado no século XVIII e terminado apenas na primeira década do seguinte, Fausto é rejuvenescido, interessa-se pela jovem Gretchen cujo encontro desenlaça uma série de acontecimentos trágicos. Outros personagens e acontecimentos transitam na fábula que se desenvolve entre paixões, desejos e ganâncias percorrem o clássico, medieval e moderno. Querer, em suma, é a grande questão transversal em Fausto. Castorf precisou de 7 horas de espetáculo para construir ao público seu querer. Baseando-se sobretudo na Parte II, incluiu outras citações e proximidades: o romance Nana, de Émile Zola (1880), pela
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faust qual o escritor traçou um afiado desenho decadentista da sociedade francesa no Segundo Império, através de uma cortesã que enriquece explorando a prostituição junto aos aristocratas; a Exposição Colonial de Marselha (1906), denominada mais tarde junta a outras semelhantes como Zoológicos Humanos, em que habitantes da colônias eram trazidos forçadamente à Europa, afim de exporem aqueles que lá existiam, suas características, peculiaridades e culturas; os posicionamentos e relatos de Sartre sobre a Guerra da Argélia (1954-1962) e a instituição das colônias; os ensaios do franco-africano Frantz Fanon, sobre as consequências da colonização europeia na África, sobretudo através de seu livro Os Condenados na Terra. A montagem apresenta Fausto como negociador de terras na Argélia, a quem importa sobretudo lucrar e submeter os contextos aos seus interesses, enquanto o diretor constrói a versão assistindo seu território ser invadido pelo estrangeiro aventureiro, a quem o Volksbühne passaria a servir de espaço às instâncias das artes internacionais. Sustenta-se no paralelo desses momentos, a tentativa de Castorf em alertar para a dominação do simbólico e do imaginário alemão. Todavia, para chegarmos à mesma compreensão, é preciso estar de acordo de que algo de próprio e particular precisa ser salvo na Cultura, afim de que não se perca a identidade e origem. É nesse aspecto que seu argumento inicial, mais tratado como manifesto ao confronto político, escorrega em explicações: quem estabeleceu à priori ser a Cultura uma ambiência de representação estável da sociedade, povo ou ideologia? Não seria exatamente o contrário, uma descontrolável manifestação às descobertas e interesses (para o bem e mal) de cada instante? A Cultura tratada como algo corre o risco de ser dogmatizada aos interesses principalmente do ideológico e, assim, se distanciar perigosamente da pluralidade da sociedade e povo que não cessa suas transformações e contaminações. Castorf grita para defender ideologicamente uma posição ao exercício do teatro alemão a par-
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tir de específicas tradições, e menos por sua perspectiva ao futuro enquanto arte. E ideologias, gostemos ou não, mudam diante os interesses das épocas e burocratas. Há no seu grito, por fim, um tanto de desespero autêntico (e necessário sobretudo como contraponto crítico), ainda que autista. Tudo isso está na escolha em montar essa peça. Fausto, por origem e interesse, torna-se uma observação sobre a colonização territorial e cultural. No entanto, o espetáculo revela o paradoxo de haver na correção das mudanças certo apelo pelo estável e tradições, uma auto-colonização que assume para si como deve permanecer e existir o próprio indivíduo (e, nesse caso, o artista). Ao serem confrontadas as perspectivas que serviram o Volksbühne nas últimas décadas, incluindo sua sofisticação ao entendimento do trabalho e ofício do artista, Castorf prontamente expôs o envenenamento do sistema. É preciso compreender, por conseguinte, o empreendedor atual não ser apenas o mero comerciante de terras ou de espaços de Fausto: é aquele que se utiliza da política para instituir qualidades econômicas. Desse modo, o espetáculo apresenta o personagem central como quem se rendeu aos domínios do capital metaforizando o que no poema estaria exposto também na perspectiva do conhecimento. Conhecer é reconhecer valor; valorar é atribuir conhecimento. De certo modo, Chris Dercon procurou determinar outra caminho ao conhecimento no fazer teatral, por meio da reinvenção do Volksbühne. Não foi aceito por parte dos artistas, nem pelos espectadores que deixaram de frequentar à programação e, como última consequência, pelos apoiadores estruturais. Para que um valor crítico ocorresse na nova proposta seria preciso a reflexão crítica possuir graus de conhecimentos capazes de trazer sentidos e informações despercebidas pelas quais o público poderia ir além da observação óbvia sobre o a cultura e o teatro. Para tanto, é preciso ter por conhecimento algo
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faust além da informação acumulada, o como o conhecimento é formulado em propriedade de linguagem também na indústria cultural. Foi Richard Rorty quem afirmou ser uma noção optativa compreender o conhecimento como agregador de representações e tudo ser produto do acaso, mesmo nossa inclusão na história. Para o filósofo pragmatista, o conhecimento se revela em três instâncias: linguagem, sentido de identidade pessoal e concepção de comunidade. Dercon focou sobretudo na renovação da linguagem e em outras identidades artísticas, mas esqueceu-se de reinventar a concepção comunitária já tão definidora do Volksbühne. Sua direção artística buscou fazer a linguagem existente responder a outra realidade, o que Rorty já antecipara inevitavelmente fadado ao fracasso. Por outro lado, Rorty também afirmou ser melhor os artistas e intelectuais nos surpreenderem com possibilidades criativas, em vez de reivindicarem conhecimentos e mecanismos estáveis, consagrados, pois seria observando e traduzindo a realidade sociocultural por ângulos não cristalizados que se determinaria ao artístico a capacidade em ir além dos discursos políticos. É quando o vocabulário empreendido fornece politicamente ao indivíduo seu espaço pessoal, valores críticos de observação do todo e de si, processo qual denominou por Irônico Liberal. Tem-se, assim, o confronto complexo entre agir como neoliberal ou irônico liberal. Castorf, porém, não abre mão em reivindicar os conhecimentos e meios fixados erguidos por ele próprio inclusive na linguagem. Ou seja, deixa de construir à arte algo mais do que discursos políticos, ao tempo em que impõe seus valores de como observar o todo e a si. Ao insistir em combater o liberalismo, seja em quais vestes este esteja, Castorf exime o espectador de suas próprias percepções. Assim, seu Fausto é radicalmente um mergulho aos argumentos que lhe interessam, aos seus quereres, com pouco espaço para nuances e interpretações inesperadas. Pode parecer so-
