SP
i T M
especial
especial antro+ MITsp
editorials A
qui você encontrará algumas conversas com os diretores que participam da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. E não só. Também reflexões minha e de Ana Carolina Marinho. Também resenhas
críticas. E também respostas às resenhas. E as con-
textos
conclusões, quando surgirem. Junte a isso, o acompa-
ruy filho ato 2: ruy filho e ana carolina marinho
nhamento de nosso convívio com a Mostra, seus basti-
projeto gráfico
dores. E os encontros que certamente ocorrerão pelos
patrícia cividanes
versas abertas pelas redes sociais. E um pouco das
ato 1:
trajetos, salas, bastidores, café e esquinas. Uma espécie de diário de bordo realizado em duas etapas. A primeira, Ato 1, traz as visitas aos artistas. A segunda, Ato 2, as análises dos espetáculos. Somando então para o completo encontro com artista e obra, pensamento e realização. Os restantes, vão se espalhando. Encontre-os como intervalos necessários ao respiro. Então tome fôlego. Este Caderno surge com a proposta de ser mais do que um livro de reunião do material escrito, mas principalmente uma coleção de pensamentos. Portanto, invada-o e devore suas sílabas. Cada página lhe oferece um mundo imenso. E esperamos que profundamente eles possam e te estimulem a criar o seu. Parabéns, MIT. O Brasil, os artistas e arte lhes agradecem. Evoé. fotos: patrícia cividanes / Charlene Rover
lsumário 06 10 14 22 28 34 40 46 52 58 60 62 68 76 78 80 192 198 204
prólogo ato 1 visitando Romeo Castellucci visitando Angélica Liddell visitando Marcelo Evelin visitando Sahika Tekand visitando Guillermo Calderón visitando Oskaras Koršunovas visitando Mariano Pensotti intervalo carta aberta Honerozo x3 Cléo de Páris, Eric Lenate e Samir Signeu as filas as legendas ato II resenhas Olhares Críticos epílogo x2 Ana Carolina Marinho e Ruy Filho sobre a mitsp
nos encontre também no face+twitter
quem expediente
www.antropositivo.com.br
especial antro+ MITsp
editores
Ruy Filho Patrícia Cividanes
ANTRO POSITIVO é uma publicação trimestral, com acesso virtual e livre, voltada às discussões sobre teatro e política cultural.
realização
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antropositivo@gmail.com aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo
ANGÉLICA LIDDELL BEA BORGERS C HRISTOP HE RAYNAUD DELAGE CL ÉO DE PÁRIS DANIELE AVILA SMALL DAVIR RUANO DMITRIJ US MAT VEJ EVAS ELLEN BORNK ESSEL ERIC LENATE F RANCESCA PARAGUAI F REDERICO PEDROTTI GUILLERMO CALDERÓN H IDALDO ROSSEL IVANA MOURA K LAUS LE F EBVRE LÍGIA JARDIM LUCIANA ROMAGNOLLI LUIS ANDRADE MANON VALENTIN MANUEL GEANONI MARCELO EVELIN MARIA EUGÊNIA DE MENEZES MARIANO PENSOTTI MARLON FAGUNDES MARINHO MU HSIN AK GUN OSK ARAS KORŠUNOVAS PEGGY JARRELL K APLAN PIETER HUGO POLLYANNA DINIZ RICHARD DUMS ROMEO CASTELLUCCI SAHIK A TE K AND SAMIR SIGNEU SERGIO CADDA H SORAYA BELUSI VALENTINO SALDIVAR VALERIO ARAUJ O VALMIR SANTOS
agradecimentos
colaboradores
m
Antonio Araújo Audra Zukaityte Aurimas Minsevičius Ayse Draz Carolina Roa Collin (Mpta) Daniele Valério Danielle Lara Erica Montanheiro Fernando Mencarelli Gabi Golçalves Guilherme Marques Gumersindo Puche Henrique Carsalade Ignacio Fumero Ayo Ione Sawao Janaina Leite Joanna Rieussec Julia Guimarães Julie (Mpta) Loli Hidalgo Mamen Adeva Marcia Marques Maya Mecozzi Natália Machiaveli Nathalia Lorda Pollyanna Diniz Regina Veloso Rodrigo Fidelis Ruy Cortez Silvia Fernandes
especial antro+ MITsp
pr贸logo
É
sempre uma questão a primeira frase a ser dita. E me engano quando acho que a questão para na primeira, ela vira um tormento até a última palavra escrita. Quando existem todas as expectativas, a ansiedade chega a paralisar os dedos. Sou dessas que pode ser engolida pela esfinge por olhá-la abobalhada. Preciso estar atenta e pronta, gritam-me dos quatro lados. Que cara de espanto é essa, menina? Recomponho-me, dou conta que a esfinge é só um poste de luz com alguns lambe-lambes. Se a esfinge existiu? Não duvido. Engoliu-me e me regurgitou com os restos do outro abobalhado que olhou pra ela antes de mim. Mas é que essa esfinge não quer decifrada, é um poste de luz, menina. O jogo não está ai, mas na devoração. Ainda assim, paramos eu, o poste e todos os outros que também assistem espantados. Olhar também é um processo de deglutição. Atento que no lambe-lambe está escrito: é preciso engolir sem mastigar; e constato o tanto de gulodice que há no meu olhar. Os próximos dias seguirão com essa ansiedade desconcertante, é preciso duvidar de cada palavra que eu escrever e de cada pensamento praticado, pode o estômago ser rei? Bom, se ainda me sobra um último pedido antes da devoração, que reste o diálogo e o que resta dele, se resta alguma coisa...
ana carolina marinho
A
lgumas coisas são perigosas. Como um convite, por exemplo. Pode ser meramente um desejo de aproximação, mas, ocorrido o contato, como controlá-lo? Impossível. Resta deixar seguir e mergulhar. E assim foi. Um convite para que a Antro Positivo participasse junto a outros coletivos de um aprofundamento crítico sobre os espetáculos. Quem controla uma dezena de entusiasmados? Logo se propôs um novo formato, depois desdobramentos, e a potência de um coletivo que tem tudo para ser uma referência de consistência e pluralidade. Saltamos juntos à ação de criticar e metacriticar uns aos outros. Só que no salto, o mergulho atingiu o ar, e quem controla o desejo do voo? Seria inútil tentar. Então preferi seguir, experimentar a liberdade das asas e me arriscar a algo mais íntimo que os espetáculos. Um a um, dentro das possibilidades de suas agendas, visitei suas falas, provoquei suas dúvidas, duvidei de suas certezas. São conversas únicas, reflexões que se acumulam mapeando o agora para além do exercício teatral. Interessa-me o artista, esse ser estranho, fruto de um contemporâneo que nada deve em estranheza. Assim nasce esse Caderno Especial sobre a MIT. Assim nasce a perspectiva de iniciarmos autoria também no uso do sentir e da expressão. O problema é que, após voar, é impossível impedir que se olhe o escuro ao redor, o infinito, tudo aquilo que cabe possível de existir. Hoje São Paulo explode as barreiras que o limitaram a seus próprios domínios. Somos agora também a casa do mundo. E é lindo imaginar o descontrole que tudo poderá gerar por aí.
ruy filho
antro+_7
especial antro+ MITsp
c a
m
p
a
n
h
a
saia jĂĄ do foco
por
Nathalia Timberg
fotos patrĂcia cividanes
a luz do celular na plateia te coloca em cena. respeite o pĂşblico e o artista. Desligue.
por
Ricardo Blat
por
Ant么nio Fagundes
Esta 茅 uma campanha
especial antro+ MITsp
I
A convite da organização, a revista Antro Positivo participa do MITsp através do Olhares Críticos, uma série de ações que buscam promover a formação do olhar dos espectadores, sob uma perspectiva crítica e provocadora, com curadoria de Fernando Mencarelli e Silvia Fernandes. O Ato I , lançado dia 8 de março de 2014, consiste em reflexões a partir da troca com os diretores. O Ato II será lancado após o MITsp, com resenhas críticas, metacríticas e algumas surpresas.
especial antro+ MITsp
12_antro+
visitas Reflexões desdobradas a partir de conversas exclusivas ocorridas diretamente com os artistas por vídeo conferência ou email, tendo como convite a investigação mais íntima da percepção e compreensão do fazer teatral no contemporâneo.
R c romeo castellucci
A imagem precisa de uma palavra escondida em renúncia ao óbvio intérprete
nathalie malveiro
foto peggy jarrell kaplan
especial antro+ MITsp
Sobre o conceito de rosto no filho de deus
especial antro+ MITsp
S
e é preciso olhar por outras
Para o diretor italiano, a poética respon-
cação, que crie silêncio. Esse nosso espaço,
óticas o contemporâneo para
de ao que denomina por tensão estética da
surgido no uso da palavra poética, estru-
trazer valores próprios ao en-
crise, aspecto fundamental ao teatro oci-
tura geografias próprias de representação,
tendimento de qual ser de
dental. Isso, porque a experiência poética
mediante uma geometria precisa capaz de
fato nossa época, então cabe
oferece ao espectador o encontro com a
conduzir e tocar o espectador de outros
ao fazer artístico buscar pa-
linguagem, enquanto as estruturas tradi-
modos, “por via epidérmica”, diz. A não
râmetros em diálogo com tais
cionais limitam o convívio ao de sua não
obrigatoriedade de comunicar um conteúdo
percepções. E, sem dúvida,
experimentação. Romeo fala sobre os ris-
pode sugerir certo problema de coerência
uma das paisagens mais sig-
cos de se construir na arte pseudos modos
discursiva. Todavia, é preciso compreender
nificativa de hoje, se dá pelo seu desenho
de saberes, estruturas conformadas aos
a amplitude alcançada com tal escolha.
trágico. Então, como pode a arte traduzir a
seus acertos e encontros, já que as certe-
Toda coerência é, em certa medida, a re-
isso, sem se limitar ao reducionismo ou ilus-
zas consolidadas como estruturas exigem
dução da compreensão de uma realidade
tração desse existir trágico? Estão na busca
ao fazer estados de reação àquilo que se
posta e estável. Seja ela pela plena forma-
por uma outra formulação de relação com
cristaliza. Para ele, o teatro precisa ser
lização estética de um conceito, seja pela
o espectador alguns dos principais meios
compreendido como um lugar estragado,
total conceitualização de resultados en-
para conquistar tal objetivo. Para tanto, in-
perdido das formas conformadas. E, por
contrados. Ao oferecer instantes narrativos
vestir sobre os aspectos de constituição do
isso mesmo, disponível a ser a realidade
poéticos que não se protejam por coerên-
discurso cênico, faz-se primordial. Muitos
de uma ocasião poética.
cias estruturais e simbólicas imediatistas,
são os artistas atuais debruçados sobre as
É fato que tal pensamento deriva de esco-
Castellucci vai de encontro ao desenho de
variações dessas possibilidades. A Antro+
lhas particulares. Haverá os que se definem
realidade trazido pelo filosofo Thomas Na-
convidou um dos mais representativos e
pelo uso da retórica e os que superam a fala
gel, no qual ela, a realidade, é constituída
significativos criadores da cena contempo-
no reconhecimento da importância estéti-
também pela multiplicidade de pontos de
rânea para refletirmos mais profundamen-
ca. Mas, em momento algum, o diretor se
vistas subjetivos. O professor da New York
te sobre essas questões. Romeo Castelluc-
refere a sua escolha como estética, e sim
University, opõe-se ao relativismo ético que
ci nos recebeu disponível à conversa e às
com poética. O que amplia a presença tan-
se firmou como princípio a partir da segun-
tentativas de encontrarmos os meios para
to da imagem quanto da palavra na cons-
da metade do século XX, e também aos pro-
nos afundarmos ainda mais na busca por
trução da cena. Castellucci explica também
cessos privilegiadores das percepções obje-
nossa representação.
buscar uma palavra que renuncie a comuni-
tivas, pelas quais ou se nega os valores ou
16_antro+
se reconhece apenas os valores imparciais que servem de demonstrações de modelos externos a eles. Afirma estar na carência dos recursos conceituais, apropriados para
um
cons-
conciliar um mundo formado por fatos ob-
ciente
campo
jetivos e subjetivos, os dilemas que impu-
de
seram ao pensamento sua necessidade de
o
percepção reduzida dos fatos.
sionando ao máximo a
foto klaus lefebvre
Ao estruturar os espetáculos pelo con-
batalha
com
espectador,
ten-
exposição do eu perten-
texto de estruturas poéticas e não das re-
cente ao outro. Conflitua a
tóricas objetivas, Castellucci oferece algo
presença do outro com a exposição
diferente a uma lente de aumento dire-
íntima de suas expectativas e certe-
cionada sobre um acontecimento, um mo-
zas, sem, contudo, abrir-lhe espaço para
mento ou alguém. Traz a projeção sobre a
que algo se cristalize, como ocorre quase
maneira como nos relacionamos com nosso
que imediatamente em um processo fe-
próprio reconhecimento da realidade. Por
chado por discursos rígidos. Assistir a um
isso, diz, sua intenção não é a dessacrali-
de seus trabalhos é redimensionar a pró-
zação de valores e morais, o movimento de
pria presença em seu contexto maior de
mostrar o que não é verdade. Pelo contrá-
observação de pertencimento ao trágico,
rio, conclui. Em seus trabalhos, a presença
portanto, através da manifestação poética
da verdade permeia tanto a objetividade
pelas vias do sublime. Sobre isso, o diretor
quanto a subjetividade de interpretações
explica que o trabalho “deve provocar uma
anteriores aos preceitos determinados pe-
distância, levar para outra parte, transpor-
los conceitos estabelecidos. O teatro pas-
tar para outro mundo”, reconhecendo que,
sa a ser o objeto em questão, resguardado
potencialmente, o sublime pode sim supe-
que está em sua potência poética e não
rar o belo em sua capacidade de tornar a
discursiva simplesmente.
poética um estágio de envolvimento que
Para isso, Castellucci afirma provocar
supere a necessidade de conforto.
antro+_17
especial antro+ MITsp
É nesse querer transitar para outra per-
outro tempo. Nada pode ser mais efetivo a
cepção que o trágico se faz recurso mais
esse redimensionamento temporal do que
preciso. Por ser ele uma pergunta que não
a poética como estrutura de discurso. Por
pode ter resposta. Cabe aos espetácu-
isso, por mais que, muitas vezes, as imagens
los trabalharem sobre essa estrutura, que
trazidas ao palco sejam aparentes repre-
como tal, ele insiste, é anterior a tragédia
sentações da realidade, persiste, na manei-
(esta, já a configuração estética do enten-
ra como estas se localizam no interior da
dimento de um estado trágico), para abrir
subjetividade do discurso ou pela presença
ao máximo a forma, levando o espec-
de um ruído não literal, a temporalidade de
tador a outra referência de diálo-
uma singularidade poética. São quadros e
go com o discurso. No entanto,
estados performativos, nos quais o sujeito
continua, não é suficiente
não esta simplificado em uma presença em
mostrar o trágico. É preci-
cena, e sim na completude de sua observa-
so tornar a própria soli-
ção por um espectador que necessita convi-
dão do espectador um
ver em outra dinâmica temporal com aquilo
processo estético. E,
que a ele se revela, sem qualquer tentativa
assim, fazê-lo codividir
de configurar objetivamente significados diretos e consequentes.
Essa busca por uma forma
Se por um lado, então, a imagem configura
primária torna o criar um proces-
a surpresa de uma realidade imponderável,
so paradoxal ao reconhecimento do
por outro é preciso aproxima o espectador
próprio contemporâneo, aproxima o ar-
ao reconhecimento mais ordinário de seu
tista de Agamben e sua afirmação de ser o
espelhamento. Código recorrente em seus
contemporâneo acessado somente se nos
espetáculos, a criança confere imediato re-
distanciarmos de seu núcleo de ação. Para
conhecimento àquele que a assiste, além de
Castellucci, a arte precisa ser não atual, não
atribuir ao contexto conotações paradoxais.
pertencer a esse instante, mas com a capa-
Nesse sentido, a criança-signo não é mera-
cidade de conter o peso desse tempo em um
mente inocente, no sentido mais ordinário
foto klaus lefebvre
sua solidão com os demais.
“TEATRO É SEMPRE UM EXPERIMENTO SOBRE O TEMPO”
especial antro+ MITsp
foto klaus lefebvre
esta matéria foi publicada originalmente na Antro Positivo ed. 08 como capa especial de aniversário de 2 anos
“O ESPECTADOR NÃO TEM QUE RECONHECER OS ELEMENTOS OPERANTES QUE SE ENCONDEM.”
de sua pureza; existe como espécie de ino-
propositadamente desconsiderado, mesmo
xilio, frente a sucessão de imagens instantes
cência amoral da própria capacidade do ser
com a consciência de seu valor. A consci-
apresentados, me lembrarei que tudo está
em ser crítico ao presente e ao indivíduo.
ência crítica qual aponta Castellucci suge-
exatamente como deve estar. Em caso de as-
Para Romeo, elas mostram fragilidade e
re ao espectador o abandono não apenas
fixia e urgência, posso correr às alaranjadas
qualidade fora da linguagem e valores esta-
de interpretações objetivas dos códigos,
bolas de basquete e encontrar novamente
belecidos. Argumento que nos reaproxima,
mas, também, de qualquer outra busca que
um tanto de mim. Enquanto tudo me invadir
então, da teoria de Thomas Nagel, que pro-
não a de total entrega ao esvaziamento de
como potência, nada pode ser mais poético
põe um atirrelativismo da linguagem. Ao seu
compreensões imediatistas sobre a forma.
do que ver o ar que me falta quicar distraído
modo, os espetáculos de Romeo potenciali-
Exigindo-lhe, portanto, um posicionamen-
de minha necessidade. Porque no palco, as
zam a impossibilidade de julgamentos morais
to mais aberto e direcional à realidade em
coisas são e devem ser tratadas simplesmen-
de modo imediatista, portanto. É necessário
cena, do que propriamente à cena como
te assim. Subjetivas, delicadas, profundas,
o convívio solitário com as imagens. Apenas
ampliação de sua realidade.
perigosas e, sobretudo, sem maiores neces-
assim, os valores, sem nenhuma capacidade
A conversa chegava ao fim. Mas era pre-
sidades de explicações. E Romeo, sem dúvi-
de determinações lógicas, se colocarão ao
ciso, ainda, uma última pergunta, e desco-
da alguma, compreende isso melhor do que
espectador em forma de consciência crítica.
brir por ela, onde a mesma relação com essa
muitos. Preenche o palco com oxigênios que
Algo que me inquieta e persiste em muitos
construção cínica, no sentido filosófico de
não percebemos precisar. Mas que, uma vez
de seus espetáculos.
Safatle, alcança também seu próprio proces-
descobertos e compreendidos, tornam-se vi-
Se por um lado Castellucci busca não tra-
so de criação. Por que as bolas de basque-
tais à nossa própria sobrevivência. Feito um
duzir uma verdade narrativa, mas preen-
te?, digo. E, entre risadas de ambos os lados,
existir confuso e poético, real e imperfei-
cher a percepção com a potência de uma
nada poderia ser mais interessante do que
to, necessário e dolorido, mágico e emo-
poética subjetiva, por outro, a manipulação
“não tenho uma resposta inteligente para
cional. Feito um existir ao tempo de um
dessa consciência crítica só pode ocorrer
isso, sei lá, são bolas de oxigênios”. Curioso
momento em que não se reconhece senti-
através do que Vladimir Safatle nos apre-
apresentá-las assim. Pois não é raro ouvir na
do pelas formas habituais. Feito o sentido
senta como um processo cínico de elimi-
plateia de seus espetáculos se ter perdido o
de uma sensação indescritível.
nação dos excessos. Nesse aspecto, tudo
folego, o ar, a respiração. Então que seja. Da
Não se sai de um espetáculo
aquilo que se nega, confirma a potência
próxima vez, enquanto o ar não chega aos
de Castellucci sem antes dei-
do que permanece, enquanto o negado é
pulmões e o pulso se acelera em busca de au-
xar no teatro uma parte de si.
antro+_21
A l
Angélica liddell
Um grito em busca da liberdade pela permanência do indivíduo.
foto divulgação
especial antro+ MITsp
eu n達o sou bonita
especial antro+ MITsp
fotos francesca paraguai
D
eixar o todo e se concentrar
ciso fazer de sua identidade a ação artís-
em apenas um. E ser esse um,
tica. Não como uma espécie de violência,
você mesmo? Porque é para o
mas como rebelião à violência. Mas, olha
coletivo que a marginalidade
aí, novamente, a coisa toda, já que toda
sempre tende ir, em busca de
rebelião é em si uma espécie de violência
uma força social que a torne
simbólica e reação. Angélica se encontra
viável. Parece bom. Mas não.
nesse limiar. Por isso não tem a intenção de
São armadilhas, paradoxos.
trazer símbolos da violência contemporâ-
Enquanto o coletivo lhe pro-
nea, pois esses se limitariam a confirmar as
tege, também despersonaliza o indivíduo.
ideias globais. Então trabalha com ques-
Então você não existirá da mesma manei-
tões pessoais impossíveis de serem
ra. E são muitos os processos de coletivi-
globalizadas. Por serem íntimas.
zação disponíveis. Desde as estruturas mais
Por serem profundas. Contudo,
complexas, as mais imperceptíveis. Afinal,
o reconhecer é também uma
como você se reconhece? Pobre, rico, bran-
maneira de pertencer ao
co, negro, homem, mulher? Angélica per-
todo. Então aceita,
tence aos artistas cujos trabalhos visam
acreditando ser o
recuperar o direito à individualidade. Mas,
limite de sua inti-
olha aí, novamente, um coletivo marginal
midade, a narrati-
se construindo. Por isso é fundamental se
va capaz de produzir
afastar do máximo de coletivos que conse-
um ato de reconhecimen-
guir. Deixar de ser uma classificação. Ser
to. Piedade, comoção, seja
alguém, antes. Nem mesmo ser ele. Prin-
o que for. Certa de que o sentir
cipalmente, ela. Essa classificação absurda
é o principio de um estado de crise
que faz ser mulher antes que indivíduo,
particular naquele que o sente, e não
anulando a potência de ser apenas ela
mais um convívio coletivo. Porque a re-
mesma. Mas, novamente, um A representa
lação do ser humano com a poesia e arte é
sua própria identificação. Por isso, é pre-
sobretudo misteriosa. Faz-se como a cons-
especial antro+ MITsp
uma espécie de vingança in-
trução de um choque com o mais profundo
são. Impedindo, assim, en-
do ser, inclusive sua alma. Ao contrário de
clausurada em sua história,
como as transformações sociais se colocam,
que sua sociopatia lhe impeça
construídas que são pelos governos. Há que
de pensar. Antes que a tome. Antes
se distanciar de tudo isso, do tempo, do
que saia às ruas e dispare uma arma. É
contemporâneo, do que essas estruturas
ao expor a dimensão mais profunda de sua
alcançar outros estados de sua identidade
impõem. Feito o aproximar a criação artís-
intimidade, que um artista pode alcançar
e intimidade, alterando sua consciência,
tica a uma experiência alicerçada pela am-
no outro certos sentimentos. Para ela, a
chegando ao extremo de sua sensibilidade.
biência da Idade Media, trabalhando com o
piedade em assistí-la pode alcançar o mais
Como a crença que se busca na nas igrejas.
clássico, com sentido de antiguidade. Ali,
sincero amor. Não que amar resolva, pois
Só que o teatro, ainda que com a mesma
perdido no próprio passado, o teatro pode
não se trata de carência. Isso dependeria
natureza, apresenta esta em forma de he-
se valer de um encontro com a solidão do
de acreditar que a arte fosse capaz de me-
resia. É preciso agir. Usar do íntimo para
outro. Então algo acontece. Pouco impor-
lhorar a percepção da humanidade, e não
revelar aquilo que se constrói e destrói no
tam, as consciências fixadas pelas classifi-
é. Ao contrário. Revela a lama miserável,
ser, que se esconde na lama de sua misé-
cações coletivas, do homem e da mulher,
da qual somos feitos. Então, assistir ao ínti-
ria insolúvel. E como não existe criação ou
pois essas são estágios já submetidos a va-
mo e dele extrair seu sentimento não deve
destruição sem a força do amor, é preciso
lores manipulados. Importam as trazidas
confundir expressão com correção. Não
agir contra a vulgarização que tomou o ín-
por pessoas. E seus labirintos. E seus es-
existe rendição possível ao homem. Aquele
timo e o homem, nesse processo de desmis-
conderijos, intimidades. Pelos quais, o pen-
que se revela, expõe, mostra, assim como a
tificação que assolou sua crença. É preciso
samento passa a ser menos o mecanismo
arte que se coloca, não falam de como gos-
que o teatro seja a intimidade onde o amor
para construir e resolver, torna-se o instru-
taríamos que fosse o mundo, mas do que
possa ressurgir. E ter, no mais profundo des-
mento para sobreviver. Angélica Liddel usa
lhe é oculto. Dane-se a ideia de que algo
se encontro com o outro, ainda
o pensamento para controlar certo trans-
é possível melhorar. Dane-se a percepção
que pela comoção e piedade,
torno limite de sua própria personalidade.
da humanidade. Cabe a arte ser desapega-
o amor como um principio in-
Constrói na arte seu manicômio, sua pri-
da a esses valores. Ser, inequivocamente,
dividual de rebelião.
26_antro+
dividual. O que exige o outro como presença, portanto. Exige a assistência cumplice. A crença do es-
os textos em itálico referem-se a citações dA artista durante a visita
foto francesca paraguai
pectador, para que se permita ao artista
“LEVAR O CORPO A UM LIMITE É UMA ESCOLHA ESTÉTICA PARA TRANSMITIR UMA IDEIA”
m e marcelo evelin
A potĂŞncia do reconhecimento do encontro como poĂŠtica do outro
foto valerio araujo
especial antro+ MITsp
de repente fica tudo preto de gente
especial antro+ MITsp
fotos sergio caddah
F
az assim, chega mais pro lado,
Então é só esconder a discriminação laten-
uma espécie do toque necessário que falta-
afasta-se e pronto. Melhor? E o
te, o preconceito histórico. Dessa maneira,
va, enquanto o movimento de aproximação
contato que permaneça escon-
o medo do outro, do contato com o outro,
desenhou uma onda nova. Outra massa de
dido por uma espécie de hipo-
não precisará mais ser dissolvido. Essa dis-
gente. E não qualquer. Essa que, agora, bus-
crisia moralista, puritana, su-
tância incômoda que esbarra na invasão.
ca pela ação a democracia humana, social
perficial aos desejos. Mas sem
Melhor não. Seria verdadeiramente mais fá-
e política. Ainda que cada um preserve sua
se esquecer de vendê-los como
cil se acordássemos isso. O problema é que
singularidade, a massa existe e se faz fato.
algo natural. Como se o toque
quem controla a história? O país mudou. As
Sobrevivendo, expandindo. Querendo mais.
fosse premissa ao encontro. Eles
pessoas mudaram. Os sentimentos idem. E
Lidar com isso não é algo que se aprende em
gostam de nos ver assim. Ou de acreditar
ocorreu o oposto. Porque as pessoas resol-
poucos minutos. Tem que se colocar o con-
que somos assim. Ajuda a entender o que
veram se encontrar. Ao seus modos, ultra-
tato, seja físico ou coletivo, como parte da
criamos como estereotipo de nossa cultura.
passando os limites. Fizeram do convívio
vida social. Mas ainda estamos distantes de
antro+_31
se revela um processo po-
da. Desse modo, o teatro poderá caminhar
lítico, e por ele se alcança
para a compreensão de uma instância políti-
a transformação do indivíduo.
ca que se distingue da ideologia. Talvez nem
Essa é sua importância. Oferecer a
mesmo seja nomeável, permanecendo mai-
experiência de um discurso, e não do
úscula como deve realmente ser. Mas há que
indivíduo fazer do gesto um processo de
discursar como um monumento. Difícil é se
se gerar maior responsabilidade em quem
narrativa cultural. Então a arte se apropria
manter disposto, tanto de um lado quanto
faz e quem possibilitar ser feito. Poderia se
do desejo, porque a arte sempre se apro-
do outro. Pois são muitos os paradoxos por
fazer melhor com o dinheiro que se tem.
pria do que houver, e gera dele uma potên-
aqui. Mas Marcelo Evelin se diz otimista,
Só que, por hora, ele é o que aí está e que
cia de gente, de corpos. Corpos diferentes
mesmo assim. A questão é outra. Não mais
se tem. Então, deve-se seguir. Sem tornar
de lugares diferentes, escolheu, Marcelo.
a disposição da arte. Está no local onde o
tudo um processo fascista de construção de
Padronizados por uma escolha que, se na
teatro se coloca. É preciso discutir arte de
alguma coisa. O poder gera estados paranoi-
rua é pela falta comum, no palco é em es-
um lugar mais abrangente, fora dos vícios
cos de perseguição, é o que se percebe. E a
tética. Porque é preciso oferecer uma iden-
e adeptos. Falta tornar a arte uma verbor-
domesticação passa a ser inevitável. Então
tidade à massa que se oferece. É preciso
ragia experiencial de transformação e des-
que a arte exija, e não explique. Então que
consolidar a distância entre os blocos que
coberta. Uma linha tênue. Uma trincheira.
a arte seja o toque do encontro que não se
configuram o conflito narrativo surgido na
De onde não se deve esperar que emancipe
realiza. Que o teatro supere a falta que se
permanência de ambos em um mesmo es-
quem quer se seja, mas que aja, simples-
tem do outro em sua mais profunda indi-
paço. E o teatro deixa de apenas dialogar
mente, gerando consequências e escolhas.
vidualidade. O teatro pode e precisa ser o
com o espectador. Agora, inclui também
Radicalizar a potência da escolha. Ofere-
espaço dos olhos que se abrem
discurso. E problema. Muitos. E sendo am-
cer a possibilidade de escolha ao público.
ao encontro do outro no outro
bos, o indivíduo passa a conviver com algo
Entregar-lhe liberdade, e mover o contexto
e do outro naquele que esconde
maior que a própria arte. É quando o teatro
para que ela seja inevitavelmente exerci-
o próprio olhar.
tamanha aceitação. Por enquanto, apenas é possível acreditar na utopia dessa inclusão do gesto ao outro. Se as ruas apontam os caminhos, cabe ao
os textos em itálico referem-se a citações do artista durante a visita
fotos sergio caddah
especial antro+ MITsp
“DEVE-SE ESTAR PERTO DO OUTRO PARA se DISSOLVER O MEDO”
s t sahika tekand
A tradução da incapacidade do homem em lidar com a escolha como ação
foto muhsin akgun
especial antro+ MITsp
anti-prometeu
especial antro+ MITsp
H
á um tanto de trágico em
ao homem contemporâneo a dinâmica de
do que simplesmente fazer outra escolha.
cada um de nós. Disso sabe-
sua inércia ao abismo. Revelando o existir
Ao artista cabe apenas o seu jeito. Ou de-
mos, desde os gregos. Mas há
como um processo de permanente isola-
senvolver um próprio. O tal do método. Do
também um tanto de tragédia
mento. Então, encontrar as possibilidade
outro lado, cercando e impondo, o pensa-
em nós. E o contemporâneo
que cabe a esse novo homem passa a ser o
mento neoliberal do pós-modernismo criou
tenta dar conta de identifi-
desafio maior. O que não é simples, pois lhe
uma espécie de alergia aos métodos, como
car onde e como ela está. São
exige descobrir o próprio sentido do viver.
se suas existências fossem limites, ao in-
vários os caminhos. São pra-
É preciso achar uma maneira disso chegar
vés de aceitá-los pessoalidades. Mas, como
ticamente infinitos, dentro de
as certezas e desconfianças. Porém, nada
cabe ao artista confrontar os pilares que
suas traduções e revisões. E a arte é ape-
pode ser construído ou destruído, se não
também os sustentam, a quase proibição
nas um. O que é muito, ainda que um. O
pela maneira como se revela. Por isso a
pela existência de um método já valida os
que é pouco, se validada como apenas. E
vida se valida também como um processo
argumentos para tê-lo. Pois não se trata de
Sahika sabe disso. Sabe o quanto o mundo
de estetização de sua realidade. Em tudo.
ser contrariar as regras, mas de ampliar a
não precisa exatamente da arte, mas de
Em todos. E não necessariamente na arte.
observação de serem as oposições também
seu convívio. Sabe que criar é um dos ca-
Porque existe a diferença de nela a estética
a face que desafia a nova ordem mundial.
minhos mais efetivos ao desenvolvimentos
ser menos uma pluralidade e mais a dina-
Para os artistas, existe a necessidade, de-
de novas possibilidades. Então, fazer arte,
mização da escolha de uma forma especí-
pois a vontade, o método. Basta determi-
criar, significa opor-se ao modo como a vida
fica. E, ao fim, criar formas é aproximar
ná-lo. Basta desenvolvê-lo. Para Sahika,
funciona. Confrontar o trágico, assumindo
a observação sobre o viver, mas não são
o objetivo é criar uma narrativa artística
a tragédia como parte de existência. Su-
vidas necessariamente o que elas trazem.
verdadeira, daquela que assume o ocorrido
gerindo um novo homem e tempo. Pois o
Arte e vida estão próximas. E distantes.
sobre o palco, também em si mesma e se
trágico ampliava ao homem antigo a dinâ-
Tanto quanto é necessário ao artista es-
mantém aberta à avaliação. Assim a vida
mica de submissão aos desejos de alguém
colher seus princípios e suas intromissões.
torna-se um jogo possível de representa-
que não ele próprio. Olhava o existir como
Mas o presente também possui seus vícios,
ção. Enquanto a abordagem crítica apon-
um processo de permanente subserviência.
determinando o que deve ou não, e fugir
ta simultaneamente para o exterior e a si
Pois a tragédia, diferentemente, amplia
deles é contrariar um sistema mais amplo,
própria. O que lhe gera necessidades e con-
36_antro+
fotos ellen bornkessel
especial antro+ MITsp
“A ARTE NÃO TEM A RESPONSABILIDADE DE OFERECER UM PARECER”
homem sobre si mesmo. E
sequências, a mais impor-
novamente a arte se faz ca-
tante sendo a criação de uma
minho possível e precioso. So-
linguagem a partir de uma nova
bretudo o teatro e sua necessidade
gramatica. E como o teatro se faz
de presença viva como elemento para
fotos ellen bornkessel
presença a partir do reconhecimento de sua gramatica, portanto, reinventá-la signi-
realização. O teatro não tem obrigação de
fica também trazer a compreensão sobre o
fornecer um julgamento, um parecer, mas
homem e seu papel no mundo contemporâ-
a responsabilidade em criar formas, pos-
neo. Outrora coube ao homem descobrir o
sibilidades estéticas. Pois são elas, os ins-
mundo, depois criá-lo. Hoje, cabe a função
trumentos para sensibilizar o homem. Pois
de modificá-lo. Nada a ver com destino. Es-
são elas capazes de alterarem o homem em
queça dele. Não se trata disso. Mas o que o
seu próprio presente. A arte não tem que
homem tem ou não para mudar no mundo.
oferecer saídas. Seriam apenas escapes,
Esse é o enigma. Coube ao homem cons-
moldados igualmente nas possibilidades
truir e perceber e lidar durante o percurso
permitidas dos discursos consolidados. Ela
com seu fracasso. Agora, modificar signifi-
pode mais, trazer pelas percepções estéti-
ca perceber se suas escolhas são certas ou
cas a experiência daquilo que não se acessa
erradas. Ou, mais profundamente, visto
no pragmatismo do viver. Para Sahika, seus
a recorrência com que se pode concluir o
trabalhos e arte servem para que
quanto elas se revelam erradas, se, ao fim,
o homem possa, enfim, experi-
o homem não é capaz de escolher. Esse pro-
mentar a consciência da perda
cesso implica em mudar a observação do
de sua própria tragédia.
os textos em itálico referem-se a citações dA artista durante a visita
antro+_39
g c
especial antro+ MITsp
guillermo calderón
foto hidaldo rossel
O teatro tornado ato de liberdade e expoisção de paradoxos
escola
especial antro+ MITsp
fotos valentino saldivar
N
ão seria fácil se fosse uma
respeito sobre o
guerra. Mesmo a menor, sem
ambiente de diálo-
importância, local, inútil.
go. É preciso encontrar
As guerras conseguem atin-
caminhos. Se a liberdade
gir o imaginário de modo
desaparece
tão transformador que ne-
devemos encontrá-la em outro
nhuma tornaria as coisas
lugar. Ou nele construí-la. E o te-
simples. Imagine muitas,
atro, além de palco, é, antes, um ato
então. Imagine as que estão
possível de liberdade. Ocorre que tudo
rapidamente,
prestes a explodir. Imagine as explosões. As
nele colocado, inevitavelmente se traduz
consequências. Os medos e segredos que se
em discurso. Portanto, é também dogma e
colocam como tentativas de resistências. O
educação. Só que o teatro tem o problema
problema nesse novo imaginário é o quanto
de ser um tanto presente demais na cons-
de opressão se é capaz de suportar. Então
trução de imaginários, impondo riscos aos
não são apenas as guerras, pois estas são
sistemas. Assim como as guerras. Mesmo o
símbolos das opressões que as provocam.
menor, sem importância, local, inútil. Se
Quantas são as pessoas que vivem sob es-
bem que tudo aquilo que é capaz de au-
sas imposições? Quantas as que se propõem
mentar a percepção sobre a realidade pre-
revelar o fato de vivermos assim, em maior
cisa ser aceito exatamente pelo oposto. O
ou menor grau? Quantas aceitam se expo-
teatro é o espaço onde se legitima aspirar
rem frente aos sistemas opressores? Muitas?
transformar o humano e o social. Só que
O suficiente? Guillermo Calderón é uma das
para isso, discursos não são suficientes, é
delas. Enquanto o diretor apresenta o espe-
preciso mais. Apresentar a obra como um
táculo Escola, trabalha em um novo proje-
problema que deve ser resolvido racional e
to sobre a guerra da Síria, e assisti surgir o
emotivamente. Não pelo artista. Pois isso
conflito na Ucrânia com atenção redobra-
significaria trabalhar os dogmas não de for-
da. Porque as opressões atingem sobretu-
ma educativa, mas doutrinária. O problema
do nossas liberdades. Inclusive na que diz
se faz necessário se sua solução se der no
antro+_43
especial antro+ MITsp
ao teatro, tal linguagem pode
espectador. Conquistado isso, o teatro, tal
das e premeditadas. O teatro
qual convencionamos ser certo acreditar,
é um lugar onde a insegurança
deixa de ser um espaço cultural. Vai além.
é uma construção planejada para
Estabelece outra qualidade de princípio e
gerar experiências. Mas nem tudo no
se organiza esteticamente como uma sala
mundo é assim, e muito nele se faz como
onde se constrói o pensar coletivamente.
se fossem salas de teatro. Então nos dividi-
cias, não para gerar dogmas a serem resol-
É preciso investigar, portanto, qual é a pro-
mos entre o acreditar nas liberdades ofere-
vidos pelo espectador, mas doutrinas ser-
posição dessa sala, do espaço teatro, para
cidas, nas seguranças fingidas, enquanto o
vidas ao outro como pratos feitos. Não se
que se descubra qual o pensar que nela se
medo, verdadeiramente, não termina como
trata do realismo. Longe disso. O problema
dará. Que tipo de ideias podem surgir em
em um movimento natural de substituição.
do teatro não é o estilo, mas o discurso
ambientes assim? Depende. Porque o teatro
Faces que se escondem surpreendem em
ideológico que o define. E isso pode ser em
não é exatamente um espaço de segredo e
ambientes de repressão. Faces que se es-
qualquer linguagem, qualquer experiência,
medo, como os são os ambientes de repres-
condem funcionam como símbolo da histó-
qualquer espaço. Fora ou dentro. Na sala
são. Porque não lhe interessa repreender,
ria secreta e sepultada pela democracia. O
de aula ou na sala de aula sobre o palco.
mas revelar. Se em ambientes de segredo
dentro e fora da sala de teatro se aproxi-
Quando a ideologia passa a determinar o
e medo, tal qual o representado no espe-
mam, e cada vez mais. São tentativas de
contexto, nada ou muito pouco resta como
táculo, é preciso cobrir a cara para poder
criar mecanismos dogmáticos de leituras
possibilidade de envolvimento do outro. E,
expressar o que se pensa, são as ideias
de uma suposta realidade. E essa é a ins-
no teatro, isso se resume na constatação de
radicais que surgirão. No teatro, reitero,
tância mais delirante e fantástica do tea-
tornar o público mero adereço
absolutamente. A teatralidade oferece a
tro, o realismo. Ainda que muito se discuta
de observação. O trabalho de
clareza das experiências, tanto do segredo
sobre a importância de se distanciar-se do
Guillermo está muito longe de
quanto do medo, como narrativas elabora-
realismo como estrutura estética e técnica,
se interessar apenas por isso.
44_antro+
ainda oferecer aproximações extremamente radicais com as experiências ocorridas foras das salas. A
os textos em itálico referem-se a citações do artista durante a visita
fotos valentino saldivar
questão é a apropriação dessas experiên-
“O PROBLEMA DA OPRESSÃO E LIBERDADE SEGUE MAIS CLARO DO QUE NUNCA”
o k
especial antro+ MITsp
Oskaras Koršunovas
foto divulgação
A dimensão contemporânea dos valores clássicos
hamlet
especial antro+ MITsp
fotos dmitrijus matvejevas
T
udo parece bem. Parece. Assim
consciência. Só então, os personagens po-
se quer. Como se querer fosse o
dem existir. Consequentes. Próprios. E se
suficiente para oferecer algum
o teatro muitas vezes existe pela narrativa
controle. Mas a história se re-
do conflito, então deve-se buscar o conflito
vela quando menos se espera.
em quem o realiza, o tipo que nos ques-
Então tudo de repente deixa
tione e revele quem somos como profissio-
de ser tranquilidade e explici-
nais e seres humanos. Tarefa nada fácil,
ta a face escondida. Olhar pe-
aos artistas, libertar-se das estratégias de
las frestas, assistir ao impen-
efeitos, para a consolidação de estruturas
sável, ser cumplice de algo para o qual não
capazes de levar o movimento entre ser
se convidou. E ao teatro, a função de apre-
e não o outro ao infinito. Ocorre, muitas
sentar se torna pouco. É preciso apropriar-
vezes, o esquecimento desse movimento.
-se, viver a condição do próprio discurso,
Essa maldita rotina que nos cega e limita
oferecer a experiência sobre a narrativa.
ao sobreviver. Afastando o artista de sua
Algumas são mais simples, pois são meras
concretude. Impedindo sua aproximação
ilustrações de um viver específico. Outras,
e apropriação. Então, é preciso não fugir.
bom, quase impossíveis de serem domadas.