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mente um problema, mas a arte não é tão matemática assim. E definir-se artista com tamanha imposição e propriedade espelha diametralmente o brilhantismo de um diretor inequívoco e singular. Tudo o que se espera de Castorf está mesmo em cena, dos recursos estéticos que determinaram sua assinatura às simbologias e como as rearranjar na reinvenção narrativa. E ainda assim é surpreendente. Entre um Fausto irônico e liberal e um Mefistófeles cínico, o diretor modula uma transição do sujeito que éramos na construção da história e do presente para nossa condição de meros objetos. A crítica novamente enfatiza sua sensação tardia de ter sido apropriado pela estrutura política, agora descartado aos interesses e força do mercado. Entretanto, faltou a Castorf e seu Fausto notar o que Slavoj Žižek tanto tem explicado: sujeito não é o alguém explicitado pela capacidade em domina o acontecimento, mas aquele surgido ao se sujeitar, de modo a pertencer central ao acontecimento. Nesse aspecto, a leitura de Fausto apresentada simplifica o presente como plausível de sua tradução maniqueísta, em que existem lados claros, certos e errados, bons e maus em plena capacidade de dominar os contratos e interesses. Os tempos são outro e deveria haver um tanto de Fausto e Mefistófeles em ambos os personagens: os dois sujeitados, um ao outro, enquanto os acontecimentos se revelariam apenas nas interrupções do pacto impondo a objetificação de suas presenças a uma força maior. Nem sempre isso ocorre, e esse ainda é um Fausto de ontem, quando o homem acreditava ser suficientemente capaz de sustentar a própria identidade a partir unicamente de seus valores e crenças e por estas trazer conclusões. No palco, a relação entre cinema e teatro permanece como qualidade de construção e permeia grandes momentos do espetáculo. Muitas vezes, a filmagem torna mais íntima a presença do personagem, pois a mediação reafirma sua ficcionalização. Todavia, distancia os perfor-
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faust mers permitindo-lhes escapes e fugas. É sempre um alento quando estes retornam à visão cruamente reativando o que de melhor o espetáculo possui enquanto teatro. Sobretudo Martin Wuttke em sua brilhante e irretocável compreensão de tantas nuances na criação do personagem principal. Fausto, ao fim, é um espetáculo de ideias, de contextos, de gritos, de quereres, de discursos, de metáforas, de posicionamentos. Mas é principalmente especial pelos trabalhos dos atores em suas capacidades de irem além de tantas proposições sobrepostas. Valery Tscheplanowa encanta como Margarete/Helena e redimensiona e amplia o espetáculo a cada aparição. É uma experiência especial aos amantes do teatro assistir ao elenco se disponilizar ao espetáculo com tanto interesse em torná-lo imenso. E conseguem dar-lhe exatamente essa classificação. Se o discurso existe como início às subjetividades iniciais de Castorf à criação desse Fausto, é na qualidade daquilo que é mais humano que se sustenta histórico esse espetáculo: a presença, como merece a arte, supera, então, a ideia, e por ela o teatro se reinventa e se insiste vivo. Melhor assim. _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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Esse ESSE texto TExTo precisa PrEciSA ser SEr vários. várioS. Não há outra maneira de avançarmos sem entendermos isso. O primeiro convite para ir
ao Adelante veio por uma condição específica: o espetáculo A Tragédia Latino-americana fora escolhido pela curadoria para representar o Brasil. Melhor, para abrir o festival. Eu, nele, existo na qualidade de dramaturg. Por isso, um dos vieses desse texto compõe minha reflexão sobre se apresentar na Alemanha. Dada essa função, o texto se desdobra para olhar as conversas após as apresentações: curiosidades, conflitos, questionamentos, valores. Um pouco do que ouvi, falei e que ainda reverbera desses encontros, aos quais não me preparei para estar junto, e que aconteceram ao sabor do inesperado, por isso mais dinâmicos e disponíveis ao outro. Ainda sobre falas e encontros, pequenas reflexões se seguem, dando conta de outros convites: a mesa tendo por tema “Brasil, um problema na América Latina”, em seu formato intimista, em roda, ao lado (e não apenas para) interessados; e dividindo os microfones com convidados de outros países, a partir do tema “Cultura como solução para a crise?”. Por fim, o convite mais provocativo me permitiu permanecer todo o festival e poder olhar a curadoria de modo mais transversal, abrindo diálogos críticos com os demais espetáculos participantes. Ainda nessa condição de crítico, ou melhor jornalista, trago também uma conversa rápida com Juan Meliá, coprodutor do Festival ¡Adelante! e diretor do Teatro e Orquestra Municipal de Heidelberg. Outras divagações inevitáveis completam essa coleção de reflexões. Para tanto, as resenhas estão subdividas em olhares específicos: do artista, do cidadão, do intelectual, do crítico e do jornalista. É muita coisa, eu sei. Por isso chegarão a esse Especial em partes. Mas já me defendo: ainda assim é extremamente pouco, diante do que pode ser vivenciado em Adelante.