Dar conta de tentar e desvendar qualquer
Hamlet é um tanto de cada. Séculos depois
sentido ao rotineiro. Desde que se assuma a
de sua narrativa percorrer por dentro das
realidade como fato. Desde que se recrie o
historias, sua presença se faz clara, cons-
sentido de realidade. Porque tudo, repito,
tante e absolutamente enigmática. Porque
apenas parece. E tudo o que parece, um dia
mesmo Hamlet parece algo. Parece. Assim
se revela diferente. Aqui, ali, em todos os
se quer. Como se o querer fosse suficiente
cantos, mesmo na Lituânia. Um lugar cal-
para oferecer alguma resposta. Então por
mo, seguro, até que se descobriu a falsida-
que desafiá-lo? Invadir Hamlet necessita
de dessas sensações e se viu dentro de uma
também permitir ser invadido. Estabelecer
crise absoluta. Oskaras a descobriu antes.
um jogo pelo qual a atuação é mais orgâ-
Hamlet é de muitos séculos antes. Hamlet
nica, onde se é possível se ver e a própria
foi também de minutos antes da Lituânia
antro+_49
entrar em crise. Quando novamente o te-
revelar suas rotinas. Não basta o agora
atro se revelou reflexo da história, assim
como discurso, é preciso mais. Não basta o
como o personagem. Pois é o que lhe cabe.
ontem como exemplo, é preciso mais. Não
Trazer a revelação em forma de exposição
basta aceitar os clássicos, mas compreen-
do presente. É o que cabe aos artistas. Dar
der o que neles sustentam a construção do
conta de um certo incômodo injustificável,
contemporâneo, o que deles são reconhe-
porém percebido ou ao menos sentido.
cíveis e atuais. Não basta aceitar a con-
Desde que se esteja disponível, sem
temporaneidade, mas compreender o que
fechar-se e proteger-se no mundo
nela sustentam as estruturas universais. O
hermético da arte. Assim, o te-
teatro, portanto, deixa de ser a falsa segu-
atro pode ser a dimensão do
rança para a exposição de uma insegurança
prognóstico, da advertên-
real. Nada nele parece ser o que exatamen-
cia, sem deixar de ser
te é, ainda que tudo ali seja exatamente o
paradoxal, surpre-
que se mostra. Por isso as palavras e suas
endente, de do-
intromissões e alertas. Por isso Hamlet. E
brar o tempo. Do-
a desconfiança. Por isso desconfiar de si
brar a percepção. A
mesmo. Por isso ser artista. E o mergulho.
mesma que se esconde
Sobre a história. Sobre o homem. Sobre o
na rotina de um dia a dia
presente. E ser por eles igualmente histó-
enfadonho. Cabe ao teatro,
ria e presente. E, quem sabe assim, poder
ao seu modo, ajudar a ver o sig-
ser e trazer ao outro um pouco da sensação
nificado de nossas rotinas, das esca-
perdida ou esquecida de sua própria huma-
las de valores, das camadas mitológicas
nidade, abafada pelo ao silêncio da rotina.
universais, dos momentos fatídicos. Com
Ou, perigosamente, daquilo que
isso sim, o tempo se dobra também sobre
a nós parece ser apenas roti-
a historia, enquanto a narrativa expõe a
na. Parece. Pelo menos assim,
narrativa dos artistas em sua tentativa de
se quer que acreditemos.
os textos em itálico referem-se a citações do artista durante a visita
fotos dmitrijus matvejevas
especial antro+ MITsp
“DEVEMOS BUSCAR O CONFRONTO em e COM NÓS MESMOS”
M p
mariano pensotti
A ficcionalização da experiência como revelação da realidade
foto luis andrade
especial antro+ MITsp
cineastas
especial antro+ MITsp
A
o atravessar a rua, ele, o diretor argentino, me aguardava. Havíamos com binado de trocarmos algumas palavras sobre suas ideias. O problema é que o café do teatro precisava fechar em poucos minutos, então teríamos que
abandonar nossos planos. Nos dias que se seguiram, os encontros, um após o outro, igualmente não se concretizaram. Talvez as presenças não fossem realmente necessárias. E decidimos tentar por outros caminhos. Tudo é sempre mais amigável, quando se pode observar a fala do outro. Mas nem mesmo o receio de trocar as mensagens, como se pudessem elas dar conta da subjetividade das palavras escondidas, impediu que assumíssemos a nova condição sem qualquer pudor. Um a um, os emails surgiram. Durante dias. Dezenas. Perguntas submetidas aos dois lados, enquanto nossos pensamentos. Seria possível chegarmos a uma conversa apenas com indagações? E como acreditar serem elas verdadeiras? Enquanto aguardava a próxima
54_antro+
fotos bea borgers
as respostas ficavam presas nas esferas de
especial antro+ MITsp
“NOSSAS FICÇÕES REFLETEM O MUNDO, OU O MUNDO É UMA PROJEÇÃO DISTORCIDA DE NOSSAS FICÇÕES ?”
fotos bea borgers
soas, discussões políticas,
interrogação, assumi as minhas próprias
de tempo para guardar
invenções. As ficções existem pelas coi-
nossas vidas à posteridade.
sas imaginadas, eventos que passamos aos
Seria isso, então? A distância
outros. Como se fosse inerente ao contar.
teria intensificado a necessidade
Também ele deveria se inventar enquanto
de mantermos presente o encontro ini-
deformava seu passado. Ainda que reais,
cial? Seria esse o sentido do viver, oferecer
ção, extremando as possibilidades da nar-
não passávamos de possibilidades. E vive-
instantes à arte? Ou a vida serve apenas
rativa. Subvertendo a realidade em fatos
mos assim, construídos conforme os livros,
como veículo para que a arte se eternize,
plausíveis e inverossímeis. Não teve jeito.
filmes, programas televisivos nos ensinam.
na maneira como repetimos seus códigos?
Foi preciso o novo encontro. Desta vez, sua
E isso não é de todo ruim, ao fim. À medi-
Aos poucos, os emails se tornaram mais im-
ficção desejou ocupar a rua e outras ins-
da em que as frases tocavam um ao outro,
possíveis de resolver. Era preciso tencionar
talações reais, como se elas ampliassem
que nossas rotinas se contaminavam com a
o real e a ficção. Mas ele estava no tea-
a construção ficcional de todos nós. E era
possibilidade de pertencermos a um pre-
tro. Eu, aqui. Aquele primeiro esbarrão me
surpreendente estar ali, viver toda aquela
sente construído em ficções, e não mais
mostrou seu interesse pelas margens. Esse
verdade como apenas outra possibilidade.
ao passado de relatos, descobrir o quanto
é o seu teatro. O fazer sem nem mesmo
Era como se oferecesse um subtítulo à re-
de nossas privacidades influenciavam as
possuir a segurança se é teatro aquilo que
alidade. E foi então que ela, a realidade,
ficções, se tornou praticamente impos-
realiza. Uma espécie de representação em
recuperou seu momento. O cursor inter-
sível. Talvez, nossas vidas é que tenham
constante questionamento sobre si mes-
mitente na tela do computador apontava
sido criadas pelas ficções. Mas havia um
mo. Então entendi por quê suas respostas
diferente. Não haviam perguntas como res-
tom próprio em cada construção. Mesmo
traziam perguntas. É preciso que o teatro,
postas. Eram respostas. Lúcidas e inquie-
quando Mariano buscava desconstruir algo
tanto quanto o homem, percorra a ficção
tas. Oferecidas em um diálogo profundo e
ou introduzir certo ruído ao estilo, era ní-
de sua realidade para superar a realidade
generoso. Daqui, enquanto escrevia, o in-
tido que muito dele estava ali. Sua criação
de sua ficção. Porque somos a soma de am-
ventei, como me inventei a ele. Ele, pro-
exigia um tanto de autobiografia para se
bos os inventos. Porque a ficção represen-
vavelmente fizera o mesmo por
fazer real. Como se os emails fossem pe-
ta mais do que um desejo. Ela dimensiona
lá. A conversa existiu. O café
quenas doses de revelação de algo maior.
a observação para a complexidade de seu
não houve. Foi desejo. Ficção.
Feito a arte e seu existir como capsulas
tempo, trazendo elementos reais das pes-
Por enquanto.
os textos em itálico referem-se a citações do artista durante a visita
estéticas,
eventos
sociais,
econômicos e tudo mais. Ele sabia disso. De que pelo teatro poderia ampliar o conceito de sua própria fic-
antro+_57
especial antro+ MITsp
intervalo
Q
ue é indispensável o contato com o outro para gerar impulsos outros e esgarçar a percepção, é dado. Mas diante desse contato poder reverberar o encontro para além da dimensão do sensível, para também a dimensão reflexiva é permitir a indagação e o aprofundamento do olhar. É permitir praticar o pensamento para gerar pequenos colapsos. Cada escrita busca essa força primeira da detonação, essa aproximação com os espetáculos e com a pulsão de suas contradições. E a MITsp tem sido o território desses acontecimentos. A quantidade de espectadores e a qualidade dos espetáculos, das conversas e debates reafirmam a potência e a necessidade de permanência da Mostra. É preciso agora atentar para a demanda e os quereres. A produção tem buscado alargar a programação para dar conta do público excedente, o que satisfaz parte dos desejos. Que siga a MITsp com toda a força que já se transborda desde a abertura.
ana carolina marinho
A
s manhãs, tardes e noites confundem-se à ansiedade do devir. Tem sido assim. Acumulando expectativas. O desconhecido é o previsível na imensidão de cada instante que ocorre. Pouco a pouco, em cada fala, nas cenas, as junções se encaixam e transferem ao amanhã a vontade pelo próximo elemento. Não há descanso, pois não há a necessidade da calma. É preferível o caos ao comodismo da tranquilidade inerte. A suspenção do ar que obriga seguir segue o fluxo das linhas de metrô entre um teatro e outro, entre as salas, os abraços corridos aos amigos pelas filas, pelas vielas, pelas frestas. Teatro em estado de pulsação ininterrupta correndo pelas possibilidades de conviver com esta cidade. A MIT faz sua história na complexidade de sua exibição. Luta por compreender-se. Descobre-se existindo. E o quanto é sufocante mergulhar ao abismo de suas surpresas. Que ocorra o descontrole como forma de paixão. Como deve ser. A mostra exibe uma imensa vontade de ser real. E não há dúvidas de a ter domado. Novo fôlego, outras madrugadas esperam, dias completos. A hora é de se deixar continuar levar. Eu simplesmente aceito a condição. E vou. Difícil é esconder o sorriso, para não parecer mais estranho ainda aos desconhecidos nos caminhos.
ruy filho
antro+_59
especial antro+ MITsp
carta aberta para Honeroso
O
lá, Honerozo, tudo bem? Te assisti no espetáculo da Angélica Liddell, aqui na MIT, em SP. Acho que você não vai se lembrar de mim. Estava na primeira fila, mas você se manteve entretido antes de começar o espetáculo tentando empurrar o monte de feno. E fui também depois. Eu sou o cara que foi até você no final e te dei um pouco de cafuné. Lembra? Não, né. Mas tudo bem. Os humanos precisam e merecem mesmo ser ignorados. Juro que te entendo. Aliás, parabéns, rapaz. Soube que você é famoso. Televisão, publicidade, cinema e agora teatro! Caramba, isso é que é uma carreira sólida. Bom saber que, quando se tem talento, as portas da arte se abrem também para o sucesso. Imagino que, por questões óbvias, você não acesse a internet. Então tô escrevendo mesmo. Eu sei que você também não lê. Mas, vai que o seu tratador te ajuda com essa carta, pede pra ele. Então, cara, quer dizer, bicho, tô aqui principalmente pra te pedir desculpas. Fico meio envergonhado pela maneira como o público de São Paulo te recebeu. Porra, foi mal, cara. Um astro como você realmente não merecia ter passado por tudo aquilo. Mas os tempos são outros e mesmo um artista como você muitas vezes é tratado apenas como um animal. É difícil pras pessoas entenderem sua paixão pela arte. Só não deixe isso te abalar. Toca a vida. Deixa os invejosos de lado, ok? Vou tentar explicar. Aquelas pessoas queriam mesmo o teu bem. Eles realmente acreditavam que você estava sofrendo muito. Eu sei que não deu nenhum sinal disso ou demonstrou qualquer desconforto. Aliás, você é muito doido mesmo. Por que não quis usar os tampões no ouvido? Claro que é muito mais legal quando se ouve as coisas, também penso assim. Sabe que era divertido ficar vendo suas reações às reações do público? Cara, parecia que você estava de verdade batendo um papo com a gente. Mas voltando... Então, eles tinha certeza, e aí acharam que o mais certo era subir ali, interromper, te tirar de lá de cima, sei lá. Queriam te levar pra um campo florido, pra correr, e essas coisa que se imagina ser a vontade do animal. Calma, eu sei, você é um artista, animal é outra parada. É que as coisas se confundiram muito sobre quem é quem, entende? Me contaram que nos outros dias foi tudo tranquilo. Legal, melhor assim. Deve ter sido incrível, já tinha passado o estresse da estreia e tal. Afinal, seu cachê era pra ficar lá por uma hora, não uma hora e meia. Fala sério, que povo mais sem noção e respeito ao seu horário de trabalho. Agora, tem uma coisa engraçada. Olha só, você é um... artista! Ok. Mas, pra facilitar aqui, vamos imaginar que seja um cavalo. Calma, é só uma hi-
pótese, certo? Um cavalo-ator, uma espécie de cavalo-homem. Então, tinha uma outra peça, em outro canto da cidade, que eles recebiam a visita do ator que era o homem-elefante! Bicho, não vi ninguém ir lá se manifestar pra proteger o elefante. Tá vendo como é preconceito contigo? Logo vão exigir que você tenha DRT e essas coisas aí. Não gosto quando tratam um artista como se fosse um bicho estúpido. As pessoas precisam entender que artista é artista, e que um artista de verdade, se ele é artista de verdade, então nada ali é de mentira, tudo tem sentido, tudo tem por quê. Caramba, até parece que você era apenas uma decoração! O povo tá louco? Tinha uma mulher falando do estupro que sofreu aos 9 anos, e as pessoas estavam pensando, ah, normal, isso acontece, agora tira o cavalo daí. Caralho, Honerozo, porra, eu tenho nome. É isso que você tinha que ter gritado. Mas não. Soube respeitar, mesmo enquanto vocês eram desrespeitados. Você deu foi uma lição em todo mundo, isso sim. Puta exemplo de profissionalismo, cara. Porque o homem-elefante ficou lá sozinho, acredita? Abandonado, só com a companhias de uns peixinhos. Triste essa diferença. Outra coisa que eu queria te dizer. Soube que em uma apresentação, você, digamos, precisou fazer suas necessidades. Cara, teve um teatro que tinha um senhor com o mesmo problema! Juro! Então, fica na boa, nem se preocupa. Você não é o primeiro e nem será o último a ter esse problema no palco. Acontece toda hora. O pessoal não conta, mas acontece muito. Bom, figura, eu adorei te conhecer. De verdade. Você tem uma puta presença cênica, sabe se colocar no palco, se mexe bem e tal. Acho que na próxima gostaria que te dessem algumas falas. Ia ser bem foda, se isso acontecesse. Agora, descansa um pouco, porque foi puxado. Teatro é uma puta adrenalina, imagina quando sofre invasão, então. Descansa aí, toma aquele suco de alfafa que você tanto gosta, liga a tevê, veste as pantufas que te mandei, e olha pro futuro. Eu tenho certeza que é questão de tempo pra você receber um prêmio de teatro por aí. Você é demais. Tô aqui torcendo por você. E, quando estiver por São Paulo, me avise. Vamos no jóquei ver a galera, matar a saudade da turma e tomar umas juntos. Ou me dá um toque quando estiver com outra peça em cartaz. Faço questão de ir te assistir. Depois te mando um projeto que eu queria tua opinião também. Quem sabe, um dia, ainda não vamos trabalhar juntos. Ia ser demais de bom. Falou, rapaz. Se cuida aí. E se precisar, dá pra dormir aqui em casa, agora que não tenho mais beagle. É só chegar. Beijos
ruy filho antro+_61
especial antro+ MITsp
x3 por cléo de páris, Eric Lenate e Samir Signeu
Samir Signeu: Boa tarde!!!!
tudo fica preto de gente, Gólgota Picnic e Hamlet.
Cléo De Páris: boa tarde!! SS: Podemos começar? Onde está o Eric? Boa tarde Cléo! CP: oi Samir, Eric ja entrou
EL: No nosso caso foram 6: “Sobre o conceito de rosto no filho de Deus”, “Nós somos semelhantes a esses sapos + Ali”, “Anti-Prometheu”, “Gólgota Picnic”, “Hamlet” e “Eu não sou bonita”.
SS: Que bom! Eric Lenate: estou aqui! Boa tarde! SS: Foi muito bom ver São Paulo respirando teatro, novamente, durante duas semanas. CP: sim, foi incrível! EL: Com certeza, principalmente com os trabalhos que a MIT conseguiu trazer para cá! Podíamos começar falando sobre os trabalhos que nós vimos, que tal? CP: eu e Eric vimos as mesmas peças SS: Quais? Eu só consegui ver cinco: Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, Nós somos semelhantes a esses sapos... Ali, De repente
CP: todos maravilhosos trabalhos! SS: Eu queri tanto ter visto o “anti-Prometeu”, mas compromissos me impediram. Cada um mais instigante, provocador e desafiador do que o outro. Digo mais... EL: Era incrível “antiPrometeu”! De um rigor estético e cênico fora de série! SS: Fiquei sabendo disso, Eric. Mas não deu. EL: Não conseguimos ingressos para “Bem vindo a casa”, trabalho do grupo uruguaio. Passei quatro horas na fila, não nem assim foi possível! CP: alguns, nem cogitei ver
porque imaginei a dificuldade... espaços pequenos e com público cativo como Itaú Cultural... SS: Mas todos o que vi fizeram com que eu demorasse muito para dormir. CP: depois desse dia, ficamos espertos! começamos a ser os primeiros de todas as filas, haha sim... não dava pra dormir com tudo aquilo, Samir... SS: Também fui duas vezes no Tusp para vê-los, mas chegando duas ou três horas antes a perspectiva de ver era nenhuma. O meu caso extremo foi chegar as 14h30 no CCSP para ver Hamlet. Marquei reunião, ensaio = tudo na fila. E fomos os primeiros a entrar. EL: Sim! Ainda estamos nos restabelecendo fisicamente da semana passada, rs... Foi muita intensidade para uma única semana. E esse tipo de acontecimento eu acredito ser histórico! CP: tive acho que um estresse emocional depois do MIT. foi intenso demais tudo.
SS: Me lembrou os festivais da Ruth Escobar - anos 70, 80 e 90. E o começõ da Mostra de Cinema. EL: No “Hamlet” também conseguimos ser os primeiros da fila também, chegando às 14h no sábado. CP: foi bonito demais o movimento todo, as filas nem mais enchiam o saco. fazia parte de algo tão especial que nem cansava mais. SS: Eu os vi lá. Vocês eram os primeiros. Penso Cleo, que esse estresse se deve a maratona física e as temáticas das peças. EL: Sim, Samir, a MIT - como os festivais da Ruth Escobar e o movimento que a Mostra de Cinema proporciona para a cidade - tem tudo para se tornar um marco no calendário das atividades artísticas e culturais de São Paulo. SS: Esperamos que tenha continuidade. CP: sim, Samir! as peças foram muito emocionantes. tanta beleza e ousadia cansa a alma
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especial antro+ MITsp
da gente! e é bom! tem que ter continuidade! e acho que eles podem aprender com essa primeira edição e tornar mais incrível ainda o festival. EL: Eu tenho alguma sugestões que talvez possam ajudar o pessoal do organização a aliviar um pouco a barra de quem está disposto a enfrentar horas e horas de filas pra a próxima edição da MIT. Você teriam também? SS: Cada peça tinha o seu universo, mas me afetaram profundamente. CP: acho que as minhas sugestões são parecidas com as do Eric, até porque conversamos bastante nas filas, rsrs. SS: Olha, eu fiquei pensando nisso; mas concretamente não formulei nenhuma. Só sei que o número de interessados cresceu muito e ainda mais sendo gratuito, inclusive com o número de pessoas da terceria idade também interessadas. As filas aumentavam de espetáculo para espetáculo.
CP: isso, Samir, cada peça era um universo absolutamente diverso e todas magníficas. a curadoria do festival merece parabéns. as nossas sugestões são bem simples, né Eric? SS: Fale um pouco delas. CP: primeiro, acho que os espetáculos em espaços pequenos deveriam ter mais sessões. por exemplo, um dia no Auditório do Ibirapuera equivalem a quantos no Cacilda Becker ou Itaú Cultural? EL: Começando pelos teatros participantes da Mostra. Alguns não tinham assentos numerados. Talvez se, somente para a Mostra, sem alterar as normas da casa, os assentos pudessem ser numerados. Assim, que já enfrentou 5 horas de fila, não precisa ficar noutra a a entrada. A falta de numeração nos assentos provoca a ansiedade no público de conseguir um bom lugar no teatro, provocando a formação de outra fila por mais uma hora. SS: Isso mesmo. Em espaços menores o número de
apresentações deveria ser maior. E que os ingressos tivessem a numeração dos assentos, como Sesc, seria muito bem vindos. CP: concordo com os assentos numerados. a pessoa que ficou 5 horas na fila pode relaxar um pouco, sair pra tomar um suco ao invés de entrar em outra fila ou correr o risco de ter ficado todo esse tempo esperando e pegar um lugar ruim na plateia.
fácil; penso que o número de interessados deve ter sido muito maisor do que o previsto. EL: E a distribuição de apenas um ingresso por pessoa. Isso obrigaria o espectador a marcar realmente seu interesse com sua presença, desde a hora das filas. CP: claro, tbm acho. e eles, certamente, estão pensando em tudo isso e querendo melhorar.
SS: Perfeito! Vamos ao teatro para ver e também ouvimos. As imagens foram muito fortes e continuam ainda ecoando na minha memória: o branco e a merda, o velho e jovem, as granadas e o Cristo etc. em “Sobre o conceito...
SS: Eu deliberadamente cheguei a conclusão que não conseguira dispor de tanto tempo para ver todas as peças; então, cabei optando por aquelas que realmente eu queria ver. Mas foi uma pena não ter visto as outras.
CP: são pequenos ajustes que farão diferença. Castellucci esplêndido!... sobre as suge sugestões também acho que não deveria ser gratuito... bem barato, mas não de graça.
EL: Sim, Samir. Acredito que eles já devem estar pensando em, quem sabe, aumentar a duração da Mostra. Seria incrível que ela pudesse durar 2 semana. Quem sabe até, um mês! Se a Mostra durasse mais tempo e com mais apresentações de cada trabalho participante, talvez conseguíssemos a proeza de assistir a todos os trabalhos.
SS: Penso que essas sugestões já devem ter chegado aos ouvidos dos organizadores. Mas não é
SS: Seria muito bom. Encontrei um dentista aposentado, na fila, que disse que naquelas duas semanas ele só trabalhava até às 14h00 para ir para as filas. CP: acho também que dois ingressos é complicado. A distribuição de senhas quando a fila já está grande também pode ser uma boa opção. da pra saber quem tem chance, quantos ingressos de fato serão distribuídos. puxa, imagina um mês!!! eu me senti privilegiada por ver trabalhos tão maravilhosos. me senti abençoada depois de ver a Angélica Liddell... SS: É melhor a distribuição dos dois ingressos, do que vermos a fila na nossa frente ser inflada. EL: Isso é maravilhoso, Samir! Encontramos também um pai que veio do interior pra visitar sua filha que mora aqui e estuda no Macunaíma. Os dois ficaram 6 horas na fila! Infelizmente não conseguiram ingressos. CP: sim, tenho dúvidas dos dois ingressos... mas a fila inflava de qualquer maneira. a falta de educação das pessoas, isso é triste.
SS: Que chato! Ter visto Gólgota Picnic, com La Carniceria foi outro momento de muito impacto. EL: Sim, talvez a distribuição das senhas pra quem já está na fila, como aconteceu no Cacilda Becker, possa ser uma boa pra contar a “inflação” das filas. CP: eu adoraria ter o texto de Gólgota Picnic! SS: No Itau Cultural eles fizeram isso, antes da entrega dos bilhetes. Eu estive na conversa com o Rodrigo Garcia e ele mencionou sobre a reação do publico quando o pianista toca Haydin EL: Todos estes grupos eu conhecia somente por vídeos. Pra nós que fazemos e estudamos teatro, ter a oportunidade de vê-los ao vivo é inesquecível! O que ele disse, Samir? CP: é ótimo, porque vc fica sabendo quantos ingressos as pessoas na sua frente vão pegar e se vc ainda tem chance. (falo das senhas na fila) é, o que ele disse?
SS: Ele disse que m Madri a reação foi a mesma que a de São Paulo - inquietação durante a música. Diferente da Europa central e do Norte onde eles estão acostumados a irem em concertos, ouvirem música clássica. Mas em Paris e em algumas cidades da França os católicos foram para o teatro protestarem
SS: Sim, temos também o grotesco e o sublime.
EL: Sim, aquele instante é mesmo de profundo desconcerto. Mas se você supera a fase de desconcerto, você embarca na complexidade do discurso do Rodrigo com uma intensidade absurda!
SS: Eles transcendem as fronteiras e estabelecem diálogos interdisciplinares e inter-territoriais. Eles se propõem desafios radicais e a transgressão de práticas estabelecidas.
SS: Sim, ele disse também, que aquele momento seria para relaxar e pensar no que havia sido dito e visto anteriormente.
EL: Pra quem está preocupado em entender o que é a performatividade dentro do teatro e sua imbricações, esse foi um exemplo, como bem disse, Samir, dos mais transgressores e radicais.
EL: E é exatamente o que acontece! CP: aqui não protestaram porque nem devem ter ficado sabendo da temática da peça, do jeito que ta na moda manifestações nessa cidade... sim, é o que acontece! e ele da um tempão pra vc ficar pensando. é sublime.
EL: Mas ele é inclemente e, quando você pensa que tudo passou, ele despenca de novo seu anjo pra cima de nós! É maravilhoso! CP: hahaha, sim! eu amei o anjo!!
CP: queria ter visto os debates, será que o pessoal do MIT vai disponibilizar esse material? seria bacana, para escolas talvez. EL: Eles poderiam gerar uma publicação contendo o material
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especial antro+ MITsp
dos debates e todas as críticas feitas pelo coletivo de críticos que, aliás, era um time formado só por feras.
Sim. E contou com a adesão de todos os que estavam lá; que esperam um encontro teórico uma conversa.
CP: ótima ideia, Eric!
CP: que maravilha!
SS: Fui em alguns. As vezes a condução/mediação não era a mais indicada, sem citar nomes. E alguns desviavam daquilo que lhes tinham sido proposto - pelo menos como t´titulo do encontro.
EL: Que incrível! Queria muito ter estado lá.
CP: ah, que pena. SS: Mas sempre fica algo, como diz Drummond em “Resíduos”. Participei de um encontro com Eleonora Fabião e Igor Dobrinic, no ECUM, que foi muito performático. Tínhamos que construir uma peça para depois almoçarmos nela. Digo uma MESA. EL: sim. E a matéria residual que vai nos acompanhar durante este ano até a próxima MIT é imensurável. Essa foi a maneira do “Debate/ Encontro” com eles, Samir? SS: Que venha o segundo MIT!!!!!!
SS: A primeira mesa foi rejeitada, pois estava coberta com uma passadeira vermelha suja e uma rede, também vermelha suja. Então, foi preciso refazer a mesa. CP: um dia precisamos nos encontrar pessoalmente, né? SS: Pois é, eu os vi na fila. Todos falam de vocês; mas só os conheço de longe!!!! Vamos deixar o virtual e partir para o presencial!! CP: rs, sim, daí falamos mais da mostra e de outras coisas! SS: Claro! EL: Vamos, sim! Samir e Cléo, precisarei sair agora e infelizmente, encerrar nossa conversa. Muito obrigado pelo papo!
Um imenso parabéns a todos os idealizadores, curadores, organizadores e voluntários da Mostra. E outro imenso parabéns a todos esses grupos incríveis que fazem um trabalho imprescindível pra nossa alma e pro nosso mundo! SS: Foi muito falar com vocês e trocar vivências sobre um acontecimento tão importante para cidade de São Paulo e, por extensão, para o Brasil. E muito mais para NÓS!!!!!!! Beijos, CP: também deixo aqui parabéns e um profundo agradecimento a todos os envolvidos na Mostra! bjs e obrigada pela conversa! SS: Fomos!!!!!!!!! EL: Foi muito bom conversar com vocês! Beijos pra vocês também!
Fotos de Cléo de Páris, fazendo um making of das filas pré espetáculos. Em seu kit, o jornal da Mostra, as críticas do Coletivo de Críticos, almofada, água, sanduíche natural e um bom livro. Na página à direita, Cléo aguarda Angélica Liddell no Teatro Cacilda Becker.
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as filas
D
iz-se que o brasileiro gosta de fila. Talvez. Afinal, como explicar o amontoado de pessoas exprimidas, mesmo quando é absolutamente desnecessário? Exemplo, a maioria das salas de cinemas já vendem lugares marcados, mas eis que, meia-hora antes, ali estão dezenas de pessoas aguardando a entrada. Esquece, essa é uma leitura no mínimo idiota. Se bem que... Melhor tentarmos outro caminho. Há filas e filas. Banco, supermercado, posto de gasolina, farmácia, ligações telefônicas e muitas outras pertencentes à categoria das odiadas. Resumem um estado de inércia que amplia uma caricatura de rotina, de sociedade. Mas, evidentemente, isso também é uma generalização, portanto um exagero. Só tente explicar à pressa e ao cansaço que filas são, sobretudo, estruturas de organização, ainda que aparentemente inúteis e caóticas. Algumas funcionam melhores, outras menos. Então se discutem mecanismos alternativos como sorteios, senhas, usos de reservas por meios digitais. Resolvem? Adivinhe o que processos de eliminação das filas produzem: filas! Para a retirada das senhas, para as inscrições, para o acesso ao mecanismo. Ou seja, a fila só poderá ser evitada na criação de outra que a antecipe. Compreendida, então, sua inevitabilidade, qual a questão em si? Sou grande frequentador de filas, desses que chega às 8h para um bilheteria que abrirá ao meio-dia. E, para todos como eu, um dos passatempos é a observação. Respondendo, portanto, a questão em si é o conforto. Conforto não se limita ao reconhecimento das necessidades físicas, essas, claro, são
evidentes. Amplia-se também ao emocional. Horas sem certeza alguma? Sim, terrivelmente. Meu recorde foi a tentativa de assistir Apocalipse 1,11 do Teatro da Vertigem. Dia um, cinco horas na fila e ingressos esgotados; dia dois, outras cinco horas e novamente de fora; dia três e, muitas horas depois, ufa, entrei. Quem nunca passou por isso? Bom, na MIT foram centenas, e espero eu que se tornem rapidamente em milhares. É preciso, porém, lidar com a frustração. E isso não é nada confortável. Então se esperneia, grita, reclama, conclama os cúmplices, acusa-se os envolvidos, e quase sempre nada pode ser resolvido. O fato ignorado pelo desconforto emocional é haver limites, e o azar pode atingir qualquer um, até mesmo eu e você. Pior, ele se repete maquiavelicamente, pois não lhe cabe a lógica, mas a sorte. O que resta é assumir a fila igualmente acontecimento. Estar ali é parte de um desejo que poderá ou não se concretizar. Mas, se entendida a fila como naturalidade da consequência de serem muitos os desejantes do mesmo objeto, perguntar-se o quanto isso já é fascinante redimensiona a participação junto ao acontecimento. Talvez, amanhã seja você disponibilize mais horas para o risco, ou apenas desista. Desistir evidencia a casualidade da participação, menos que o desejo. Insistir, ao contrário, amplia o desejo. E mesmo que não realizado, a reverberação do desejo naquele que o sente o levará a agir e construir possibilidades. Portanto, cabe mais ao indivíduo estimular o desejo que a desistência, enquanto a fila permanece inesgotável e indecifrável. Filas para assistir teatro? Sim! Se temos como normais, filas
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que duram dias para ingressos de shows cada vez mais caros, de jogos esportivos, igualmente caros, o teatro, principalmente o que oferece ao outro experiências singulares e contestações dos valores estabelecidos, este, esteve fora da filas por algumas décadas. Salvos um espetáculo aqui, outro lá, ainda que as bilheterias se esgotassem, o público rapidamente substituía o desejo pela desistência, sem maiores frustrações. Desta vez, não. E quem poderia imaginar isso? A MITsp recuperou a curiosidade, o desejo em conhecer, em mergulhar, no sabor de encontrar inquietações. As filas se mantiveram. Diariamente. Em todas as apresentações. E foi bonito assistir o quanto tornaram as frustrações vontades maiores aos desejos e não à desistência. As pessoas se acostumaram ao risco. Passaram a aceitar o risco com algo natural. E essa é uma vitória e tanto. Não pela noção de cordialidade, mas pela aceitação natural que à Arte, assim mesmo maiúscula, também interessa, conquista, atrai. As filas da MITsp irritavam pela ansiedade que provocavam ao desejo de sua concretude. Para muitos, tudo foi bem. Para muitos, os desejos precisaram ser guardados para 2015. Então que seja. Na ordem da fila de nossos desejos, em algum momento, a MITsp recuperará seu sentido. As filas se formarão novamente. E tudo bem. É arrumar o desconforto físico e preparar o emocional para que a experiência seja a plenitude do convívio com a Mostra. Os espetáculos são uma parte importante. Mas há também os encontros com os artistas, com pesquisadores, com críticos e o que mais for inventado. Basta querer estar. Quem sabe a impossibilidade de adentrar na sala de espetáculo não seja o empurrão necessário para que se atravesse o pátio e ocupe os quintais? Em 2014, as cadeiras no Itaú Cultural foram divididas com encontros fundamentais. Mas se prepare, talvez no próximo ano, até nesses momentos tenhamos filas também. Aí sim acreditarei que o teatro, em sua mais profunda e ampla atuação, de fato renasceu. Espero você na fila, então.
ruy filho
foto lígia jardim
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legendas
A
legenda, e essa foi uma sensação que me perseguiu nessa Mostra, foi a grande força de imposição do discurso. Ela antecipa o pensamento e retira do espectador a ilusão de que as coisas estão acontecendo pela primeira vez ali, de que o próximo segundo é desconhecido por mim espectadora e por eles atuadores. Ela é bastião da ficção, garante que aquilo tudo é pré-fabricado, ensaiado e marcado. E isso faz o olhar do espectador habituar-se ao previsto. O que gera um empecilho para as obras que se propõem performativas, tal como nos diz Silvia Fernandes a partir das provocações de Josette Feral “o ato performativo, se afasta da teatralidade na medida em que esta cria sistemas, significados e nos remete à memória. Isto é, se por um lado a teatralidade é ligada ao teatro, à estrutura narrativa, à ficção, à ilusão cênica e se distancia do real, por outro lado a performatividade (e o teatro performativo) enfatiza o aspecto lúdico do discurso sobre suas múltiplas formas (visual ou verbal: seja do performer, do texto das imagens, dos objetos)”. Assim, a legenda aproxima o ato da teatralidade ao afirmar essa ilusão e a referencialidade e distanciar o olhar do espectador do risco da cena e do desequilíbrio do performer que se coloca em situação de ação. Além disso, como a legenda é projetada acima da cena, normalmente, é comum que parte da potência da visualidade seja perdida pela preocupação em acompanhar o que se é dito. Em Cineastas, do diretor Mariano Pensotti, e em Bem vindo a casa, do diretor Roberto Suárez, diferentemente de outros espetáculos da Mostra, a presença da legenda e a ausência dela, respectivamente, tornaram-se linguagem e poética em tais espetáculos. No primeiro, a legenda é suporte para que as duas imagens (a representação e a representação da representação, ambas enquadradas pelo cenário) se colidam e transformem-se em uma terceira realidade. E, assim,
passa a não interessar de qual projeção a legenda pertence, mas sim o atrito que gera ela pertencer às duas simultaneamente. Parte disso, tem a ver com o espetáculo ter estreado fora de Buenos Aires, local de origem, e ter sido desenvolvido com a necessidade de legenda desde o processo de construção. Ela, então, não é aquele intruso que impede a fruição da obra, mas sim suporte para que ela se realize. Em Bem vindo a casa, episódio 2 a legenda foi negada por opção do diretor, o que - em virtude da proposta de encenação - reafirmou a necessidade em insistir na percepção de ilusão, risco e imprevisibilidade no espectador. O episódio 2, ao contrário do episódio 1, aproxima-se do ato performativo, proposto por Férral e a ausência da legenda nos redimensiona a observar os atores e seus estados, seus desequilíbrios e desajustes. Como o espetáculo foi construído a partir da noção de estado e não de construção de personagens, o ator precisa se empenhar em realizar seu programa de ações, mas admitindo que pode falhar, errar e talvez nem completar, em virtude do estado atingido em cada cena - ainda que tudo isso seja ensaiado, o público precisa crer no desequilíbrio da cena e na possibilidade de algo sair do controle. Em alguns outros espetáculos, a impossibilidade de acompanhar a legenda, ora pela incapacidade visual, ora pela rapidez das falas, dificultou o arrebatamento da cena, o espanto visual e a fruição da obra, em outros casos deu-se como um filme legendado, em que conseguimos nos ater aos dois elementos concomitantemente. De qualquer modo, as duas obras supracitadas nos indicam possibilidades de pensar a legenda e torná-la força e potência.
ana carolina marinho antro+_77
especial antro+ MITsp
II A revista Antro Positivo reune neste segundo ato os pensamentos que surgiram durante a MITsp, a partir das obras e conversas com artistas, te贸ricos e em corredores, bastidores e bares.
especial antro+ MITsp
80_antro+
O Coletivo de Críticos é um ajuntamento temporário de críticos, com presença na internet e atuação em rede. Inclui integrantes dos sites-blogs-revistas eletrônicas Antro Positivo (SP), Horizonte da Cena (MG), Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda? (PE) e Teatrojornal (SP).
resenhas críticas
especial antro+ MITsp
sobre o conceito de rosto no filho de deus romeo castellucci
O
A merda como face da ética corpo curvado sobre si mesmo, a pele
sada, não é aquela idealizada pela criação artística. Aquele que
enrugada, a fragilidade que, cedo ou
parece observar, na verdade não é Deus, mas alguém. Também
tarde, chegará a cada um de nós. O
possuiu um corpo, também necessitou se purificar. A escolha por
velho, esvaziando-se de merda. O fi-
não trazer um homem crucificado, símbolo máximo das religiões
lho, esvaziando-se em desespero por
cristãs, oferece a aproximação entre humano e divino. O rosto
ambos. Cristo esvaziando-se em con-
de Jesus é também a expectativa do nosso. Projeta aquilo que
templação. Mas o que é o tempo se
se reconhece por essência trazida em representação e reconhe-
não a percepção do próprio existir? O corpo é o que mais se
cimento do próprio homem. Então Jesus nos oferece um espelho
aproxima ao movimento do tempo, expondo sua presença de
no qual refletimos a afirmativa da existência de Deus. Portanto
modo mais agudo e incontrolável, por ser determinante à ima-
do Belo e do Puro como estruturas divinas.
gem do homem. E assim, submetido ao sobreviver, está a ação
Contudo, nada há de puro e belo na imagem da merda escor-
de morte irrecusável, aquela iniciada no dia do nascimento.
rendo pelas pernas e maculando o chão branco. Tampouco na
Pois não se vive, apenas exerce-se o processo lento de morrer.
repetição da ação de limpar, cada vez menos capaz de solucionar
E onde está o outro nisso? E Deus?
a destruição. O que a sucessão da diarreia torna inviável é a
Foi Artaud quem expôs ser a merda a comprovação da exis-
tentativa de ordem original. Aos poucos, abandona-se a pureza
tência de Deus. O resto, aquilo eliminado para fora do corpo,
e o ser. Essa desistência fala menos sobre desespero e mais da
comprova a necessidade de nossa purificação. Devolvemos ao
decadência do Belo. Agora, os restos, o lixo, o sujo tomam para
mundo aquilo compreendido como impuro, desagradável, ruim,
si a ordem. Apenas ao interno do corpo é possível permanecer a
feio. E se precisamos separar o vital ao lixo é pelo existir algo
pureza, ou, em uma leitura mais cristã, à alma. Tudo mais está
em nós que se faz pelo puro e pelo belo. A merda produzida é,
contaminado e submetido ao pior de nós. A realidade passa a ser
antes de ser excremento, a comprovação do sublime e do divino
a exposição pública de nossas impurezas, e o palco a existir, en-
no humano. Sendo assim, a merda que escorre sobre a pele en-
tão, como experiência de culpa.
velhecida do ator está além do mero desajuste intestinal. Faz-
Entender-se culpado requer perceber a dimensão trazida por
-se representação do acúmulo de vida, dos restos acumulados
Santo Agostinho ao determinar ao homem o pecado original. So-
ao tempo, agora necessários de expurgação pela aproximação
mos todos inevitavelmente responsáveis pela ansiedade e curio-
cada vez maior da morte. Como se fosse fundamental se purifi-
sidade no Éden, e sobre a qual o princípio de pecado se colocou
car antes de morrer. Como se deste modo pudesse recuperar a
como parte fundante do homem. O mesmo Jesus ao fundo, deixa
mais plena essência de sua pureza e chegar a Deus.
de ser meramente um homem e passa a construir sua divinda-
Castelluci opta por muitas vezes esconder a frontalidade dos
de ao ser aquele que nos libertaria do pecado inerente. Assim,
atores, pai e filho, oferecendo a imagem de Jesus como olhar
somos agora livres por nossas escolhas e pelo como definimos
onipresente. O rosto ao fundo não é exatamente a face de Deus,
nosso existir. Ao nos olhar, Jesus voyeuriza a perda de nos-
tal qual se pode ler em primeiro movimento. Está ali para nos
sa relação com o viver, submetidos ao pragmatismo de
lembrarmos sobre sua igual condição humana. Sua face divina,
vontades egoístas. Por isso é tão forte a submissão
como somos compelidos a crer, não está verdadeiramente aces-
a qual é forçado o filho pelo amor e compreensão
especial antro+ MITsp
ao estado do pai. A imagem mantida em sua realidade de ação
nada mais é do que a resposta exposta ao humano, a imagem que
expõe a fragilidade proveniente pelo reconhecimento de nossa
lhe oferece identidade. Está nele a possibilidade de tradução de
culpa no distanciamento do outro. Então é como se nossa liber-
Deus. Está no homem o rosto original. Está no homem, seja eu,
tação ao pecado original fosse inútil, pois não é a ela a quem
você ou Jesus, aquilo que oferecerá o conceito de rosto. É na similaridade entre quem olha e aquilo que vê, que o rosto
Para o lituano Emmanuel Lévinas, cuja compreensão da filosofia
se coloca como subjetividade e não mais identidade. Não afir-
deveria se dar pela construção da ética, o rosto é estrutura sim-
mando, aqui, ser o rosto estável. Ao contrário. Muda tanto quan-
bólica determinante para o descobrimento da responsabilidade.
to nós, não como homens, mas na percepção e manifestação de
É o meio pelo qual se reconhece o outro, e mais além se configura
nossa humanidade. E é sobre esse novo rosto, essa outra humani-
a presença da expressão da alteridade. Ao final, sua leitura re-
dade, esse homem de agora, que Castellucci se debruça. Um ho-
vela como desdobramento ético e filosófico do rosto a concepção
mem sucumbido em sua incapacidade de recuperar sua pureza,
da infinitude ao ser. Ao trazer o rosto no filho de Deus, Castelluc-
de sustentar o belo, sem os quais o existir é resto e excremento.
ci potencializa nossa relação com o outro pela manifestação do
O rosto de agora é o da solidão decadente, da culpa sustentada
divino, ou, para nos atermos ao vocabulário proposto por Emma-
como naturalidade do ser. O rosto exposto por Castellucci revela
nuel, da necessidade de alcançarmos a alteridade como estrutura
a incapacidade de modificarmos nosso próprio existir que não
de manifestação do infinito.
pelo amor. Por isso é preciso reagir atingindo o início. Destruir a
Tanto quanto Jesus, somos nós, atores e espectadores, imagens
face que configura a subjetividade divina oferecendo o maior dos
construídas da face divina. Mas não exatamente o rosto em sua
espelhos à imagem do homem. Rasgar, explodir, deixar surgir a
identidade singular. Este não é do homem, mas do humano. E
merda também em Jesus significa purificá-lo. Abandonar o rosto
cabe entender a diferença entre ambos, para chegarmos ao rosto
dominante é libertador, afinal apenas assim, poder-se-á construir
em si. Entenda o homem como o ser, aquele que se reconhece
um novo homem. Do contrário, a merda abandona como fuga de
por imagem e ação. Por humano, todavia, sua particularidade em
nossas realidades acabarão, de fato, traduzindo-se na mais vee-
existir ao tempo. Ainda que tivéssemos outros corpos, o que nos
mente face de nossa omissão e solidão.
determina humanos poderia ser reconhecido, portanto. A sugestão do rosto divino expõe mais o humano do que propriamente o homem. Se Jesus é a face de uma busca do homem representar a
ruy filho
si mesmo, Deus dimensiona nossa humanidade. O homem, então,
antro positivo
foto klaus lefebvre
nos perdemos, mas a nós mesmos.
sobre o conceito de rosto no filho de deus
romeo castellucci
especial antro+ MITsp
sobre o conceito de rosto no filho de deus
romeo castellucci
Sobre a crueldade de quem assiste
foto lígia jardim
S
obre aquelas coisas que não esgotam a percepção,
lho não escapa a força de sua existência. A criança também não.
mas que escapam ao cerco do discurso. Diante da
O adulto sim, e é nele que se preserva o que há de mais teatral,
limitação da escrita em tentar apreender a expe-
a tal da verossimilhança. A criança e o velho diluem esse tal de
riência em algum percurso de sentido, desloquei
desejo pela aproximação com a realidade, em própria realidade.
o que vi para próximo do domínio das coisas, não
São crianças. São crianças com granadas nas mãos. São crianças
porque o sentido é prejudicial a obra, mas por ser
com granadas nas mãos jogando-as no rosto do filho de Deus. E
a mim - por esgotar-me àquilo que reconheço e por
nessa sobreposição de imagens, dá-se o espanto. Sou assaltada
atenuar o impacto sobre meus olhos, narinas e ouvidos. Digo isso
pelos sentidos, aquele som desequilibra minha estrutura e só me
porque quando o velho derrama a garrafa e escancara o truque
dou conta quando percebo o meu desconforto na cadeira. Poucas
daquela ilusão, senti um vento desconsertante, que traduzi na
vezes ou nenhuma, se alguma vez vi algo assim não recordo, o
retomada de consciência e escrevi na saída do teatro, “menina,
som teve tamanha intensidade e reverberação em mim. Tudo a
seque esses olhos. É só teatro. E se ri da ilusão”, mas diante da
que ofereciam aos meus olhos, narinas e ouvido, retirava de mim
constatação de que aquele momento parecia me sufocar por de-
qualquer tentativa de continuidade e não me devolviam pistas,
sejar insistir na imagem que a ilusão me oferecia, não pelo tea-
não há caminho, mas suspensão. E isso basta para atribuir qual-
tro, mas pela realidade, atentei-me a crueldade no meu olhar de
quer possibilidade a minha percepção. Mas devo insistir nessa
espectadora que desejava ver o real no palco e a sua emergência.
crueldade do meu olhar. Não há nada de edificante nisso, repito,
Tentarei esgaçar esse instante para dele atribuir alguma per-
mas diante de tamanho espanto pelo desejo de realidade, com
cepção. Eu espectadora desejei veementemente que aquilo que
arroubos de crueza, há um pensamento que precisa ser pratica-
via fosse real, que o idoso tivesse incontinência intestinal e um
do, pode o emergente operar com tamanho brutalidade de dese-
tanto de outras mazelas. Cheguei a desejar a náusea e o cheiro
jo? Diante da ficção, o que opera em mim para que eu deseje o
de merda. Desejei sentir o gosto de vômito na boca com o refluxo
real, mesmo que ele seja trágico e cruel?
engolido. E comecei a desejar pra além do que via, numa expectativa de que o real me garantisse uma espécie de arrebatamento e prazer sádico. Não há nada de edificante nesse meu olhar. O ve-
ana carolina marinho antro positivo
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
A fisionomia do olhar
A
face onisciente de Cristo no pé-direito do palco, do queixo aos fios de cabelo, justapõe as escalas do sagrado, do humano e do espaço cênico em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus. A imagem de forte carga simbólica e de construção histórica evidente redundaria o título da obra não fosse ela mesma convertida em dispositivo seminal da companhia Socìetas Raffaello Sanzio. Seu diretor, Romeo Castellucci, enquadra apenas a cabeça em vez do gesto e parte do torso da pintura do renascentista Antonello da Messina que o inspira. O enigma dessa fisionomia estabelece um campo autônomo ao observador que para ela desviará em muitas passagens do espetáculo em busca de significações ou ressignificações talvez menos exasperantes do que aquela que enreda pai e filho. Em vão. No plano realista, eles acabaram de acordar. O velho interpretado por Gianni Piazzi senta para assistir à televisão enquanto o filho, por Sergio Scarlatella, já com o figurino do executivo prestes a sair para o trabalho, lhe prepara o café da manhã. Esse fragmento de cotidiano sai dos eixos com a prostração do pai, sem controle sobre as necessidades fisiológicas, e a consequente impotência do filho diante do estado primitivo do ser e da iminência da finitude. Alegoria dos embates divino e humano.
Ao retratar a compaixão em circunstâncias limítrofes (a limpeza das fezes e a colocação da fralda geriátrica ocorrem na cadência factual), Castellucci cuida em contrapor a presunção teatral. Ela está dada desde os primeiros longos minutos em que rastreamos a casa de móveis assépticos, de sofá, mesa, cadeiras, carpete e tudo mais tomado pelo branco, exceto o aparelho de TV de costas para o público e uma planta num vaso. Eis o set. Corpo arqueado, andar titubeante, o pai surge carregado por dois contrarregras vestidos de preto, feito manipuladores de bonecos. A partitura do filho que congela o gesto da mão estendida nas costas do pai na hora de limpá-lo ou um galão com o composto que sugere os excrementos em cena são indícios do artifício da arte ao vivo a sustentar o fio das presenças e dos mal-estares. No segundo movimento do espetáculo a relação pai e filho, até então permeada pela parábola do sagrado, converte-se em instalação. A casa é desmontada aos olhos do espectador, menos a cama em que o pai está sentado, abatido, cabisbaixo, com o rosto entre as mãos. A narrativa ganha o contorno moral, ou seja, pertence ao domínio do espírito do homem. Crianças atiram objetos contra o Cristo de traços humanizados lá na Renascença (Kurt Cobain seria um bom modelo para encarná-lo), justamente quando a arte ganha perspectiva, dá margem para
interpretações. A ação das criaturas imberbes despejando objetos de suas mochilas e atirando-os na direção da criatura icônica pode ser lida como um levante, à maneira de Jó, ou como uma figura de retórica contra as gradações do fundamentalismo na ordem global. É o futuro confrontando o passado arcaico aqui e agora. A iconoclastia irrompe de vez no movimento final da apresentação, quando a imagem se faz verbo. Entre as razões de conduzir ou se deixar conduzido paira “o ser ou não ser” shakespeariano, reafirmando que a teatralidade é o que suporta essa aventura do olhar que desde a cultura grega atinava com o pensar e hoje padece do excesso de imagens a ver. Ver é passagem. O olhar adere e transforma. É sensorial. Assim como os demais espetáculos que trouxe ao Brasil, a longeva Socìetas Raffaello Sanzio segue impactando nas composições plásticas e sonoras dos sentidos vitais.
Valmir Santos teatrojornal
sobre o conceito de rosto no filho de deus
romeo castellucci
Sobre a abertura do olhar nas imagens de arte
O
espetáculo que abriu a programação da MIT, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castellucci, oferece uma ampla gama de chaves de leitura. Elaborar um texto crítico propositivo sobre esta obra – em poucas horas e em um espaço reduzido – demanda uma escolha radical. Diante da complexa trama de possibilidades que se abre diante do espectador, a proposta deste breve exercício de reflexão é puxar um único fio e apontar um caminho possível de reflexão sobre a peça, sem a intenção de esgotá-lo. Trato feito, puxamos o fio: pensar a presença do rosto de Cristo no fundo do palco como a construção de uma imagem dialética e como o espetáculo opera, com isso, uma proposição ética que nos fisga para dentro da obra. Por imagem dialética, entendo o conceito elaborado por Georges Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. O que nos convida a trazer à tona um conceito para esta tentativa de diálogo com a obra é o próprio título, uma proposição teórica estranhamente elaborada. Pelo título, a peça nos diz que o que está em jogo não é uma trama nem um tema, mas um conceito. Assim, nos propomos a jogar com cartas do mesmo baralho. Em poucas palavras, podemos dizer que uma imagem pode ser pensada como dia-
lética quando há nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo que nos escapa, um movi-mento incessante de ausência e presença que abre a imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens. O efeito da imagem dialética é a sensação de que ela nos olha – uma ideia presente em diversas declarações de Castellucci. Uma imagem dialética é uma imagem aurática, sendo o conceito de aura um aspecto importante da reflexão sobre as artes desde o texto de Benjamim A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. O rosto de Cristo, como pintado por Antonello Della Messina, projetado e ampliado no fundo do palco, articulado em simultaneidade com a cena do filho que limpa diligentemente as fezes do pai que sofre de incontinência, me parece ser uma materialização precisa da imagem dialética. Afinal, a imagem de Cristo é pura aura: é sempre presença e ausência ao mesmo tempo, um homem que também é deus, um corpo ressuscitado, um corpo que se faz hóstia, um corpo-conceito. A sua representação visual é, para os cristãos de fé, como o próprio Cristo – daí a rejeição visceral que a peça provoca nos mais fervorosos. O que o espetáculo opera com a representação desse rosto é algo que dispara o vislumbre da aura: o “fato” de que aquela imagem nos olha, a eficácia do seu
olhar. O imenso rosto de Cristo no fundo da cena nos oferece uma representação literal desse efeito estético. Se somos céticos na lida com a arte, vemos apenas a projeção de uma pintura como artefato de cenografia, e assim nós apenas olhamos. Mas, se nosso olhar está aberto para as imagens de arte na sua intensa complexidade, vemos a imagem do filho de deus – e essa imagem nos olha. A presença do olhar do Cristo é a presença assombrada de um juízo constante. O que eu tenho a dizer sobre o conceito de rosto no filho de deus é que ele nos olha. Ao dar a ver a aura na imagem desse rosto, Castellucci alimenta a força para questioná-lo e, com um golpe, infiltra a negação no cerne da afirmação do seu poder sobre nós. O “não” que aparece, como um fantasma, na frase “o senhor (não) é o meu pastor” surge como contraponto desconcertante àqueles piedosos olhos de Cristo, com uma força plástica singular, e nos olha como se nos perguntasse, expondo uma ferida histórica, de que maneira aquela frase faz sentido para nós.
Daniele Avila Small quentão de crítica
foto klaus lefebvre
especial antro+ MITsp
especial antro+ MITsp
olhares críticos . diálogo
SORAYA a partir da minha experiência pessoal de expectação, acho importante destacar como um aspecto possível para a leitura do espetáculo o movimento que a encenação realiza partindo do dramático para explodi-lo na performatividade. A partir de uma cena aparentemente realista - em que as operações de identificação e construção de sentidos pelo espectador parece inevitável -, Castellucci provoca a falsa sensação de verdade, controle, entendimento na percepção do espectador. Este, levado a considerar inicialmente, sem contestações, a situação em cena como um conflito entre pai e filho (e somente isso), aos poucos é tomado pela incerteza. Quem representa quem? Quem julga quem? Quem submete quem? Quem olha quem? Quem é invenção de quem? Como bem ressaltou a Luciana, a evidenciação da artificialidade da cena, através da presença do galão de plástico, conduz o espectador para um constante movimento de reconfiguração de suas convicções (acerca de Deus e também do fenômeno teatral a que assiste), fazendo-o se indagar se aquela percepção inicial, ancorada na teatralidade naturalista,
92_antro+
ainda basta no diálogo com a obra. Dá-se então um processo de questionamento incessante feito pelo próprio público, cujas respostas podem ser múltiplas e nunca conclusivas, como afirmou Luiz Fernando Ramos em sua fala no Itaú Cultural. Na minha percepção, a encenação realiza um movimento que se inicia na certeza que sustenta a cena naturalista (baseada na ideia de verdade e de sentido único, assim como a crenã em Deus) e termina na performatividade (com sua multiplicidade de sentidos e o engajamento do espectador como coautor), que culmina na escolha do público do que fazer (ou não) com o “not” na sua leitura da frase final. LUCIANA Ao ler os textos do Valmir e da Daniele, fui buscar essa imagem que nos olha tal como foi pintada, com um corpo, um gesto. Castellucci a reenquadra, seu recorte é muito definido, está exposto no título: o rosto. Sim, essa imagem me olha. A proposição do Didi-Huberman, trazida pela Daniele, é uma chave de leitura essencial (a meu ver) para o espetáculo. Até porque, se são inúmeras as leituras possíveis e não há no trabalho do Castellucci
uma intencionalidade única e definitiva de um sentido final a ser revelado, como Luiz Fernando Ramos apontou em sua fala no Olhares Críticos, por outro lado, a construção cênica deixa evidentes intencionalidades plurais. Significantes fortíssimos organizados de modo a pressupor relações/associações/ tensões possíveis. O rosto do filho de Deus está lá, a olharnos, sim. Não o faz às nossas costas. Está bem diante dos nossos olhos, imenso, para que a ele olhemos também. E olhar é assombrar-se, é indagar. Por que um rosto apenas? Por que não as mãos, os ombros do quadro? O rosto é a identidade. O rosto é a humanização. O rosto foi dado por um humano - o pintor - ao divino. E, antes dele, por outros humanos que encontraram nessa representação um modo de dar imagem a Deus. Deus feito imagem e aproximado assemelhado - do humano. A própria noção de humanidade está, portanto, posta em questão. Desestabilizada. Com uma cena muito simples, como descrita pelo Valmir, em que as coisas são dadas à luz e à superfície, Castellucci alcança um efeito vertiginoso no espaço mental do espectador (ao menos
assim experienciei). Um efeito de digressões incessantes, de movimentos contraditórios irreconciliáveis, de expansão e complexificação. Lá estão o divino e o humano, claro, mas o julgamento recai sobre ambos alternada ou simultaneamente, sem se deter em um apenas. O rosto de Jesus nos julga e nos espia; nós também o vemos e o julgamos, refletindo na cena não só a tradição cristã na qual estamos culturalmente inseridos, como também uma longa história de crítica a essa tradição. Assim, a piedade se desloca do pai que sofre de incontinência intestinal para o filho, que precisa cuidar dele e aparentar que não se incomoda; depois, vai do filho para o pai novamente; até que resida sobre ambos. Mas, num golpe de Castellucci (uma “pedra” a bloquear a cognição, como sugeriu Luiz Fernando Ramos), o galão com excremento aparece nas mãos do pai. Isso faz não somente com que a encenação se revele em sua farsa fundadora, quebrando a ilusão dramática, mas também que o papel do pai passe a ser questionável pelo espectador: Ele propositalmente produz a merda? Ele quem? É digno de piedade? É o carrasco do filho? Os sentidos se estilhaçam.
sobre o conceito de rosto no filho de deus
Assim, também, quando se arma a cena dos meninos atirando granadas contra a imagem de Jesus, Castellucci não retira de cena o velho pai. Este é deixado na periferia da visão do espectador. Ele está ali compondo a cena, em fricção, para ser considerado. Assim como também se pode considerar a escolha por crianças como agentes da iconoclastia dentro da representação não somente pela imaturidade denotada, mas (fora da representação) como a escolha de atores-crianças que não têm compreensão do ato que desempenham. Outros sentidos advêm. Com isso, o que quero destacar é a complexa rede de culpa, responsabilidade, julgamento, piedade, compreensão e incompreensão etc. que as partes da cena estabelecem entre si em uma constante instabilidade, na impossibilidade de fechar os sentidos ou encontrar um problema estável que a encenação sustente. A indagação lançada por aquela imagem que nos olha e a qual olhamos se reformula sem parar, muda de sujeito e objeto, reconfigura seus predicados, complexifica as articulações entre o humano e
o divino na cultura e a própria configuração de cultura. Para mim, aí reside a potência desse trabalho. Na impossibilidade de síntese ou de uma leitura minimamente estabilizadora que traga conforto ao espectador. RUY FILHO concordo quando a Soraya fala sobre a transferência para a performatividade. No entanto, como foi amplamente discutido no encontro com o Luiz Fernando, essa transição ou modificação da estrutura lingüística ocorre mais na presença de uma sensação de narrativa dramática do que na sua realidade, propriamente. O fato de envolver a relação entre pai e filho induz a maiores aproximações com a perspectiva dramática. Mas esta, como ação posta em tempo real, repetitiva por varias vezes, cujo fazer acumula o feito em uma espécie de reintrodução do inicio, tal ação é mais próxima em seu condicionamento e subversão da experiência ao espectador, então mais próxima das estruturas performativas, nas quais o corpo passa a significar a amplitude do gesto. É o gesto que verdadeira se preenche de perspectivas reais e não o desejar da ação. Se pelo desejo
da ação, a estrutura estaria alicerçada pela perspectiva do sujeito e não do fazer, portanto dos princípios dramáticos. Parece-me, então, que o sensação de narrativa está mais na maneira como Romeo estabelece um percurso ao sentir do espectador do que à trajetória interna da cena. A performatividade se encontra exatamente na condição de ser o espectador o elemento possível narrativo. Está nele o sentir e não nos atores ou dramaturgia, entendo aqui “sentir” como absorção da ambiência simbólica e sua ressignificação. Deste modo, Romeo se utiliza do espectador como princípio dramaturgista. Esse deslocamento ao outro como estrutura de início, torna o espetáculo performativo mais do que a performance dos Interpretes. VALMIR O texto da Daniele e o meu convergem literalmente para o olhar. A imagem que vê e o espectador que é visto. O espectador que vê e a imagem que é vista. No meio do caminho – de cima para baixo, ou de baixo para cima -, a cena e a sua dissolução. As coisas fora do lugar dão ao observador do teatro a possibilidade de
romeo castellucci
reconstruir sua percepção a partir do que ruiu. A abordagem comum dos textos por caminhos diferentes talvez signifique inclinação para o que lateja mais elementar na cena. Relendo o que escrevi, fiquei com vontade de ter suspeitado mais das evidências. Tive vontade, mas não fui adiante, de fazer alguma associação com a experiência da primeira obra da Socìetas Raffaello Sanzio a que assisti, ‘Buchettino’, em meados da década passada, uma recriação do clássico ‘O pequeno polegar’. Os espectadores éramos acomodados em camas infantis que nos obrigavam à posição fetal. Deitávamos sob o cheiro de folhas de eucalipto, num ambiente escuro e com a voz da atriz narrando a história, sob o fiapo de luz de vela, apoiada fortemente pela paisagem sonora ao redor do espaço em que estávamos recolhidos. Isso acentuava o suspense na aventura dos sete irmãos que se perderam e foram parar no castelo de um gigante. Do berço para a prostração do pai na obra que a companhia apresentou na MITsp, ou o fim da inocência e das ilusões nos extremos da vida.
antro+_93
especial antro+ MITsp
olhares críticos . metacrítica
O
Princípios dialéticos de uma imagem e sua irradiação performativa na cena
fenômeno teatral é disposto com pin-
trole, entendimento na percepção. O espectador é levado a consi-
celadas realistas e reinventado sob ele-
derar inicialmente, sem contestações, a situação em cena como um
mentos performativos entre as camadas
conflito entre pai e filho (e somente isso), mas aos poucos é tomado
de leitura com as quais o espectador é
pela incerteza. Quem representa quem? Quem julga quem? Quem
estimulado a trabalhar em Sobre o con-
submete quem? Quem olha quem? Quem é invenção de quem?
ceito de rosto no filho de Deus. A obra
A transição ou modificação da estrutura linguística da obra ocorre
da companhia italiana Socìetas Raffaello
mais na presença de uma sensação de narrativa dramática do que
Sanzio, concebida e dirigida por Romeu Castellucci, aporta sig-
na realidade que enuncia. O fato de envolver a relação entre pai e
nificantes fortíssimos organizados de modo a pressupor relações/
filho induz a maiores identificações com a perspectiva do conflito.
associações/tensões possíveis. Esta travessia é feita de múltiplas
Mas a ação transcorrida em tempo real na primeira parte, quando
respostas e jamais conclusiva. Não esgota a percepção e escapa ao
o filho limpa repetidamente o pai prostrado em sua incontinência
cerco do discurso que o título enseja.
fecal, contrastando o ambiente asséptico da casa, essa ação aos
Com uma cena aparentemente despojada, em que as coisas são
poucos subverte a experiência do espectador e se aproxima das
dadas à luz e à superfície, Castellucci alcança um efeito vertigino-
estruturas performativas, nas quais o corpo passa a significar a
so no espaço mental do espectador. Um efeito de digressões inces-
amplitude do gesto. É o gesto que verdadeiramente se preenche
santes, de movimentos contraditórios irreconciliáveis, de expan-
de perspectivas reais e não o desejar da ação transcorrida diante
são e complexificação. Lá estão o divino e o humano, claro, mas o
da imagem inteiriça do rosto de Cristo onisciente ao fundo.
julgamento recai sobre ambos alternada ou simultaneamente, sem se deter em um apenas.
E olhar é assombrar-se. É indagar. Por que Castellucci enquadrou apenas o rosto no quadro renascentista? Por que não as mãos, os
O rosto de Jesus pintado pelo renascentista Antonello da Messina
ombros do quadro? O rosto é a identidade. O rosto é a humaniza-
nos julga e nos espia. Nós também o vemos e o julgamos, refletin-
ção. O rosto foi dado por um humano – o pintor – ao divino. E, antes
do na cena não só a tradição cristã na qual estamos culturalmente
dele, por outros humanos que encontraram nessa representação
inseridos, como também uma longa história de crítica a essa tradi-
um modo de dar imagem a Deus. Deus feito imagem e aproximado
ção. Assim, a piedade se desloca do pai que sofre de incontinência
– assemelhado – do humano. A própria noção de humanidade está,
intestinal para o filho, que precisa cuidar dele e aparentar que não
portanto, posta em questão. Desestabilizada.
se incomoda. Depois, vai do filho para o pai novamente; até que
Essa imagem dialética remete ao conceito elaborado por Georges
resida sobre ambos, nas atuações de Gianni Piazzi (pai) e Sergio
Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que
Scarlatella (filho).
vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. Em poucas palavras, podemos
A encenação parte dos códigos dramáticos para explodi-los na per-
dizer que uma imagem pode ser pensada como dialética quando há
formatividade. A partir de uma cena aparentemente realista – em
nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo em que nos
que as operações de identificação e construção de sentidos soam
escapa, um movimento incessante de ausência e presença que abre a
inevitáveis –, Castellucci provoca a falsa sensação de verdade, con-
imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens.
94_antro+
sobre o conceito de rosto no filho de deus
romeo castellucci
A sensação de narrativa desponta no espetáculo mais na maneira
deixado na periferia da visão do espectador. Ele está ali compondo
como Castellucci estabelece um percurso ao sentir do espectador
a cena, em fricção, para ser considerado. Do mesmo modo pode-
do que na trajetória interna da cena. A performatividade encontra-
-se considerar a escolha por crianças como agentes da iconoclastia
-se exatamente na condição de ser o espectador o elemento possí-
dentro da representação não somente pela imaturidade denotada,
vel narrativo. Está nele o sentir e não nos atores ou na dramatur-
mas (fora da representação) como a escolha de atores-mirins que
gia. O “sentir” entendido como absorção da ambiência simbólica
não têm compreensão do ato que desempenham, advindo daí ou-
e sua ressignificação. Deste modo, Castellucci se utiliza do espec-
tros sentidos.
tador como princípio dramaturgista. Esse deslocamento ao outro
O velho não escapa à força de sua existência. A criança também
como estrutura de início torna o espetáculo performativo mais do
não. O adulto, sim, e é nele que se preserva o que há de mais tea-
que a performance dos intérpretes.
tral, a tal da verossimilhança. A criança e o velho diluem esse de-
Uma evidência da artificialidade da cena acontece quando o es-
sejo pela aproximação com a realidade em própria realidade. São
paço cenográfico é desmontado e a cama do pai, deslocada para
crianças. São crianças com granadas nas mãos. São crianças com
a margem da cena, à direita. Num golpe de Castellucci (uma “pe-
granadas nas mãos jogando-as no rosto do filho de Deus. E nessa
dra” a bloquear a cognição, como sugeriu o crítico e pesquisador
sobreposição de imagens, dá-se o espanto. Somos assaltados pelos
Luiz Fernando Ramos), o galão com excremento (ou o líquido assim
sentidos. Retiram de nós qualquer tentativa de continuidade e não
sugerido) aparece nas mãos do pai. Isso não apenas faz com que a
nos devolvem pistas, não há caminho, mas suspensão.
encenação se revele em sua farsa fundadora, quebrando a ilusão
No campo moral, aquele conjuminado ao espírito do ser huma-
dramática, mas também que o papel do pai passe a ser questionável
no, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus desencadeia ainda
pelo espectador: Ele propositalmente produz a merda? Ele quem? É
uma complexa rede de culpa, responsabilidade, julgamento, pie-
digno de piedade? É o carrasco do filho? Os sentidos se estilhaçam.
dade, compreensão e incompreensão, etc., que as partes da cena
Através da presença desse galão plástico, o público é conduzido
estabelecem entre si em uma constante instabilidade. Impossível
a um constante movimento de reconfiguração de suas convicções
fechar os sentidos ou encontrar um problema estável que a ence-
(acerca de Deus e também do fenômeno teatral a que assiste),
nação sustente. A indagação lançada por aquela imagem que nos
fazendo-o se indagar se aquela percepção inicial, ancorada na te-
olha e a qual olhamos se reformula sem parar, muda de sujeito e
atralidade naturalista, ainda basta no diálogo com a obra. Dá-se
objeto, reconfigura seus predicados, complexifica as articulações
então um processo de questionamento incessante. A encenação,
entre o humano e o sagrado na cultura e a própria configuração de
portanto, realiza um movimento que se inicia na certeza naturalis-
cultura. Reside aí a potência desse trabalho: a impossibilidade de
ta (baseada na ideia de verdade e de sentido único, assim como a
síntese ou de uma leitura minimamente estabilizadora que traga
crença em Deus) e termina na performatividade (com sua multipli-
conforto ao espectador.
cidade de sentidos e o engajamento do espectador como coautor). Assim como na sequência das crianças atirando granadas contra a imagem de Jesus. Castellucci não retira de cena o velho pai. Este é
Valmir Santos + coletivo de críticos antro+_95
especial antro+ MITsp
bem-vindo a casa roberto suรกrez
E
Sobre o espanto diante do que vi
pisódio 1: “Vão nos julgar, Laura”. Vão buscar na ar-
espectar o episódio 2. Os frames são os episódios, que sobrepostos
gumentação algum sentido, vão nos reduzir aquilo que
geram uma outra dimensão.
dizem já ter vivido e superado. Quem sabe até vão
Bem vindo a casa, tal como Lynch, opera na emergência da repre-
dizer que tudo isso é em vão e, talvez, não queiram
sentação. Os personagens são desgarrados da realidade a ponto de
voltar no outro dia. Mas é preciso voltar. Há um clima
desintegrarem-se, estão próximos a uma realidade falseada, capaz
de suspeita, que deixa o espectador atento aos deta-
de manipular ilusões e desejos. O espectador negocia com os ele-
lhes, mas parece escapar à percepção a totalidade do
mentos reconhecíveis para gerar uma aproximação. Ele não pode
jogo proposto. Tem alguma coisa, mas não sei dizer sobre. Aqui não
conter tamanha excitação diante do recurso de falseamento. Cami-
há resiliência, não é possível viver com aquele corpo e, por isso,
nhamos juntos com os atores, silenciamos para fazer a outra plateia
é preciso que ele morra junto. Não há desejo nenhum em superar
embarcar na fingimento, como nós embarcamos outrora. Afinal,
qualquer crise, e não façamos isso por eles. Os personagens vão se
quando encontramos um bom esconderijo, o mais bacana é esperar
desintegrando a cada entrada e saída pela porta. Deixam alguma
para salvar todos e a brincadeira ter que recomeçar com a mes-
coisa do lado de fora da casa e não faço ideia do quê. Existe uma
ma pessoa que ainda não descobriu os esconderijos, não é? É nesse
manifestação da ausência... Talvez seja ela a geradora do suspense
mesmo ímpeto que percorro a cena. Não quero que descubram os
e das narrativas. Mas é tudo suspeita e ausência.
esconderijos. Já fui enganada e agora embarco para enganar junto.
Episódio 2: Eu não posso acreditar no que vejo. “Que impressio-
Ainda estou surpresa. Enquanto no episódio 1 eu embarcava no so-
nante, que estado”. Diz um ator sobre o outro que acaba de sair do
frimento do personagem que se jogaria pela janela, no episódio 2
episódio 1 e entra no 2. Aqui, a cena é a exibição de algumas obs-
eu compartilho de seu fingimento e vejo no seu rosto um sorriso de
sessões e desajustes. Não há personagem, não há história, não há
quem conseguiu fazer a cena como deveria. Isso estimula um diá-
espetáculo, não há nada. Lembro-me de Mulholland Drive de David
logo menos interessado na continuidade e na manutenção de qual-
Lynch e dos dois universos possíveis, que existem simultaneamente.
quer princípio. Trabalhar com os estados assume a responsabilidade
No filme, o personagem diz “no hay banda, no hay orquestra, no
do esvaziamento e eles não desejam ser resilientes a isso. A fala do
hay nada” e revela-se que a realidade a que estavamos submetidos
diretor, durante uma conversa, diz muito do trabalho, quando ele
e emocionados é puro efeito. Tanto no filme quanto aqui, é preciso
fala que prefere que os espetáculos se matem, antes que eles se
que recorramos a possibilidades de outras histórias para compreen-
morram. E reside nisso a compreensão do fracasso inexorável. Como
dermos essa. As fronteiras do especular e do real entram em colap-
espectadora, tenho a impressão de que o que vejo está mergulhado
so. Não acredito no espanto que sou tomada. Existe uma aura de
em profunda intensidade, que morrerá logo mais, diante da incapa-
mistério e cumplicidade nesse episódio que só se firma por já ter
cidade de um dia não ter a inteireza necessária para a realização.
estado do lado de lá - no episódio 1. Nada é aquilo que parece ser. E
Os atores parecem entrar em cena, como se fosse a última vez e isso
me sinto cúmplice do fingimento inteiro.
é espantoso e excitante de ver.
Tal como esbocei em Cineastas de Mariano Pensotti, que também integrou a Mostra, Bem vindo a casa organiza-se com a lógica do cinema. O quadro é composto por dois frames, que justapostos constroem uma terceira imagem. Mas essa dimensão só se efetiva ao
ana carolina marinho antro positivo antro+_97
olhares críticos .críticas oficiais
O
A realidade como fracasso possível
teatro é um acontecimento presencial,
Desta maneira, responder ao teatro de Suárez é buscar argumen-
disso sabemos. E o que é presenciado não
tos que possam dar conta de reencontrar um e outro, ou a comple-
é de fato a verdade de uma realidade,
mentariedade de ambos, já que muito da realidade constrói nosso
visto ser a construção de uma ação para
entendimento de humanidade, e muito de nossa humanidade esta-
oferecer ao outro uma experiência e/ou
belece os preceitos de construção do real.
narrativa. Apenas uma ficção. Então, a
Compreender o fracasso em relação ao humano implica em de-
realidade ali compreendida é, antes, uma
terminar como ambos se relacionam. Afinal, é essencialmente o
convenção de sua exibição, um processo estético de apresentação
fracasso uma condição humana ou o fracasso é uma resposta que
de uma possibilidade escolhida para um determinado objetivo. Há,
poderia ter sido evitada? Como expõe o espetáculo, ambas as ques-
ainda, o teatro que se apoia no argumento de ser a representação
tões são consequentes à impossibilidade da superarmos a realidade
de outra narrativa. O tal metateatro. Aparentemente, é o que se po-
como sendo um estado de ficção. Não há como mudar o destino
deria acreditar ser esse espetáculo. Contudo, Bem-Vindo a Casa, de
trágico ao homem, visto não ser sua a ação de construção da reali-
Roberto Suàrez, não pode ser compreendido nem como teatro nem
dade, assim como não há como ser outro ao homem que não apenas
metateatro. Apresentado em duas partes, subverte o sentido veto-
humano. Mesmo no hibridismo simbólico e real oferecido ao perso-
rial comum da realidade que se constrói ao espectador, ampliando
nagem deformado, chamado por Homem Elefante, em uma clara
o procedimento teatral ao ponto de tornar a ambiência ficcional a
alusão à distância fisiológica do reconhecido por padrão à aparência
realidade em si. O que se encontra, portanto, não é apenas a teatra-
humana, a presença de sua singularidade se assume pela escolha em
lização de uma segunda narrativa, mas o fracasso do teatro compor
compreendê-lo por sua ficcionalização.
a manifestação plena do real.
O teatro, então, já incapaz de traduzir a dimensão humana em
Também sabemos que o teatro se realiza sobretudo na presença
sua realidade. Faz-se no contemporâneo, a narrativa de estratégia
humana, ainda que possamos discutir outras tantas qualidades de
de um real possível, e não mais sua exibição como uma segunda
presença à cena. Mas, mesmo o signo que lhe serve de estímulo se
camada. Assim como ao espectador é revelada sua função e limite
coloca em reconhecimento na sua relação com o homem. Portanto,
ficcional como existência em sua própria realidade.
é nele, pelo espelhamento, maior ou menor identificação, que sua
Bem-vindo a Casa convida a todos a visitarem uma família. E não só.
presença se consolida. Ocorre no espetáculo, o mesmo procedi-
O teatro desse existir familiar. E mais. Ao próprio teatro como possi-
mento em relação a presença. A perspectiva do fracasso se acumula
bilidade familiar. Mais ainda... Convida a cada um à descoberta incô-
ao desenvolvimento dos personagens, suas incapacidades, faltas e
moda e fundamental de que talvez estejamos todos em pleno delírio,
derrotas. São criaturas que passam a ter desconfigurados os elemen-
enquanto dormimos com a cabeça respirando o gás que foge do forno,
tos mais ordinários de seus reconhecimentos. Corpos caricaturados
e a realidade se esvai feito o oxigênio que lentamente acaba. O teatro
pela escolha em potencializar mínimos aspectos, desejos igualmen-
de Roberto Suàrez serve como a chama do fósforo que explode e nos
te vitimizados na limitação literal de suas vontades, consequências
obriga, enfim, acordar. Portanto, prenda sua respiração e prepare-se.
mínimas tornadas argumentos para derrotas plenas. Da mesma maneira que a cena revela o fracasso do real, os atores confirmam o sentimento também em relação ao humano.
98_antro+
ruy filho antro positivo
foto manuel geanoni
especial antro+ MITsp
bem-vindo a casa
roberto suรกrez
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
bem-vindo a casa
roberto suárez
O convívio teatral em frente, verso e de permeio
foto manuel geanoni
A
criação da companhia uruguaia Pequeño Teatro de Morondanga resplandece o todo em cada uma de suas partes. Somos convidados a acionar o espírito lúdico e cotejar os mínimos detalhes com a disponibilidade de um ourives. Há um engenhoso paroxismo de unidade nos sujeitos, cenas, objetos e espaços descentrados de Bem-vindo a casa (2012), composição de dois espetáculos umbilicais que pedem para ser vistos em sequência, episódios um e dois, por plateias e em horários distintos, ainda que plantados no mesmo lugar. Unidade porque impressiona como tudo funciona, até os tempos mortos pulsam na gangorra entre o que é e o que assim nos parece ser. Estamos diante de uma experiência que elabora o convívio público-artista em seu sentido estrito, reflexão cara à arte contemporânea atenta às vicissitudes do viver junto. O princípio da coabitação vaza para as ruas, a comunidade. Palco abolido, a proximidade no espaço multiuso implica plateia aninhada com os atuadores no mesmo cômodo. Parede-meia, janela, persiana e portas induzem sonoridades e frestas do que poderia ocorrer simultaneamente do outro lado. Dentro e fora em contato: um achado de geografia cênica paulatinamente afetiva ao longo das duas sessões. A dramaturgia coletiva e a direção de Roberto Suárez são lapidares na apropriação
cinematográfica que as movem e no modo como não abrem mão da materialidade teatral, do inefável que está por trás dessa linguagem deliciosamente promíscua em sua sofisticação artesanal. A inutileza que graça no nome do grupo – “morondanga” é uma expressão depreciativa em castelhano – condiz com a plataforma do precário da qual o projeto extrai beleza. É a vitória do remendo, da sujeira, do tosco e do avesso como solução formal bem sustentada. Transgressões sutis para dar luz ao efeito que não tem nada de especial e, uma vez exposto, torna-se singular e ancestral sem o menor conflito. O roteiro saúda o teatro dentro do teatro que Pirandello legou no início do século passado e a atmosfera de Lynch no filme O Homem Elefante (1980), baseado na história real de um cidadão britânico vítima de doença congênita. Dispensa-se, para tanto, projeções. O audiovisual está a serviço da palavra e das espacialidades físicas, sonoras, além da luz. Deformações corporais e morais atravessam a dramaturgia do texto e da cena com lampejos do “esperpento” na literatura do espanhol Ramón del Valle-Inclán (18661936), distorcendo da realidade os atalhos para o grotesco e o absurdo. Esmiuçar o díptico à guisa de sinopse empobreceria a jornada do espectador. O mistério é uma estratégia decisiva nos espetáculos com-
plementares. O subtexto é mais importante do que a nesga de fábula. O brasileiro decerto encontra um pouco de dificuldade em compreender o rasqueado de uma fala ou outra, porque a língua, espanhola ou alhures, também é macerada conforme o sofrimento e a alegria impressos. Há um travo nostálgico na celebração de uma despedida assimilada como eterno retorno: quem sabe o coração do teatro resida aí. Montar, desmontar. Fazer, desfazer, ensaiar. Fazer e desfazer melhor ainda. A narrativa golpeia por meio de paisagens da alma, do ambiente e da memória. Apoia-se no estranhamento permanente e no carisma inconcessível transfigurado na presença de cada ator: uma sobrancelha erguida fisga com a mesma intensidade de uma canção a capela. Esses criadores emanam convicção apesar do aparente desalinho. A técnica desaparece. Sobressai uma poética vesga: o campo de recepção infiltrado pelo que é enigma, suspense, interdito, sub-reptício. Não fossem esses bravos atores, a epifania de Suárez jamais se cumpriria.