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e s peescpieacl i aall eaml ae n mhaan ha a na tn r tor+o +
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pelo PeLO olhar OLHaR do dO artista aRtista imagem imAgEm do espetáculo ESPETáculo “A tragédia TrAgédiA latino lATino americana”, AmEricAnA”, pelo PElo olhar olhAr de dE patrícia PATríciA cividanes. cividAnES. 1 2 4a nat nr o t r+oe+s peescpi eacl i aall eamlae nmhaan h a 68
H
oras antes de começar a primeira apresentação, após um dia inteiro de montagem de luz e cenografia, amparados que estávamos pela equipe técnica do Teatro Heidelberg, andávamos pelos corredores
ainda escolhendo algumas soluções. A ansiedade por abrirmos um festival novo e provocarmos o gesto inicial de encontro com a América Latina aos espectadores, em maioria alemães, existia - por mais que soubéssemos não termos tanta responsabilidade direta assim. Sair do lugar seguro que é a Cultura aonde se criou algo é extremamente complexo, sobretudo aos espetáculos mais autorais. Não acho que será estranho o suficiente para eles, seu trabalho é muito alemão; o que poderá ser diferente é a própria literatura da qual se serviu o trabalho, respondi a Felipe, diretor do espetáculo. Disse-lhe isso a partir de minha própria observação sobre a estética e recursos cênicos utilizados. O espetáculo A Tragédia Latino-americana trouxe algumas questões: quem nos autorizava a ser europeus; como traduzir as especificidades das palavras escritas e faladas em português e castelhano; qual o entendimento sobre os recursos de ironia e autocrítica histórico-culturais? De alguma maneira, a expectativa média era por algo mais “brasileiro”. O misto de curiosidade e decepção gerou um encontro positivo com o espectador e, talvez tenha ajudado a abrir caminho para o festival ser vivenciado sem tantas conclusões prévias. A inquietação veio nos debates e conversas paralelas, lendo o espetáculo como submissão nossa à colonização estética eurocêntrica. O tema da colonização é uma constante ao Sul e serve simultaneamente às explicações e também limitações. Nem tudo cabe a ele sem ser distorções, e muitas vezes impor tal registro condena a América Latina a ser eternamente uma resposta em atraso.
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Nos textos dos escritores utilizados no espetáculo que compunham o espetáculo e que, em muitos aspectos, ridicularizavam exatamente essa relação, o travestir estético se fez um dos elementos mais complexos e de difícil acesso ao imediato do espetáculo, pois se fundava necessariamente na compreensão dos jogos de sentidos. É quase sempre inviável traduzir as sutilezas de uma boa literatura, e isso nos exigiu aceitar perder aspectos que justificariam as escolhas. Portanto, interessou a busca por nos decifrar anti-colonizados, ao tempo em que confrontávamos a colonização nos colocando parte do mundo. Ao público que gostaria de reconhecer o Brasil pelas imagens turísticas frustrou-se, inicialmente, a apresentação da brasilidade exatamente pela ausência de sua representação pelos artifícios coloridos e festivos do paraíso tropical. Quando alguém nos perguntou aonde estavam os atores índios, a certeza do desconhecimento do que seja São Paulo, megalópole cosmopolita com mais de 12 milhões de habitantes, a miscigenação italiana, portuguesa, nipônica, árabe, alemã e outras, o quanto não temos uma sociedade que integrou as civilizações primitivas locais como outras latinas, expôs a fragilidade com que éramos aguardados e o quão fundamental era estarmos ali para nos apresentar melhor. As curiosidades poderiam ser somente trivialidades sobre ensaios e estruturas, caso estivéssemos em casa. Porém, em Heidelberg, assumiam a qualidade de uma inquietação honesta daqueles que tentavam decifrar a ambiência de criação no Brasil que, de modo geral, inviabiliza grandes empreitadas. Foi preciso explicar o que nos é natural: improviso, inventos, atalhos. Dias antes, ainda na semana de ensaio em Heidelberg, eu e Patrícia assistimos convidados ao ensaio do diretor do Teatro. Falei-lhe sobre minhas impressões, até ser por
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ele corrigido: não se tratava exatamente de um ensaio, mas do primeiro dia de ensaio no palco de um trabalho que ainda demoraria para estrear. E lá estavam os primeiros figurinos, a estrutura cenográfica preparada em grande parte, rascunhos de luz e sons. De fato, um espetáculo com porte operístico como A Tragédia Latino-americana é mesmo um enigma ser realizado como o fazemos no Brasil, mesmo com todo o apoio que tivemos. Os comentários e perguntas continuaram, nem sempre doces, nunca grosseiros, por vezes diretos e sem disfarces, e problematizavam a escolha pessimista trazida pelo espetáculo, sem se aterem ao mais controverso: o da tragédia nos ser cômica pela inevitabilidade com que os acontecimentos e escolhas são recorrentes na América Latina. Repetimos sistematicamente os mesmos erros e desvios tornando ridículos nossos problemas mais profundos. Talvez isso seja paradoxal a outros contextos: nossa tragédia é mesmo patética, de tão previsível. Igual expectativa de caricatura de como representaríamos o Brasil se revelou em outros artistas latino-americanos que participavam do festival. Frustrados, em certo sentido, a questão apontou ser essa a mais inquieta: por que ainda queremos e precisamos dessa imagem de exotismo ao primeiro mundo civilizado? Esse é um dos bons dilemas de nosso tempo: se é mais colonizado ao ser o que se espera que seja ou quando em diálogo com a contemporaneidade recusando limites e fronteiras? Para nós, brasileiros, essa é a base estrutural da Modernidade: antropofagia, pegar para nós, aproximar, apropriar-se e então fazer nosso, tornar próprio o que é de qualquer outro. Por último, o público com quem debatíamos estava certo em nos questionar, faltava atores negros no elenco. De fato, alguns dilemas na nossa cultura são extremamente mais profundos do que até nós mesmos gostaríamos de admitir. E não foi por falta de percebê-los.