Valmir Santos teatrojornal
antro+_101
especial antro+ MITsp
olhares críticos . diálogos
DANIELE Valmir, me interessa muito a expressão que você usa para dar a ver o espaço da cena, essa ideia de uma geografia afetiva. A arquitetura dramatúrgica da peça é, para mim, como uma arapuca onde nos vemos capturados - com muito prazer. Somos praticamente sequestrados no Episódio 2 depois de seduzidos pelo mistério do Episódio 1. O jogo com o lugar geográfico (no sentido de se tratar de um mundo) ou arquitetônico (no sentido do espaço da cena ser uma construção) que o público é convidado a ocupar, a plateia propriamente dita, é uma questão especial da fruição do espetáculo. O deslocamento do Episódio 2 é como um abismo. Como se a plateia fosse um precipício seguro onde podemos nos sentar novamente sem correr risco de deslizar para outro lugar. Nunca é... Me encanta a beleza da precariedade e acho sempre importante trazermos à tona a discussão sobre o precário, não apenas como opção estética, mas como condição primeira do teatro mesmo. (e da crítica,
102_antro+
a meu ver, sempre) A fala do diretor naquela conversa no Itaú Cultural me fez pensar ainda mais nisso. O modo de produção é precário, a natureza do pertencimento a um grupo é um vínculo precário. A sobrevida de um espetáculo é sempre precária. Assim, a solução formal é bem sustentada porque é o chão mesmo em que pisamos. A celebração nostálgica da condição. Enfim... Comentários impressionistas... LUCIANA Fico com uma questão: que experiência é essa a que eles levam o público no episódio dois? De fato, o lugar do público sofre um deslocamento? O convívio se altera? Tendo a pensar que muito pouco. Há uma quebra da quarta parede, o eixo extra-ficcional se fortalece, sim. Mas mantémse a espacialidade palcoplateia (não se configura uma ocupação da coxia, mas um novo cenário e uma nova plateia). mantém-se, também, a frontalidade (e a distância) da relação. E, sobretudo, o registro de atuação carregado,
em flerte com o caricatural e o com o clichê, que instaura a farsa, em tramas evidentemente falseadas. Não há uma tentativa de verídico ou de instaurar uma sensação de real/verdade. Não se dão a ver as engrenagens. A representação permanece evidente e é um limite para a cumplicidade que a fala e os olhares dos atores buscam. Me parece que, em pouco tempo, o abismo aberto pela mudança de plateia se desfaz, pois o espectador se reacomoda na posição que mantinha no episódio 1, a de observador de uma representação, ainda que agora seja teatro dentro do teatro. DANIELE Lu, acho que o deslocamente acontece quando o espectador passa a ter que atuar de certo modo, ou a se comportar com certa cumplicidade com a situação ficcional, fazendo parte dela, integrando um jogo que acontece entre os atores e a palteia do episódio 2 que é escondida da plateia do episódio 1. Como quando rimos alto e
alguém pede silêncio e nós imediatamente obedecemos, como se estivéssemos de fato numa cochia. A consciência da simultaneidade das plateias é o que me faz pensar que algo muda radicalmente no episódio 2. Quando essa coisa do riso aconteceu, me dei conta de que estávamos fazendo parte do dipositivo ficcional de uma maneira pouco comum. Me pergunto se estas questões que vc colocou como a espacialiade palco-plateia, a frontalidade e o registro de atuação farsesco são fatores que impedem a relação convivial. Tenho a impressão que é justamente a presença destes elementos que faz a relação de convívio ser interessante, fora dos clichés do teatro carioca que costumo ver, por exemplo, porque não conta com truques obvios de pseudo-convívio, como em peças nas quais os atores falam diretamente com a plateia usando seus próprios nomes, com uma atitude hipernaturalista que beira o blasé, mas que na verdade também é puro artifício. A tentativa de alcançar o verídico ou uma sensação de real é só uma
bem-vindo a casa
forma de tornar visível a ideia de convívio, mas também pode se tratar de uma encenação de convívio. PS. Já quero conversar presencialmente... RUY Perfeito, Luciana. Por isso trouxe o olhar para a condição do fracasso. Em nenhum momento se instaura verdadeiramente a realidade que não por sua construção teatralizada. Mas me parece que a escolha é exatamente expor o espectador a isso. A impossibilidade de ser teatro para além do teatro, e de demonstrar que extraído da realidade como acontecimento, nada é suficientemente capaz de dar conta do real. Ana Carolina Concordo com a Daniele, acho que essas qualidades da teatralização não intimidam o convívio. Pelo contrário, estimulam um diálogo menos interessado na continuidade e na manutenção de qualquer princípio. Trabalhar com os estados assume a responsabilidade
do esvaziamento e eles não desejam ser resilientes a isso. Acho que a fala do Roberto Suárez diz muito do trabalho, quando ele fala que prefere que os espetáculos se matem, antes que ele se morram. E reside nisso a compreensão do fracasso inexorável. Eu, como espectadora, tenho a sensação de que o que vejo está mergulhado em profunda intensidade e que morrerá logo mais, porque há uma inteireza no que se realiza. Lembrei dessa cena de Mulholland Drive, quando um dos atores de Bem vindo a casa diz: no hay personajes, no hay scenario... LUCIANA Ruy, o que eu me interrogo é que eles não tentam instaurar o real para que chegue a se configurar um impossível... Mas esta talvez não seja uma questão do espetáculo. Daní, concordo que a relação espacial frontal e o registro farsesco não impedem o convívio, não foi o que eu quis dizer. Eles proporcionam um tipo de convívio - e há muitos possíveis, acredito. Então, o que eu estava apontando é que
não houve, na apresentação que eu acompanhei, uma alteração mais sensível do tipo de convívio estabelecido no episódio 1 para o episódio dois. Lendo sobre sua experiência e conversando com outras pessoas, percebo que há uma particularidade que devo levar em consideração: Na apresentação que eu vi do episódio dois, havia um público reduzido e a grande maioria não havia visto o episódio 1 antes. Com isso, houve quase nada de reação. Em nenhum momento, os atores nos pediram silêncio porque a risada não veio. Ou seja, não se instaurou com mais força essa sensação de coxia ou de cumplicidade, a não ser pelo fato de sabermos que havia outra plateia e essa outra plateia não saber que estamos lá. Ana Carolina Concordo com a Daniele, acho que essas qualidades da teatralização não intimidam o convívio. Pelo contrário, estimulam um diálogo menos interessado na continuidade e na manutenção
roberto suárez
de qualquer princípio. Trabalhar com os estados assume a responsabilidade do esvaziamento e eles não desejam ser resilientes a isso. Acho que a fala do Roberto Suárez diz muito do trabalho, quando ele fala que prefere que os espetáculos se matem, antes que ele se morram. E reside nisso a compreensão do fracasso inexorável. Eu, como espectadora, tenho a sensação de que o que vejo está mergulhado em profunda intensidade e que morrerá logo mais, porque há uma inteireza no que se realiza. Lembrei dessa cena de Mulholland Drive, quando um dos atores de Bem vindo a casa diz: no hay personajes, no hay scenario... Daniele Valmir, me interessa muito a expressão que você usa para dar a ver o espaço da cena, essa ideia de uma geografia afetiva. A arquitetura dramatúrgica da peça é, para mim, como uma arapuca onde nos vemos capturados - com muito prazer. Somos praticamente sequestrados no Episódio 2 depois de seduzidos
antro+_103
especial antro+ MITsp
olhares críticos . diálogos
pelo mistério do Episódio 1. O jogo com o lugar geográfico (no sentido de se tratar de um mundo) ou arquitetônico (no sentido do espaço da cena ser uma construção) que o público é convidado a ocupar, a plateia propriamente dita, é uma questão especial da fruição do espetáculo. O deslocamento do Episódio 2 é como um abismo. Como se a plateia fosse um precipício seguro onde podemos nos sentar novamente sem correr risco de deslizar para outro lugar. Nunca é... Me encanta a beleza da precariedade e acho sempre importante trazermos à tona a discussão sobre o precário, não apenas como opção estética, mas como condição primeira do teatro mesmo. (e da crítica, a meu ver, sempre) A fala do diretor naquela conversa no Itaú Cultural me fez pensar ainda mais nisso. O modo de produção é precário, a natureza do pertencimento a um grupo é um vínculo precário. A sobrevida de um espetáculo é sempre precária. Assim, a solução formal é bem sustentada porque é o chão mesmo em que pisamos.
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A celebração nostálgica da condição. Enfim... Comentários impressionistas... Lu, acho que o deslocamente acontece quando o espectador passa a ter que atuar de certo modo, ou a se comportar com certa cumplicidade com a situação ficcional, fazendo parte dela, integrando um jogo que acontece entre os atores e a palteia do episódio 2 que é escondida da plateia do episódio 1. Como quando rimos alto e alguém pede silêncio e nós imediatamente obedecemos, como se estivéssemos de fato numa cochia. A consciência da simultaneidade das plateias é o que me faz pensar que algo muda radicalmente no episódio 2. Quando essa coisa do riso aconteceu, me dei conta de que estávamos fazendo parte do dipositivo ficcional de uma maneira pouco comum. Me pergunto se estas questões que vc colocou como a espacialiade palco-plateia, a frontalidade e o registro de atuação farsesco são fatores que impedem a relação convivial. Tenho a impressão que é justamente a presença destes elementos
que faz a relação de convívio ser interessante, fora dos clichés do teatro carioca que costumo ver, por exemplo, porque não conta com truques obvios de pseudo-convívio, como em peças nas quais os atores falam diretamente com a plateia usando seus próprios nomes, com uma atitude hipernaturalista que beira o blasé, mas que na verdade também é puro artifício. A tentativa de alcançar o verídico ou uma sensação de real é só uma forma de tornar visível a ideia de convívio, mas também pode se tratar de uma encenação de convívio. PS. Já quero conversar presencialmente... Luciana Daní, concordo que a relação espacial frontal e o registro farsesco não impedem o convívio, não foi o que eu quis dizer. Eles proporcionam um tipo de convívio - e há muitos possíveis, acredito. Então, o que eu estava apontando é que não houve, na apresentação que eu acompanhei, uma alteração mais sensível do tipo de convívio estabelecido
no episódio 1 para o episódio dois. Lendo sobre sua experiência e conversando com outras pessoas, percebo que há uma particularidade que devo levar em consideração: Na apresentação que eu vi do episódio dois, havia um público reduzido e a grande maioria não havia visto o episódio 1 antes. Com isso, houve quase nada de reação. Em nenhum momento, os atores nos pediram silêncio porque a risada não veio. Ou seja, não se instaurou com mais força essa sensação de coxia ou de cumplicidade, a não ser pelo fato de sabermos que havia outra plateia e essa outra plateia não saber que estamos lá. Soraya Uma questão que me afeta como espectador no espetáculo é essa relação que se estabelece com o teatro que já foi, da experiência vivida, que se busca resgatar no corpo, no intelecto e no afeto. Para mim, uma frase dita por um dos personagens, no episódio 2, sintetiza um pouco o que estou tentando apontar. “Lá
bem-vindo a casa
é passado, aqui é presente”. É como se o espetáculo colocasse esses dois tempos em fricção, no real e na ficção. Como se o teatro trabalhasse sempre nessas duas instâncias, o da representação (o que passou) e do convívio (o que se dá no agora). Ambas, parece afirmar o espetáculo, não se estabelecem com o real. Este é intangível, inalcançável, intocável. O que nos resta, como espectadores do episódio 2, mais que “acreditarmos” nas improvisações que se dão à nossa frente na suposta coxia, é sermos cúmplices dessa impossibilidade de real (que se estabelece tanto no 1 quanto no 2), e nos lançarmos ao movimento de recuperar o teatro que já foi, tentando reviver o que se passa lá dentro e eu não vejo. Acho que mais do que revelar para a plateia do episódio 2 o que a plateia do episódio 1 não vê, a peça faz um deslocamento que faz com que o público do episódio 2 é que não consiga mais ver, a não ser pelos rastros que traz consigo, o que está se passando no episódio 1.
Luciana Fico com uma questão: que experiência é essa a que eles levam o público no episódio dois? De fato, o lugar do público sofre um deslocamento? O convívio se altera? Tendo a pensar que muito pouco. Há uma quebra da quarta parede, o eixo extra-ficcional se fortalece, sim. Mas mantém-se a espacialidade palco-plateia (não se configura uma ocupação da coxia, mas um novo cenário e uma nova plateia). mantémse, também, a frontalidade (e a distância) da relação. E, sobretudo, o registro de atuação carregado, em flerte com o caricatural e o com o clichê, que instaura a farsa, em tramas evidentemente falseadas. Não há uma tentativa de verídico ou de instaurar uma sensação de real/ verdade. Não se dão a ver as engrenagens. A representação permanece evidente e é um limite para a cumplicidade que a fala e os olhares dos atores buscam. Me parece que, em pouco tempo, o abismo aberto pela mudança de plateia se desfaz, pois o espectador se reacomoda na posição
roberto suárez
que mantinha no episódio 1, a de observador de uma representação, ainda que agora seja teatro dentro do teatro. Ana Carolina realmente Luciana, acredito que a obra só se efetiva com a ordem de o primeiro episódio ser visto antes do segundo. Ouvi muitos relatos de pessoas que assistiram apenas o segundo episódio e sentiram-se enganados, como se aquilo não fosse, na verdade, nenhuma das partes, como se os atores estivessem enganando eles, propondo alguma coisa para apenas ocupar o tempo daqueles que não puderam entrar no espétaculo. Já que no primeiro dia, em que isso aconteceu, ia acontecer apenas o primeiro episódio e em virtude do público excedente, eles decidiram fazer o segundo episódio para comportar mais gente. Acho que isso revela, em certa medida, a necessidade da ordem para gerar essa cumplicidade e também um estado diferenciado, capaz de causar esse estranhamento, essa sensação de engano e de “improviso”.
antro+_105
especial antro+ MITsp
olhares críticos . metacrítica
A REALIDADE DO FRACASSO COMO DISCURSO ESTÉTICO
A
maior dificuldade ao determinar um contexto
o espectar e o pertencer. No entanto, um e outro colidem com
ao teatro refere-se a sua qualidade em con-
o desejo, pelo assumir como real a experiência. Ainda que o
vencer o espectador de uma verdade real.
espaço instaure uma presença naquele que nele está, o distan-
Processo esse que atrai para dentro de para-
ciamento do espectador gera exatamente seu oposto. A soma
digmas toda sorte de instrumentais e revisões.
inevitável das experiências leva a incapacidade de uma solução.
Como estabelecer a certeza àquilo, desde o
Fracassa-se também na sustentação de um público, se tentado
inicio oferecido como representação, portan-
entendê-lo como alguém específico. Este, deixa de ser mera-
to invenção? O dilema percorre os espetáculos em duas partes,
mente o ocupante das poltronas, para ampliar sua dimensão ce-
Bem-vindo a Casa, em muitas instâncias, enquanto expõe a fra-
nográfica ao espetáculo. Portanto, não há mais público, apenas
gilidade de suas tentativas. Não se trata de querer solucionar,
e somente parte estendida de uma narrativa que explode a cena
mas do exibir a tentativa como verdade de sua falência. Ou,
e configura o real como ficção de sua própria manifestação.
mais amplamente, da falência do teatro em ser verdadeiro.
O processo aproxima a teatralidade ao intuito do cinema,
A necessidade de convencionar a ficção como realidade se es-
ainda que trabalhe verticalmente com a materialidade tea-
vai a cada impossibilidade, restando ao espectador o conviver
tral. Essa capacidade em tornar o convívio o fracasso de uma
da representação da representação. Mais do que um metatea-
experiência real está nas salas de projeções e não necessa-
tro, a sobreposição provocada por Roberto Suárez narra pela
riamente na de espetáculos. Comumente, o público de teatro
perspectiva do fracasso, tanto cênico quanto humano. Do outro
é parte coletiva de algo destacado daquilo existente sobre o
lado, na plateia, fracassa igualmente o espectador naquilo que
palco, principalmente se pensado no palco italiano, o que é o
se refere a uma narrativa sobre a realidade. Esse distanciamen-
caso dos espetáculos de Bem-vindo a Casa. A frontalidade típi-
to estruturado pela consciência do jogo, no entanto, não impe-
ca pode ou não determinar deslocamentos. Os espetáculos os
de que outras aproximações sejam oferecidas. Agora, o espec-
apropriam bem, no sentido de não serem manipulações banais
tador pode adentrar ao universo revelado, e dividir o fracasso
de um hiper-naturalismo, cuja função é mais forçar o contexto
mediante uma espécie de convívio cúmplice.
à sua quebra. Nele ocorre o inverso. Mesmo quando se apro-
Determinante ao reencontro com o outro, a espacialidade se desdobra, tanto em narrativa quanto mobilidade real. Essa geo-
xima desse processo, tornam-se paradigmáticos ao se fazerem por variações que vão do grotesco ao farsesco.
grafia cênica afetiva, como traduziu Valmir Santos em sua rese-
Novamente, cabe ao espaço determinar sua potência de ins-
nha, refere-se à construção de um espaço emotivo pelo qual o
tauração do real, enquanto a subjetividade impede seu cris-
convívio com o fracasso fortalece o próprio encontro. A narrati-
talizar. Fracassa-se propositadamente, oferecendo o subtexto
va bipartida expõe a necessidade de angulações diversas ao as-
ao lugar do texto, admitindo-se luz e som como ambiência de
sistido anteriormente, permitindo ao espectador transitar entre
sustentação do espaço, portanto teatralizando ainda mais, a
106_antro+
bem-vindo a casa
partir do movimento de supostamente apresentar o real, deixando evidente a fragilidade da materialidade teatral através da construção da beleza pela precariedade. Percorrido o díptico, principalmente em sua sequência lógica de primeira e segunda partes, o público perde-se entre a relação de espectador e observador, passa a ser mais um presentificador do teatro como tentativa, aquele que justifica a pertinência ao presente de sua instalação. Todavia, se invertido o percurso das partes oferecidas, certamente a experiência será um tanto mais contraditória. A segunda parte necessita da vivência da primeira para trazer a experiência ao cerne da nova narrativa. Sem ela, fracassa-se também ao entendimento mais profundo, pois, ao ser assistida a parte inicial depois, esta ocupará o lugar da ilustração explicativa, e isso de fato é muito pouco. Bem-vindo a Casa se coloca, ao fim, como um dilema sobre o convívio entre teatro e realidade e também entre público e espetáculo. Ora possibilitando entradas, ora destruindo acessos, o importante é o quanto a engenharia teatral configura estratégias narrativas certeiras à experiência. Se o fracasso é inevitável ao entendimento do real, se o teatro é fadado a fracassar como representação da realidade e do homem, tudo pode ser considerado válido no instante em que fracassar se faz artifício e linguagem. Então, tanto quanto buscam os esplexidade de sua manifestação, a mentira pertinente ao mais possível de representação real.
ruy filho + coletivo de críticos
foto manuel geanoni
petáculos, fracassa também o fracasso, visto tornar a com-
roberto suárez
especial antro+ MITsp
Nós somos semelhantes a esses sapos… + Ali Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (MPTA)
E
a falta como relacionamento possível le está ali. E isso é muito, mesmo dentro do pouco
do para as relações a permanência irredutível do contato. Ago-
que acontecerá. A dança, em si, meio circo, meio
ra, os corpos se somam e se multiplicam, e com eles também a
coreografia, está além da falta revelada. O corpo
dinâmica de um vocabulário à presença do corpo transmutado
mutilado, a perna esvaída do homem, não perten-
em novo ser. Ou melhor, em novamente ser.
ce ao homem, mas ao dançarino. E isso é determi-
Está no engajamento de uma situação concreta o artifício
nado logo no início. Então, ele está ali. Mas ela,
para investí-la de sentidos. Esse ser em situação, como define
não. Mas é apenas ela, conclui-se ao convívio com
Merleau-Ponty, exigirá uma intenção total ao sujeito para que
a falta. E logo, sem nem pensar mais sobre sua ausência, a per-
deixe de permanecer em e passe a atuar sobre. O ser no mundo,
na inexistente faz-se presente com tamanha naturalidade que,
aberto ao mundo, ele dirá. Aberto ao outro, se pensarmos nos
ao se fazer propositadamente faltar ao movimento, retorna ain-
dançarinos. Mas não só.
da mais forte e surpreendente. E eles dançam. Ora em trio, ora
Agora, os corpos são retratos das possibilidades de combina-
em duo. Dançam pois o que respiram é a tentativa das relações
ções entre os seres. O mundo é mais do que o externo, mas aquilo
possíveis, seja no amor, seja no convívio, seja na unidade de
que por eles externaliza a propriedade de outras possibilidades,
uma única perna ao dançarino. E conviver se faz mais amplo que
ainda não decifradas e poeticamente traduzidas ao completo.
o desenho de um exercício físico. É a presença que solidifica e
Não há falta. Há deslinearidade à casualidade. E quando não
justifica a necessidade ao próprio espetáculo. Então se dança.
há, se provoca haver. Tudo é a resposta ao encontro, inclusive a
Então são corpos. Então são faltas transformadas em possibili-
experiência estética. Aquilo que assistimos deixa de ser meros
dade de relações e adequações. E a poesia surge feito o falar de
dançarinos para sustentarem a inapropriação como comum. Se
sapos construídos no mero torcer de muletas.
é preciso construir um vocabulário ao encontro entre os pares
Assim como o corpo se comprova não reduzido a objeto e sua
no palco, igualmente a vida implora por novos paralelos.
representação, também discursa-se sobre a amplitude das rela-
O princípio básico do relacionar-se de outrora, quando o outro
ções. O fenomenologista Merleau-Ponty discorreu profundamen-
passava a ser a ampliação de uma necessidade, deixou de existir
te sobre os fantasmas, membros que ausentes ainda se coloca-
no contemporâneo no instante em que o outro deixou de ser a
vam presentes aos amputados. Mas interessa mais investigar a
complementariedade. Assistir aos corpos em união poética e ver a
dimensão de seu estudo sobre a existência das emoções como
poesia surgir na fricção entre dois corpos tornados um confundem
membros fantasmas. Sim, ele diz, algumas emoções existem e
o entendimento do significado do que quer que entendamos por
se fraturam sobre o sujeito com tamanha intensidade que a sen-
se relacionar. É preciso estar em relação não mais e apenas com
sação de suas realidades permanecem àquele que as sentira de
o disponível. É preciso estar em relação com aquilo que falta.
modo definitivo. É o que assistimos no bailar dos corpos sobre o
Construir na falta o alicerce ao outro, e não mais no outro buscar
palco. A construção de um elaborado jogo de relações possíveis,
seu anteparo. Não existem mais muletas. E nem faz sentido. O
cujo existir é radicalmente determinante às emoções, retornan-
que é possível oferecer ao outro é exatamente a completude por
especial antro+ MITsp
aquilo que não existe. O homem deixa de ser a soma das partes possíveis, passa a ser a multiplicação daquilo que não se tem. A falta responde ao anseio da impossibilidade permanente ao querer e existir do contemporâneo. E, quando esta é real, mais do que uma sensação ou sentimento, a presença do presente se amplifica ao insuportável. Não por ser a falta insuportável. Não pelo não ter. Mas, e sobretudo, pela concretização de que, na verdade, não se faz necessário aquilo que existe e sobra. Mesmo que seja uma relação. Mesmo que esta relação seja como as emoções. Mesmo que seja com o outro. Mesmo que seja com o próprio corpo. Ou uma parte dele. Ou uma parte do sujeito. Ou parte do sentir. Ou mesmo que seja com uma parte do real. Afinal, nada mais amputado ao real que sua tentativa em traduzir pela arte o próprio sentido inexplicável do querer. E o MPTA quer. Os sapos coaxam sobretudo em noites plenas de felicidades. Quem dera nós, os sapos do lado real, pudessem cantar conscientes da importância das faltas fundamentais, ao invés de fugirmos ao primeiro movimento de ausência. Alguns sapos são verdadeiramente mais preparados aos saltos do que outros. E portante relação ao ser, a de querer superar o viver e passar a conviver com o imprevisto como realidade em estado de poesia. É impossível não se emocionar ao que se assiste.
ruy filho antro positivo
foto christophe raynaud DeLage
esses, tornam o voar a própria poesia que justifica a mais im-
Nós somos semelhantes a esses sapos… + Ali
mpta
especial antro+ MITsp
ão se sabe como o primeiro passo foi dado, tam-
Aqueles corpos tem a faculdade de deslocar a realidade para a
pouco como se deu o segundo. Não por truques
abstração. O que vejo é fruto de um sonho doce, deve ser isso.
e efeitos, mas por tamanha sutileza que os olhos
Não acompanho mais com os olhos, mas com a pele. Existe uma
não se atentam ao mecanismo. Eles desejam as
operação de tamanha sutileza com o tempo, capaz de oferecer
imagens e toda a loucura pictórica que delas sur-
a delicadeza e o assentamento necessário para firmar as imagem
gem. A cena se desenrola com tamanha agudeza
no suspiro, na suspensão. E é esse tal de suspiro que persegue o
de espírito e paixão, que estimula o meu desejo
a pele, os olhos e o sorriso de quem expecta também.
e a minha força de existir e agir, tal como nos revela Espinosa,
Diante desses corpos em estado de transbordamento, reconhe-
sobre as paixões alegres; e me faz desinteressar-me pelo tal do
ço o impossível a minha frente. Eis que os bailarinos param e a
processo, do mecanismo, do procedimento, para atentar-me ao
cena, feito fotografia, e parecem capturar o instante para devol-
reflexos daquele bom encontro. Cada bailarino é pro outro o seu
ver a nós, espectadores, a certeza de que não há truques ou efei-
apoio físico e afetuoso. Se há cumplicidade, ela faz morada aqui.
tos, apenas afeto e intensidade. Suspiro a cada recomeço. Sorrio
Quero a ilusão e todas as imagens intraduzíveis que ela me ofer-
a cada parada. Não há nenhuma questão pra se resolver. Aqui
ta. Quero a ilusão e toda a imaginação que sobrevoa aos olhos.
não há problemas. Não há impedimentos. Há apenas cumplicida-
Mas nessa ilusão não há enganos. E a falta, aqui, não é sinônimo
de e bons encontros, desses que intensificam a nossa existência.
de ausência. Um tanto mais escapa dessa frase. O que vejo trans-
Você tem uma perna apenas? Eu só tenho uma cabeça.
borda pela presença, pela vida, pelo que existe e se torna muito além. O que vejo é intraduzível e produzido diante de mim. É como se dissesse “só acreditaria se não visse”. Parece ser impos-
ana carolina marinho
sível aos olhos. Mas isso não interessa, é apenas um espanto meu.
antro positivo
foto manon valentin
N
Um suspiro de delicadeza, ou melhor, dois
Nós somos semelhantes a esses sapos… + Ali
mpta
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
Deslocamentos e ironias vitais
U
m casal de noivos entra e dá uma volta em círculo no palco. Do lado direito, um grupo de músicos. Na segunda volta, ele coloca a mão no ombro dela e fala algo ao seu ouvido. Depois parece bêbado (da festa?). Mudam de posição, de ritmo. Outro homem com perna amputada e com muletas vai atrás. O barulho metálico das muletas grita. Depois de uma volta, ele pisa no vestido da noiva e congela. Continua o percurso. Pisa novamente no vestido dela e paralisa a cena, como numa fotografia. O homem das muletas chuta a mulher. Ela cai. E depois se agarra ao pescoço dele. É arrastada. Tenta se segurar a outras partes do corpo dele. Ele pula como sapo. Ela sobe no seu ombro. Lembrei-me da canção O Quereres, de Caetano Veloso (“Ah! Bruta flor do querer / Ah! Bruta flor, bruta flor”). Esses desejos que se alternam, esses quereres em permanente deslocamento. Deslocamento, aliás, é uma chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da com-
panhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que apresentou em seguida o duo Ali. As andanças pelo palco, em círculos primeiramente e em muitos outros desenhos. O deslocamento do eixo gravitacional provocado pela falta de uma perna de Hedi Thabet e que se expande para os outros dois bailarinos. A provocação do deslocamento do olhar do espectador. E ainda a projeção dos deslocamentos migratórios mundiais e suas questões de identidades, também ressaltadas pelo repertório musical (melodias tradicionais tunisianas e gregas – rebetiko) e a ascendência dos artistas. O corpo mutilado vai à luta. Subverte lógicas. Desafia o outro. A linguagem física é rica de significações. Alteridade: um e outro no fluxo do desejo por uma mesma mulher, alternância equilíbrio/desequilíbrio dos corpos, desafio às leis da gravidade. Acrobacias de tirar o fôlego. Esses “sapos” borram fronteiras. Saem dos eixos em seus giros. Imagens de potência em constante construção
– uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos e de dança contemporânea, “Nós somos…” explora a aventura de um triângulo amoroso plausível, que avança em oposições contraditórias no deslocamento do desejo. Já em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois homens. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente. E o humor e a ironia permeiam os dois espetáculos. Mais grave em “Nós somos semelhantes…”, com suas ameaças de perda e mais vitalizante em Ali, com sua força e alegria de viver.
Ivana Moura satisfeita, yolanda?
Nós somos semelhantes a esses sapos… + Ali
mpta
Corpos em infinita multiplicação e mutação
H
á algo de espanto em um primeiro momento. Sensação logo transformada em beleza a ser admirada. O que antes poderia soar como piedade cede lugar à comunhão, ao encontro com o outro, à celebração. A imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência, desviando o olhar da perda para a multiplicação dos corpos em cena. Juntos, performers e espectadores atravessam a fronteira da deficiência e da individualidade para chegarem ao território da eficiência só possível de ser alcançada na complementaridade. Movimento compartilhado entre todas as partes. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, programa de dois espetáculos apresentado pela companhia Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (MPTA), da França, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. O fato de um dos bailarinos ter perdido uma de suas pernas não é ignorado pelo trabalho (nem pelo público), mas também não é seu ponto principal ou final. É a partir desta ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos. Tendo como ponto de partida um mote até mesmo banal, a relação de amor e ódio que cerca um triângulo amoroso, nasce uma dramaturgia corporal vigorosa, em que o arquétipo da perfeição do casal, em sua caminhada
nupcial, é desestabilizada por um terceiro elemento, uma espécie de intruso que insiste em se fazer presente. Enquanto um a faz girar, o outro a faz flutuar, num jogo de oposição que os transforma assim em duplos complementares, que só se definem e existem na comparação com o outro. Desestabilizar parece ser um verbo que permeia ambos os espetáculos: reverter expectativas, romper convenções, criar outros olhares ainda não experimentados para o que se entende por (e no) corpo. Em Ali, o trio se desfaz e cede lugar a um dueto. Numa espécie de dança-duelo, Mathurin Bolze e Hedi Thabet se perseguem, se chocam, se debatem, se conectam, redescobrem seus próprios corpos. O que antes era falta, torna-se soma. A presença constante de uma ausência. Parte-se das muletas como apoio e suporte para transformá-las em trampolins para grandes saltos, como extensões dos próprios corpos, que, mais que objetos, tornam-se também matéria, corpo, carne, membro. Uma perna a menos se transforma em várias pernas a mais, como num milagre da multiplicação ou uma brincadeira de criança. São partes de um todo que só se constitui na hibridização desses dos corpos performáticos que dividem a cena, num movimento constante de mutação de formas, imagens, dinâmicas, perspectivas.
A quase ausência de elementos no palco (apenas um lustre e cadeiras) ressalta ainda mais o foco na escrita que nasce do corpo e para ele retorna. É na extrema fisicalidade que o trabalho encontra seu apoio. Assim como os elementos aos quais a própria companhia recorre para construir sua poética cênica, que agrega principalmente circo, dança e teatro, os corpos dos performers também assumem um caráter híbrido, estilhaçado, expandido, ampliado. Uma outra anatomia possível se configura no encontro e na metamorfose entre eles. O virtuosismo em ambos os espetáculos deixa de ser mera exibição das habilidades técnicas dos bailarinos, embora estas sejam incontestáveis, para se tornar também possibilidade de reinvenção e reconfiguração corporal, na criação de formas não mais somente humanas, mas praticamente mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem. Ao construir um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio, o grupo francês MPTA reconstrói a própria ideia de humano na contemporaneidade, quando o apoio solitário parece não ser mais uma alternativa possível.
soraya belusi horizonte da cena
olhares críticos . diálogo
foto manon valentin
especial antro+ MITsp
116_antro+
LUCIANA Gostaria de fazer um acréscimo: pela minha experiência de expectação, o espetáculo processa uma transformação na percepção de normalidade. Por um longo período inicial, a agilidade está concentrada justamente no Hedi Thabet, o bailarino com uma perna amputada. É o corpo dele que se desloca com mais velocidade, mais controle, mais força, mais intenção e mais ação do que os outros dois, sem amputações. O espectador tem a oportunidade de que seu olhar se acostume de tal maneira àquele corpo com uma perna só em movimento, que ele deixa de ser o fora do padrão. O outro homem em cena, com suas duas pernas, não se move, não se liberta, permanece limitado dentro de uma estrutura binária. E essa estrutura opera em pelo menos duas dimensões: a concreta, das pernas que sustentam o corpo, e a metafórica, do amor (a relação a dois) como sustentação da vida. Na concreta, os deslocamentos realizados em cena desconstroem a ideia de falta: aquele corpo é completo, potente. Na metafórica, abre-se uma leitura possível relativa à dependência amorosa, à (suposta) necessidade de ser dois, que repercute no desejo, no ciúme, na posse.
Nós somos semelhantes a esses sapos… + Ali
Valmir As duas obras da MPTA permitem contrastar as potências dramatúrgicas para além das habilidades e do talento dos bailarinos. Em ‘Nós somos semelhantes a esses sapos’, a triangulação amorosa deixa poucas nuances em sua estrutura, o conflito é direto. Em ‘Ali’, no entanto, o discurso amoroso e fraterno vem fragmentado, a abstração ganha espaço no desenho coreográfico. Outro aspecto que dá organicidade ao programa é o som e a voz matizados pela presença dos músicos em cena ou na coxia. Ana Carolina Não se sabe como o primeiro passo foi dado, tampouco como se deu o segundo. Não por truques e efeitos, mas por tamanha sutileza que os olhos não se atentam ao mecanismo. Eles desejam as imagens e toda a loucura pictórica que delas surgem. A cena se desenrola com tamanha agudeza de espírito e paixão, que estimula o meu desejo e a minha força de existir e agir, tal como nos revela Espinosa, sobre as paixões alegres; e faz desinteressar-me pelo tal do mecanismo, do procedimento, para atentar-me ao reflexos
daquele bom encontro. Cada bailarino é pro outro o seu apoio físico e afetuoso. Se há cumplicidade, ela faz morada aqui. Daniele postar aqui umas imagens, mas não consegui, então coloco o link http://janfabre.be/angelos/ exhibitions/past/umbraculum/ en/ - para um exposição do Jan Fabre que me veio à mente enquanto assistia ao trabalho do MPTA. Fabre fez uns objetos que mimetizam suportes para o esqueleto humano (muletas, cadeiras de rodas, andadores) revestidos de élitros de escaravelhos, que são os exoesqueletos desses insetos. Acho interessante essa aproximação dos artefatos feitos pelo homem com os artifícios da natureza, como uma muleta se aproxima da materialidade de um osso e como essa falta exposta é celebrada com beleza no espetáculo. O homem supera as faltas com a sua habilidade do fazer, do criar, tanto no âmbito pragmático do artefato (a criação de uma muleta para viabilizar o deslocamento) quanto na esfera da arte (o uso potencializado da muleta para propor deslocamentos outros).
Ruy Concordo com a percepção de todos sobre as condições específicas dos dançarinos. Isso, de fato, é impossível não ser levado em consideração. No entanto, como nos atentou Felipe Hirsch, para além disso, há outra particularidade, a de construírem um vocabulário de movimento e dança que foge aos princípios que tanto estruturam a dança contemporânea, seja do lado da tríade Pina Bausch / Cunningham / Marta Graham, seja pela corrente formada por Bel e Le Roy. Em MPTA, a dança surgida pelo encontro com o circense estabelece outra possibilidade de movimento e de aspectos narrativos. O jogo dialético do utilizar-se da narrativa simples e direta para compor estímulos ao gesto, tal qual importa ao circo, determina um dançar representativo e não interpretativo (tríade citada) ou de desconstrução semiótica (Bel e Le Roy). O movimento do MPTA implica na aceitação de sua disposição ao verificável, o que nos reaproxima a sua condição física. No entanto, aquilo que é dança propriamente, interfere sobre a visualidade e complemente a dinâmica
mpta
de uma realidade particular também em proposição tanto quanto organização. Se em Bausch o movimento traduz a subjetividade de contextualizar-se ao sentir, enquanto em Bel refere-se ao próprio sentido da identidade do gesto, podemos crer que em MPTA, diferentemente, o gesto é a construção física do exercício como coreografia. Maria Eugênia como bem colocou a Soraya, a pesquisa da MPTA não busca uma exploração do caráter espetacular que pode ter a deficiência de Hedi Thabet.Tampouco faz desse dado uma temática. Mas me parece interessante perceber como a condição física de Thabet se coloca como elemento organizador da cena em diversos momentos. A criação não se dá apesar da falta. Antes, incorpora esse dado (que talvez não possa mais ser chamado de falta ou deficiência a partir de determinado momento) e o transforma em linguagem.
antro+_117
especial antro+ MITsp
olhares críticos . metacrítica
F
Equilíbrio delicado
azer metacrítica de um espetáculo nos coloca numa
O trabalho também processa uma transformação na percepção
situação estranha, mas desafiadora. Buscar o sentido
do que é apontado como normalidade. Nós somos semelhantes a
ampliado, com o reforço de outras vozes. Encontrar
esses sapos… + Ali, não se resumem a um tratado sobre a defici-
outros caminhos e uma dicção mais original de um
ência física ou sua “exploração espetacular”. Hedi Thabet (dan-
trabalho visto há alguns dias. E, no caso de uma obra
çarino e artista de circo belga que teve a perna amputada) disse,
dentro da programação da Mostra Internacional de Te-
na conversa com o público após a segunda récita, que a peça
atro de São Paulo – MITsp (realizada entre 8 e 16 de
“Nós somos…” é “jogo de situações dramáticas sobre o amor”.
março na capital paulista), com os acréscimos de camadas senso-
Em “Nós somos...”, a triangulação do desejo começa com mo-
riais e interpretativas de outras montagens, conversas com pares
vimentos repetidos mecanicamente, do casal que anda em cír-
e ímpares, palestras, outras visões. Além do fator tempo. Estar
culos pelo palco. A noiva de camisola, o noivo de camisa branca,
distanciado do momento da expectação não significa necessaria-
calça e paletó pretos. A terceira figura desse trio entra para de-
mente uma vantagem. E sim uma dubiedade. Mas com o olhar é
sestabilizar o idílio amoroso dual, o homem de muletas.
deslocado. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali foram
O título do espetáculo é um verso do poeta René Char (1907-1988),
apresentados na Sala Jardel Filho, do Centro Cultural São Paulo -
“Nous sommes pareils à ces crapauds qui dans l’austère nuit des ma-
CCSP, em sessões lotadas e recepção calorosa do público.
rais s’appellent et ne se voient pas, ployant à leur cri d’amour toute
Utilizei de vários sentidos de deslocamento como chave de lei-
la fatalité de l’univers” (Nós somos como esses sapos nos pântanos
tura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”,
que na noite austera se comunicam e não se veem, dobrando em
da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As
seus gritos de amor toda fatalidade do universo).
Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que exibiu em seguida o duo
Esses corpos carregam possibilidade erótica, enquanto instância
Ali. Das andanças pelo palco – Hedi Thabet, Artemis Stavridi e
também de poder. E extrapolam fronteiras com subversões poéticas.
Mathurin Bolze-, do reposicionamento do eixo gravitacional e das
Estar no mundo é repleto de ironias, em questionamento de ser intei-
referências aos movimentos migratórios mundiais e suas questões
ro, pleno e fragmentado e incompleto. O que falta. Mas a imagem da
de identidades. Mas o deslocamento mais importante se opera
mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência.
no vocabulário dos movimentos alimentados pelas acrobacias cir-
É a partir dessa ausência, porém, que se estabelecem os jo-
censes, que se descolam de outras bases da dança contemporâ-
gos de multiplicação e mutação dos corpos. Nessa reinvenção e
nea para criar sua singularidade.
reconfiguração corporal, são compostas formas humanas e supra-
118_antro+
Nós somos semelhantes a esses sapos… + Ali
mpta
-humanas, mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem. Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos exacerbando a dança contemporânea, “Nós somos…” constrói um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio. A música é executada ao vivo por quatro instrumentistas oriundos da Grécia e da Tunísia. Eles tiram texturas sonoras que aquecem, ganham formas e sabor ou estão carregadas de melancolia. A trilha salienta passagens mais passionais, com canções da tradição rebetiko e o som folclórico do Oriente. O discurso amoroso também está presente em Ali, mas o registro é da ordem do fraterno. A falta exposta se apresenta como elemento organizador da coreografia. A amizade articula os jogos, armados e desarmados entre os dois homens. Vai da ludicidade das brincadeiras infantis à disputa pelo poder como energia entre os dois bailarinos. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente.
Ivana Moura + coletivo de críticos
foto christophe raynaud DeLage
vital. Em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação
antro+_119
especial antro+ MITsp
de repente fica tudo preto de gente marcelo evelin
É
a massificação do outro
como vivenciar o surgimento de uma sociedade, em
trópica estabelecido é igualmente base de formação das estruturas
suas relações, correlações, distâncias e pluralidades
sociais que, diferentemente de outras, não se firma pela escolha de
que, de tão plurais e tantas, acabam por se tornarem
uma ou outra, nula ou máxima, mas no estado mediano de convívio
iguais. Os corpos se aproximam e se afastam e dese-
e mutação constante. A circularidade de autorrepetição e contami-
nham pelo espaço uma narrativa de convívio. Mas a
nação entre os movimentos e instantes narrativos poderiam levar a
sociedade qual se presencia ou desconfia exige olhar
uma entropia nula. Todavia, a presença ativa do espectador amplia
mais abertamente para o instante. Existe um senti-
a permanência de contaminação, exigindo-lhe a desconfiança e re-
mento de cosmogonia. Pois há a percepção de algo que se faz ali,
formulação constante de sua estrutura simbólica.
em tempo real. Esse iniciar, todavia, não se refere exatamente ao
Para a teoria da complexidade, um sistema só pode existir
revelar do ser, de sua origem, ainda que o desenho narrativo dos
em relação a outro. Portanto, aquilo que se assiste e participa
corpos sugira uma figuração dos comportamentos dos átomos. A
implode a própria condição e se deixa conduzir como processo
sensação ocorre por nossa incapacidade em compreender o próprio
transformado via existência do espectador. Esse é o valor maior
iniciar da civilidade e pela urgência em traduzir origens como sen-
da estrutura biopolitica do espetáculo. Traduzir em experiência
do àquela primeira. Então transferimos o sentimento de início ao
estética vivencial a multidão diagnosticada por Antonio Negri
homem, substituindo pelo mais próprio, pelo explicável. Afinal, são
também pela capacidade de sistematizar individualidades na ma-
corpos, dançarinos, são pessoas. E o mais provável é se tratar então
nifestação ampla de um coletivo plural.
de sua representação como resposta ao universo. Mas se esquece
A massa formada pelos corpos cobertos de carvão age como
nisso o óbvio. Não são pessoas, exatamente, trata-se de gente. E
se tivesse ela sem iluminação. Apenas existe como movimento
gente refere-se a presença do homem em sociedade, seu existir co-
e permanência. Enquanto o espectador lida com sua exposição
letivo, sua identidade grupal, a massa especifica que determina um
trazida em luz e escolha. Ficar ou fugir? Tanto faz. Ambos con-
estado de pertencimento e manifestação ao ser. Portanto, fala-se da
duzirão a massa ao seu desdobramento, que nada mais é que a
sociedade. Fala-se do indivíduo. Fala-se do homem como consequ-
imposição de sua presença. A massa se organiza assim, portanto,
ência de sua realidade biopolítica. Ainda que a fala, propriamente,
na contaminação e contribuição ao outro, enquanto se reformula
seja um estado dado ao corpo em forma de dança.
como artifício de se manter identidade. Ocorre no existir da mas-
É preciso entender como essa tal de sociedade se revela, então. E
sa de gente um estado de invasão, de imposição. Aquela que se
para tanto, as interpelações sistêmicas precisam ser encontradas na
organiza impõe ao outro a necessidade de agir e decidir. E nada é
esfera de suas entropias. O processo entrópico exposto pela narra-
mais coerentemente político do que isso.
tiva estética não define necessariamente uma ação, mas seu estado
Apreendido o jogo, assistí-lo torna-se ainda mais estimulante. Não
de incerteza. O que se assiste também assiste de volta o observador.
é preciso acompanhar a massa de corpos e suas negritudes. Basta
Estamos e somos cena. E isso muda tudo. O grau de incerteza en-
assistir ao outro. Esse distanciamento provoca um instante de iso-
especial antro+ MITsp
lamento ao todo, quase oferecendo ao espectador a percepção de sua condição de submissão. Não se pode fugir da estrutura social. Para isso seria fundamental destruir os códigos cênicos. O que se consegue, ao isolar-se, é conflituar a presença da massa com outra identificada com seu não pertencimento. Então são duas. E novamente a entropia se faz incerta, instável e contaminável. Por que ficou ou não no espaço dança são as questões a serem respondidas por cada um. Pelo risco do carvão sobre si? Pelo medo do contato com o outro? Pela exposição que o outro traz sobre aquele que revela? Pela condição de ser toda exposição um existir explícito, a partir de um ambiente determinado? Por ser todo ambiente determinado a constituição mínima de uma estrutura social? Por ser a sociabilização incômoda? Por ser incômodo aceitar a presença do outro? Por ser toda presença um forma de contato? Por ser o contato uma forma de invasão? Por ser invasivo macular a própria segurança? Por que a segurança é a sustentação da individualidade? Por ser a individualidade a maneira mais eficiente de sobreviver à massa? Sorteie as perguntas e assista ao espetáculo. Ou melhor, viva-o. Experiencie-o. E descubra o que em você mesmo o faz tão ausente do reconhecimento de seu pertencimento ao todo. Então aproveite para dançar. Mover-se. Sozinho ou junto. No escuro ou claro. E deixe o espetáculo te preencher de algo que talvez você já tenha esquecido. O sentimento único que apenas a consciência de ser você também parte, de ser você gente, de ser você igual a tantos. por muitos de agora.
ruy filho antro positivo
foto sergio caddah
O sentimento de se estar no meio de uma massa de vida chamada
de repente fica tudo preto de gente
marcelo evelin
especial antro+ MITsp
de repente fica tudo preto de gente
fotolígia jardim
E
marcelo evelin
Entre a exposição e a contemplação xiste uma tomada de decisão do público que pree-
onde surgem essas coletividades instantâneas, regidas por ou-
xiste e ultrapassa o ato de olhar e atribuir sentido
tros princípios: uma exposição criará segundo o grau de partici-
ao que se vê. Se o público não quer “empretecer”,
pação que o artista exige do espectador, a natureza das obras,
é preciso agir. E se não quer agir, é preciso decidir
os modelos de sociabilidade propostos ou representados, um
ficar do lado de fora do ring. Para esses, que se
‘domínio de trocas’ particular”. E, sendo assim, a exposição é o
mantém do lado de fora, cabe a contemplação, a
arauto do contato. Na contemplação, não há um convite claro
construção de um argumento e a necessidade do
ao diálogo, o público expecta o próprio público e sua participa-
sentido, eles não são arrebatados. De onde estão é distante
ção no todo é ocular, ele observa o observador e, por vezes, se
para o contato, qualidade indispensável a esse espetáculo. Para
desinteressa. Ao contrário do público de dentro, este fica sen-
os que estão dentro do ring, não existe contemplação, mas a
tado, a espera de algo acontecer e nada acontece. Estranha. O
exposição de todos que compartilham o ato, aqui, a obra é inca-
que faz esse público se cansar diante da proposta de convívio?
paz de existir sem o convívio com esse público, mas, em relação
O que o impede de permanecer no ring? Em tempos de estéticas
ao público que está fora do ring, ela pode existir sem ele? Pen-
tão relacionais, acho importante voltar o vetor da responsa-
sando nisso, acho importante suspeitar que De repente tudo fica
bilidade do espectador pouco dialógico, para a obra um tanto
preto de gente é ao mesmo tempo, exposição e contemplação
saturada em suas experiências coletivas.
e o quanto cada qualidade dessas faz existir uma obra distinta. Na exposição, o público existe no espaço em que a obra define e a habita, pratica os deslocamentos e as proximidades. Como
ana carolina marinho
nos diz Nicolas Bourriaud “a exposição é o local privilegiado
antro positivo
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
O espectador em deslocamento
“F
orma um bolo lá na frente”, instrui o homem na fila de entrada do teatro, como quem antecipa o que virá adiante. Em vez das cadeiras corretamente alinhadas, da comodidade do lugar marcado, da segurança presente na distância que separa palco e plateia, um platô que pode ser ocupado da maneira que o espectador preferir, deslocando-o de sua usual posição de passividade. Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu estado habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-se também ao olhar do outro. A criação de Marcelo Evelin e sua companhia Demolition Inc. não nos faz mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo, ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos procedimentos escolhi-
dos por ele, mas, principalmente, a nós mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos é apresentado. O efeito que a proximidade entre performers e espectadores assume sobre o ato teatral-performativo, já ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história recente, parece ser também uma das forças de ação que constituem a explosão de percepções e possibilidades que De repente tudo fica preto de gente nos suscita. Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração, da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -, as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação, da aproximação ao afastamento. Não se trata mais apenas de colocar em crise a cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espaço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação compartilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem age e de quem
é apenas o alvo da recepção. Está posta ao público a possibilidade de, assim como a massa que pode se tornar imprevisível, romper o círculo da convenção artística e social que o estabelece apenas como observador da ação do outro, permite que este desestabilize as fronteiras estabelecidas da espera e possa avançar rumo à ação, normalmente delegada somente aos artistas. O lugar institucionalizado do espectador é colocado em xeque. De repente tudo fica preto de gente demanda do público estabelecer também um comportamento físico, tornando-se, assim como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performático, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao contágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.
soraya belusi horizonte da cena
de repente fica tudo preto de gente
marcelo evelin
O campo ampliado das artes cênicas
A
presença da obra de Marcelo Evelin, De repente fica tudo preto de gente, na programação da MITsp, que é uma mostra de teatro, é uma questão interessante para se pensar. Os campos do teatro e da dança nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha. Diante do compromisso de escrever sobre um espetáculo de dança – e especialmente tratando-se de uma obra com o nível de complexidade da que está em questão – me vejo diante de um problema para a crítica: o paradigma das categorias como campos separados de experiência e saber. O fato de a minha formação ser em teoria do teatro, sem estudos específicos na área de dança, é algo que à primeira vista me constrange o pensamento. Mas, afinal, o que é dança? E o que é teatro? A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é uma questão para a crítica de teatro. O teatro contemporâneo e a dança contemporânea não se definem hoje por aquilo que os definia algumas (muitas?) décadas atrás, como por exemplo, no caso da dança, a coreografia, no caso do teatro, o drama; embora o discurso comum não tenha assimilado de fato essa virada de liberdade
criativa. Ainda vemos críticos escrevendo que algo “não é teatro” com uma convicção constrangedora. Não é a coreografia que define a dança, nem o drama que define o teatro – e as noções mesmas de coreografia e de drama podem ser bem mais amplas do que costumamos pensar. Não é o caso de tirar de cena a coreografia, nem de superar o drama. Em uma reflexão apressada (uma contradição em termos) me parece que a fundamentação conceitual do espetáculo De repente fica tudo preto de gente em um princípio da física, ou seja, a presença forte de uma ideia orientadora que não está restrita à categoria dança, é algo que amplia o campo, que liberta a criação da repetição de um mero exercício do fazer, de uma variação sobre procedimentos dados. É nesse sentido que me parece que o espetáculo em questão é para qualquer um, porque ele não demanda nenhum conhecimento prévio do espectador, ele simplesmente se dá à experiência. Penso que o contemporâneo não está em um conjunto de premissas estéticas e reflexões endógenas, mas na natureza da relação com o espectador. Com isso em mente, levanto o olhar para o contexto da MITsp para pensar o lugar deste trabalho no contato com outros assistidos até agora – até porque a ideia de contato e a sub-
sequente contaminação entre corpos é algo que o espetáculo de Marcelo Evelin nos faz viver. O espectador é fisgado para dentro das obras em três instâncias diversas em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, Bem-vindo a casa e De repente fica tudo preto de gente. No primeiro, a relação é subjetiva, impalpável e demanda uma disponibilidade de espírito do espectador. No segundo, o público é convidado a fazer parte da situação ficcional que se estabelece. No terceiro, o espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo. Mas o preto das imagens criadas por Marcelo Evelin não é opaco. É um preto translúcido que convida o olhar para a beleza do escuro. Na prática da crítica, esse é o grande desafio: mais que discorrer sobre o que já se sabe, trabalhar a musculatura do olhar para enfrentar a escuridão. E o pensamento, como os olhos no escuro, precisa de tempo para começar a discernir as imagens nas sombras.
Daniele Avila Small quentão de crítica
especial antro+ MITsp
olhares críticos . diálogo
Ruy Daniele, tua inquietação sobre a categorização do espetáculo faz todo sentido. Todavia, assim como a dança não se restringe mais à coreografia e o teatro ao drama, faz-se fundamental que o mesmo princípio de deslocamento se coloque sobre a perspectiva de categorias. Se antes, uma categoria se definia por atributos técnicos específicos, hoje, esta se dá menos vertical e mais horizontal, no campo de experiências possíveis. Sendo assim, conceitualmente, temos que intervir sobre a dinâmica da experiência com forma de encontrar nela a possibilidade de sua condição. No caso desse espetáculo, o público não se está meramente passivo ao procedimento, é ele parte fundamental ao movimento de construção dos performer. Se tratarmos a relação do espaço definido ao acontecimento, como identificou a Soraya, veremos que, ao fim, trata-se de ocupar como experiência a espacialidade e no convívio determinar sua justificativa. Tal processo, não surge necessariamente nem na dança, nem no teatro, mas nas artes visuais, especificamente naquilo
que Lucy Lippard determinou por instalação. Ou seja, a obra como a correlação entre o convívio estético do espaço, obra e observador. Nas últimas décadas, com a aproximação das artes cênicas a esses procedimentos, o conceito de instalação foi modificado para, nesses trabalhos, instalação performativa, oferendo o estado vivo que o cênico determina ao todo. Hoje, porém, também essa proposição entra em cheque, pois, muitas vezes, não se trata de realizar uma performance cênica na conjuntura do espaço e público, mas de instaurar uma ambiência (espaço) através de seu uso estético (artes visuais), pela mobilização simbólica do corpo (cênico) em contato com o outro (não mais observador ou espectador). Por tudo isso, arrisco dizer que De repente fica tudo preto de gente não se trata de dança ou teatro, mas de uma instauração que parte de processos de entropias possíveis ao entendimento de proximidade ao outro. Daniele Me interessa a questão proposta pelo Kil Abreu. Não consigo colocar o link aqui porque ainda tenho dificuldades com o app do
Face pro Ipad. Queria ter tido tempo para pensar as imagens, mais que os procedimentos. Ando pensando em como falar, na crítica, com o espectador que não é especializado mesmo editando uma revista de pretensões acadêmicas. Tenho tido vontade de conversar sobre o que estamos fazendo quando fazemos crítica, além de conversar (mesmo que assim, meio caoticamente, pelo Face) sobre as obras. Me interessa também a relação com as artes visuais. Não à toa, fui fazer mestrado em História da Arte depois da faculdade de Teoria do Teatro. Mas aí percebi que estava entrando num buraco ainda mais fechado. Enfim... Tô achando ótima toda essa discussão aqui. Vou tentar estender essa questão que você propôs no meu exercício de metacrítica. Luciana Não vi o espetáculo, o que eu me impede de maiores comentários. Fico com uma pontuação: me parece que nos cabe mais olhar para esses espaços fronteiriços como eles se instauram em suas particularidades do que determinar categorias para eles que de algum modo os limitem.
Ruy Como a Helena Katz colocou amplamente, Luciana, é fundamental que escapemos das classificações para construirmos um olhar, ainda que o classificar seja inevitável. Então não se trata de anular a classificação, mas encontrá-la a partir de entradas inventivas, que implicam a necessidade de olhar tanto a olha como o todo. Ou seja, no momento em que as classificações estabelecem um desvio à observação dominante, ela fundamente outra possibilidade ao olhar. Pollyanna Uma das principais inquietações que De repente...me trouxe foi a questão já abordada por Soraya: a possibilidade que o espectador tem de romper as fronteiras. O que faz com o que público se sinta à vontade para realmente interagir com os performers? Para quebrar essas barreiras? Quando alguém mostra a palma da mão pra você ou se aproxima como se fosse te dar um beijo, você não retribui? E, mais ainda, não toma a iniciativa? Porque ainda estamos tão presos a convenções que nos impedem de se entregar a uma experiência no espaço
de repente fica tudo preto de gente
marcelo evelin
Ana Carolina Existe uma tomada de decisão do público que preexiste e ultrapassa o ato de olhar e atribuir sentido ao que se vê. Se o público não quer “empretecer”, é preciso agir. E se não quer agir, é preciso decidir ficar do lado de fora do ring. Para esses, que se mantém do lado de fora, cabe a contemplação, a construção de um argumento e a necessidade do sentido. Para os que estão dentro não existe contemplação, mas a exposição de todos que compartilham o ato, aqui, a obra é incapaz de existir sem o convívio com esse público, mas, em relação ao público que está fora do ring, ela pode existir sem ele? Pensando nisso, acho importante pensar que De repente tudo fica preto de gente é ao mesmo tempo, exposição e contemplação.
foto lígia jardim
formal (mesmo que ele esteja dessacralizado, seja aqui um ringue e não um palco, nos permita isso) do teatro/dança/ performance? São questões que ainda estão martelando e se desdobrando para mim, já que muitos grupos estão nesta busca pela construção de uma nova relação com o espectador.
antro+_129
olhares críticos . metacrítica
especial antro+ MITsp
D
Percepções em deslocamento
eslocar-se. Instaurar novos espaços. Desarticular as
-se também ao olhar do outro. O efeito que a proximidade entre
categorias. Fazer mover os corpos. Mudar de lugar o
performers e espectadores assume sobre o ato performativo, já
olhar. Contaminar o outro. Desviar os comportamen-
ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história re-
tos dominantes. Imperativos que se apresentam, in-
cente, parece ser também uma das forças de ação que consti-
dependentemente da abordagem crítica, na fruição
tuem a explosão de percepções e possibilidades que De repente
de De repente fica tudo preto de gente. São noções
tudo fica preto de gente nos suscita.
que parecem ser inerentes à obra de Marcelo Evelin
Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração,
e dos performers da Demolition Inc., e que provocam, entre outras
da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -,
coisas, a desestabilização do espectador, em sua maneira de per-
as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados
cepção e de disponibilidade corpórea, e a própria relativização das
distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação,
categorias artísticas, por seu caráter híbrido e pela prioridade em
da aproximação ao afastamento. A obra demanda que público es-
estabelecer a experiência e a amplitude de sentidos.
tabeleça também um comportamento físico, tornando-se, assim
Além das múltiplas leituras possíveis na relação com a obra –
como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se
algumas delas apresentadas em conversas com professores-pes-
estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performá-
quisadores e estudiosos de outras áreas do conhecimento; neste
tico, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao con-
caso, com Nina Caetano e Pedro Cesarino, respectivamente; que
tágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si
ofereceram chaves de aproximação através da investigação dos
mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.
conceitos e procedimentos de construção da obra, assim como
Como afirmou o próprio Evelin em conversa com o público, é
a noção cosmológica colocada em jogo no espetáculo –, parece
como se houvesse uma “coreografia do espectador”, cujo fluxo
despontar, no exercício de metacrítica realizado pelo Coletivo de
de movimentos, assim como o dos performers, também assume
Críticos (*), a ideia de deslocamento, seja da relação passiva com
uma característica, um padrão, um procedimento no desenrolar
o espectador, seja pela contaminação de procedimentos de disci-
do espetáculo. Não se trata mais apenas de colocar em crise a
plinas artísticas distintas, seja, principalmente, pela atitude que
cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espa-
demanda daquele que a assiste, tanto na tentativa de convívio
ço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos
quanto na pura contemplação.
corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação com-
Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os
partilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em
corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que
confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem
andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu esta-
age e de quem é apenas o alvo da recepção. O espectador, sua
do habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-
materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e
130_antro+
de repente fica tudo preto de gente
marcelo evelin
do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do gru-
intervir sobre a dinâmica da experiência com forma de encontrar
po de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.
nela a possibilidade de sua condição. Aproximar-se de De repente
Há uma escolha (ou uma recusa) a ser feita pelo espectador.
fica tudo preto de gente por um único enquadramento possível
Existe uma tomada de decisão do público que preexiste e ultra-
seria limitador para a própria experiência relacional com a obra.
passa o ato de olhar e atribuir sentido ao que se vê. Se o público
No caso desse espetáculo, o público não está meramente pas-
não quer “empretecer”, é preciso agir. E se não quer agir, é pre-
sivo ao procedimento, é ele parte fundamental ao movimento
ciso decidir ficar do lado de fora do ringue. Para esses, que se
de construção dos performers. A obra se estabelece como a cor-
mantêm do lado de fora, caberia apenas a contemplação, a cons-
relação entre o convívio estético do espaço, obra e observador,
trução de um argumento e a necessidade do sentido. Para os que
uma instauração que parte de processos de entropias possíveis ao
estão dentro não existe contemplação, mas a exposição de todos
entendimento de proximidade ao outro. A criação assinada por
que compartilham o ato. De repente tudo fica preto de gente é,
Evelin e pelos performers da Demolition Inc., porém, não nos faz
em sua relação com o espectador, ao mesmo tempo, exposição e
mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam
contemplação, experiência e sentido, pensamento e movimento.
na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é
Assim como o deslocamento da percepção do espectador (so-
dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se
bre si mesmo e sobre a obra), o espetáculo nos levou a refletir,
impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo,
ainda, sobre a noção de campo expandido das artes, em que as
ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos
categorizações não são mais capazes de enquadrar todos os de-
procedimentos escolhidos por ele, mas, principalmente, a nós
sobramentos (éticos-estéticos-técnicos-filosóficos) da obra em
mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos
questão. Retomando a ideia de convivio entre espectador e obra,
é apresentado. Exige, sim, olhar para esses espaços fronteiriços
espectador e espectador, espectador e performers que De repen-
como eles se instauram em suas particularidades, não determinar
te tudo fica preto de gente proporciona, os campos do teatro e da
categorias para eles que de algum modo os limitem.
dança, assim como da performance e da instalação, nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha.
(*) O Coletivo de Críticos é um ajuntamento temporário de críticos, com presença na internet e atuação em rede. Inclui inte-
A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser
grantes dos sites-blogs-revistas eletrônicas Antro Positivo (SP),
vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de
Horizonte da Cena (MG), Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yo-
Rosalind Krauss – é também uma questão para a crítica. Se an-
landa? (PE) e Teatrojornal (SP).
tes, uma categoria se definia por atributos técnicos específicos, hoje, esta se dá menos vertical e mais horizontal, no campo de experiências possíveis. Sendo assim, conceitualmente, temos que
soraya belusi + coletivo de críticos antro+_131
especial antro+ MITsp
anti-prometeu sahika tekand
olhares críticos .críticas oficiais
A
Eu não desejei fogo algum
ntes que o desejo surja, Prometeu o satisfaz. Ele
tava. Mas Şahika Tekand provoca esse desejo inculto pelo fogo.
subverte a lógica da bondade e desloca o sujeito
Como se devesse alterar os vetores dessa imagem prometeica, ao
para a gratidão. E todos nós o saudamos, afinal, sua
oferecer suporte para que o desejo surja antes que o deus o satis-
teimosia é inspiradora e, como visionário, ele en-
faça – e suspeito que resida no desejo a capacidade de interferir
trega a nós o fogo e a bem-aventurança. Dizem de
no mundo! -, e um desconforto com a ideia de herói civilizador co-
Prometeu como o herói civilizador, e ele se afirma
mum a Prometeu. Qualquer ideia de salvação é, por si mesma, um
em seu gesto – é que o fogo iluminou a arte, a cul-
aniquilamento. É preciso alimentar o anti-Prometeu para, enfim,
tura e o pensamento e somos gratos, então. Mas é preciso atentar-se,
superar esse olhar apiedado de quem perversamente me desloca
não existe nenhum virtuosismo em roubar o fogo e entregar à huma-
para a escuridão para, então, dizer-me que é preciso a luz. Há um
nidade. Desconfio dos que assim insistem. Nem existe humanidade, o
tanto de crueldade nessa bondade que escapa aos olhos, mas não
que existem são homens. É preciso discorrer sobre essa lógica de um
ao estômago. Se profanar é devolver o que está consagrado ao uso
deus que entende a entrega do fogo como um ato de amor e duvidar
comum dos homens, como diz Giorgio Agamben, profanar é assu-
desse ato como sacrifício, pois proponho que talvez resida ai uma
mir a vida como jogo. E Anti-Prometeu é, portanto, um exercício
cruel compaixão. E assim começo a dizer da força que me arrebata
de profanação, que nos afasta do domínio do mito e nos aproxima
em Anti-Prometeu, do Studio Oyunculari.
do rito e desse campo de tensões a que se insere o jogo – e aqui
Não seja Anti-Prometeu uma ode ao deus, um retorno a sua tei-
ele é rigoroso e bem orquestrado, em que os homens (atores) es-
mosia primeira, um arauto ao sacrifício, mas uma tomada de cons-
tão a serviço de Prometeu (luz, som e legenda), é ele quem dita
ciência do fogo também como um elemento coercitivo. Satisfazer o
as regras e quem começa e termina qualquer ação. A cena, com
desejo antes que ele surja é também reflexo de uma perversidade
a potência do profano, é de uma intensidade arrebatadora. Ouvi,
colonizadora, de uma cruel compaixão. Prometeu impôs a necessi-
porém, que a muitos a legenda estava ofuscada e ilegível, o que
dade da luz e a concepção de escuridão ao homem. Como tirar isso
torna parte dessa reflexão impraticável, já que o texto na cena é
das costas? O fardo de Prometeu é pesado e inútil e sou obrigado
tensão indispensável para o desenrolar do jogo.
a carregar, começo até a me acostumar, mas os joelhos e a coluna
Anti-Prometeu é, pois, o jogo da profanação, que adensa a capa-
sentem. Posso tirar isso das costas? O pensamento retarda e frag-
cidade de interferir no mundo. Não há enobrecimento nenhum na
menta-se com o corpo oprimido, sou domesticada. O fogo de Prome-
atitude do deus. Não se pode valorar o fogo, pois retira dele sua
teu é uma espécie de obstinação intrusa, uma voz em off que deseja
potência primeira e o destina a uma exibição e posse espetaculares.
a minha reação. Preciso reagir, afinal, Prometeu agiu para mim – ou
Tekand provoca em mim essa desconfiança que atenta para uma
contra mim? Diante do breu, silencio. Diante do fogo, me queimo.
ação abusiva, que desloca as forças da esperança para o desespero
É que o deus o entregou e foi embora, levou as cartilhas, os dizeres
e isso diz um tanto das ações abusivas a que estamos inseridos no
e os quereres. Deixou-nos apenas com o legado: isso é preciso pra
convívio. É preciso suspeitar, inclusive das boas ações.
vocês mortais, afinal é indispensável a nós deuses. Prometeu sempre foi, pra mim, o símbolo da atitude incansável e da longa obstinação em entregar à humanidade o que a ela fal-
ana carolina marinho antro positivo
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
E
m Anti-Prometeu, espetáculo da encenadora Şahika Tekand, da Turquia, os atores se movimentam e falam alternada e simultaneamente, obedecendo a uma gramática regida pelos comandos de som e pela dinâmica do dispositivo cenográfico, uma espécie de tabuleiro de luz. Dividida em três partes, a dramaturgia apresenta diferentes momentos da lida destes jogadores-peões com as demandas impostas por estímulos externos. Em um ritmo vertiginoso, o jogo ganha cada vez mais intensidade, desafiando a prontidão dos corpos na cena e das mentes na plateia. Como em qualquer jogo, as metas e regras fazem parte de um pacto estabelecido entre as partes. O que há de trágico no homem contemporâneo, como apresentado no espetáculo, é a impossibilidade de rever os termos do pacto: a cada jogada, ele faz o que pode. O ritmo da vida urbana atual não abre espaço para o questionamento das regras, muito menos para uma revisão das metas. Uma questão interessante a ser pensada do ponto de vista da poética da cena é que o estatuto do texto também é parte do jogo. Na segunda parte, os atores começam a responder com movimentos combinados a estímulos sonoros específicos. Por exemplo: quando os participantes que ficam na mesa de som ao fundo do palco dizem “um”, o
ator que está em um quadrado iluminado fica de pé; quando o comando é “dois”, ele se vira para a direita; quando é “três”, ele apoia um joelho no chão. São cerca de dez comandos sonoros que fazem cada ator deitar, ajoelhar, levantar e virar freneticamente. (O fato de estes participantes que emitem comandos estarem em um patamar mais elevado evidencia a verticalidade da relação hierárquica.) Quando se acende o quadrado de luz sobre o qual o ator está, ele deve começar a falar, ao mesmo tempo em que obedece à movimentação. Assim a fala é articulada como movimento, como uma tarefa física, não apenas como instrumento para a expressão de um discurso. A verbalização é um esforço a mais no virtuosismo das atuações. No entanto, o conteúdo da fala não é aleatório nem vazio; talvez seja até ilustrativo, na medida em que os atores comentam sua condição. Se não me engano, há em algum momento uma referência a Io (personagem da mitologia grega que enfrentou uma longa jornada de esforços e provações para reaver sua condição humana). Diante desse ponto, faz-se necessário pensar a legenda, um elemento que não faz parte do espetáculo na sua criação original, mas que passa a ser uma questão estética na situação de apresentação em um país de outra língua. A relação com o texto legendado é completa-
mente diferente, porque exige do espectador um movimento que pode ser cansativo a ponto de levar a desistência. Se ele desiste da legenda, o texto passa a ser apenas uma consequência do movimento da fala, formando uma paisagem sonora abstrata – que não deixa de ter a sua graça. A presença da legenda também exclui a possibilidade do espectador acreditar que, em alguma medida, o jogo acontece ao vivo, que os atores estão respondendo a comandos no calor da hora. A fala também poderia parecer fragmentada pelo jogo físico, mas a legenda revela que sua intermitência é prevista e ensaiada. Enfim, a legenda evidencia o fato de que se trata da representação de um jogo, não do acontecimento de um jogo performativo de fato. Do ponto de vista temático, a peça nos lembra o quanto nossa vida cotidiana pode ser parecida com a situação daqueles corpos que apenas respondem a estímulos, agarrados às suas cadeiras-rochas. Como Prometeu, oferecemos nosso fígado aos abutres todos os dias. Mas sem ter feito nada parecido com apresentar o fogo à humanidade.
Daniele Avila Small quentão de crítica
foto marlon fagundes marinho
Sem fígado e sem fogo
anti-prometeu
sahika tekand
especial antro+ MITsp
136_antro+
olhares crĂticos . diĂĄlogo
foto ellen bornkessel
anti-prometeu
Pollyanna Fiquei me questionando o quanto a dificuldade para acompanhar a legenda nos privou de um dos pilares importantes (?) do espetáculo. A certo momento, desistimos daquela negociação com o som das palavras e os seus significados e nos atemos aos estímulos de resposta dos performers. A precisão da montagem e as reações técnicas dos performers nos falam diretamente sobre condicionamento. Porque preciso me colocar dentro deste quadrado? Seguir essa luz? Atender ao comando que é exterior a mim? Sou eu quem dou empoderamento a esses comandos, a essas ordens. De que forma tudo poderia ser diferente? Se não tivéssemos que correr tanto em busca de “nada” e o peso nas costas não fosse tão grande?
sahika tekand
Luciana A mim, o espetáculo gerou uma afetação cinética que pôs meu corpo no ritmo daqueles homens, ocupado de ouvilos, ler a legenda, vê-los, aceleradamente. A experiência de expectação, portanto, não foi atrapalhada pela legenda. Consegui ler muita coisa, e o que lia era o bastante para situar as ações em um universo semântico que lhe abria sentidos. A sequência final da atriz se impõe sobre todo o virtuosismo visto até então e nos obriga a uma releitura, a reconfigurar os limites que se haviam imposto. Fico com uma dúvida, a posteriori, que é: a exigência sobre esses atores é a mesma que há sobre os personagens?
antro+_137
olhares críticos . metacrítica
especial antro+ MITsp
D
Por uma chama intempestiva
epois de assistir à apresentação de Anti-Prometeu, do
com o espectador e a representatividade da peça no seu contexto.
Studio Oyunculari, da Turquia, na 1ª edição da MITsp no dia 12 de março, eu e Ana Carolina Marinho escrevemos
PROMETEU E O TRÁGICO NO TEATRO CONTEMPORÂNEO
textos críticos que, já no dia seguinte, foram impres-
A presença do nome Prometeu no título nos remete de imediato ao
sos e distribuídos nos teatros que abrigavam as peças
mito e ao universo da tragédia grega. Acredito que a economia formal
da mostra, bem como publicados no blog Prática da
do espetáculo possa estimular o espectador a refletir sobre a sua pro-
Crítica, dentro do site da MIT, e na página Coletivo de
posição temática, mais que sobre os seus procedimentos cênicos – algo
Críticos no Facebook, onde nós, críticos reunidos, trocamos impressões
que no meu texto aparece apenas nas últimas linhas, mas que ganha
sobre as peças e sobre as nossas críticas.
protagonismo no texto de Ana Carolina, que se dedica a expor longa-
Esses textos integram uma trama maior de produção de pensamento,
mente seu pensamento sobre o mito. Sua interpretação da dinâmica da
somando-se ao artigo de Clóvis Massa publicado no catálogo do even-
cena coloca Prometeu no lugar do comando, quando diz que “os homens
to, à sua palestra apresentada no Itaú Cultural na manhã da primeira
(atores) estão a serviço de Prometeu (luz, som, legenda), é ele quem
apresentação do espetáculo na programação, e ao debate com Lisette
dita as regras e quem começa e termina qualquer ação”. Questiono se é
Lagnado realizado depois da peça no dia 13 de março. Por conta da
possível comparar o fogo de Prometeu com um comando automatizante,
intensidade da agenda, não consegui estar na palestra nem no debate,
tendo em vista sua potência simbólica de liberdade, criação, desejo e
o que faz com que esta revisão, este exercício de metacrítica, não con-
espiritualidade. A luz fria – quase gélida – que emite os comandos de mo-
siga levar em consideração opiniões importantes como a dos pensadores
vimentação não é como a luz do fogo. Acredito que o Anti-Prometeu do
acima mencionados.
título não esteja no dispositivo, mas na figura humana, que não é como
Por outro lado, a convivência diária com diversos professores e pes-
Prometeu porque não interfere no mundo: sua chama é suficiente ape-
quisadores das artes cênicas ao longo dos nove dias em São Paulo – com
nas para mantê-lo vivo, não tem força de irrupção. As figuras humanas
direito a discussões teóricas no jantar, longas conversas no foyer de um
que aparecem no palco transportando cadeiras empilhadas amarradas
teatro, dentro da van ou no café da manhã do hotel –, bem como a troca
ao tronco também remetem a outra figura mitológica, Atlas, irmão de
de impressões entre o coletivo de críticos reunido para fazer a cobertura
Prometeu, que carrega o mundo sobre os ombros. O Prometeu da peça
crítica da mostra, tudo isso proporcionou um alargamento do meu ponto
encenada por Şahika Tekand é mais homem do que Deus.
de vista sobre o espetáculo. Pude revisitá-lo a cada conversa, a cada comentário e ao reler os textos da Ana Carolina e do Clóvis.
Podemos acrescentar aqui algo que ficou de fora das duas críticas, uma reflexão a partir do primeiro título do espetáculo – que chegou para
Assim, procuro rever algumas questões pontuais que me chamaram a
nós como subtítulo: Como esquecer em 10 passos. A dinâmica de movi-
atenção neste contexto de troca de experiências: a relação com o tema,
mentação dos atores faz com que eles se desloquem por “casas”, etapas
a presença fugidia do texto, o aspecto formal da encenação, a relação
de um jogo de tabuleiro. A cada passo, mais um gesto de obediência,
138_antro+
anti-prometeu
sahika tekand
mais um dever cumprido e mais o homem se afasta do seu possível obje-
PAISAGEM SONORA / ESFORÇO DE LEITURA
tivo inicial. Ele vai se esquecendo de si. Os 10 passos fazem referência a
A presença da legenda acaba por fazer um jogo de espelhamento, pois
um discurso de autoajuda amplamente difundido, que ensina as pessoas
passa a ser uma tarefa, uma demanda de esforço físico para o especta-
a resolverem seus problemas em 10 passos, como se tudo na vida fosse
dor, que pode entrar no jogo de ter que responder a estímulos externos.
muito simples, desde que se siga alguns comandos pré-estabelecidos.
Esse ponto apareceu nas duas críticas, provavelmente porque foi uma
O título da peça sugere que os passos dados pelos atores a cada jogada
questão muito comentada pelo público ao fim da peça. As pessoas se
sejam passos que levam ao esquecimento de si.
perguntavam sobre a relação com a legenda. Como a plateia do teatro
Ter um mito grego como tema também chama atenção para o trágico
não era completamente frontal, muitos espectadores, como os que fica-
na contemporaneidade, assunto sobre o qual o texto de Clóvis discorre
ram nas laterais das primeiras filas, assistiram à peça em um ângulo que
brevemente, apontando para os estudos de Raymond Williams. Assim
praticamente inviabilizava a leitura da legenda. Além disso, a legenda
como o conceito de drama está ampliado para além das normas abstra-
foi projetada em uma tela bem acima da cena, enquanto o maior apelo
tas do drama absoluto como apresentado por Peter Szondi, o conceito
visual do espetáculo está no jogo de luz que se dá no chão do cenário,
de tragédia também não se restringe mais a uma determinada situação
de modo que a leitura da legenda demandava uma movimentação do
de um determinado personagem em uma narrativa que segue pressupos-
eixo do olhar.
tos dados. O trágico pode estar na própria linguagem, em uma relação
No entanto, tentando responder a uma questão colocada pela Pollya-
de verticalidade intrínseca à dramaturgia cênica e às atuações, que a
na Diniz, me parece que abrir mão da legenda também pode ser parte
encenação em questão sugere na condição dos “personagens”, mas que
do jogo. A negação do estímulo pode ser uma jogada do espectador, que
se dissolve na banalidade discursiva.
tem a opção de rever uma das regras propostas naquela partida. Nesse
A crítica de Ana Carolina chama atenção para o texto como elemento
caso, a fala dos atores passa a ser mais uma questão da sonoridade do
de tensão para o jogo, observação com a qual concordo apenas em par-
espetáculo, com a qual se pode estabelecer uma relação mais abstrata,
te, tendo em vista o conteúdo do que é dito. O texto parece reiterativo,
em vez de se apegar à expectativa de que a fala, no teatro, cumpra uma
quase didático. Para refletirmos sobre isso, já que a leitura das legendas
função prioritariamente narrativa ou ilustrativa. O discurso do espetácu-
foi difícil para muitos, podemos sugerir a leitura de trechos do texto
lo pode estar no jogo que se apresenta, na relação entre seus elementos
(em inglês) no site do grupo. O teor da fala nos monólogos, que discorre
formais, mais que no entendimento do texto falado.
sobre o peso dos fardos de cada um, é um tanto banal. Acredito que
Um dado a mais para a relação do público com a fala pode ter sido a
seja neste ponto que o trágico afrouxa, pois as tensões se expressam de
relativa familiaridade com a sonoridade da língua na maior parte dos ou-
maneira horizontal, plana, quase chapada. No texto falado, o problema
tros espetáculos da mostra. Diante de espetáculos do Uruguai, da Itália,
daquelas figuras humanas com a condição trágica da irreversibilidade da
da Espanha e da Argentina, a fala dos turcos do Studio Oyunculari, bem
sua condição se expressa de um modo que se aproxima do dramático.
como a dos lituanos do Hamlet de Oskaras Korsunovas, naturalmente so-
antro+_139
especial antro+ MITsp
olhares críticos . metacrítica
aram mais duras. A propósito, a presença destes dois espetáculos entre os
ATENÇÃO FÍSICA
de países já mencionados, bem como as outras obras da França, África do
Talvez seja possível especular a respeito daquela ideia de performa-
Sul e Brasil, proporcionaram uma amplitude valiosa à curadoria da MIT.
tividade se nos concentrarmos na fisicalidade dos desempenhos. Como apontou Luciana Romagnolli em uma conversa depois da peça e nos co-
ENCENAÇÃO DO PERFORMÁTICO
mentários da página do Coletivo de Críticos, ela percebeu, na sua pró-
A legenda também denuncia o caráter espetacular, de repetição da
pria relação com a peça, uma afetação cinética, algo que pode colocar
encenação, em contraste com uma possível expectativa de performati-
o corpo do espectador no ritmo da movimentação da cena.
vidade, talvez suscitada pela apresentação da sinopse, que diz: “Anti-
Essa observação me interessa porque fala de uma conexão entre atores e
-Prometeu é construído como um jogo performativo, cujas regras de-
espectadores a partir de estados físicos, mais que de articulações intelec-
safiam atores e público.” Na verdade, o único desafio para os atores
tuais ou de uma atenção à narrativa. Em alguns debates na programação
é de resistência, mas é visível que eles estão preparados, que têm um
do Olhares Críticos, especialmente na palestra de André Carreira sobre a
treinamento para cumprir a movimentação ensaiada. O performativo
peça Bem-vindo à casa, do diretor uruguaio Roberto Suárez, veio à tona a
aconteceria de fato se o jogo acontecesse ao vivo, se os comandos não
conversa sobre dramaturgias e registros de atuação trabalhados a partir de
estivessem decorados, se a fala não fosse previamente fragmentada e
estados. Aqui fazemos uma aproximação que é quase por oposição, pois
se a movimentação não fosse coreografada. Este ponto poderia ser dis-
os casos discutidos naquela palestra eram de dramaturgias criadas a partir
cutido mais aprofundadamente, tendo em vista a confusão que se faz
de estados com os atores, em um sentido bem diferente e que me pare-
quando se usa o termo performance (e suas derivações) no teatro. Em
ce muito mais complexo do que o caso de Anti-Prometeu. Nesta peça, a
inglês, performance pode significar coisas muito diferentes que não ne-
movimentação a ser executada vai causando, gradativamente, um estado
cessariamente têm a ver com a performance art. A palavra performance
de prontidão e exaustão nos atores que é constitutivo da cena. A afetação
pode ser traduzida por espetáculo ou por desempenho, por exemplo.
provocada por este estado pode provocar uma sintonia entre espectador e
E, em Anti-Prometeu, há mais espetáculo e desempenho do que perfor-
ator, uma sensação de presença no corpo do espectador.
mance no sentido da performance art. Assim, considero sempre impor-
A questão que pode ser levantada com isso é a natureza da relação
tante nos perguntarmos sobre o que estamos falando quando falamos de
do espetáculo com o público, uma relação que pode ser física – e tal-
performance no teatro, para além do fetiche com algo que se anuncia
vez para isso tenha que ser, de algum modo, incômoda. Mas acredito
como diferente mas que, muitas vezes, opera nas mesmas frequências.
que para esse contágio acontecer, é preciso uma certa proximidade com
Uma outra questão relacionada à dinâmica da encenação é a abor-
a cena (nós estávamos relativamente próximas ao palco). Apesar de a
dagem literal da premissa do jogo de estímulos e respostas. Tive a
peça demandar um palco grande, talvez o espetáculo tenha maior chan-
impressão de que a racionalidade necessária à movimentação esgota
ce de exercer esse efeito sobre o espectador se o público estiver mais
cedo o interesse pela ação. Em poucos minutos, é possível entender
perto. Pergunto se essa afetação cinética da qual Luciana fala, e que em
as regras e logo se vê que os jogadores não vão alterá-las mesmo que
algum momento também percebi, poderia se desencadear à distância.
cheguem à exaustão. A possibilidade de uma quebra destas regras só se dá depois que se completa um ciclo de movimentação em uma du-
NO MUNDO DOS HOMENS
ração regular de um espetáculo.
Os minutos finais da peça trazem o que me parece mais atraente nesse
140_antro+
anti-prometeu
trabalho – e aqui, aqueles que têm a expectativa de assistir Anti-Prometeu em algum outro festival e preferem não conhecer o desenrolar do espetáculo devem interromper a leitura. Não mencionei essa questão na crítica escrita na manhã do dia seguinte para não antecipar a experiência daqueles que ainda assistiriam à peça, mas também porque não haveria tempo nem espaço para colocar a questão claramente. Depois que o jogo aparentemente chegou ao fim e aqueles que emitem os comandos, bem como aqueles que os obedecem já deixaram a cena, uma mulher atravessa o fundo do palco algumas vezes, como se procurasse alguma coisa. Em uma de suas passagens, uma casa do tabuleiro se acende, convidando-a a ocupá-la. Ela o faz e a iluminação do tabuleiro a conduz para o proscênio. Ela nos olha, olha para o fundo da plateia e pergunta se há saída. Ela volta para o fundo do palco, mas sem obedecer ao caminho proposto pelo dispositivo cênico. Este único ato de insubordinação adquire o peso de um gesto inaugural, a sugestão de uma possibilidade de mudança, de reversão daquela situação de repetição aprisionadora. Não é aleatória a escolha de uma mulher para fazer este epílogo. Dos onze trabalhos que integraram a programação da MIT, só dois são capitaneados por mulheres – este e Eu não sou bonita, de Angélica Lidell. Se olharmos para a programação de festivais e mostras de teatro no mundo todo, percebemos que ainda vivemos no mundo dos homens. Isso me faz pensar como é ser mulher na Turquia e como é ser diretora de teatro na Turquia. Na verdade, pouco sei da cultura deste país, mas imagino que as diferenças de gênero tenham um nível de complexidade que não consigo alcançar. Assim, penso que o trabalho apresentado por Şahika Tekand (afora as questões estéticas propostas no seu contexto cultural, além do seu lugar de relevância no cenário internacional do teatro contemporâneo.