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pelo olhar do cidadĂŁo 128
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m um determinado momento, a garota brasileira que acompanhava a conversa me questiona: você só irá falar contra o Brasil?
Sim, respondi, sem qualquer constrangimento. Falávamos sobre a produção teatral brasileira em uma roda com interessados alemães e latino-americanos e, a partir dela, expandíamos ao entendimento mais profundo sobre a atualidade do país e o quanto essa implicava na construção de poéticas e espetáculos. Assim era a estrutura preparada pelo Festival que tinha como interlocutor Michael Laages. Enquanto tivemos números de assassinatos maiores do que os de países em guerra, enquanto formos um dos maiores estupradores de mulheres, com taxas de feminicídio absurdas e um dos principais pontos turísticos no mundo à prostituição infantil, enquanto tivermos uma das maiores populações carcerárias do planeta, sendo sua maioria absoluta de negros e pobres, enquanto tivermos mais da metade do país sem isolamento do esgoto, enfim, enquanto formos um país com esses e tantos outros indicadores terríveis como consequência de uma corrupção endêmica, sim, eu falarei contra meu país, expliquei. E continuei dizendo só ser possível reinventarmos o Brasil se assumido o caos e o horrível. Só se muda o que se reconhece errado, concluí. Os acertos acabaram sendo no Brasil distrações momentâneas que nos levaram a acreditar em soluções e evoluções, mas, quase sempre, são dissolvidos logo depois por novas desestruturações pelos governos. Eu sei, não foi uma introdução otimista. Apenas realista. Quando outros me perguntaram se não havia nada de positivo ou bom, minha resposta é a que venho dado sempre: em política não há o certo e errado, e sim a obrigação e o errado. Voltamos à Cultura. Laages desenhou um excelente panorama da produção atual, de grandes nomes como Antunes Filho aos alternati-
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vos como Os Satyros, de espaços como as unidades do Sesc aos teatros de rua na Roosevelt. Quando se surpreenderam sobre o quanto no Brasil ignoramos as cenas vizinhas, precisei ir mais adiante, afinal, o tema era ser o país um problema aos demais. O quanto o Brasil aplica sua posição de força econômica junto ao Continente é inegável. O quanto se mantém distante das manifestações culturais dos demais países revela a barreira erguida por muitas questões. Alguns festivais com foco na produção latino-americana trazem ao Brasil espetáculos e artistas da região, é verdade, ainda assim são muitas vezes os mesmos criadores. Não há publicações sobre a cena latino-americana e traduções de peças pelas editoras nacionais. Os poucos projetos que se voltaram a isso nos últimos anos surgiram por interesse dos outros países em se projetarem ao Brasil e não por nós. O sentido inverso também é evidente, e é pouca a participação de espetáculos brasileiros nos principais eventos próximos, seja no Chile, Bolívia, Argentina ou Colômbia. Conhece-se, tanto quanto, muito pouco a produção atual brasileira. Não basta acusar isso ou aquele, e sim reconhecer os hiatos institucionalizados que impedem o deslocamento entre as informações e produções artísticas. Por ser a cultura no Brasil desvencilhada de qualquer valor de representação nacional, dado seu contínuo confrontamento aos contextos políticos, permanecemos isolados e em confronto ao entorno perdendo a possibilidade de construir paralelos aos demais e desenhar coletivamente uma trajetória ao continente. O isolamento do teatro brasileiro, no entanto, traduz sua produção desconexa às questões circunscritas e que poderiam permear histórias mais próximas a esses países: das várias formas de colonização, independências, ditaduras, redemocratizações... Ao não se colocar em diálogo, o teatro brasileiro permanece destituído de represen-
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tação da própria América Latina, entrando em dissonância ao poder que requer em instâncias econômicas e políticas. Talvez esse seja o problema mais amplo a ser desvendado nessa relação com a América Latina: como ser o porta-voz daquele que se ignora, e qual poder de representação comporta verdadeiramente aquele que não reconhece o outro? Olhando as relações culturais, sim, esse é um problema complexo que merece ser percebido sem disfarces. O Brasil, ao seu modo, impõe modelos culturais aos demais países exatamente por fortalecer tais modelos pelas estruturas comerciais, sufocando a América Latina que, isolada, cria para si um outro continente do qual não fazemos parte. Assim, existe o Brasil e a América Latina. Pode funcionar quando se fala em gado, soja, petróleo, commodities. Para a Cultura é uma escolha infeliz, se não um desastre. E, certamente, perde mais o Brasil, ao fim. _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________ _______________________________________________________________