Daniele Avila Small + coletivo de críticos
foto marlon fagundes marinho
por Anti-Prometeu ) tenha uma considerável parcela de singularidade
sahika tekand
especial antro+ MITsp
eu não sou bonita angélica liddell
O corpo da mulher não é e não pode ser o seu destino
A
mulher não pode ser colocada na vida para dela
é preciso relembrar do teatro, para não sucumbir ao espanto da
ser tirada e entregue, longe das vistas, ao seu
exposição. Angélica é como a galinha que dança mesmo quando
algoz. A mulher como imagem e conceito histori-
lhe arrancam a cabeça. O corpo precisa romper a membrana da
camente reproduzidos, tem retirada de si o seu
pele, para então, tornar-se tudo. É preciso romper esse contorno
potencial político e a sua qualidade final, passa
inventado a que submetem o corpo da mulher; e o corte da pele,
a representar um objeto abissal, fatal, em que o
como nos aponta Liddell, é o primeiro passo.
seu percurso está marcado pela crueldade e indi-
A presença do cavalo é, tanto como a presença da performer,
ferença. O corpo da mulher não é e não pode ser o seu destino! Eu
força de intensidade que se afasta da necessidade de sentido. Am-
não sou bonita é a exaltação dessa antítese. Para que não retirem
bos existem e espantam os olhos e a coluna. O cavalo, indepen-
da mulher a possibilidade dela ser o que é ou o que gostaria de
dentemente de sua justificativa diante da narrativa, é um bicho e,
ser, não atribuam adjetivos nenhum a ela. Cada adjetivo parece
como bicho, nos diz Jean Baudrillard, está afastado de qualquer
pesar sobre a mulher, como um fardo, uma hiper-realidade e uma
dimensão obscena. “Seria porque o animal nunca é confrontado
obscenidade. Digo por mim. Sempre, ao sair de casa, desejo que
com a cena, com sua imagem? Não estando submetido a essa obri-
hoje não ouça nada de nenhum homem. Os adjetivos são assassinos
gação cênica, ele não saberia ser obsceno. Em compensação, no
simbólicos - nunca somos aquilo, exceto justamente quando nos
homem, essa obrigação é total.” O cavalo, ainda que símbolo ero-
condenam a isso. Em cada adjetivo proferido, somos intimados e
tizável pelo homem, jamais violaria o corpo de uma mulher por
solicitados a responder e reside nisso a crueldade e a ironia. Os
desejos sexuais. E a sua presença em cena, branco, altivo e sere-
adjetivos deixam o sujeito sem recurso. Por isso, a cena não abre
no gera uma intensidade complementar à presença da performer,
espaço para o riso, para a resiliência ou pra alegria, apenas adensa
empoeirada de terra, roupas escuras e frenética. E parecem se
a perversidade dessa sociedade desregrada que transforma o corpo
amar, principalmente porque ambos não esperam absolutamente
de uma criança de 9 anos em objeto fatal.
nada um do outro, apenas que existam ou nem isso. Mas como nos
Angélica Liddell parte da memória para construir a cena e os
aponta Baudrillard, a dialética tem perdido espaço para o êxtase,
estados. Como uma espécie de imposição a si, ela se agride, an-
“parece que as coisas, tendo perdido sua determinação crítica e
tes que outros a façam. E é exatamente ali, quando a performer
dialética, só podem se redobrar em sua forma exacerbada e trans-
corta os joelhos e limpa seu sangue com o pão, que encharcado, é
parente”, o que revela parte das escolhas da cena. Existiria outra
comido, que firmo as mãos na boca, franzo a testa e permaneço
possibilidade para dizer de tamanha dor e aniquilamento, senão
com a coluna desencostada da cadeira. A cena é de um impacto
com tamanha exposição do corpo à própria autoagressão?
arrebatador, que já inicia essa força desde o primeiro movimento cortante (com um caco de vidro ela faz movimentos frenéticos
ana carolina marinho
como se estivesse a cortar o pescoço). Diante do choque do real,
antro positivo
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
M
uito se fala de uma cena contemporânea cujo teor
do trauma que não se quer solucionar, ainda que provoque a encenação
dramatúrgico se confirma autorreferente. Ora
também na caricatura de punição ao gênero. Essa dicotomia se resol-
como o contar biográfico, ora no uso simbólico da
ve pela perspectiva de estar mulher, ou seja, na maneira estereotipada
experiência real, a aproximação entre o vivido e o
pela qual apresenta sua condição feminina, enquanto protege do outro
encenado explicita também a necessidade de tor-
sua própria individualidade. Assim, o corpo se mostra feminino, tal qual
nar espetaculares ocorrido e sentido, produzindo
se espera, como pele nua, enquanto a individualidade é escondida pela
uma espécie de materialidade assertiva, pela qual
pele encenada tornada narrativa autorreferencial.
o artista deixa de ser meramente instrumento para se exibir estrutura de
Nada ali é real, apenas a potência do trauma que se insiste recuperar.
atenção. Ocorre não ser tão simples o uso do próprio, visto o processo
O processo performativo sobre a construção da dor física, a construção
exigir consistência em seu argumento. Então são poucos os trabalhos que,
erótica da dor, a submissão da memória ao erótico, a teatralização da
verdadeiramente, superam a narrativa ilustrativa. É possível dividir em
necessidade da memória, o teatro como artificialidade de uma unidade
duas as disposições: a que confirma o uso do particular como meio de
possível de sentido apenas se colocado em cena o próprio artista como
resolvê-lo, e a que aceita e reaviva sua condição. A diferença fundamental
signo. O percurso em si revela a artimanha necessária para tornar a expo-
está na perspectiva da culpa igualmente autorreferente e daquela transfe-
sição do processo o discurso ao outro. É quando o espectador é revelado
rida ao outro. E ambas, até certo ponto, se confundem demasiadamente
a ele mesmo igualmente autorreferente. Agora é o próprio sujeito quem
com mecanismos terapêuticos sobre o próprio dizer.
assiste e não mais a construção ficcional de um observador anônimo e
Precisa mais, então. Oferecer ao dizer um processo pelo qual refazer a
coletivo. Ao encarar a pele encenada como única tradução plausível,
ação, recuperar o vivido, insistir em sua encenação, revelam a linguagem
aquele que observa, a toca como invasor de sua intimidade, pois acessa
por sua instabilidade, na qual o corpo necessita entregar ao movimento
os meios para assistir o indivíduo e não apenas a mulher. Então divide o
não mais da culpa e sua resposta, mas ao trauma e seu estigma simbólico.
trauma. Torna-o espelhamento de seus próprios, assumindo a culpa da
Dá-se pelo trauma a recuperação sensível de manutenção de uma reali-
necessidade de sua repetição ao desejar o espetacular do outro.
dade a qual não se busca negar. Ao contrário, quer-se conviver em estado
Ao assistir Eu não sou bonita o espectador faz-se responsável pela ma-
pleno, transformando o corpo no mecanismo mais próximo ao pessoal, en-
nutenção da dor da artista. Mas não desista. O encontro é radicalmente
quanto é mobilizado o insuportável a uma longevidade exponencial.
importante aos dois lados. Permita-se o exercício de oferecer sua res-
Angélica Liddell pertence aos artistas que não buscam o perdão nem
ponsabilidade. Pois à artista, o doer reflete mais do que um estado de
para si nem o oferece ao espectador. Aceita sua condição pela presença
internação na memória, mas, pelo não esquecimento, o gerar procedi-
da manutenção da dor particular, colocando-se frágil e solitária, em uma
mentos de reconhecimento de alguém ainda capaz de lidar com o sentir
espécie de inércia irresolvível do viver.
e assim permanecer vivo, mesmo que seja mediante a teatralidade das
Há, evidentemente, o feminino como consequência a seu estado imposto ao existir. Sua condição de mulher sugere a confirmação de seu dis-
reaproximações com os sentidos mais cruéis daquilo que lhe apresentem sua condição humana.
curso. Todavia, Angélica afirma ser radicalmente contra o entendimento ideológico do feminino que, por questões socioculturais, antecipam a
ruy filho
classificação ao reconhecimento da individualidade. Ser mulher é parte
antro positivo
foto francesca paraguai
O indivíduo revelado através da observação dos animais
eu não sou bonita
angélica liddell
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
eu não sou bonita
angélica liddell
Uma mulher (não) é uma mulher
foto lígia jardim
A
performer espanhola Angélica Liddell habita o palco carregada de memórias e simbologias em Eu não sou bonita. O espetáculo foi criado sobre material autobiográfico, a partir do qual ela elabora uma poética da agressão. Desde uma perspectiva íntima compartilhada, a artista cria um espaço extracotidiano de expressão verbal e corporal contra a violência de gênero. Assume uma postura de enfrentamento da construção cultural do ser mulher, que limita a experiência do feminino, denunciando violências simbólicas e físicas castradoras do desejo e da liberdade. A afirmação-título de recusa à beleza surge como negação ao imperativo da submissão ao olhar masculino como legitimador. Angélica coloca o público diante da escuridão do trauma. Em sua poética, o erotismo é um elemento essencialmente gerador de mal-estar, tanto quanto a violência autoinfligida e a direcionada ao homem, discursivamente. É justamente no campo discursivo que Liddell mais abertamente depõe sobre uma condição feminina enfraquecida. A corporeidade é desempoderada seguindo uma concepção binária de mente/corpo, associada ao macho/fêmea, com desprestígio para os segundos termos constituidores dos pares. Os corpos femininos, nesse tecido cultural, carregam distintos tipos de controle – a anulação da presença física; a reificação; a
repressão disciplinadora; e a escravidão ao padrão estético dominante são alguns dos apontados pela pesquisadora Elódia Xavier, em Que Corpo É Esse?. E que corpo é esse que Liddell performa? Ela faz-se presente como um corpo violento, que urra, berra, corta-se, queima-se. Seu corpo é palco da contestação sociocultural. Feito objeto pelo gesto violento do outro, responde como sujeito e objeto de sua própria violência, desfazendo a dicotomia. A presença de um cavalo em cena, mais do que um elemento biográfico e de irrupção do real, traz o contraponto de uma natureza supostamente ingênua e alheia a condicionamentos culturais. Natureza e cultura: outro binômio a explodir. O mal-estar maior gerado pelo espetáculo, contudo, está no aprisionamento do corpo feminino à incessante restauração do trauma vivido. O lugar de onde Liddell fala é o da vitimização masoquista (portadora de uma camada de prazer) e do ódio (que implica um bloqueio da alteridade). Um lugar de impotência. Mas qual outro lugar de empoderamento seria possível? Se no campo discursivo a vitimização e o ódio impõem um limite, na dimensão da produção de presença outras afetações se instalam. Há, sem dúvida, uma potência sensível na presença de Liddell que produz um desenho de forças de intensidades variáveis. Contudo, a intervenção de ativis-
tas pró-animais na sessão de estreia na MITsp interrompeu o fluxo dessas forças. Ainda assim, ao resistir a uma apreensão totalizadora (cuja força continua atuando sobre o espectador tempos depois da fruição, como um cavalo indomado), a experiência do paroxismo da vitimização e do discurso do ódio, em tensão com a materialidade daquele corpo, proporcionada pelo espetáculo, lega ao espectador um saturamento radical do imaginário, que acena para a impossibilidade da manutenção desse status quo. Este é um mal-estar que o espectador pode abafar, restaurando o conforto, ou deixar que lhe tome o corpo de modo que se lance ao enfrentamento da falta de saídas com que a própria Liddell aprisiona seu discurso, para a criação de outros possíveis ao ser feminino. E ao ser masculino. O aprisionamento cultural do ser homem é algo ao qual o discurso de Liddell não alude. Mas, justamente por sua cegueira, apela ao espectador que reaja. O ato performático, por sua característica de restauração do comportamento, serve ao trauma. Mas também é saber privilegiado da explosão das dicotomias. E só na explosão da dicotomia há liberdade.
Luciana Romagnolli horizonte da cena
olhares críticos . diálogo
foto francesca paraguai
especial antro+ MITsp
148_antro+
Daniele Na tentativa de acrescentar algo, de oferecer alguma coisa, posso relembrar um elemento específico da obra que, a meu ver, reverte de modo bastante poderoso qualquer leitura de um discurso de vitimização. Me incomoda, pessoalmente, o termo “vitimização” porque ele dá margem a uma leitura de que a condição da vítima de um abuso sexual é algo que se pode enfatizar ou valorizar, quando a condição de vítima é fato inalienável da situação apresentada. A mulher abusada é vítima e ponto; e não precisa nem disfarçar nem enfatizar a sua condição. É seu fardo e seu direito. Vale lembrar que vivemos em uma sociedade que constantemente questiona a condição de vítima da mulher estuprada ou abusada, acusando-a de provocar o estuprador com sua sensualidade, suas roupas ou simplesmente por estar passando por algum lugar em alguma hora – ou seja, simplesmente por existir. Não digo, com isso, que a crítica da Luciana esteja reafirmando esse discurso, absolutamente. Tenho certeza de que não há essa intenção. Mas esse discurso acaba ecoando no
eu não sou bonita
uso desse termo, acaba sendo falado pelo contexto, e isso me incomoda. No entanto, o elemento da cena que eu gostaria de lembrar é a bruxaria, gesto performático mesmo quando espetacular. Eu precisaria de mais tempo e de mais tranquilidade pra refletir sobre isso e oferecer uma contribuição mais elaborada, mas gostaria de pensar esse elemento como constitutivo e fundador da minha experiência como espectadora. Penso nas “bruxas” torturadas e assassinadas pela Igreja Católica na Inquisição. Penso na imagem da bruxa de histórias infantis como mulher feia e má. Penso no figurino e na caracterização de Angélica Lidell, que a aproxima dessa imagem clichê da bruxa. E penso no poder simbólico da bruxaria, que não ataca diretamente um indivíduo (não o agride fisicamente como um soco ou uma facada), mas que é um gesto declarado do desejo de vingança, mas que lida com a energia em outro plano. Me parece que as manifestações de ódio e as acusações proferidas na cena, como parte das invocações de um gesto de bruxaria, também se dão em um plano
simbólico-performático que não é o plano do mero discurso, nem do exercício terapêutico. Tem uma frase do texto do Ruy que me chama a atenção nesse lugar da bruxaria, e que eu colocaria, apressadamente, como uma bruxaria da linguagem: “Oferecer ao dizer um processo pelo qual refazer a ação, recuperar o vivido, insistir em sua encenação, revelam a linguagem por sua instabilidade, na qual o corpo necessita entregar ao movimento não mais da culpa e sua resposta, mas ao trauma e seu estigma simbólico.” O processo de refazer que se dá na obra de Angélica Lidell é da ordem do simbólico. Assim como a presença do cavalo também é da ordem do simbólico, apesar de todo o seu apelo ao real, ao aqui e a agora e a uma evocação do trauma no seu corpo. A imagem do cavalo se abre em presença, espetáculo, memória, símbolo. E também pode ser um elemento do feitiço. Soraya Após nossas conversas exaustivas na mesa de bar (e a repercussão via comentários no Facebook, matérias em jornal, etc), tenho pouco a dizer sobre o trabalho da Liddell. O que me parece importante ressaltar
aqui, além da postura de “vitimização” que muitas vezes esses trabalhos costumam ser olhados e a Dani ressaltou, é a questão do discurso contra o masculino que a obra da performer espanhola poderia assumir. Na fruição de um espetáculo, somos afetados por muitos (e poucos) detalhes, haja vista a manifestação ocorrida na sessão em que os colegas Ruy e Luciana tiveram que escrever. No meu caso, uma coisa mais corriqueira tenha me feito, o tempo todo, duvidar do discurso que me apresentava ser radical contra o homem. Na chegada ao teatro, no cigarrinho, conheci o rapaz que opera o som do espetáculo, que acompanha a Liddell, e cuja participação é importante na peça. Pensei, ainda antes de entrar no teatro: “é, ela não odeia os homens”. Mas o que isso tem a ver com a obra? Nada. Mas tudo, afinal, como diz o texto do Pensotti, a gente vê o mundo a partir daquilo que a gente viu. Liddell constrói, dramaturgicamente, seu ritual de libertação da condição de mulher, embora, já paradoxalmente, assuma essa “libertação”, o tornarse homem, como impossível. Ao apresentar à plateia seu pênis, o mais bonito entre
angélica liddell
todos do teatro, recorre a uma foto. Não se trata, portanto, do órgão genital em si, este a ela negado e impossível de ser conquistado, mas de sua representação, do simbólico de poder que o impregna. É este lugar que a artista toma para si. Ainda nesta mesma cena, a foto tem ainda um a mulher que masturba o pênis, a qual a artista, também de maneira radical, define como “loira burra, atriz e bailarina, as que melhor sabem chupar...”. Esta visão de feminino é a mesma que a violentou e muitas mulheres da plateia, no dia que eu vi, riram dessa afirmação por acreditarem ser verdadeira. É nos polos, nos extremos, do discurso e dos estados, que Liddell assume a potência da fricção. Ao negar uma visão de mulher que a tornou vítima, não se torna algoz, apenas se coloca em sua pele, em seu lugar de poder, como alguém que, em seu próprio corpo, problematiza essas duas noções extremistas de homem e mulher como propulsoras da dor e da violência.
antro+_149
especial antro+ MITsp
A
olhares críticos . metacrítica
Reflexões da perturbação ngélica Liddell não se identifica como feminista,
zona imprecisa entre real e ficcional e de indistinção entre seu
embora as questões invocadas em sua obra coin-
corpo fenomênico e a figura dramática, de modo que o público
cidam com a pauta do movimento. A distinção
tende a identificar a figura que se apresenta como a própria Lid-
provavelmente está nos modos como a artista
dell – cujo sobrenome de batismo é outro; este emprestou da ver-
espanhola as problematiza. Causa estranhamen-
dadeira Alice (Liddell) que inspirou Lewis Carroll. Tomado como
to, à primeira vista, a postura da performer em
real o ato de abuso, está o público diante de uma vítima real e,
Eu Não Sou Bonita. Isso se deve a um discurso
portanto, o posicionamento que lhe é demandado não se acomoda
margeado por estereótipos do ser-homem e ser-mulher como dois
numa relação palco/plateia ativo/passiva. Ileana Diéguez (2011)
papéis sociais definitivos e associados, respectivamente, ao binômio
observa que “o retorno ao real faz um apelo ao entrecruzamento
agressor-vítima, sem escapatória. Contudo, como se disse na oca-
entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do ar-
sião de Escola, do chileno Guillermo Calderón, é preciso desconfiar
tista”. A do espectador também.
dos discursos que aparentem uma integridade. E o de Liddell, por mais que brade uma radicalidade, não é menos poroso.
A performer-atriz Angélica Liddell ocupa então uma posição liminar, no “entre” do tecido cultural, cujas potencialidades previstas
É preciso desconfiar também da performer e de sua construção
por Turner (1988) comportam a outorgação de poder aos fracos,
cênica autorreferencial. Os elementos (supostamente) reais da nar-
dentro de experiências arriscadas no interstício entre dois mundos.
rativa e da materialidade da cena deixam de sê-lo quando tomados
O corpo de Liddell não é significante, mas produtor de presença e
como componentes de uma poética, ainda que mantenham um apelo
de sentidos, articulados num campo de ações concretas, poéticas e
e uma força de realidade. A fabulação de um abuso sexual não rever-
simbólicas que permitem a reelaboração simbólica do trauma e o
bera com a mesma contundência de um depoimento de abuso que se
empoderamento daquele antes assujeitado.
entenda como real. Um cavalo vivo em cena ultrapassa o simbólico
Liddell opera na zona do desconforto. O mal-estar é uma chave
(sem deixar de sê-lo), é uma força da natureza, domesticada só em
dramatúrgica importante em todos os aspectos da encenação. Ao
parte, posto que não obedece a vontade da performer e sua ação
público, oferece-o, entre outras formas, na narrativa imagética com
comporta o imprevisível – a ameaça do perigo. É com essa sensação
que descreve o desejo sexual por crianças, sugerindo à imaginação
do real e sua capacidade de despertar no espectador uma percepção
daqueles que a ouvem imagens geradoras de intenso mal-estar por
aguçada, urgente, que Liddell joga.
sexualizar o corpo infantil e deslocar o espectador para a posição do
Quando se apresenta como uma mulher indelevelmente marcada por um abuso sexual sofrido na infância, a artista instaura essa
150_antro+
desejante e, portanto, potencial opressor. A artista transita por territórios tabus também na complexa cena
eu não sou bonita
angélica liddell
de insinuação sexual ao cavalo. Esse momento deixa latentes ao
comportamento feminino; e a cruz florida, em referência às mais
menos três leituras contraditórias. Há uma relação de poder exer-
de mil mortes e desaparecimentos (e outros incontáveis casos de
cida por Liddell ao portar um corpo que deseja (justamente o que
estupro) de mulheres em Ciudad Juárez, no México, cenário-símbolo
é impedido às mulheres na construção cultural que ela denuncia).
do ódio à mulher. Liddell se volta contra uma sociedade patriarcal
Uma relação de impotência diante do agressor (a pequenez da ar-
que perpetua a violência de gênero e trata os espectadores como
tista-criança-vítima diante cavalo-soldado-agressor). E uma relação
cúmplices e agressores – culpados.
de mal-estar que invade a sexualidade feminina na nossa cultura. A
A violência autoinfligida pela artista por meio de cortes novamente
impossibilidade de síntese – a coexistência dessas (e outras possí-
faz irromper o real em cena. Ao mesmo tempo, a ação pesa como
veis) leituras concomitantemente – está na base da força maior que
símbolo da imolação praticada contra a mulher historicamente. Há
a obra tem: a de plantar angústias e incômodos que a mantenham
ainda uma possibilidade de leitura psicanalítica (Liddell tem forma-
fermentando na mente e no corpo do espectador dias além.
ção em psicologia) que a remeta à atitude masoquista, pela qual a
A domesticação exercida pela cultura sobre o corpo feminino e
posição de gozo coincide com a posição de submissão na articulação
que o coloca à mercê do desejo doentio de posse e subjugação por
entre erotismo, dor e subjetividade, além de um ato de multiplica-
parte do macho é alvo de críticas diretas no campo discursivo que
ção da dor para exercer controle sobre ela. Liddell se aproxima de
expõem as entranhas do funcionamento sociocultural determinante
uma teatralização do excesso, dando extravasamento à violência e
do universo limitado de possibilidades do masculino e do feminino
exibindo os martírios da carne, para colocar diante do espectador a
em uma sociedade patriarcal e dicotômica.
“evidência espetacular do sofrimento”, como diz Diéguez, oferecen-
Liddell sintetiza essas carapuças da divisão binária das identidades
do-lhe a escuridão do trauma.
de gênero em dois extremos: à mulher cabe somente ser boa ou má
Na forma hiperbolizada de representação do sofrimento por meio
chupadora (a legitimação está no prazer masculino, nunca no femi-
da restauração da violência contra si a cada apresentação de Eu Não
nino); ao homem, ser o mal. Esse discurso extremista se constrói
Sou Bonita e do discurso extremista sobre o binômio homem-mulher,
pelo recurso a símbolos que acenem para realidades mais amplas.
cabendo ao primeiro palavras de ódio, vê-se que Liddell se afasta do
Dois deles: a fotografia de uma mulher de beleza “padrão” pratican-
exercício da alteridade rumo à exacerbação do eu: não lhe interessa
do sexo oral remete às imagens publicitárias e pornográficas e pro-
a voz do “outro” (homem) quando o outro por definição é a mulher.
voca em parte do público feminino risos desencaixados, que entram
Não há dois sujeitos quando um é assujeitado. A artista busca a con-
em fricção com o discurso (e Liddell parece buscar essas arestas),
fusão entre essas categorias de sujeito e objeto, sugerindo a partir
apontando para a manutenção da crueldade machista também no
de si a identificação com toda história da violência de gênero. A
antro+_151
olhares críticos . metacrítica
denúncia do horror imposto à mulher é tensionada até o insuportá-
além dos “acidentes” da apresentação, lançando um olhar sobre
vel à medida que Liddell encena o limite no qual não há saída para
o espetáculo que constitua uma história do teatro, há de se consi-
o homem além do papel de opressor, nem para mulher além do de
derar que é justamente no acidente que o teatro se faz, ou seja,
oprimida. O mecanismo terapêutico não se direciona à artista, mas
não existe na idealização prévia ou posterior do que o espetáculo
ao público, uma vez constituído por Liddell o espelho dessa limita-
deveria ser, mas somente em seu acontecer num tempo-espaço de
ção à qual cabe ao público – não à artista – reagir.
encontro com o espectador.
A caracterização com longos cabelos e vestes pretas, a afirmação
Assistir ao episódio dois de Bem-vindo à Casa num grupo de 15
da feiura e o ódio ao masculino aproximam Liddell ainda da imagem
pessoas das quais a maioria não viu o primeiro episódio transforma
estereotipada da bruxa – aquela ilustrada em livros infantis e per-
o convívio e, consequentemente, a experiência. Assistir ao espetá-
seguida pela Inquisição. Categoria na qual a mulher que não se en-
culo Eu Não Sou Bonita com uma interrupção em seu decurso alte-
caixasse aos padrões culturais vigentes poderia ser aprisionada. “Eu
ra também a experiência, portanto, o espetáculo. Pode-se, quiçá,
não sou bonita” é uma tomada de posição: a escolha não pelo ima-
projetar o que seria o mesmo espetáculo no campo das ideias. Mas
ginário da princesa, destituída de erotismo e de poder, mas pelo da
a percepção se dá no mundo físico. A irrupção do real pela interven-
bruxa, portadora de um poder acima dos domínios dos homens. Essa
ção dos manifestantes pró-animais, que, por minutos, coabitaram
leitura, como observou a crítica Daniele Ávila, permite tomar “as
o palco com Liddell, sendo inicialmente aceitos sem surpresa pela
manifestações de ódio e as acusações proferidas na cena como parte
artista, reforçaram o caráter de realidade do que acontecia sobre o
das invocações de um gesto de bruxaria”, que “também se dão em
palco e a impressão de que era a própria Angélica quem agia, res-
um plano simbólico-performático”. Liddell agencia outros saberes
saltando o corpo fenomênico sobre o corpo representacional. Outro
além dos discursivos e terapêuticos, dominados num contexto cultu-
efeito, provavelmente mais grave do ponto de vista da expectação,
ral logocêntrico e patriarcal. Sua explosão das paredes que limitam
foi a quebra de um desenho de forças seguido pela artista, que afe-
o ser mulher e o ser homem (dois componentes do mesmo binômio,
ta justamente a dimensão não-semiotizável da experiência teatral,
afinal) passa pelo recurso às forças do corpo. Simultaneamente, uma
fundamental em um trabalho como Eu Não Sou Bonita.
presença imanente e uma presença transcendente. Ps. A MITsp trouxe, entre outras reflexões tantas, a experiência redescoberta do teatro como acontecimento. Enquanto o crítico Luiz Fernando Ramos reafirmou a importância de que a crítica veja
152_antro+
Luciana Romagnolli + coletivo de críticos
foto francesca paraguai
especial antro+ MITsp
eu não sou bonita
angélica liddell
especial antro+ MITsp
escola guillermo calder贸n
entre a política e a politcagem do ser
P
arte do indivíduo, a consciência de sua condição ao
entendimento do como se relacionar aos sistemas. Exige ao ho-
social. Sem ela, mesmo a noção de indivíduo torna-se
mem a perspectiva de sua subjetividade como meio dialético pas-
um tanto quanto descabida. Então, é preciso que o
sivo ou ativo, tornando a sociabilização, para além de um processo
homem reconheça a ambiência qual se revela, antes
de inclusão ou não, também um movimento de encontro ao seu
mesmo de compreender-se como consequente a ela.
alter-ego, inconsciente e memória. A esse movimento de refração
O processo circular retorna à origem, e na transfor-
do homem sobre a consciência de sua manifestação frente aos sis-
mação do indivíduo pelo ambiente, surge a individu-
temas, denomino por psicossociabilidade.
alização como meio de sobrevivência. Pode-se dizer ser este um
O processo psicossocial se faz, sobretudo, na perspectiva do re-
dos pontos de surgimento do sujeito, quando o homem passa a
conhecimento da ausência do outro, sendo ele indivíduo, sujeito
ter clareza de sua participação e pertencimento, como causa de
ou do próprio sistema. Algo falta e exige ao homem à exposição
sua sociabilidade e consequência a sua sociabilização. Se ambos,
de sua compreensão, como busca de reagir a negação da presença
indivíduo e sujeito, são essencialmente diferentes, também são,
ausente. O psicossocial ocorre em três etapas. A primeira, através
as manifestações de suas presenças sobre a ambiência. Assim, é
do acolhimento e aceitação incondicional daquilo capaz de suprir
necessário dividirmos igualmente o entorno em sociedade e social.
a ausência, seja ela física, humana ou estrutural. A segunda, pela
O indivíduo retrata o universo social e sua falta de margeamen-
formulação de uma identidade resultante e sua busca por perten-
to claro, porém reconhecível, cujos valores se colocam através
cimento, oferecendo ao homem um sentido mais amplo de sua
dele próprio como exposição do todo. É o indivíduo a face mais
permanência ao acontecimento. A terceira, através da gratificação
eficiente ao entendimento do social. Já o sujeito, aquele que se
e capacitação para usufruir das propriedades sistêmicas, quando o
sujeita a algo, reflete a dimensão da sociedade, como estrutura de
homem se reconhece capaz de lidar e conviver com as ausências,
agregação coletiva das particularidades minimizadas e, portanto,
ou a elas reagir. Este movimento íntimo de construção da ação
submetidas ao contexto que a tudo oferece significado. É a so-
sobre o sistema pode ser denominado também por micropolítica,
ciedade a face mais eficiente ao entendimento do sujeito. Ambas
aquela surgida no pequeno universo da pessoalidade, e que pode
formulam um estado específico de diálogo, e novamente exigem a
ou não chegar ao coletivo.
divisão de sua consequência em duas manifestações. Ao individuo
Em Escola, Guillermo Calderón amplia o íntimo em pleno movi-
/ social cabe a condição de ação sobre a ambiência na forma de
mento de transformação do indivíduo para sujeito. Problematiza
construção de políticas, mecanismos trazidos pela esfera indivi-
a dificuldade em produzir igual efeito da política para a ideologia.
dual ao grupo. Ao sujeito / sociedade cabe a condição de agir na
É nessa incapacidade que muito se revela da ausência psicosso-
forma de ideologias, potencializando o coletivo como camada de
cial de todos nós. É inerente ao homem estabelecer mecanismos
sustentação e contraposição às particularidades. Isso exige outro
de acolhimento, pertencimento e gratificação. Por isso, a política
especial antro+ MITsp
revelada ideológica assume traços caricatos de sua construção. Os
co. Como se o palco só existisse no instante em que o palestrante
atores permeiam o ridículo do desconhecimento, não pela incapa-
o ocupasse, e fora seu palanque, atores, atrizes e espectadores
cidade de compreender a ideologia, mas por suas condições limita-
ocupassem igualmente a mesma condição de ouvinte e aprendiz.
das a indivíduos em busca de ideologias e não mais de políticas. Ao
A diferença está no entendimento do espectador não ser mais a
tempo em que o grupo fortalece seus laços, a condição do sujeito
expressão de um coletivo, mas a individualização do coletivo em
criado comum se confronta com a vontade de constituir políticas
micro possibilidades de acesso à narrativa.
amplas, e não meramente ideológicas. Então se desconfia o tempo
Desta maneira, o espetáculo gera no espectador sua reaproxima-
todo daquilo que é oferecido. Sem que o sentimento seja, ao fim,
ção com sua própria individualidade ao conduzí-lo para seu reco-
a dissolução das vontades de acolhimento, pertencimento e grati-
nhecimento mediante sua aproximação com sua instância política.
ficação. Trazidas ao âmbito do sujeito, fica mais complexo respon-
Fato este fabricado através da banalização da ideologia como arti-
der às três vontades, pois ter como resposta “a sociedade” parece
fício de relação com a história e o ambiente. Essa é a grande ma-
um tanto quanto indizível. O que venha a ser especificamente essa
nobra que faz com que Escola seja essencial tanto aos ideológicos
tal de sociedade? Quem é essa que se defende? Contra quem se
quanto aos politizados. A capacidade em expor ao observador as
coloca, afinal? Na esfera micropolítica do indivíduo, tudo faz sen-
contradições de ambas as escolhas. Enquanto isso, a vida continua
tido, pois não sendo ele mesmo, o restante é a manifestação de
fora do teatro, nas ruas, nas relações, nos gabinetes públicos, nos
sistemas operantes e dominadores ao ser. Contudo, ao surgir como
congressos. Resta saber se aquele dentro da sala do teatro acordou
micropolítica ao sujeito, então as repostas se fazem insuficientes,
para a realidade da ausência de seu acolhimento, da farsa de seu
pelo mero fato de serem impossíveis.
pertencimento e da fictícia gratificação por sua condescendência.
Resta ao homem aceitar e coexistir ao doutrinário. Então o esta-
O teatro politico é sempre muito mais transformador e audacioso
do político do homem se refaz em ideológico, ainda que o indiví-
que qualquer espetáculo ideológico, pois não se encerra em um
duo seja a parte de condução do sujeito pelas mãos. Escola retrata
desejo ou caminho. Ao contrário. Amplia sem oferecer soluções a
o movimento desse andar de um a outro. As crises, incredulidades,
condição patética de nossa servidão aos modelos pré-fabricados.
as banalizações aceitáveis, as incoerências inevitavelmente ignoradas. Apenas deste modo a ideologia pode surgir ao indivíduo. E, apenas assim, o indivíduo pode se aceitar menor a ele mesmo e parte de algo que lhe substitui a identidade. Não bastasse o labirinto criado pela dramaturgia, os atores aprendizes estão frontais àquele que lhes prepara, tanto quanto o públi-
ruy filho antro positivo
escola
guillermo calder贸n
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
Espaços para desconfiar do discurso
A
té o torturador cria para si histórias que o convençam de que faz o bem. Dita quase com essas palavras em Escola, tal frase é indício da perspectiva complexa com a qual o diretor Guillermo Calderón aborda temas políticos em espetáculos como Villa+Discurso, apresentado no Brasil em 2011 e 2012, e este Escola que ora traz à MITsp. É preciso desconfiar dos discursos. Deles escapam contradições, que revelam a concorrência de forças sob a superfície de uma convicção. Em Villa, tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução. Parece ser dessa descrença no consenso que Calderón parte em Escola. Embora se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em formação, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo agora se encontra agora nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente. Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta
armada contra o regime ditatorial nos anos 1980. Aprendem noções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o público é igualmente exposto sofre das limitações comuns à aprendizagem na escola: a veiculação de um discurso quase catequizante, do qual o aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. A escola surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez se deve duvidar. O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo e trabalha com concepções brechtianas livremente recriadas pelo encenador chileno. Os desencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura crítica a partir de sutilezas e subtextos. A defesa de uma forma de organização popular que faça uso da violência para instaurar um novo estado social, por exemplo, esbarra no baixo nível de formação política desses militantes, que pontualmente manifestam ingenuidades e contradições. Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas frente à descrição do funcionamento do revolver e do explosivo. A encenação realista, em espaço diminuto e cenografia econômica, atesta ainda certa ética da representação praticada por Calderón, que se esquiva à espetacularização. Em sua exposição de uma célula de resistência popular, Escola ganha um caráter
de urgência pelo diálogo com o contexto atual da América Latina, no contraponto de um passado ditatorial com as manifestações de descontentamento político do presente. A formação política deficiente, aliás, é um dos inúmeros pontos de aproximação possível do espetáculo com os protestos iniciados em junho passado no Brasil. Outro é o questionamento em relação à ditadura ter cedido a um governo falsamente democrático, que ainda operaria sob princípios autoritários e interesses alheios à população. Calderón dispõe um lugar especial ao espectador: o de um encontro com uma ou mais visões de mundo que não tentem convencê-lo – posto que o convencimento seria um autoritarismo – mas demandem dele o assumir de uma postura. Essa operação se torna mais potente na medida em que a dramaturgia contempla um endereçamento ao futuro, ao pressupor que aquele momento político decisivo para o Chile seria retomado adiante e que a luta popular tem o exemplo de erros e acertos de um passado não muito distante.
Luciana Romagnolli horizonte da cena
escola
guillermo calderón
O poder subversivo da contracultura formal
O
s procedimentos dramatúrgicos e cênicos de Guillermo Calderón em Escola combinam elementos épicos e dramáticos que potencializam uma teatralidade feita de sutilezas e impurezas nas angulações crítica e política em que se anuncia. Seu mote é um achado, e explosivo. Ao circunscrever o treinamento dos integrantes de uma guerrilha em tempos de ditadura militar, o espetáculo dá margem para pensar noções de ideologia e de engajamento à luz dos dias que correm, quando o espaço público retoma vocação para a ágora em que manifestantes se fazem escutar. Mas não se espere por abordagens históricas e socializantes elementares ou militantes, apenas. Elas vêm sob traços estéticos rigorosos nas mãos desse artista chileno nascido em 1971 e notabilizado pela estruturação ética e política de suas montagens. Calderón é persuasivo ao visitar a cultura autóctone, a expressão popular, as ideias da militância de esquerda e o combate às sequelas do estágio atual do capitalismo justamente em tempos de crise de representatividade, refratários às ideologias. Os hinos revolucionários, o cancioneiro de evocação ao povo mapuche, os capuzes dos jovens movidos pela utopia são alguns dos aspectos mediadores da encenação. A obra estabelece uma contracultura
formal às expectativas pragmáticas suscitadas pelo tema. Desdramatiza os mecanismos didáticos, relativiza as tensões e rompe com a ilusão ao mesmo tempo em que dispõe documentos ou dados, às vezes projetando-os literalmente, inscrevendo imagem ou palavra no corpo dos atores. Essas transições são demarcadas pela gestualidade ou pela simbiose de luz e de cenário mínimos que delimitam o tempo e o espaço. A sugestão é de que estamos na década de 1980, sob as ordens do general Pinochet, mas o contexto é perfeitamente móvel em se tratando das realidades geopolíticas, principalmente no continente latino-americano. Apesar da frontalidade do palco, o espectador trabalha com a visão de arena como espaço cênico. Não é incomum algumas dessas figuras postarem-se de costas para o público. Um círculo formado por bancos, cadeiras. Ao fundo, uma lousa. Há sempre um instrutor a conduzir os aprendizes com o discurso das estratégias e táticas de ação. Esse caráter expositivo das aulas é a deixa para que a verve de Calderón aflore. As técnicas de aprendizagem no manuseio de arma ou de um artefato explosivo são rudimentares em que pese os argumentos fundamentados sobre a injustiça do regime de exceção a ser combatido. À missão
conjecturada, a dramaturgia desarma-se da austeridade para desaguar momentos patéticos, um deles em clara referência ao bem-humorado e não menos corrosivo No (2012), filme de Pablo Larraín focado na campanha publicitária do plebiscito nacional que definiu o destino da ditadura no poder. São nessas contradições que enxergamos os revolucionários mascarados como seres falíveis em sua humanidade. Escola sintetiza a capacidade de Calderón na economicidade do que tem a dizer e como o faz. Em sua trajetória recente, o teatro político não comporta a mensagem, antes a centelha do problema. Não abdica do componente ideológico em sua mirada e espera encontrar interlocutor disposto a enfrentar esse material sombrio do passado e do presente a partir das chaves do jogo teatral objetivo. Para tanto, o quinteto de atuadores conjuga o processo artístico ao processo histórico com solidez e consciência vigilantes no tablado, como podem os melhores comediantes confrontados à dimensão trágica da existência.
Valmir Santos teatrojornal
olhares críticos . metacrítica
especial antro+ MITsp
A
A linguagem desilude o discurso
s peças didáticas de Brecht, ou peças de apren-
sobre a injustiça do regime de exceção a ser combatido.
dizagem, ganharam corpo na obra do dramatur-
A presunção de ensinar aprendendo, aprender ensinando é apropriada
go, entre outras razões, pela impossibilidade de
cênica e dramaturgicamente. Retórica e alienação entram em choque
instaurar princípios épicos nas grandes salas de
sob o mesmo manto utópico. Há ingenuidades e contradições. Embora
espetáculos. No final dos anos 20 do século pas-
se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em forma-
sado, a proximidade com o espectador passou a
ção, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo agora se
ser imprescindível para estimular a consciência de
encontra nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente.
coletividade no indivíduo. Sob a régua do marxismo, ação e estranha-
Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas.
mento engendravam os objetivos políticos junto a pequenos grupos de
O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo diante
comunidade, permitindo aos integrantes aferir convicções ideológicas
das concepções brechtianas que adota e as recria livremente. Os de-
com vistas a praticá-las com incisão.
sencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura
O preâmbulo vem a propósito do exercício de aproximação do espe-
crítica a partir de sutilezas e subtextos.
táculo chileno Escala (Escuela, 2013), que teve primeira exibição no
A encenação realista, o espaço diminuto e a cenografia econômica
Brasil dentro da MITsp. A partir de uma situação viva na memória de
atestam ainda certa ética da representação praticada por Calderón,
nações submetidas a ditaduras – o treinamento de adeptos da guerrilha
um artista esquivo à espetacularização. Suas obras anteriores apre-
para derrubar regime autoritário –, o diretor e autor Guillermo Calde-
sentadas no circuito brasileiro de festivais ratificam as coerências
rón como que atualiza as técnicas brechtianas à luz de procedimentos
formais e temáticas.
criativos elaborados quase um século depois sob os mesmos desígnios do
Em Neva (2006), uma revolução ocupa as ruas de Moscou, em 1905,
pensamento crítico rente às realidades sociais e políticas. A sofisticação
enquanto três atores, entre eles Olga Knipper, viúva de Tchekhov, en-
de linguagem para acessá-las é que são elas.
saiam e se questionam se vale a pena levar sua arte adiante enquanto
Estamos na década de 1980, sugere a trama, sob as ordens do general
o mundo está em ebulição lá fora. Em Clase (2007), um professor tenta
Pinochet. Personagens com os rostos ocultos por capuzes aprendem no-
ensinar o conceito de tragédia à única aluna presente e ela está ansiosa
ções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o pú-
para dissertar sobre Buda enquanto o restante da sala participa de uma
blico é igualmente exposto reflete as limitações comuns à aprendizagem
manifestação pública por melhorias no sistema educacional.
escolar: a veiculação de um discurso quase catequizante e do qual o
Em Diciembre (2008), duas irmãs recebem o irmão que volta de uma
aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. O aparelho subversivo
guerra, no norte do país, em que o Chile enfrenta tropas do Peru e da
surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez
Bolívia. É noite de réveillon, mas inescapável discutir política, compro-
se deve duvidar. Assim como da natureza dos discursos.
misso e nacionalismo já que o rapaz retornará ao front no dia seguinte.
O caráter expositivo é a deixa para que a verve estética de Calderón aflore. As instruções para o manuseio de arma ou de um artefato explosivo são rudimentares, em que pesem os argumentos fundamentados
160_antro+
Em paralelo, chegam notícias de que os índios mapuche, ao sul, triunfaram no intento separatista e vão criar um estado próprio. No espetáculo Villa+Discurso (2011), os paradoxos revelam a con-
escola
corrência de forças sob a superfície de uma convicção. Tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução. Dissonâncias presentes ainda na outra parte da obra dedicada ao simulacro da despedida da presidente Michelle Bachelet ao final da primeira gestão. O texto de Calderón promove uma ficção da mea-culpa de quem frustrou parte do eleitorado com a marca de um governo neoliberal comandado pela filha de um militar executado durante a ditadura. Por fim, chegamos a Escola, trabalho que sintetiza a trajetória e a capacidade desse criador na economicidade do que tem a dizer e como o faz. A tônica política que salta aos olhos jamais esmorece a teatralidade. Calderón é persuasivo ao conjugar a cultura autóctone, a expressão popular, as ideias da militância de esquerda e o combate às sequelas do estágio atual do capitalismo justamente em tempos de crise de representatividade. A mística dos hinos de mobilização, o cancioneiro de evocação ao povo mapuche e os capuzes dos jovens movidos por idealismo constituem alguns dos aspectos mediadores da encenação. Apesar da frontalidade – disposição de palco dominante nesta primeira edição da MITsp –, o espectador trabalha com a visão da semiarena como espaço cênico. As aulas são sempre conformadas desse modo, às mente sobre processos históricos requer solidez. Os atores não perdem uma nesse jogo de falar e demonstrar em tempo e espaço exíguos.
Valmir Santos + coletivo de críticos
foto valentino saldivar
vezes com os personagens de costas para o público. Dissertar artistica-
guillermo calderón
especial antro+ MITsp
g贸lgota picnic rodrigo garcia
N
Insisto, é preciso não se levar a sério ão me levem tão a sério. Sugiro que enquanto vo-
está muito interessado no outro, afinal. Isso gera um atrito explo-
cês lerem essa reflexão, se é que tem alguém do
sivo: retira a mácula da história ou o peso do devaneio filosófico,
outro lado, vocês tirem catota do nariz e se pre-
sem deixar a intensidade da forma de lado. Eles cantam “Afasta de
ocupem, efetivamente, em onde colocarão o bolo
mim esse cale-se, pai” e dançam freneticamente enquanto bebem
de meleca que está entre os dedos. Por mais que eu
e riem. Foi a primeira vez em que ouvi a música sem a solenidade
tente propor um aprofundamento reflexivo, tam-
da lembrança dos dias de tortura e censura. Não que ela tenha sido
bém estou eu, entre palavras, passando o fio dental
ignorada, mas foi exatamente a ausência dessa solenidade que fez
e deixando-os apoiados em minha barriga enquanto estou desenco-
a lembrança ficar mais forte. E eles sabem bem disso. Mas diante da
rajada a jogá-los fora. E são muitos, porque tenho um certo apresso
Gólgota ou se compadece com sua própria situação ou brinda, entre
em gastá-los. Bom, também é preciso assumir o desinteresse em
risos, a fé no submundo, no suicídio e na superficialidade. Afinal, a
ler isso. E a inutilidade em escrever, para então, quem sabe, gerar
tragédia está na compaixão, na intensidade, no positivismo e na fé.
qualquer contato e desconforto naquele que lê. Dito isso, tentarei
A Gólgota é um caminho sem volta e uma espécie de abismo reverso.
dizer sobre o incômodo que Gólgota Picnic causou em mim. Saí um
É preciso não se levar tanto a sério. Eis então, que a visão aquieta e
tanto atormentada comigo mesmo. O espetáculo é ensurdecedor aos
os ouvidos são convidados a saborear as notas e melodias de um pia-
olhos. Sim, pisco algumas vezes para garantir que aquelas imagens
no. E eis o meu tormento comigo mesma, estou impaciente diante
estão ali e desconfio. Os ouvidos estão cegos. Eles não conseguem
de tamanha serenidade, delicadeza e erudição. O corpo estranhou e
acompanhar o impacto da visão. O espetáculo esgarça o procedi-
gostou do grotesco. A música parece operar na contramão do que se
mento performativo, a ponto de romper a lógica do sentido e deslo-
desenrolou até agora no espetáculo e eu e tantos outros na plateia
car o espectador para a força da imagem em detrimento do apogeu
não conseguem se aquietar. Parece que agora sou eu quem não se
do discurso. Enquanto um ator fala e estabelece um raciocínio cruel
interessa. E volto pra casa profundamente inquieta.
e bem argumentado sobre a tirania de Jesus, por exemplo, o outro ator brinca com sua imagem, põem-lhe máscara de monstro e outras
ana carolina marinho
tantas sacanices. Não se pode levar tão a sério, insisto. Ninguém
antro positivo antro+_163
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
As sete primeiras palavras pós-calvário de Gólgota
I
ntrodução. É de tirar o fôlego, embrulhar o estômago, aflorar os nossos instintos de manifestante em tempos de passeatas midiáticas, quando juntamos tudo no mesmo bolo – gritamos contra a corrupção, pedimos por melhorias nos transportes e aproveitamos para falar de saúde, educação, sem nos esquecer de emitir opiniões pelo Facebook e postar a foto com filtro no Instagram. Enquanto um protesto fechava o trânsito na Avenida Paulista e ativistas subiam ao palco por conta do cavalo utilizado na performance Eu não sou bonita, de Angélica Liddell, a companhia La Carnicería Teatro apresentava Gólgota Picnic no Sesc Vila Mariana, dentro da programação da MITsp. Público caído. O lugar de espectador contemplativo é desestabilizado. Seja pelo cheiro dos 25 mil pães de hambúrguer que compõem a instalação cênica, pelas minhocas colocadas no sanduíche, pela tinta azul e vermelha aplicada como veneno nos corpos dos atores. Mas esse espaço não chega a ser deslocado. Mesmo com uma obra que desperta tanta polêmica, a opção de atingir só até determinado limite estabelece uma falsa ilusão de segurança, de barreiras não rompidas. Por que, afinal de contas, quem somos nós, os espectadores? Que lugar ocupamos no rosário de críticas desfiadas à sociedade de consumo? Sobre McDonald’s e cadeiras de piquenique. Se todo teatro é eminentemente
político, o trabalho de Rodrigo García não se estabelece, mas transita pelos limiares do panfletário, da construção calcada em clichês e superficialidades. Mas, ao mesmo tempo, numa linguagem virulenta, o acúmulo de signos constrói a potência do discurso cênico que se rebela contra o estabelecido da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: o que queremos é participar do piquenique e satisfazer os nossos próprios desejos. Toma que o calvário é teu. As diversas referências às artes plásticas, Rubens, Giotto ou Antonello da Messina, nos fazem compor os nossos próprios quadros sacros e profanos a partir da fruição da performance dos atores, do texto, das imagens projetadas no palco, da música. A desconstrução do símbolo de Jesus é a nossa própria demolição como sociedade que deu errado. O calvário de Jesus agora é compartilhado com o público. O pão espetacularizado. É da sociedade de espetáculo, termo criado e problematizado por Guy Debord, que fala sobre relações sociais mediadas por imagens, da produção e do consumo de mercadorias, que a encenação de Rodrigo García, argentino radicado na Espanha desde o fim da década de 1980, se alimenta para criar desdobramentos que transbordem o palco. O pão, alimento sím-
bolo do corpo de Jesus para os cristãos, é dessacralizado, perde o seu valor e mostra a fragilidade do próprio corpo. O corpo coberto por tintas e significados. As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real, mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo. A calmaria da redenção? Uma última e rápida consideração sobre Gólgota Picnic diz respeito à mudança de estado no palco e na plateia que é proposta pela música de Joseph Haydn. Depois de tantos estímulos, da rapidez midiática, a música nos consola no primeiro momento. Refúgio pós-trauma do calvário performático da companhia espanhola. Mas, depois, é como se o tempo de respiro fosse longo demais para um público que voltará ao Gólgota assim que cruzar a porta do teatro.
Pollyanna Diniz Satisfeita, Yolanda?
gólgota picnic
rodrigo garcia
Pão e tinta
G
ólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico. Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da pro-
paganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista. A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo. Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo
alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte. A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.
Daniele Avila Small quentão de crítica
especial antro+ MITsp
olhares críticos . metacrítica
O
Atravessando o território do Gólgota
lugar do calvário virou cenário para piqueni-
utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.
que. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo
Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mos-
não estava sozinho na crucificação proposta
tra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem
pelo diretor argentino Rodrigo Garcia e sua
personagens definidos. São todos participantes de um encontro na gra-
companhia La Carnicería em Gólgota Pic-
ma de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não
nic, apresentada durante a primeira edição
têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de
da MITsp. Mesmo com todo distanciamento
maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do
proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali
embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras
enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; em-
ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na
botada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.
maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes
O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é
de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.
submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir
Rodrigo Garcia constrói uma instalação. As artes visuais estão en-
leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de pala-
tranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo
vras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto
real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela;
desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira
os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos
ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente,
atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus
consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, tal-
próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo
vez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos
que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem
são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram
a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e
o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.
são banhadas com inseticidas.
Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo Garcia
O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consa-
transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em cli-
gração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa
chês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo
sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola
que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido
o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáfo-
e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar
ras podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos,
de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali
que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está
participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos
exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a ence-
166_antro+
gólgota picnic
nação de Rodrigo Garcia nos permite formatar. As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo Garcia não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva. Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito. Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos
Pollyanna Diniz + coletivo de críticos
foto davir ruano
sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.
rodrigo garcia
especial antro+ MITsp
ubu e a comiss達o da verdade william kentridge
E
é impossível aceitar o grotesco
m um dado momento, pergunto-me por que deveria es-
que se apresenta em corpo é menos humano do que o apresentado
tar ouvindo a história de uma mãe que é obrigada a atear
inanimado. E não há nisso, tentativa alguma de se validar por esco-
fogo no próprio filho. A resposta é a própria fuga em for-
lhas ou sustentá-las por meio da ridicularização do poder.
ma de pergunta. Porque é preciso. E apenas isso. É preci-
Se o cinismo sustenta a crítica, não está na caricatura a condição
so saber que isto ocorreu. É preciso ouvir a fala da mãe.
crítica. Isso seria limitá-la ao formalismo da imagem. A crítica se dá
É preciso imaginar-se em quaisquer dos lados. Deixar-se
pelo inverso, então. Ocorre na empatia ao sofrimento, ao desespe-
incendiar e morrer; acender o fósforo; ordenar. E mesmo
ro, ao medo. Cínica, por conseguinte, por nos lembrar de termos,
pelo teatro, sabendo e reconhecendo o depoimento travestido pelo
até então, optado por deixar os fatos alheios às nossas escolhas mais
boneco talhado, ainda assim, o contato com o acontecido faz-se dolo-
mundanas. A culpa não explode a pertinência de um perdão ao ou-
rido. Então vem outro, e mais outro e mais e mais... Acumulam-se ao
tro. Fatos são assim nomeados exatamente por sua irredutibilidade.
ponto de transformar a dor e terror. Enquanto o patético se oferece
É preciso aceitar o convívio ao que não se quer. É preciso conviver
alento, na figura de um Pai Ubu grotesco e ridículo.
ao que não se aceita. É preciso aceitar o ridículo das escolhas que
Foi Safatle que atentou a todos, ao final, sobre o ridículo ser a
tomamos como meios de fortalecer nossas estruturas de poder.
válvula de acomodação. É preciso para nos possibilitar o convívio
Safatle apresenta uma visão de certo modo conformista ao se co-
com as atrocidades do Apartheid na África do Sul. Mas, pelo mesmo
locar derrotado. E isso, o próprio espetáculo já dá conta de trazer,
Safatle, encontro o risco de buscar compreender o inimaginável. Em
ao vermos Pai e Mãe Ubu avançando sobre o oceano, usufruindo de
um dos seus livros, coloca como essência à crítica contemporânea o
suas liberdades. É preciso aceitar a condição do horror e conviver
cinismo. A crítica em si não é meramente a análise artística e cultu-
com ela, não explicá-la ou artificializá-la. E só uma maneira de con-
ral, mas o estado crítico sobre as coisas. Tudo aquilo que se escolhe,
quistar esse convívio, permitindo-se sentir. O pensamento é tam-
necessariamente exige o distanciamento daquilo que não coube. A
bém uma maneira sórdida de estabelecer escolhas. As explicações
aceitação dessa relação é a potência cínica necessária para convi-
são conveniências de apaziguamento das emoções. E Kentridge nos
vermos com as decisões. Contudo, quando se trata da Comissão da
oferece exatamente o oposto a isso. O viver, ainda que lúdica e es-
Verdade, representada no espetáculo pela exposição dos depoimen-
teticamente, como o mais cruel imaginário infantil, o mais terrível
tos dos negros sul-africanos, o que estava de fora não era uma cor
do outro e de nós. Não é possível encontrar caminhos de superação
ou raça, era parte do que se pode identificar como humanidade. E
e compreensão ao monstruoso. O risco é não identificarmos que a
como ser cínico a isso? Como superar o absurdo da desumanização
condenação é também uma maneira segura de estabelecermos um
do outro assumindo o viés ridículo de seu dominador?
fim ao fato, seu entendimento, seu limite. Quando se trata do Apar-
As escolhas do artista visual William Kentridge, também diretor
theid, tudo é simplesmente inimaginável. E Jarry, criador de Ubu,
do espetáculo, e sua capacidade de enveredar por diversos meios e
parece ter escrito a peça na porta de entrada das Comissões da
linguagens, não são cômodas. Problematizam a condição de susten-
Verdade. Quando a beleza é o que lhe causa dor, então é impossível
tar as atrocidades. Ao tempo em que coloca o poder e seus donos
ignorar a destruição do humano.
como caricaturas de uma humanidade que perde aspectos humanos, os bonecos substitutos dos personagens reais ampliam a poética de uma humanidade até então impedida de existir. Deste modo, aquele
ruy filho antro positivo
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
Meios expressivos para o poético e o grotesco do humano
É
sabido que cada forma implica um sistema de relações com o mundo, portanto, é também fundadora de sentidos. Assim, quando uma problemática como a da reelaboração artística de um passado político traumático assume formalizações muito distintas como em dois espetáculos presentes nesta Mostra Internacional de Teatro, as perspectivas do olhar apontam para abordagens éticas e efeitos distintos – sob certos aspectos, complementares. Enquanto Guillermo Calderón assumiu uma representação de teor realista para a ditadura chilena em Escola, recontada sob o ponto de vista dos militantes da resistência popular armada, o sul-africano William Kentridge, diretor da Handspring Puppet Company, faz caminho inverso em Ubu e a Comissão da Verdade. O processo de denúncia dos crimes contra a humanidade cometidos pelos artífices do apartheid e de busca por uma reconciliação com os carrascos é resgatado por recurso a uma teatralidade exacerbada e fortemente satírica, na qual o protagonismo recai sobre a figura do torturador. Além das diferenças evidentes entre os dois espetáculos, também no interior de uma só obra a concomitância de meios expressivos coloca em tensão diferenciações que resvalam no campo da ética e hão de ser percebidas pelo espectador como desdobramentos possíveis na produção de sentidos do espe-
170_antro+
táculo. O contraste se dá entre a construção caricatural de Ubu, o torturador, e sua esposa, ambos feitos por atores que investem em corpos estilizados de modo farsesco, que os desnaturaliza; e a representação das vítimas da violência racial como bonecos manipulados, ressaltando a força poética e lúdica desse meio expressivo. A coexistência de personagens-atores e personagens-bonecos produz então um efeito de distanciamento maior em relação às vitimas, fundamental para a perspectiva que a encenação adotará: a Kentridge interessa jogar luzes sobre os atos dos agentes da violência. Iluminar suas distorções. Não opera uma identificação empática com a vítima mais do que uma necessária rejeição à atitude do agressor – capaz, espera-se, de impedir que a desumanidade se repita. Criador do personagem Ubu, o francês Alfred Jarry (1873-1907) dizia que ele “representava todo o grotesco existente no mundo”. Dessa figura parte a dramaturga Jane Taylor para escrever o texto do espetáculo sul-africano, no qual o grotesco emerge como forma de expor a falta de sentido inerente às motivações e aos atos do torturador. Como observou o filósofo Vladimir Safatle em fala após a primeira apresentação, a forma farsesca serve à ridicularização das ações de tirania ao desconstruir pelo humor qualquer seriedade ou racionalidade possível.
Kentridge então recorre ao cômico e ao lúdico em uma encenação plena de recursos expressivos artesanais, entre os quais estão os títeres “humanos” e uma sorte de formas animais, com os quais reforça aspectos irracionais da trama. Utiliza também vídeos – suporte para a poesia de desenhos alegóricos, friccionada por trechos documentais de brutalidades cometidas durante o apartheid. Novamente, a coexistência das linguagens poética e documental no meio audiovisual evita que se instale o sensacionalismo de imagens violentas, em favor da imaginação – uma operação libertadora para o humano. Tanto quanto Escola, também Ubu e a Comissão da Verdade gera reflexões diretas em relação à realidade política brasileira nestes 50 anos do Golpe Militar. Embora a Comissão da Verdade esteja vigente, historicamente não houve punição aos torturadores – e nada indica que haverá. Diante das criações chilena e sul-africana, reacende também o questionamento à produção artística do país, pouco problematizadora do destino dos agentes da ditadura e de suas consequências sobre a sociedade.
Luciana Romagnolli horizonte da cena
ubu e a comissão da verdade
william kentridge
As artes e o todo
U
bu e a Comissão da Verdade é exemplo do que se convencionou chamar arte “multimídia”. Aqui, saberes e linguagens são amalgamados com a intenção de conceber uma obra híbrida. Expediente que se relaciona intrinsecamente à trajetória de seu diretor, o sul-africano William Kentridge. Em 2013, o público de São Paulo teve a chance de aproximar-se do peculiar processo criativo desse artista de múltiplas competências. Realizada na Pinacoteca do Estado, uma exposição reuniu parcela considerável de seus filmes, animações, desenhos, esculturas e gravuras. A despeito do reconhecimento internacional que conquistou como artista visual, Kentridge não pode ser descrito como um neófito nas artes cênicas. O título apresentado na MITsp é parte de um percurso ligado ao teatro – como ilustrador de cartazes de espetáculo, ator e encenador. Outra informação interessante à apreciação da montagem é sua formação prévia como cientista político. Ubu e a Comissão da Verdade toma elementos de Ubu Rei (a peça máxima de Alfred Jarry), mesclando-os às audiências da comissão que investigou os abusos e crimes cometidos durante o regime do apartheid. Nessa sobreposição, dá-se um oportuno encontro entre ficção e realidade.
O protagonista grotesco de Jarry impregna o imaginário ocidental justamente como personificação da inveja, da maldade arbitrária e do abuso de poder. Outro achado da produção foi captar o caráter teatral dessas comissões que percorreram a África do Sul entre 1996 e 1998. Em depoimento, Kentridge expôs sua curiosidade por essa espécie de “teatro público” realizado nessas audiências: com testemunhas que sucediam no “palco”, sempre diante de uma plateia, relatando a violência que sofreram. Assinada por Jane Taylor, a dramaturgia consegue sustentar a potência satírica da base ficcional de onde partiu. Ressignifica a imagem de Ubu, mantendo suas características originais de bufão bruto, mas sendo capaz de dar-lhe críveis contornos de um agente de violência do Estado. Neste espetáculo da Handspring Puppet Company, o uso de bonecos e filmes de animação também pode ser entendido como procedimento dramatúrgico. Deixa evidente, sem que seja necessário recorrer a comentários textuais, o processo de desumanização dos envolvidos na sangrenta saga de perseguição a negros que vigorou no país entre as décadas de 1960 e 1990. Intencionalmente sujos e mal-acabados, os desenhos de Kentridge corroboram a proposta.
Em momento algum, a trama propõe o enfrentamento direto entre o algoz Ubu e suas vítimas. Não existe drama. Os indivíduos são convocados a falar como ecos de um contexto que os ultrapassa. Não interessa personificar suas mazelas, mas entendê-las como fruto de um contexto histórico e de uma determinada prática social. O resultado de uma obra de arte não é a soma exata dos recursos empreendidos em sua criação. Seria injusto ler os filmes animados de Kentridge como supérfluos ou mal-realizados. Sua potência, contudo, soa diminuída se comparada a obras de igual natureza do artista. Referenciados anteriormente, os méritos da peça também não a redimem da ausência de ambição em problematizar o complexo material político que tem nas mãos. Engenho e beleza, neste caso, podem não ser capazes de apagar uma vaga sensação de insignificância.
Maria Eugênia de Menezes Teatrojornal antro+_171
especial antro+ MITsp
olhares crĂticos . diĂĄlogo
foto frederico pedrotti
ubu e a comissão da verdade
Soraya A Maria Eugênia ressalta no texto dela o processo de “desumanização” dos envolvidos nos massacres da África do Sul, proposto por William Kentridge ao “representa-los” através de bonecos, desenhos e outros elementos artísticos. Além disso, ela ressalta ainda uma faceta de “teatro público” que integraria as comissões da verdade daquele país, criando uma espécie de espectador-aluno-testemunha. A partir dessa observação, e da comparação já realizada pela Luciana com “Escola”, acredito que Guillermo Calderón propõe justamente uma espécie de “humanização” do arquétipo do rebelde, e, por isso, assume posições formais distintas da de Kentridge. Em “Escola”, o que vemos é apenas um lado do discurso, o dos sandinistas, cuja dramaturgia de Calderón faz ressaltar, aos olhos do espectador-aluno-testemunha, suas instabilidades, suas idiossincrasias, suas incoerências. Para isso, a materialidade realista da cena, sem recursos da ordem do “espetacular”, parece ser necessária para fazer saltar a palavra, a portadora da contradição e da identidade daqueles personagens de rosto coberto. É a linguagem que os entrega, que denota seu despreparo, que levanta suas inconsistências”. Já em “Ubu e a Comissão da Verdade”, a contradição reside
na multiplicidade de vozes e na materialidade farsesca, artificial e performativa da cena. Os discursos textuais dos personagens não carrega contradição, são pontos de vista, exacerbados, de cada lado envolvido na tentativa - frustrada como mostra Kentridge, assim como a revolução mostrada por Calderón - de estabelecer a conciliação: os depoimentos das vítimas, que falam em dialeto sulafricano; os intérpretes, aqueles que habitavam ambos os mundos de torturados e torturadores, ao falar as duas línguas; os ‘cães de guarda”, os que sujavam suas mãos nos massacres; e pai e mãe ubu, representantes do poder que necessita se perpetuar. A contradição não está justamente, a meu ver, no que dizem, assim como está em “Escola”, mas nas imagens que entram em fricção com esse primeiro discurso, espécies de visões que entregam as incoerências, e os crimes, que a linguagem falada insiste em negar. Se em “Escola”, o espectador é também aluno, e por isso mesmo precisa desconfiar do que lhe dizem, como bem ressaltou a Luciana, em “Ubu e a Comissão da Verdade” ele é a testemunha que precisa equilibrar o que entra o que trai os ouvidos e o que entra por suas retinas.
william kentridge
parecem corromper o estatuto da manipulação desses bonecos de feições animais fossilizadas como a natureza humana que provê genocídios. A evidenciação dos atores “com” e “ao lado” dessas figuras, mandando a neutralidade para escanteio, desregula a ordem das coisas num enredo que projeta os testemunhos de uma memória coletiva. A matutice de Ubu, os desenhos malajambrados, são embaralhados ao estado de direito esboçado discretamente na narrativa ou apoiado em documento de época. O teor político é conotado. E são pertinentes as pontes que Luciana e Soraya estabelecem com ‘Escola’. Lá a manipulação é in natura. A dramaturgia é um constante construir e desmontar de certezas, de gestos, digressões, dogmas, sonhos. O estilo de dinamitar de Calderón é sóbrio, sofisticado, um arquiteto da desconstrução das ideias e das atitudes com as quais os personagens nos enredam em ziguezague. Não é para tomar partido, é para constatar. Quem sabe instaurar consciência, poderiam dizer o chileno e o sul-africano em suas línguas díspares, sem dirigismo artístico, se é que isso existe.
Valmir A manipulação é um dado capcioso no trabalho de Kentridge e da Handspring Puppet. Eles
antro+_173
olhares críticos . metacrítica
especial antro+ MITsp
U
As artes e o todo
bu e a Comissão da Verdade é exemplo do que se
cie de “teatro público” realizado nessas audiências: com testemunhas
convencionou chamar espetáculo “multimídia”.
que tomavam o “palco”, sempre diante de uma plateia, relatando os
Aqui, saberes e linguagens foram amalgamados
crimes que sofreram.
com a intenção de conceber uma obra híbrida.
Assinada por Jane Taylor, a dramaturgia do espetáculo consegue sus-
Expediente caro à contemporaneidade, que preza
tentar a potência satírica da base ficcional de onde partiu. Ressignifi-
intersecções e confluências entre artes, mas que
ca a imagem de Ubu, mantendo suas características originais de bufão
também que se relaciona intrinsecamente à traje-
bruto, mas sendo capaz de dar-lhe também críveis contornos de um
tória de seu diretor, o sul-africano William Kentridge.
agente de violência do Estado.
Em 2013, o público de São Paulo teve a chance de se aproximar
Neste espetáculo da Handspring Puppet Company, o uso de bone-
do peculiar processo criativo desse artista de múltiplas compe-
cos e filmes de animação também pode ser entendido como procedi-
tências. Realizada na Pinacoteca do Estado, a exposição Fortuna
mento dramatúrgico. No campo das artes plásticas, diversos críticos
reuniu parcela considerável de seus filmes, animações, desenhos,
ressaltam a presença de traços altamente narrativos nas construções
esculturas e gravuras. Entre eles, alguns dos desenhos que inte-
pictóricas de Kentridge. Essa observação nos serve aqui. Seus dese-
gram a montagem vista na MITsp.
nhos, intencionalmente sujos e mal-acabados, surgem para nos contar
A despeito do reconhecimento internacional que conquistou como
uma história. Além disso, o diretor consegue criar uma cena eficiente
artista visual, Kentridge não pode ser descrito como um neófito nas
o bastante para evidenciar, sem que seja necessário recorrer a co-
artes cênicas. Ubu é parte de um percurso ligado ao teatro. Ele co-
mentários textuais, o processo de desumanização dos envolvidos na
meçou ilustrando cartazes de espetáculos – inclusive de uma versão
sangrenta saga de perseguição a negros que vigorou no país entre as
de Ubu Rei. Passou, posteriormente, à posição de ator e encenador.
décadas de 1960 e 1990. A razão não é o sentido que guia essa gama
De teatro e de ópera. Outra informação interessante à apreciação da
de personagens: alguns deles são animais dotados com recursos hu-
peça a ser analisada é sua formação prévia como cientista político.
manos, outros são homens retratados como marionetes inanimadas.
Ubu e a Comissão da Verdade toma elementos de Ubu Rei (a obra
Em momento algum, a trama propõe o enfrentamento direto en-
máxima de Alfred Jarry), mesclando-os às audiências da comissão que
tre o algoz Ubu e suas vítimas. Não existe drama. Os indivíduos são
investigou os abusos e crimes cometidos durante o regime do apar-
convocados a falar como ecos de um contexto que os ultrapassa. Não
theid na África do Sul. Nessa sobreposição de referências, dá-se um
interessa personificar suas mazelas, mas entendê-las como fruto de
oportuno encontro entre ficção e realidade.
um contexto histórico e de uma determinada prática social.
O protagonista grotesco de Jarry impregna o imaginário ocidental
O humor é o expediente usado pela companhia nessa intenção de
justamente como personificação da inveja, da maldade arbitrária e
“desdramatizar” a situação apresentada. A farsa é, por definição, o
do abuso de poder. Outro achado da produção foi captar o caráter
gênero que preza pelo exagero. Não à toa, ressaltam-se os traços tra-
teatral dessas comissões que percorreram a África do Sul entre 1996 e
paceiros de pai Ubu, o caráter histriônico da mãe Ubu. A vilania vem
1998. Em depoimento, Kentridge expôs sua curiosidade por essa espé-
exposta em figuras propositadamente caricatas, sem nuances que po-
174_antro+
ubu e a comissão da verdade
deriam nos incitar a buscar razões psicológicas para atitudes ou comportamentos. O fundamento documental que motivou a criação é, de tal maneira, recoberto por essa ‘ultra ficção’, que tende ao absurdo. Adentramos gradativamente em um território no qual nossas regras, ‘humanas’, não valem. Nada ali faz sentido. Mas antigas imagens de protestos contra o apartheid são convocadas por Kentridge para não nos deixar esquecer que tamanho despropósito realmente aconteceu. E não faz muito tempo. O resultado de uma obra de arte nunca é a soma exata dos recursos empreendidos em sua criação. Seria injusto ler os filmes animados de Kentridge como supérfluos ou mal-realizados. Sua potência, contudo, soa diminuída se comparada a obras de igual natureza do artista. Referenciados anteriormente, os méritos da peça também não a redimem da ausência de ambição em problematizar o complexo material político que tem nas mãos. Nem por meio dos diálogos nem por meio daquilo que põe em cena. Por maior que seja o engenho desse jogo entre realidade e ficção, o que dizem essas personagens e, especialmente, o lugar de onde dizem, não sofrem alterações durante o espetáculo. E não se está a mencionar alteração como uma cobrança pelo motor usual das narrativas, com conflitos ou curvas dramáticas. Entendidos os mecanismos de desumanização e o apego à artificialidade como forma de esfumaçar o que é verdade histórica, o espectador pode usufruir de uma obra engenhosa, inteligente no uso que faz do cômico, sagaz em suas pontuações sobre a mecânica do mal. tão cheio de nuances e contradições.
Maria Eugênia de Menezes + coletivo de críticos
foto frederico pedrotti
Talvez, porém, um pouco acanhada no olhar que lança a um episódio
william kentridge
especial antro+ MITsp
hamlet oskaras korsunovas
F
ou como o homem se reinventa
alar sobre Hamlet é dialogar com séculos de discur-
O homem moderno surgido em Hamlet não é mais o mesmo, isso
sos. O texto, possivelmente um dos mais montados na
é certo. Cabe a esse novo homem atribuir a si menos a revelação
história do teatro, assume tantas possibilidades de lei-
de sua unidade e mais a condição de sua presença. O contemporâ-
turas quantos se é possível criar. E ainda sobram es-
neo traçou outras camadas ao sujeito, e nem mesmo a ideia de su-
paços para outras mais. Então o que dizer? Hamlet é
jeito se coloca mais suficiente. Quem é Hamlet implica no desco-
a essência de um homem que se confirmará moderno
brimento de quem é esse novo homem. A identidade não é mais a
ao Ocidente. Abre espaço ao existencialismo filosófi-
forma de reconhecimento do sujeito, mas sim o meio de expressão
co que perdurará direta e indiretamente pelos depois, desde sua
que se molda às circunstâncias. Portanto, quem é Hamlet se não
estrutura no iluminismo até os dias atuais. O homem centrado à
aquele permeável aos fatos, porém por dentro dos movimentos, ao
ação, tal qual o ponto de observação da perspectiva renascentista,
contrário do renascentista que lhe exigia a expiação distanciada? O
passa, então, a exercer o controle sobre seu reconhecimento. Ago-
Hamlet de Oskaras busca a integração entre culpa, responsabilida-
ra, Hamlet, esse homem outro, assume a fala como verbo próprio
de, desejo e vingança como matéria única, determinando parado-
enquanto desafia retoricamente o sentido de destino. Então, dizer
xos e contradições como exigência de um novo tempo.
algo sobre Hamlet exige o exercício do impossível. E, ainda que somente por isso, pelo impossível, tudo vale a pena ser tentado.
Quem é você, perguntam os artistas, enquanto o teatro se coloca disponível em forma de bastidor ou pré-espetáculo. O palco assume
Na outra ponta desse personagem está a construção de todo o
o experimentar respostas e não apenas apresentar a narrativa. A
novo teatro que surgirá. Tempos depois, a tragédia se revelará o
peça passa a ser apenas a história que servirá de base à escavação
drama da pessoalidade específica do sujeito, o palco se construirá
da questão. Não é o crânio de Yorick que salta às mãos, mas a di-
sob outros artifícios, e a cena entregue dialogará também com outra
mensão morta de um teatro classificado ao tempo que precisa fugir
qualidade de espectador. Resta-lhe, por sobrevivência, a condição
do túmulo, invólucro de forma e poses de sua submissão.
histórica de ser um autor clássico. E o popularesco deixa de existir
Deste modo, o espetáculo não pode corresponder ao sentido de
frente à sua elitização. Hamlet e o teatro não serão nunca mais os
realização. É preciso deixar visível tudo aquilo que se escondido
mesmos, porque não os são também os homens. O mundo é outro, e
tornaria o movimento cena. Enquanto o desenvolvimento foge do
como previsto no próprio movimento de construir aos atores saltim-
tradicionalismo óbvio, o teatro surge exatamente pela dimensão in-
bancos a narrativa a ser apresentada ao rei-tio por Hamlet, o teatro
ventiva de uma narrativa própria de agora. Mudam-se falas, trocam-
necessita dobrar-se e gerar na própria curvatura sua nova condição.
-se textos, inverte-se o roteiro, pois o tempo exige a realocação
Quem é você?, repetem os atores, enquanto fixam os olhos so-
das emoções tanto quanto dos signos. Apresentar Hamlet em sua
bre seus reflexos e também aos público. Podemos invadir a di-
linearidade original seria realoca-lo no passado. E o novo Hamlet,
mensão psicanalítica com imensa envergadura tanto no quem, no
esse outro homem, olha para frente, nunca para trás.
ser e naquilo que determina ou compreende o você. Todavia, in-
Quem é você, gritam os atores, enquanto as palavras se acumu-
quieta a pergunta na mesma potência da vontade que leva Oska-
lam sem respostas. É a retórica da pergunta o encontro mais direto
ras a escolher montar a peça. É como se, ambientando a cena
ao outro, ao espectador, o importante. Se respondida, a questão
na entranhas de um camarim, também pergunta-se ao próprio
se diluirá à inutilidade. Todavia, a repetição incessante, em coral
texto, ou ainda, ao próprio teatro.
desregulado, por onde não se pode reconhecer as vozes originais,
especial antro+ MITsp
apenas o acúmulo de intenções, essa repetição conduz ao aspecto mais sombrio do contemporâneo, seu absoluto desconhecimento. Agora não se esconde ao homem o futuro, como em séculos passados, por onde o homem de seu tempo caminharia ao desconhecido com a clareza de uma procura evidente. Agora, o presente é desconhecido e impossibilita, ou invalida ao menos, todo e qualquer exercício de futurologia. Pois não há futuro a ser desvendado ou construído. Apenas o estado presente em sua esquizofrenia crônica e sem solução. Sem a percepção ou reconhecimento do presente, o homem passa a acreditar ser o agora já a manifestação do futuro, o que lhe tira a responsabilidade de agir e reagir. Hamlet, portanto, se encontra na ação plena dessa contradição, inversamente ao personagem no passado, quando o agir era o movimento da busca pelo futuro. Não se quer mais o futuro. Tampouco este se faz necessário. O presente acoberta as escolhas como a cortina que esconde Polônio ou os ratos. Só que os bichos não são mais a metáfora de uma possibilidade de podridão ao homem e seus desejos de poder. Os ratos passaram a ser as faces concretas do poder em presença junto a nós. Nada se esconde, pois nada mais pode ser mudado. Ao menos, não enquanto o homem não recuperar seu desejo pelo amanhã. Quem é você?, escutam os atores, enquanto eles mesmos se perguntam por seus reflexos. Impossível saber. Sem o conhecimento de quem é o homem atual, como atribuir sobre ele uma camada de recriação? São apenas atores, portanto. Não de um espetáculo ou por ofício. São atores no sentido mais ordinário do termo, aquele que oferece o corpo ao reconhecimento do ato. É preciso ser outro para se chegar ao mais próximo da possibilidade de si mesmo. Atuar como artifício de encontrar a essência daquilo que, ao se revelar, poderá ser reconhecido como próprio. Hamlet renasce a cada novo momento do homem e seus contextos. E, para haver sentido, é preciso construí-lo descontruções vamente se fez imprescindível.
ruy filho antro positivo
foto lígia jardim
fundamentais. Oskaras não se afugentou ao desafio. E Hamlet no-
hamlet
oskaras korsunovas
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
Tragédia da imaginação
H
amlet, da companhia lituana OKT, principia com uma pergunta: “Quem é você?”, variação do encenador Oskaras Koršunovas para a frase da peça de William Shakespeare “Who’s there?”. O questionamento é feito pelos nove atores da trupe que, de costas para a plateia, se miram no espelho. Vão do sussurro ao grito, num crescendo. O público também está refletido. O cenário é um camarim com bancadas móveis que se transfigura no reino da Dinamarca. O sistema de espelhos compõe ângulos reveladores, como o do pai de Hamlet fantasma (Dainius Gavenonis) que se olha e vê Claudius (que ele matou) dentro de si, numa alusão ao fratricídio Caim e Abel. O diretor não inventa Elsinore no palco. Desvia do espaço vazio e compõe um local onde são sobrepostas as máscaras (ou maquiagem) como tradução do presente. Nesse metateatro, Elsinore é criado na imaginação do espectador. Hamlet traça esse enfrentamento com os meios teatrais a partir de sua consciência. Nesse jogo, busca se apossar da
consciência do rei, o fantasma, o Old Hamlet, para fazer justiça e do tio Claudio para executar sua vingança. Mas como manter-se humano neste mundo desumano de Elsinore? Essa pergunta ecoa nos jogos de palavras e nas redes de intrigas. Hamlet de Koršunovas é uma tragédia da imaginação. Isso é reforçado pela expressão Mind’s eye utilizada por Hamlet, quando diz que parece que está vendo seu pai e acrescenta: “com os olhos da alma, Horácio” (in my mind’s eye, Horatio). O protagonista opera uma memória visual ou imaginação. O encenador seduz o público para a “ratoeira” da imaginação de Hamlet, imprimindo camadas ou apagando fronteiras do teatro, o espaço da ação, atores e papéis. A música de Antanas Jasenka tem um desempenho fundamental. Há algo de podre no Reino da Dinamarca e um enorme rato branco que mostra a cabeça e pousa a cauda nas mesas de maquiagem. O roedor volta a aparecer em vários momentos da montagem. O mundo é um teatro em que se finge e mente e essa en-
cenação de Koršunovas não chega a iluminar possíveis lugares ainda obscuros de Hamlet. Mas traz em si acertos de conta com o passado e muitas dúvidas com relação ao futuro. Tem as referências da cultura pop e as potentes interpretações dos atores. E chama para um debate sobre camadas de representação em fogo brando. O famoso “Ser ou não ser” é dito duas vezes pelo ator Darius Meškauskas. Na primeira vez ele joga e mente como “ser” melancólico. Na segunda vez, furioso, diante do “não ser”. Oskaras Koršunovas insiste com seus conjuntos de imagens sobre o tema do artifício que a realidade não existe mais. Apenas fragmentos dela estão espalhados e refletidos em vários espelhos.
Ivana Moura satisfeita, yolanda?
hamlet
oskaras korsunovas
Casa de espelhos
D
ramas e tragédias contemporâneos têm atravessado a programação da MITsp. As problemáticas de nosso tempo contaminam as obras. A tal ponto que, mesmo ao lidar com textos que acreditávamos suspensos na história – atemporais -, os criadores são capazes de reposicioná-los, contaminando-os de presente e abrindo a possibilidade de insuspeitas leituras. Nas mãos do lituano Oskaras Koršunovas, Hamlet permanece a repercutir a angústia do príncipe da Dinamarca, dividido entre os deveres de herdeiro real e as vontades do indivíduo. Mas adquire também os contornos de uma crise que ainda não soubemos nomear, um mal-estar difuso que vemos tomar as ruas e acorrer aos consultórios médicos em busca de alívio. A recusa em lidar com o imponderável embasa o comportamento do homem que se sabe só no mundo. Apartado dos deuses, ele tem apenas a si mesmo como alicerce. A lógica da mercadoria, que incita a ‘minimizar’ riscos e buscar ‘investimentos’ seguros, espraiou-se para a prática do sujeito. Mecanismos da publicidade e da propaganda guiam condutas: precisamos nos diferenciar dos ‘concorrentes’, estar constantemente expostos nas vitrines. Na montagem da OKT – Oskaras Koršunovas Theater – a ficção de Shakespeare torna-se
também o relato da quebra da passividade. Hamlet é aquele que ousa contradizer. Em seu infortúnio, não renega o medo. Abraça-o. Veste-se dos próprios terrores e parte para o enfrentamento. O que aparta o personagem-título daqueles que o cercam é sua desconfiança. Ofélia quer crer no amor que ele diz devotar-lhe. Gertrudes prefere a ignorância a ter o coração partido em dois. Laertes precisa seguir convicto de que sua família foi aniquilada por um sanguinário e cruel Hamlet e não pela própria imprudência. Nenhum deles levanta suspeitas. Todos permanecem imobilizados em sua fé cega. O encenador revela essas contradições sem recorrer a transposições temporais ou preocupar-se com efeitos de realismo. Na sua montagem, tudo soa artificial. O teatro não é um retrato da vida. Será antes sua imagem invertida, deformada, aumentada. Na cenografia proposta, o espectador é remetido imediatamente ao ambiente das coxias. Como se observasse atores na intimidade de seus camarins. Belas soluções cênicas resultam dessa opção. Em sua predileção pela artesania (e a consequente recusa aos recursos tecnológicos), a peça nos faz compactuar com verdades que não existem fora de seus limites: só ali, um ator vestido de rato é capaz de evocar o ambiente pútrido da política, uma
caveira pode ser tanto o cadáver de Yorick, o bobo da corte, quanto a taça de onde a rainha sorverá o veneno mortal. Antes de o conhecido enredo começar, os intérpretes miram-se detidamente no espelho e questionam em voz cada vez mais alta: ‘quem é você?’. Nos últimos cem anos, as teorias de Sigmund Freud iluminaram a hesitação de Hamlet. Talvez, porém, as teorias de Lacan nos tragam ferramentas mais consistentes para mirar Shakespeare a partir da perspectiva do século 21. A descrição lacaniana da fase do espelho – que ocorre entre os seis e os 18 meses de vida do bebê – pode soar oportuna. Quando assume uma imagem, o sujeito se transforma. É nesse reflexo que aprenderá a distinguir-se como indivíduo. Mas não só. A miragem de si próprio é ainda a chave para enxergar o outro. Entendê-lo como diferente. Reconhecê-lo como semelhante. Em seu jogo de espelhamentos, Koršunovas dá um mesmo rosto ao rei e a seu algoz. Banha no mesmo sangue, Hamlet e Claudio.