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12 de fevereiro de 2017 (....) Mas, hoje, a gente vive um momento muito peculiar em São Paulo: porque conquistamos a presença de um dos prefeitos mais caricatos que existe na atualidade. Temos um prefeito que se elegeu, assim como Trump, com a bandeira de não ser político, e que tem passado algumas madrugadas no ponto de ônibus, para saber o que é pegar um ônibus, ou vestido de lixeiro para saber o que é limpar a cidade, ou, então, se fantasiado de funcionário público e pintado as paredes da cidade de cinza tampando todos os grafites. É claro que ele faz isso estacionando o carro preto da prefeitura, com seu motorista particular, em lugar proibido. Estou dizendo isso porque, com um mês de governo, todas as ações efetivas que teve foram as para atacar os instrumentos culturais da cidade. Acredito que ninguém nunca trabalhou tanto pela cultura como ele. De qualquer modo, isso revela a importância que a Cultura tem. Senão, não seria tão perigosa e necessário de ser atacada tão de frente. O problema é: São Paulo se serve de modelo, e isso já se espalha por outros Estados do Brasil. O que a gente vê é um labirinto de caos sendo construído. Soma-se a isso, uma parte da população que deseja o fim do Ministério da Cultura, com o slogan criado por um deputado, em que ele dizia artista ser vagabundo. Há uma reação natural a tanto, e esse é o lado positivo: os artistas de todas as áreas voltaram a conversar, juntos, o que até então não existia. Nas últimas décadas, cada artista se mantinha dentro do seu nicho de linguagem e de criação. E agora se vê uma contaminação muito forte de pensamento entre as áreas. Isso também tem provocado movimentos novos, direções novas às produções artísticas e respostas estéticas absolutamente singulares. Aonde tudo isso vai dar, a gente ainda precisa de um certo tempo para entender. Mas o fato é: a Cultura, ao ter sido provocada de forma tão violenta, tem respondido de maneira violenta pela criatividade, e se tornou algo efetivamente descontrolado no Brasil. (...)
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É sempre um exercício inútil se preparar para falar sobre um tema, uma questão, quando essa esbarra os ecos do cotidiano. Os dias não te esperam e os acontecimentos chegam sem pedir licença. E assim foi, com João Dória vencendo a eleição municipal em São Paulo, de forma que parecia inesperada. Mas, dada a tranquilidade da vitória, inesperada apenas a uma pequena bolha ainda sedenta de um respiro à esquerda, quase sempre mais visível entre os internados nas esferas culturais. Ao chegar minha vez de falar, não havia outro modo de primeiro olhar a Cultura senão pelo risco efetivo que sua existência havia tomado na construção da cidade. A crise que completava o título do encontro não era tão particular como a presença de um mero prefeito, todavia, ele respondia à Crise, maiúscula, e por isso nos serviu bem. Responder, no passado, já atualizando aqui esse texto, pois nos livramos dele pouco mais de um ano depois. Não está mais no domínio da maior e mais importante cidade brasileira e uma das que mais influenciam as relações na América Latina. Porém, como nem tudo é simples, deixou a cadeira pra querer um trono: aquele que sequer soube ser Prefeito busca ser Governador. Alguém duvida? O quanto de tinta cinza é necessário para apagar um Estado inteiro? Ao olharmos à Crise a partir de seus movimentos gerais, algo se evidencia: não se trata de uma e sim de várias que interligam e sobrepõem de muitas maneiras. No entanto, um dilema perpassa as variações estabelecendo o elemento unificador que as responde: a falência ideológica e prática do processo civilizatório ocidental. Cabem nela recursos até então aparentemente seguros (ainda que com oposições), tais como o liberalismo e a representatividade. Ao tempo em que urge assimilar a representatividade não mais como aquela delegada a alguém, mas por sua possibilidade de participação direta; não se encontrou outra qualidade às deformações adquiridas pelo descontrole de um neoliberalismo excessivo que pudesse rein-
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ventar a estrutura de funcionamento social. Para tanto, é preciso provocar outras perspectivas ao pertencimento e participatividade, de modo a provocar outras respostas, e isso não está sendo feito. Sabe-se, desde os anos 70 italianos, quando se sistematizou o conceito de valor imaterial, que apenas mudando os meios de produção se altera o produzido. E as décadas recentes assumiram igual necessidade aos pensamentos intelectuais, teóricos, filosóficos, sociais etc. Como pensar diferente?, como fugir dos sistemas já determinados ao pensamento se não somos capazes de responder diferentes?: pela sensibilização, estimulando o indivíduo com novas experiências. Pela Cultura, portanto. Ao oferecer estímulos, argumentos, estéticas inesperadas abre-se ao espectador ou observador novos campos de percepções. Estimulado e atingido, o indivíduo reavalia a própria maneira de olhar e compreender as coisas, fatos, pessoas, ideias e ideais. Sensível, é capaz de responder tão inesperadamente quanto. Por isso a Cultura é uma das mais potentes soluções à Crise: por abrir ao indivíduo saídas por meios não percebidos. É verdade ser esse atributo sobretudo das Artes e não rigorosamente da Cultura, e de ser a Arte uma das partes da Cultura. O que lhe é próprio diz respeito ao modo de tornar os riscos abertos e descobertos pela Arte em dispositivos comuns plausíveis a todos. É quando a Cultura assume os aspectos inventivos e inesperados das criações artísticas que esses passam a se valerem reais. Enquanto artes, são apenas sugestões a novas investigações; uma vez assimiladas e dissolvidas nas estruturas cotidianas, transmutam as diversas esferas e movimentam do mercado mais simplório às representações mais estruturais. No labirinto incontrolável de agora, em que acontecimentos culturais surgem a cada segundo tornando complexo demais diferenciar relevantes e banais, nasce outra estrutura de controle: pelo excesso impede-se de se perceber o válido, até que este esteja enfraquecido
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demais e superado pelo sistema qual tentou reinventar. O paradoxo, portanto, está na maneira como a Cultura destituiu a Cultura de seu potencial de reação, subprodutificando-se todo o tempo aos interesses de um mercado de ideias superficiais. Há uma saída. Sempre há. Produzir eventos tão mais inesperados e objetivos capazes de ultrapassar a massificação impositiva. É o que ocorreu em Adelante. Assim reagiu ao controle, ao não ser realizado em um grande centro como Berlim, por exemplo. Se fosse lá, seria apenas outro evento, junto a tantos acontecimentos paralelos, e perderia a capacidade de estabelecer diálogos com o entorno, salvos aqueles já interessados pelo tema. Em Heidelberg, o inusitado trouxe qualidade e dimensionamento inesperado. A cidade se voltou a pensar sobre algo que não se preparou efetivamente e aceitou conviver com as questões. Esse convívio cultural entre ideias e diferenças, essa perspectiva de encontrar-se com, respondeu na prática a questão da mesa. Por estarmos em Heidelberg, a cultura local se viu reinventada por uma invasão controlada de assuntos, questões, leituras, visões de mundo diferentes. Adelante não apenas estimulou que os olhares se voltassem à América Latina, como produziu estados de abertura e sensibilizações que certamente ampliarão como agir e rever o próprio cotidiano da cidade, após sozinhos outra vez. Isso não impedirá a crise civilizatória do modelo neoliberal ocidental, em seus dilemas mais profundos. Não, agora. Quem sabe quais repostas esses jovens, ao perceberem a realidade por outras óticas e experienciar estéticas tão distintas serão capazes de encontrar em breve? É preciso, então, Heidelberg continuar. Próximos festivais, encontros, delírios, desafios. Em muitas cidades mundo afora comprova-se que o convívio com a diversidade de experiências atrai principalmente os mais jovens às ambiências criativas. É o tal do valor imaterial, quan-
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do o indivíduo se reconhece sujeito criativo e determinante por suas singularidades. Cria-se, assim, o círculo perfeito: jovens interessados em participar criativamente, espaços para desenvolvimento de uma educação expansiva por meio do convívio cultural plural, eventos para reunir e apresentar outras perspectivas e experiências, mobilização econômica para efetivar os eventos, recontextualização crítica das perspectivas locais, novas criações e novas respostas, e assim segue. Cidades Criativas, como são chamadas, passaram a se organizar pela Cultura, criatividade e o quanto essas atraem ganhos econômicos que vão de empregos com melhores níveis e salários até turismos culturais. A Cultura, por fim, além de ser eficiente ao desenvolvimento do sujeito (e não apenas do indivíduo), responde na prática sua importância econômica ao desenvolvimento local. Dialogar esse papel econômico demanda provocar interesse tanto aos governos quanto aos empresários, o que nem sempre é simples, e variável de acordo com os interesses de cada gestão. Mesmo assim, conquistado primeiro movimento junto à comunidade, torna-se a Cultura um requisito obrigatório ao político por tudo o que esta insere: emprego, desenvolvimento, turismo, educação etc. Quando cheguei em Heidelberg, explicaram-me: aqui é um dos centro da medicina na Alemanha. Porque assim quiseram, pela qualidade na formação acadêmica que permanece há tanto tempo, pelo investimento que não pode mais ser negado completamente. Não é diferente com a Cultura, basta fazermos o homem comum se apaixonar pela vontade de ser diferente, e de ser constantemente diferente. As crises precisam de respostas novas, pois são as desse novo século. A Cultura é um caminho inesperado a maioria dos gestores, empresários e pessoas. Então, tentemos. O máximo que pode acontecer é nos divertirmos, o que já é muito em tempos como esses. Sentir e viver ainda é uma ótima resposta às perguntas que virão.
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Stolpersteine Staatstheater Direção Hans-Werner Kroesinger Berliner Festspiele
Theatertreffen, Berlim 2016
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Documentos também servem para futuros possíveis A
década de 1930 viu surgir na Alemanha seu novo Chanceler. Aproveitando-se do fracasso de um projeto de recuperação econômica e com foco na recriação do nacionalismo, pouco tempo depois, Adolf Hitler
se tornaria um dos nomes mais horríveis da história recente. Em 1933, o discurso do ditador antecipava o conflito tenebroso que se revelaria a Segunda Grande Guerra. A partir daquele instante, muito na Alemanha se transformaria. E logo se viu esfacelar a sociedade e demais estruturas políticas. Foram restrições, proibições, exílios, isolamentos, torturas, genocídios, extermínios em um crescente ódio estimulado e propagado contra os que não se encaixavam no desenho da raça pura e ideal, tal como a entendiam os nazistas; dentre os visados, gays, negros, ciganos, deficientes físicos e mentais e, principalmente, judeus. As ações ocorre-
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ram em todas as possibilidades que o indivíduo pudesse expressar suas ideologias, diferenças, particularidades, religiões, culturas. Por conseguinte, também, e muito, na arte foram encontradas o que seriam deturpações frente ao programa nazista. Dois instantes se tornaram simbolicamente históricos nessa intervenção cultural: o Bücherverbrennung, a queima de livros em praças públicas, com a inclusão de autores judeus e de esquerda, como Brecht, Freud, Einstein, Thomas Mann, Walter Benjamin, Karl Marx e tantos outros; a exposição conhecida como Entartete Kunst, Arte Degenerada, na qual obras eram ridicularizadas para construir uma opinião de escárnio e recriminação aos trabalhos e artistas modernos, abrigando Chagall, Max Ernest, Kandinsky, Klee e dezenas mais. Contudo, nos acontecimentos menos relembrados, também ocorreram perseguições nem por isso menos violentas, atingindo compositores, maestros, dançarinos, cantores... e, claro, artistas de teatro. Em Stolpersteine Staatstheater, apresentado no Berliner Festspiele, durante o Theatertreffen, em Berlim, com Hans-Werner Kroesinger como diretor e Regina Dura como dramaturg, documentos e cartas do arquivo do Teatro Karsruche são trazidos a público para expor a relação da instituição com os artistas judeus, esquerdistas e liberais durante a ascensão do nazismo. Apoiados por entrevistas com testemunhas e por reportagens feitas à época, a peça narra os procedimentos legais que serviram de base para expulsão, demissão, exílio e prisão dos artistas, de atores ao diretor artístico. As respostas ao cerceamento e perseguição provocaram inclusive gestos mais extremos como o suicídio. O elenco formado por Veronika Bachfischer, Antonia Mohr, Jonathan Bruckmeier e Gunnar Schmidt recebe o público no interior do teatro. Os atores explicam algumas questões técnicas, e o espetáculo começa de fato quando, reunidos, eles cantam em tom de prólogo. Esse movimento, cantar, retornará algumas vezes durante a apresentação como que nos convidando a participar do coral. Convite explícito na medida em que todos recebem
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stolpersteine staatstheater a partitura e a letra das canções. Ao surgir no imediato início, a cantiga evoca décadas passadas, mesmo para quem, como eu, não seja alemão, no reconhecimento de uma linguagem musical bastante específica e local. Ser recebido assim auxilia no deslocamento ao passado, facilitando ao espectador mais jovem compreender com mais ênfase o ontem a partir da perspectiva do presente, o que parece ser a grandeza do trabalho. Reaproximado à ambiência histórica, o espectador é convidado a se juntar aos atores em uma das duas arquibancadas e à mesa que comporta a centralidade do palco. Optei pela arquibancada, pois me interessava assistir também àqueles que preferiram estar figurando a cena. Como em uma reunião de departamento, os depoimentos e documentos são apresentados de forma a construírem uma narrativa subjetiva, cujo interesse está nas mudanças estruturais impostas pelos nazistas. Não parece aleatório o conjunto das mesas desenhar sutilmente um dos dois ramos que compõe a suástica, algo imperceptível aos espectadores que junto a ela estão. A cenografia completada por dois telões laterais e por projeções, ora de detalhes arquitetônicos, ora de registros de ações, traduz a condição de como uma mudança mesmo que radical, ao menos em seu início, não é percebida, sobretudo pelos que estão intrinsecamente conduzidos pelas estruturas. Uma espécie de cegueira provocada pela sensação de normalidade que as burocracias conferem, a partir das legislações e justificativas falsamente imparciais. Assim, os espectadores sentados junto à mesa decisória servem como testemunhas em uma espécie de conselho deliberativo e acabam por encarnar mais a ficcionalização da história do que os documentos, papéis, cartas e também atores. Ao subverter e manipular aqueles que ali estão, sem que mesmo ao final estes sejam capazes de perceber a medida de sua participação já que as mesas serão desarrumadas para constituírem um espaço fictício museográfico com os materiais reais para consulta pública, o espetáculo indaga
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também sobre qual é a responsabilidade de nossas participações na validação dos acontecimentos históricos. Se somos incapazes de compreendê-los na imediatez de sua provocação, como lidar, então, com a responsabilidade inconsequente de nosso desconhecimento? De certo modo, Stolpersteine Staatstheater responde ao dilema com a importância de se manter desconfiança ininterrupta dos sistemas de controle. Todavia, está longe de ser um espetáculo com intuitos anárquicos, é sim voltado à responsabilização das escolhas e ausências. O movimento desencadeado principalmente por Hitler pode até ser entendido por alguns como algo inimaginável tais os absurdos praticados, mas não se pode negar que os desdobramentos abomináveis do nazismo estavam desde sempre indicados em seus propósitos iniciais. Vejamos: monstruosidade difere de loucura por abrigar em seu processo cálculo e destreza nas manipulações, a partir de argumentos deformados sobre necessidades concretas. Em outras palavras, o nacionalismo como argumento não significa necessariamente explicitar a destruição de tudo aquilo que não lhe servir; é ele, em certa medida, a possibilidade de um discurso útil à construção de sentimentos fundamentais de união e de reencontro; todavia, é, sim, ao se valer desde o início como discurso sobre o outro, e não apenas sobre si, a negação da diferença, o que vai exigir anulação e extinção de quem não se enquadra no padrão. Hitler, em seus discursos iniciais, evocava sentimentos de união, mas é preciso atentar que esta se fazia principalmente pelo aniquilamento de diferenças. Surgiu, inevitavelmente, o horror. Construída de forma documental, a montagem supera o aprisionamento da narrativa ao descritivo e às apresentações de acontecimentos. O passado, tal qual é costurado dramaturgicamente, serve para ser percebido em seu estado de latência, ao qual se deve estar atento e disponível ao reconhecimento imediato. Por utilizar histórias reais, o documental sustenta a urgência de observação do presente a partir de suas próprias características, como se pudesse ser ampliado em laboratório
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stolpersteine staatstheater na busca de pistas das interferências definitivas. Assim, o espetáculo faz perceber estar a manifestação teatral mais no instante presente do que no registro passado, faz compreender ser o agora o instante de ações fingidas e artificialmente moldadas para que se pareçam casuais. E revela, por sua vez, o passado como uma espécie de literatura sujeita ao risco de perder-se em sua própria ficção. Nem todos os trabalhos que lidam com tais procedimentos cênicos superam esse paradoxo, permanecendo quase sempre limitados ao passado como estável e a um presente demasiadamente figurativo. A eficiência em Stolpersteine está sobretudo na maneira como os performers se valem de si mesmos como personagens, confundindo-se entre a realidade do intérprete frente aos documentos e da personagem frente ao público. Aquele que ocupa o palco pode ser qualquer um desses, e não importa decifrar o labirinto. O recurso de construir uma narrativa a partir da recuperação de documentos exige vasta pesquisa e inovação ou ousadia na metodologia que orienta o recorte. Esses aspectos, sem dúvida, confirmam-se sem problema algum. Ao trazer a história do teatro para falar de como a história fora construída em desvios de sua narrativa, o espetáculo sintoniza-se com precisão aos estímulos mais contemporâneos do fazer teatral, nos quais se busca a dissolução do personagem, e onde a narrativa se afirma pela expectativa do processo de sua construção, não só pela fábula encenada. É preciso pensar, ainda, na museografia proposta aos documentos disponíveis à consulta do espectador como resposta e conceito de procedimento teatral, frente ao que o espetáculo já realizara até aqui. É nesse instante, quando todos estão reacomodados em arquibancadas fora de cena, que o teatro assume-se exclusivamente teatro, oferecendo-se, ao fim, o palco às pessoas comuns. O espectador deixa de existir como figurante e volta a ser ele mesmo, anônimo, e no encontro com os documentos pode comprovar aquilo que servira aos argumentos da montagem.
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No entanto, por que compartilhar essas provas? A que serve senão para validar a própria pesquisa? Ao se fazer isso, os argumentos do espetáculo são corroborados por suas importâncias histórico-educativas, mais do que artísticas, o que não é radicalmente necessário. O jogo teatral se concretiza interessante pela maneira como subverte a perspectiva de apropriação do tempo histórico e sua representação, deixando a informação como possibilidade criativa e desvelamento do presente e não apenas do passado. Melhor seria, então, a partir das conquistas realizadas, que o espectador fosse provocado a confirmar nas ruas, nas pessoas, nos gestos as possibilidades de tais acontecimentos a partir de seus ecos e não de suas literalidades. Dessa maneira, o intuito de inquietá-lo seria expandido para além da sala e das sensações imediatas que, quase sempre, oferecem conclusões esgotadas no próprio instante em que são percebidas. O tema interessa principalmente por sua abordagem e por fazer da ação teatral um alerta na forma de meta-teatro, na medida em que o espetáculo fala sobre a arte e o artista em seu estado de submissão e destruição por conta dos interesses do poder. Também a encenação é eficiente esteticamente no jogo de criar símbolos e sensações. Os performers, especialmente do elenco feminino, são precisos no trânsito entre eles mesmos e os personagens. Sendo, porém, o teatro mais do que texto e estética, também a potência de sua experiência, a linguagem poderia arriscar-se a ir além da utilidade, ambicionando desestabilizações maiores. Como seria se todos os documentos sugerissem ser parte reais e parte fictícias, por exemplo, ainda mantendo a ideia da montagem do memorial final? Como provocar o espectador a ter menos certezas, ainda que informado? Como lidar com os riscos de um passado ainda subliminarmente não finalizado? Como tornar experiência teatral a perspectiva de um vivenciar histórico na construção simbólica do presente? Stolpersteine Staatstheater realiza bem a parte que lhe interessa de aula de história e suas respostas de alerta, contudo falta-lhe como linguagem teatral a ousadia de ser capaz de provocar no espectador silêncios e explosões.
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