Maria Eugênia de Menezes Teatrojornal
olhares críticos . metacrítica
“O
Quero a desconfiança de Hamlet
mundo está fora dos eixos. Oh!
eles permanecem em suas certezas. Ophelia é inundada pela crença
Maldita sorte! Por que nasci para
do amor do príncipe. Gertrude prefere a ignorância a ter o coração
colocá-lo em ordem?”, lamenta o
partido em dois. Laertes cria a imagem do Hamlet vilão, aquele ser
príncipe da Dinamarca. Hamlet, do
sanguinário e cruel que aniquilou sua família, e não puxa nenhuma
lituano Oskaras Koršunovas, rever-
responsabilidade para si mesmo pelos acontecimentos.
bera a angústia do personagem, fra-
Koršunovas criou a cenografia de Hamlet em parceria com a figurinista
turado entre os deveres de herdeiro
Agne Kuzmickaitė. E a encenação está repleta de soluções poéticas. Uma
real e as aspirações do indivíduo, projetada contra o mundo contempo-
delas é quando o espectro do pai de Hamlet (ator Dainius Gavenonis)
râneo. O protagonista de Koršunovas desequilibra as certezas (ilusórias)
se mira no espelho e enxerga Claudius dentro de si. Um enorme rato
desse nosso tempo habitado por visões totalitaristas do consumo de
branco, que mostra a cabeça e pousa a cauda nas mesas de maquiagem,
toda espécie: de pensamento, artefatos, religião.
pode remeter à podridão da política onde houver ser humano e, portan-
Elsinore (um reino manchado de sangue) pode estar em qualquer lugar,
to, luta por poder. O roedor volta a aparecer em vários momentos com
e desta vez ocupa o espaço onde são realizadas as transfigurações dos
a desmontagem do próprio ator, que tira e coloca a cabeça/máscara do
atores. Nesse ambiente instala-se uma cascata de simulações, com os
roedor branco. Uma caveira pode ser tanto o cadáver de Yorick, o bobo
atores prontos, “concentrados” em seus personagens, mas ainda aguar-
da corte, quanto a taça de onde a rainha sorverá o veneno mortal. O
dando o terceiro toque para iniciar a sessão.
amor é também uma armadilha. Se há um beijo verdadeiro entre Ham-
A montagem da OKT – Oskaras Koršunovas Theater principia com nove
let e Ophelia, outros elementos aguardam para desmascarar o príncipe.
atores de costas para o público. Os espelhos de uma bancada (de cama-
Quando ele descobre a cilada, o afeto é transformado em violência con-
rim) revelam parte de seus rostos e também parcela da plateia. “Quem
tra o objeto de desejo. Seu coração não suporta mais essa falsidade.
é você?”, é a tradução para a frase de William Shakespeare “Who’s
Além das ótimas atuações do elenco: Darius Meškauskas(Hamlet),
there?”, dita pelos atores do sussurro à explosão do grito. O espelho é
Nele Savičenko (Gertrude), Rasa Samuolytė (Ophelia), Vaidotas Mar-
o elemento por excelência. O que devolve a imagem não real. Nessa
tinaitis (Polônio), Julius Žalakevičius (Horatio), Tomas Žaibus (Rosen-
potência óptica, são clamadas as grandes questões da existência. O en-
crantz), Giedrius Savickas (Guildenstern), além dos outros intérpre-
cenador lituano reposiciona essas problemáticas, contaminando-as de
tes, a encenação conta com uma música potente de Antanas Jasenka,
presente. Entre simulações de loucura, reflexões filosóficas e explosões
que funciona como descargas de alta tensão.
de sentimentos, Hamlet desconfia. De tudo. De todos. De si mesmo.
O famoso “Ser ou não ser” é dito duas vezes por Hamlet. A primeira vez
Está só no universo e, para prosseguir suas investigações, ele precisa
em estado melancólico e salienta “ser”, e pela segunda vez – furioso com
renunciar ao amor e encarar sua tragédia.
o triunfo do “não ser”. Horatio, na função de fingidor de bobo da corte,
Vivemos em um mundo em constante ameaça, parece insistir o diretor. Ele impregna sua montagem da ideia de experiência humana exclu-
com seu nariz vermelho de palhaço brilhando, fecha os olhos de Hamlet e sorri sarcasticamente após dizer: “O resto é silêncio”.
siva saturada pela natureza do teatro. Se a realidade não existe mais, o que captamos são fragmentos refletidos em espelhos. A posição de Hamlet em relação aos outros personagens é que
182_antro+
Ivana Moura + coletivo de críticos
foto lígia jardim
especial antro+ MITsp
hamlet
oskaras korsunovas
antro+_183
especial antro+ MITsp
cineastas mariano pensotti
olhares críticos .críticas oficiais
Até que se viva algo especial, não se poderá viver nada
O
que é, diante do real, esse trabalho inter-
terceira, intraduzível e arrebatadora. Não há a possibilidade de recons-
mediário da imaginação? Diz Robert Bres-
truir a experiência sem deformá-la, por isso, a cena escapa do domínio
son. Para um cineasta inquieto com o seu
do real ou da ficção. Não se trata do que aconteceu ou do que poderia
tempo e com o seu fazer, suponho que seja
acontecer, mas do que está acontecendo. Assim como na tela de cine-
o cotidiano o suporte de seus devaneios e a
ma, o espetáculo é a sobreposição de dois frames justapostos, como
imaginação a engrenagem para a realidade.
se fossem duas vidas paralelas acontecendo simultaneamente, mas ser
Mas encontra-se ai a potência e o revés da
conseguirmos identificá-las. Cada instante de realidade são também 24
criação. Parto dessa suspeita para propor uma reflexão a partir de
quadros por segundo? Percorro o desenrolar da cena com as instruções
Cineastas da Companhia Marea. Sendo a criação esse território da
de Bresson no pensamento, “o importante não é o que eles me mostram,
instabilidade e do desassossego, o criador busca ordenar as formas
mas o que eles escondem de mim e, sobretudo, o que eles não suspeitam
para delas subtrair instantes de arrebatamento. E cada instante desse
que está dentro deles” e me parece que a encenação aposta nisso e que
capturado é enquadrado, o que retira dele uma possibilidade outra
a legenda é o suporte para tal operação. O espetáculo consegue, através
de existir, na medida em que se exclui do plano um universo para,
da simultaneidade das cenas, esgarçar os contornos e propor novas rela-
quem sabe, libertar o plano dele mesmo; deslocado de sua realidade,
ções, é que não há como ter o casamento da imagem pré-fabricada com
do instante não permanece quase nada. Reside também nessa insta-
a imagem imediata sem que haja a destruição das duas.
bilidade a ânsia por encontrar na vida o impulso criador, a inspiração
Farei uma nota. A legenda, e essa é uma sensação que tem me per-
poética, o acontecimento trágico ou qualquer outra intensidade a que
seguido nessa Mostra, tem sido a grande força de imposição do discur-
atribuímos a banalidade. “Até que se viva algo especial, não se po-
so. Ela antecipa o pensamento e retira do espectador a ilusão de que
derá viver nada” diz um dos personagens. É uma espécie de apetite
as coisas estão acontecendo pela primeira vez ali, de que o próximo
que destempera o olhar. Faminto pelo estímulo criativo, o criador
segundo é desconhecido por mim espectadora e por eles atuadores.
olha ao redor esperando que dele possa se servir. Quando não obriga
Nesse espetáculo, diferentemente, isso torna-se linguagem, a medida
a realidade a ofertar alguma coisa sequer! E se nada satisfizer a gula,
em que a legenda se personifica e é o suporte para que as duas ima-
me juntarei ao criador para mal dizer a vida e o cotidiano. E juntos
gens se colidam. Numa espécie de tela projetada a cena se desenrola
permaneceremos distantes da experiência e da criação, enquanto
em duas projeções com a presença da legenda entre elas. E, assim,
desejarmos destemperadamente apoderar daquilo que queremos e
passa a não interessar de qual projeção a legenda pertence, mas sim
tomar posse daquilo que deveríamos estar absortos. Se se cria por
o atrito que gera a legenda pertencer às duas simultaneamente. Che-
insatisfação ao que se tem, seria a criação ressonância do fracasso?
go até a duvidar se a peça existe sem ela.
Em Cineastas, revela-se que a insatisfação reside tanto na imagem pré-fabricada - a película - quanto na imagem imediata - a realidade. Ambas querem servir-se uma da outra para, quem sabe, gerar uma dimensão
ana carolina marinho antro positivo
especial antro+ MITsp
olhares críticos .críticas oficiais
Cinematografia da realidade teatral sual. As ações são apresentadas em planos distintos. A cena, aliás, propõe o mesmo recorte imagético do cinema nos enquadramentos bem definidos. Tudo está restrito ao que cabe naquele retângulo e, com isso, a questão: quais são os recortes que fazemos da realidade priorizando este ou aquele viés? Nas duas telas, as narrativas exibidas se influenciam e são postas em fricção o tempo inteiro – até que ponto “realidade” e ficção podem se misturar e relacionar? De que forma esses conceitos podem ser intercambiáveis? Um dos cineastas, por exemplo, decide mudar o roteiro do filme depois que descobre uma doença terminal. Outra é afetada porque está filmando um roteiro em que um desaparecido surge anos depois desestabilizando a família; e ela enxerga ali a própria história, já que o pai dela também sumiu. A dramaturgia está apoiada ainda nas contradições desveladas no cotidiano, entre os papéis assumidos diariamente nas diferentes situações e o que realmente somos ou gostaríamos de ser. Um dos diretores trabalha no McDonald´s, mas se dedica a rodar um filme em que teoricamente destruiria a imagem da multinacional. Cineastas solicita o tempo inteiro que o espectador esteja acompanhando as sequências e os cortes propostos pelo diretor, retomando a narrativa de onde ela foi interrompida, como as diversas tramas em que
nós mesmos, plateia, estamos envolvidos. A história de Pensotti normalmente tem um narrador, onisciente, que assume a condução da trama quando dispõe do microfone, e aí nos revela o que se passa, mesmo que os outros dois atores, por exemplo, estejam conversando. Não interessa o que dizem; aquele narrador já é capaz de traduzir não só o que está acontecendo “de fato”, como de nos contar em tom confessional o que os personagens estão pensando, os dilemas enfrentados, como se sentem. Logo depois o diálogo entre os dois pode ser retomado e virar novamente o foco principal da cena. As possibilidades de espelhamento e construção de interferências entre realidade e ficção representadas dentro da peça nos inquietam também acerca do quanto nos resignamos diante das condições dadas pela efetividade do cotidiano. E, ao mesmo tempo, nessa perspectiva, do quanto podemos ser afetados e influenciados pela arte e, especificamente, pela experiência partilhada do teatro. Como se, sendo ou não capazes de lidar com a realidade ou suas reconstruções do dia a dia, o teatro sempre fosse um refúgio possível.
Pollyanna Diniz satisfeita, yolanda?
foto bea borgers
A
certa altura do espetáculo Cineastas, a declaração de um dos personagens saltou aos ouvidos: “o cinema é o ser humano fazendo o tempo parar”. Enquanto no cinema o instante se deixa capturar e reproduzir pelo aparato tecnológico, no teatro há mais coerência em dizer que ele é experimentado em conjunto. Por isso mesmo, a característica da efemeridade mostra-se, como sabemos, uma das mais intrínsecas à atividade teatral. Atores e espectadores estão em busca de uma vivência compartilhada, da fruição de pulsões e desejos, que não se dão numa via de mão única: acontecem tanto do palco para a plateia quanto vice-versa, mas significam efetivamente tempo, acontecimento e, geralmente, espaço divididos. Em Cineastas, o dramaturgo e diretor argentino Mariano Pensotti traça paralelos e similitudes entre o teatro e o cinema e problematiza os limites entre realidade e ficção, só que utilizando, de fato, sempre a chave da ficção. A trama apresenta as vidas “reais” de quatro diretores de cinema e, concomitantemente, os filmes nos quais eles estão envolvidos. A dicotomia entre criação e realidade se estabelece a partir das representações dos filmes postos como obras de ficção quando, na realidade, tudo é simulacro do real. As histórias se desenrolam simultaneamente e com a agilidade da linguagem audiovi-
cineastas
mariano pensotti
especial antro+ MITsp
olhares crĂticos . diĂĄlogo
foto bea borgers
cineastas
Daniele Acho muito interessante o comentário que a Carol faz sobre as legendas. Como a peça foi criada sabendo-se que a estreia seria fora de Buenos Aires, acho que a antecipação da necessidade da legenda fez com que esse elemento fosse incorporado à poética do espetáculo. Nas duas críticas, se não me engano, Pollyana e Carol falam da questão ficção/ realidade, da relação dialética entre as duas instâncias. E aquele espaço do meio, que separa os dois lugares da narrativa na cenografia, mas que também os conecta, onde a legenda é projetada, esse lugar me interessa. Tenho a impressão de que essa relação de vai e vém que se estabelece na peça fica atirando flechas na plateia. Tudo o que é feito e dito é lançado na direção do espectador. A narração, evidenciada e materializada visualmente na legenda, os diálogos que são meio jogados fora e, principalmente, as atuações. As atuações também são narrativas: não há um esforço de desempenho de
mudanças de personagens, por exemplo. Os personagens não ganham uma composição, eles são aproximados do ator/ narrador e apresentados de maneira quase – quase – esquemática. Um exemplo disso é a cena em que três ou quatro personagens estão transando, mas os atores nem tiram a roupa – uma forma de comentar o registro de atuação, de apontar de forma bem-humorada essa escolha de linguagem. Mas isso não faz com que a atuação seja algo “menor”. Pelo contrário, é um trabalho difícil e sofisticado (e deve-se levar em consideração o volume de textos e ações e deslocamentos, bem como o acúmulo de demandas ao longo da duração do espetáculo, que deixa rastros nos personagens e nas narrações). Me parece que o trabalho dos atores também se dá em camadas de entrelaçamento entre ficção e realidade dentro da construção ficcional que é a peça – eles fazem narradores que relatam fatos, narradores que relatam sentimentos e expressam frases que viriam diretamente
mariano pensotti
dos personagens, mas também fazem personagens (protagonistas de suas histórias e coadjuvantes de outras histórias) e personagens das histórias dos personagens em cenas de cinema que são encenadas no teatro. E essa fricção toda produz umas faíscas na relação com o espectador, talvez porque geram um estado de prontidão que dá uma qualidade de presença, de sangue no olho, que me é muito atraente. PS. Esse entrelaçamento das camadas de ficção e de atuação pode ser pensado na relação com Bem-vindo à casa, do Roberto Suarez, como apontou a Luciana em uma conversa no Piollim. Vou pensar mais sobre isso... Luciana Pois é, como a Daní adiantou, eu gostaria de provocar o pensamento sobre como Cineastas e Bem-vindo a casa proporcionam experiências de expectação em duas camadas, uma de representação e outra de representação da representação...
antro+_189
olhares críticos . metacrítica
especial antro+ MITsp
S
Revisitando Cineastas ou dois frames de críticas gerando um quadro (crítico)
endo a criação esse território da instabilidade e do
e apresentados de maneira quase – quase – esquemática. Um exemplo
desassossego, o criador busca ordenar as formas para
disso é a cena em que três ou quatro personagens estão transando,
delas subtrair instantes de arrebatamento. E cada ins-
mas os atores nem tiram a roupa – uma forma de comentar o regis-
tante desse capturado é enquadrado, o que retira dele
tro de atuação, de apontar de forma bem-humorada essa escolha de
uma possibilidade outra de existir, na medida em que
linguagem. É preciso esclarecer que isso não faz com que a atuação
se exclui do plano um universo para, quem sabe, liber-
seja algo “menor”. Pelo contrário, é um trabalho difícil e sofisticado
tar o plano dele mesmo. Em Cineastas, o enquadra-
(e deve-se levar em consideração o volume de textos e ações e deslo-
mento é claro e bem definido, um retângulo no meio do palco conduz
camentos, bem como o acúmulo de demandas ao longo da duração do
o olhar do espectador, ora pra ficção, ora pra ficção da ficção. Tudo
espetáculo, que deixa rastros nos personagens e nas narrações), que
está restrito ao que cabe naquele retângulo e, com isso, a questão:
se aproxima dos registros escolhidos para Bem vindo a casa, de Ro-
quais são os recortes que fazemos da realidade priorizando este ou
berto Suárez, também apresentado na Mostra. Ambos espetáculos nos
aquele viés? Não se trata do que aconteceu ou do que poderia acon-
provocam com registros entre ficção e realidade, presente e passado,
tecer, mas do que está acontecendo. Assim como na tela de cinema,
representação e representação da representação, que refletem nos
o espetáculo de Mariano Pensotti é a sobreposição de dois frames jus-
atores – o quanto eles mesmos não são influenciados pelos registros
tapostos, como se fossem duas vidas paralelas acontecendo simulta-
que migram durante a cena? O quanto o narrador em Cineastas não
neamente, mas sem conseguirmos identificá-las. E, sendo assim, essa
carrega a intensidade do personagem que acaba de fazer? O quanto
reflexão é também fruto desse raciocínio – alguns frames de crítica
Luisa em Bem vindo a casa reverbera no episódio 2 o estado que aca-
sobrepostos, em busca de tornar-se uma terceira dimensão crítica.
bou de construir no episódio 1? Suárez, por se ater mais à qualidade
Aqui, os frames são as escritas dos integrantes do Coletivo de Críticos,
de estado dos atores, aprofunda a intensidade dos registros, enquanto
em especial Ana Carolina Marinho, Pollyana Diniz, Daniele Ávila e Lu-
Pensotti parece insistir no que o cineasta Robert Bresson dizia sobre
ciana Eastwood, e das conversas com o Olhares Críticos, em especial
os seus atores “o importante não é o que eles me mostram, mas o
Fernando Villar, que estimularam a prática do pensamento durante a
que eles escondem de mim e, sobretudo, o que eles não suspeitam
Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp . Aqui, o exercício
que está dentro deles”. Há, ainda, outra aproximação entre os espe-
é justapor as vozes e construir um percurso reflexivo a partir delas.
táculos. Ambos enquadram essa dialética do quadro formado por dois
Os atores em Cineastas migram entre os variados registros que
frames; o argentino com o cenário em formato de dois retângulos que
compõem a encenação, ora são narradores, ora personagens e ora
operam num enquadramento visível ao público, e o uruguaio com os
personagens construídos pelos próprios personagens. Mas não há um
dois frames sendo sobrepostos para o público do episódio 2, que com-
esforço de desempenho para realizar essas mudanças. Os personagens
preende a sobreposição dos planos, formando uma terceira dimensão,
não ganham uma composição, eles são aproximados do ator/narrador
enquanto o público do episódio 1 não apreende tal construção.
190_antro+
cineastas
Em Cineastas, revela-se que a insatisfação reside tanto na imagem pré-fabricada – a película – quanto na imagem imediata – a realidade. Ambas querem servir-se uma da outra para, quem sabe, gerar uma dimensão terceira, intraduzível e arrebatadora. Não há a possibilidade de reconstruir a experiência sem deformá-la, por isso, a cena escapa do domínio do real ou da ficção. O espetáculo consegue, através da simultaneidade das cenas, esgarçar os contornos e propor novas relações, sendo a legenda suporte para tal operação. Projetada no espaço do meio, que separa os dois lugares da narrativa na cenografia, mas que também os conecta, a legenda constrói a terceira dimensão. Vale ressaltar que a legenda pode, muitas vezes, ser uma força de imposição do discurso, ao antecipar o pensamento e retirar do espectador a ilusão de que as coisas estão acontecendo pela primeira vez ali, de que o próximo segundo é desconhecido por mim espectadora e por eles atuadores. Nesse espetáculo, diferentemente, isso torna-se linguagem à medida em que a legenda se personifica e é o suporte para que as duas imagens se colidam. Como a peça foi criada sabendo-se que a estreia seria fora de Buenos Aires, a antecipação da necessidade da legenda fez com que esse elemento fosse incorporado à poética do espetáculo. Numa espécie de tela projetada, a cena se desenrola em duas projeções com a presença da legenda entre elas. E, assim, passa a não interessar de qual projeção a legenda pertence, mas sim o atrito que gera a legenda pertencer às duas simultaneamente. Como se, sendo ou não capazes de lidar com a realidade ou com suas repre-
ana carolina marinho + coletivo de críticos
foto bea borgers
sentações, o teatro sempre fosse um refúgio possível.
mariano pensotti
especial antro+ MITsp
epĂlogo
A
s palavras se confundem por uma espécie de pragmatismo preguiçoso levando tudo a ser compreendido igual. Mas é significativo nomear uma reunião de espetáculos teatrais por Festival ou Mostra. Enquanto o Festival oferece o público como acesso aos espetáculos, mediante um acontecimento planejado, ao qual se reúnem artistas e trabalhos diversos, tanto quanto se abre espaço para a participação de interessados, a Mostra, por sua vez, inverte o vetor e assume a reunião de trabalhos específicos como panorama ao público. Ambos possuem suas importâncias, e na diferença estrutural, muito se coloca como possibilidade. A MIT, como o nome indica, Mostra Internacional de Teatro, organiza-se pela observação ampla da produção contemporânea e o encontro das manifestações em torno de um mesmo momento. Uma curadoria pode se ler por vieses diversos. No caso, a intencionalidade não é mote de determinação de um conceito sobre o contemporâneo, mas subsiste na subjetividade do próprio instante. É possível traçar diversas leituras ao coletivo de trabalhos apresentados, tanto quanto se pode sugerir à linearidade da sequência organizada. Todavia, isso levaria a uma dinâmica classificatória e determinista sobre o olhar. E, como informa o texto de apresentação da curadoria, essa intenção, se existente, está mais como leitura externa do que planejada. Portanto, também eu me privarei dessa vontade. Deixo-me percorrer os sentidos da Mostra em seus desdobramentos, e não em suas escolhas. Primeiro, em sua presença pontual, mínima, ou seja, no teatro que se revela ao teatro. Umbilicalmente, em seu melhor sentido. Os espetáculos expõem a multiplicidade de interesses pela qual o fazer contemporâneo se permite criar. Olhares distintos e múltiplos, originais em sua maioria, dialogam uns com os outros na somatória de suas diferenças. Não existe radicalmente divergências, e isso é igualmente significativo. As singularidades de cada criação convivem com as outras, de modo a permitir o acúmulo das percepções e qualidades. Essa diferença, não por acaso, expõe a
condição do individuo contemporâneo em se manter aprisionado a uma multiplicidade que o torna incapaz de compreender o todo e com ele dialogar, portanto, de gerar confirmação ou repulsa mais diretamente. A ausência de amplitude da percepção da própria época limita o individuo ao convívio desenvolvendo uma naturalidade ao acúmulo de possibilidades, sem que escolhas se façam radicalmente necessárias. A desimportância das diferenças, dadas as poucas distâncias entre os distintos, também atinge o discurso artístico. Estéticas e metodologias, escritas e mecanismos, tanto faz, ou assim parece. Tudo é permitido e aceito. E tal postura se coloca positiva e negativamente sobre a construção da arte. Negativa, pois cabe à arte desconfiar não apenas de seu tempo, mas do seus pares; a capacidade de oferecer ao outro a contramão de sua afirmação. Não significa negar, propriamente. Isso é pouco. Mas ampliar pela própria arte a contraposição necessária ao construído pelo outro. Aos dois, os discursos se tornarão mais evidentes e claros na medida em que suas fragilidades amplificarem suas qualidades. Não basta uma voz, no entanto. É preciso que uma época se coloque em xeque permanente. Solitária, a voz que reage passa a exercer o papel apenas do ausente ao processo comum. Um coletivo dissonante, porém, reafirma a dimensão incontrolável da arte como discursos plurais. E há também o lado positivo, cuja importância é fundamental. O convívio entre diferenças, e não a afirmação de divergências, pode construir de fato um mapeamento especifico sobre a condição do individuo. Desenha ele, então, uma espécie de nova identidade que supera as relações culturais, sociais, econômicas, revelando-se própria da arte como manifestação legítima. Essa centralidade surgida é suficientemente forte para tornar a cultura novamente epicentro da identidade de sua época. E isso é mais do que muitas vezes a história permitiu ocorrer. Desta vez, não tão distantes, ainda que distintos, os processos teatrais superam a história e sua subjetividade para confirmarem algo que se refere a um alguém só possível de reconhecimento pela manifestação da poesia e por meio de citações estéticas antro+_193
especial antro+ MITsp
de suas qualidades. Em outras palavras, o equilíbrio conformista aceita sua limitação como possibilidade de oferecer ao outro um olhar mais aprofundado de si mesmo por tantos ângulos quantos possíveis forem as manifestações e invenções. E isso é absolutamente especial ao agora. Segundo, em sua presença ampla, macro, ou seja, no teatro que revela o como teatro. Recuperar o teatro como discurso de projeto humano desapareceu há muito do nosso cotidiano. No entanto, mais do nunca, a teatralização determina as ações, as informações, as manifestações etc., e isso tem envolvido o paradoxo de não mais permitir ao individuo reconhecer o próprio sentido daquilo que determina seu imaginário. Nesse aspecto, recuperar o convívio em sua forma original, ou seja, no ambiente da arte, amplia a percepção às demais margens que circundam o cotidiano. É possível encontrar o teatro em absolutamente toda e qualquer exposição. Os meios digitais ofereceram ao individuo a condição de uma falsa onipresença. Ocorre que o existir passou a ser menos sua manifestação real e mais a teatralização de sua existência. Às novas gerações, nem mesmo o antagonismo evidente entre persona e personagem parece fazer qualquer sentido. Ou a condição de realidade e a construção de uma narrativa teatralizada ao outro. Aspectos como esses e outros mais podem ser encontrados no viver contemporâneo, onde a teatralidade quase extingui a necessidade do teatro. Em culturas como a nossa, sobretudo, o convívio com o teatro se faz urgente. Apenas assim o desmascaramento desse falso real pode ocorrer. Apenas no conhecimento do que venha a ser o teatro, a teatralidade forjada sobre tudo pode ser compreendida. Pois não se pode atingir as bases daquilo que se coloca verdadeiro, sem que se conheça antes os mecanismos que estabelecem a falsa verdade. O teatro, portanto, pode servir à revelação das estratégias de agora, onde o individuo se acredita livre enquanto é formatado cada vez mais submisso à uma dramaturgia complexa e eficaz.
Para além disso, a MIT recuperou um desejo pelo convívio com o teatro entre os próprios artistas. Faço parte da geração que cresceu isolado do contato de grandes encenadores e dramaturgos, diferentemente da imediatamente anterior. Se outrora o convívio com experiências pontuais ofereceram aos artistas brasileiros, mediante os festivais organizados por Ruth Escobar, maior elasticidade na compreensão do teatro, tanto como linguagem quanto como meio, viciamo-nos nas mínimas experiências resultantes desses criadores, cujas ações ofereceram pouco mais de meia dúzia de caminhos. A diversidade de possibilidades encontrada na MIT gera a ambiência fértil exponencial sobre a quantidade de referencias. E isso é essencial ao desenvolvimento do teatro como proposição e desdobramentos a olhares inventivos. Ter novamente os artistas nas plateias para encontrarem grandes nomes da produção contemporânea, ressignificará, inevitavelmente, o olhar sobre seu próprio fazer. Mantendo-se constante, a MIT só tende a abrir mais ainda essa relação. E tendo a crer que, por tamanha variedade de possibilidades, a resposta ao excesso de caminhos concretos será a criação de linguagens locais, como meio de conduzir o artista ao reconhecimento de sua identidade frente o múltiplo. Esse processo aparentemente defensivo é mais do que isso. Pode ser apenas a primeira entrada para uma busca ao interesse por um teatro original e brasileiro. O desdobramento mais otimista, por conseguinte, é o surgimento de uma localização ao teatro em diálogo ao todo, sem necessariamente se fazer contrário ou exótico, mas concomitante. É esperar e torcer para que isso realmente ocorra nas próximas gerações de criadores. Por fim, o problema mais estrutural gerado pela MIT, o fato de oferecer tamanha dimensão e qualidade como primeiro acontecimento teatral no ano. Essa abertura, espera-se, estimula o espectador a exigira dos demais, independentemente de suas opções, características e tamanhos, maior aprofundamento em suas escolhas, sob pena de banalizarem ou invalidarem suas re-
ruy filho
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levâncias. Não se trata de uma disputa por espaço, insisto. Mas da qualidade da oferta. Acostumados ao inquieto e a maior verticalidade dos artistas frequentadores da programação da MIT, assim como em quaisquer outros festivais, a frustação decorrente por algo mais simples será inevitável. Portanto, a MIT não se coloca como contraponto às outras organizações. Oferece a oportunidade a todos de remodelarem seus mercados e atuações. Nada pode ser melhor do isso. Ao seu primeiro ano, é preciso atentar-se às novas experimentações das ações, das estruturas, dos convívios. O que é um tanto óbvio para um evento desse porte. Nada pode ser compreendido antes de ser colocado à prova. Questões surgiram e precisam ser reinventadas a partir de outras possibilidades e modelos. E, certamente, essa busca durará por algumas outras edições, ainda. As circunstâncias mudam todo o tempo, o que torna uma loteria descobrir quais os melhores meios para isso ou aquilo. Dada a competência desse primeiro ano, a MIT certamente tem estofo para outras experimentações. Seja na relação com o público, na distribuição dos espaços, na permanência dos espetáculos, na contribuição com a mídia, a Mostra está aí e se coloca disponível às tentativas. Esperar mais que isso é quase que ingênuo. A MIT surge como a renovação fundamental ao existir do teatro em SP. E, em muito pouco tempo, tal participação será de forte relevância nacional. Hoje, após os 11 dias do evento, só é possível dizer que algo se transformou. E não tem mais como voltar ao marasmo que existia. A cidade se prepara ansiosamente para o ano que vem. E que seja assim. No desejo, na ansiedade, na vontade, na curiosidade. Um dia nós e o teatro venceremos o futebol e o carnaval. Quem sabe!
especial antro+ MITsp
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C
ada escrita reflete as minhas ordenações interiores e opera com a força daquilo que reverbera em mim, mas é preciso escrever sobre aquilo que não entra em ressonância, sobre aquilo que destoa de mim e de minhas inquietações, para quem sabe, perder-me de vista e tentar dizer sobre aquilo que não sei, mas que insistiu em perturbar. Durante a MITsp, eram essas as minhas demandas internas. Eu precisava parar de decifrar os códigos reconhecíveis. Não consegui. Mas o trajeto da busca é o que mais me interessou aqui. Durante a Mostra, aconteceram os “Diálogos transversais”, os “Percursos em perspectivas” e o “Pensamento-em-processo” - eixos dos Olhares Críticos - em vários horários que antecediam ou procediam os espetáculos e que contribuíram, decisivamente, para a construção de um olhar mais atento e para a prática de um pensamento reflexivo e crítico. Sem dúvida, influenciaram a minha escrita - era preciso dialogar tanto com as obras quanto com os artistas que se inquietavam e nos provocavam sobre e com elas. Helena Katz já nos primeiros dias me inquietou profundamente ao propor que era necessário se atentar aos hábitos cognitivos, para então, tentar livrar-se deles. Que eles impedem a percepção de espantar-se com o desconhecido e que eles fazem o nosso pensamento dizer sobre aquilo que já sabe. Como escrever sobre aquilo que não me atentei? Era preciso agarrar tudo que eu deixei passar enquanto assistia aos espetáculos. Insisti, então, em escrever sobre os meus terceiros e quartos pensamentos, sobre aquilo que não tinha saltado aos olhos numa primeira percepção e, principalmente, tentei me distanciar daquilo que os outros já vinham conversando e provocando. O compromisso parecia mais assustador. Integrar o Coletivo de Críticos era ao mesmo tempo, excitação e temor. A escrita precisava ser dialógica, capaz de gerar impulsos para os comentários e para a metacrítica, nada além do que ela já deveria ser. Mas aqui o jogo estava também posterior a publicação das reflexões. Sobre isso, como já conversei com o Ruy no Diálogos, o facebook e a distribuição impressa das críticas foram indispensáveis para que expandir os
leitores e estimular o interesse na leitura, porém, pensávamos que a publicação em redes sociais, incitaria os comentários do público, porém, apenas os integrantes - com raríssimas exceções - comentaram os textos. Acredito que parte dessa responsabilidade reside em nós, críticos, que fizemos comentários longos, cheios de citações e distantes do público leigo. Talvez, numa outra oportunidade, fosse interessante experimentarmos novas formas de escritas, capazes de estimular o leitor a dizer algo. Bom, segue abaixo algumas das frases que têm me inquietado ainda e que ouvi durante a MITsp: “As obras de teatro tem um tempo de vida. Algumas deveriam sobreviver apenas a cinco apresentações” - Roberto Suárez “ É preferível matar a obra a deixá-la morrer” - Roberto Suárez “A arte já discute a citação no seu fazer” - Helena Katz “ Não há como falar sobre a obra. Quer dizer, há. Mas isso é discurso de poder. É preciso falar com a obra. Essa metodologia do sobre não constrói nenhum olhar”. - Helena Katz “A crítica como um ensaio de um modelo de cumplicidade” Durante uma mesa redonda com alguns críticos convidados, não recordo a autoria. “A crítica é um obscuro objeto de desejo” - Durante uma mesa redonda com alguns críticos convidados, não recordo a autoria. “ O teatro tem uma espécie de força religiosa, mantém as pessoas juntas diante de uma imagem, tal como um supermercado ou uma publicidade” - Romeo Castellucci
ana carolina marinho antro+_197
especial antro+ MITsp
x2 por ruy filho e ana carolina marinho
Ruy Filho: pronto, querida. já estou em casa. quando puder, começamos. bjs Ana Carolina Marinho: Estou aqui também, querido. Podemos começar RF: cinco minutos.... aí termino de ver o depoimento do aderbal sobre a sbat e começamos. aguenta aí. AC: belezura RF: voltei. AC: to aqui também. conseguiu descansar? RF: muito pouco. ainda tenho muito trabalho aqui com as resenhas. to bem atrasado. e preciso terminar nessa madrugada tudo. e vc? AC: to atrasada também. acho que agora começo a dizer que o cansaço tá indo. assim que acabou a MIT passei um dia inteiro estagnada, com cansaço físico e mental. RF: sim, sei como é, mas não se esqueça que preciso de todos os seus textos hj...
AC: beleza, querido. to correndo com eles. RF: mas, apesar do cansaço, curtiu a experiência? AC: MUITO! acho que foi a experiências mais profunda para os meus olhos e minha escrita. RF: eu tb. de todos os festivais que já fiz, esse foi o que exigiu o mergulho mais profundo. e isso é delicioso AC: obrigada mesmo pelo convite! RF: imagina, acredito em seu olhar e isso é o mais importante. agora me diz. conseguiu escolher um espetáculo? AC: como assim? RF: algum que se destaque pra ti, que escolha como o mais interessante?
e extremamente bem escrito. tb curto o radicalismo da angélica. e o saí completamente apaixonado pelo hamlet. mas é difícil, pq não houve nenhum que não tenha gostado muito. o castellucci, por exemplo, sou suspeito. tenho uma identificacao artística com ele desde sempre. AC: rs concordo contigo. Eu não sou bonita é daqueles espetáculos que se assiste com a coluna desencostada da cadeira. RF: pois é... e como ainda fui fazer um cafuné no honeroso, ainda deixa uma mistura de angústia e saudades... rs AC: Opa. Essa pergunta sempre é difícil de se responder. Os espetáculos, ainda que com algum aspecto de aproximação, eram muito distintos entre si.
AC: Bem vindo a casa, sem dúvidas. e pra você?
RF: com certeza. uma curadoria e tanto. o quanto a experiência mudou sua escrita, vc consegue dizer?
RF: olha, que boa surpresa! pois é, fico em crise.... rs. gosto do bem-vindo como teatro, mas o texto do escola achei sensacional
AC: Mas é que o bem vindo a casa me deslocou os sentidos, tanto como atriz como espectadora. No primeiro dia eu
não suspeitei de absolutamente nada e sentia aquele clima de suspense. E no segundo dia, pronto, foi arrebatada! RF: foi assim comigo tb. ainda fiquei completamente encantado com a atriz que queria cantar. achei ela incrível. AC: Também! Sobre a escrita... Acho que tem um tanto dos olhares críticos que aconteciam ao longo do dia, estimulavam sempre um olhar mais profundo diante do artista, de seu contexto e de sua obra. RF: vc diz sobre o coletivo ou sobre os comentários aleatórios que recebíamos das pessoas? AC: Estou acostumada a escrever a partir daquilo que me inquietou e parecia que era preciso ir muito além. Era preciso deixar escapar as primeiras impressões e dar espaço para que aquilo de que não sei dizer ganhe dimensão. Digo principalmente sobre os eixos “percursos em perspectiva” e “pensamento em processo” que pude acompanhar. RF: entendo. percebo o quanto
antro+_199
especial antro+ MITsp
a fala da helena katz falou profundo com vc! AC: completamente! fiquei muito inquieta com o que ela disse: que sempre falamos sobre aquilo que já sabemos. que temos dificuldade de reconhecer aquilo que desconhecemos, exatamente por desconhecer. ela dizia: como se livrar dos hábitos cognitivos? ah, como eu penso nisso! RF: acho q realmente será incrível vc assistir algumas das aulas da helena. vou falar com ela. será transformador. acredite. comigo se deu a mesma coisa. AC: quero muito! RF: voltando a escrita... AC: ah, ela também disse uma coisa que eu tentei reafirmar na escrita. que é preciso falar com a obra e não sobre a obra. RF: pra vc os encontros pelas manhãs e tardes ampliaram, então, sua percepção sobre os espetáculos? mas tb não corremos o risco de irmos aos trabalhos já direcionados?
AC: é, confesso que pra mim foi mais interessante ir aos encontros que haviam depois do espetáculo. mas indiscutivelmente eles ampliam a percepção. mas acho que pra que o diálogo se efetive, é importante que tanto o público quanto o convidado já tenham visto a obra. RF: gosto dos encontros, de ambos os formatos, com os estudiosos, com os artistas e após o espetáculo. não sei dizer qual a melhor ordem para eles, mas a soma me parece fundamental. acho q teria q experimentar formatos pra saber melhor. por outro lado, isso sempre será subjetivo e cada um escolherá um formato diferente. AC: quando falei dos encontros depois do espetáculo, ainda estava falando sobre o dos estudiosos, que aconteciam no itau cultural. infelizmente, no meu cronograma vi poucos encontros desses que aconteciam logo após o espetáculo, no próprio lugar de apresentação. RF: eu perdi alguns com os estudiosos para conseguir ver realizados com os espetáculos.
mas o importante é a oferta e diversidade, isso acho muito rico. ainda que o corpo não aguente o todo. AC: exatamente. nunca experienciei tamanha provocação de olhares. eram estudiosos, artistas, pesquisadores e público praticando o mesmo espaço e encorpando os diálogos. RF: e a experiência da crítica em diálogo no coletivo? acho que, para um primeiro movimento, fomos bem. mas sinto que poderemos muito mais. AC: exato. conseguimos dialogar entre nós e nos provocar, principalmente nos comentários e na metacrítica. mas tenho a impressão que o tamanho dos nossos comentários, talvez tenha intimidado o restante do público em comentar as nossas críticas. não sei ao certo se ficou claro pra todos que esse espaço estava aberto... falo isso do facebook. RF: penso o mesmo. me parece, e me incluo nisso, que acabamos tratando as respostas como contra-teses, isso realmente afasta os outros.
AC: acho que o problema de leitores, não tivemos. com as críticas sendo distribuídas todos os dias e sendo compartilhadas no facebook, percebi que muito gente se interessava em ler. exato! RF: com certeza, havia muita movimentação das pessoas com os textos. o que sinto que podemos propor para 2015 é que façamos uma conversa como esta nossa aqui. acho que isso sim pode estimular as pessoas a se agregarem. AC: boa! é preciso falarmos mais desarmados. acho que poderíamos propor tal como é o diálogos da Antro. RF: exatamente isso. senti muita falta de conversar com os outros sobre os espetáculos. nesse sentido de trocar sem tanta responsabilidade de construir um olhar e estabelecer visões profundas. acho que isso podemos deixar para os textos. senti falta de conseguirmos ser mais leves e soltos aos sentimentos e impressões. acho que se atingirmos isso, seremos surpreendidos por nós mesmos em nossas análises.
AC: tenho a sensação que pra que o público reaja virtualmente, é preciso que falemos como falamos na internet e não usar o suporte apenas para postar o que construímos fora dele. Bom, acho que poderíamos testar. concordo. e me vi muitas vezes presa nessa responsabilidade. RF: esse diálogo com outro, chegou a existir, mas em posts isolados. talvez por isso mesmo, pela simplicidade e troca aberta com naturalidade. AC: sim! e sobre a metacrítica, o que achou? RF: pois é. tenho insistido na necessidade do crítico expor sua crise, mas tb sobre a importância de tirar esse olhar de superpoderoso frente ao leigo. acabo de ler a do valmir sobre o romeo e fiquei muito feliz em ver o quanto ele conseguiu manter o olhar e agregar as outras percepções. isso é realmente incrível. AC: ainda não li a dele. mas o que achei interessante é que percebi que cada um investiu num formato distinto. ora expondo claramente a sua e a
opinião do outro, ora se fazendo de uma única voz, ora expondo as opiniões que ouviu... RF: entendi. é complexo mesmo. acho q ainda precisamos encontrar uma estética à metacrítica. AC: confesso que ainda não sei falar sobre o exercício da metacrítica. não sei ao certo, o que acho interessante e o que acho excedente. a dificuldade que tive - e que acho que acabei sucumbindo a ela - é escrever mais do mesmo. como não houveram muitas discordâncias de opiniões, o máximo que pude ir além, é tentar incitar o pensamento a escrever sobre o que o outro provocou. por exemplo, achei super bacana, que em cineastas, a luciana ter dito: acho bacana pensar uma aproximação entre bem vindo a casa e cineastas. RF: concordo. essa é minha dificuldade tb. por isso a conversa mais solta, acredito que poderá nos ajudar a revelar tantos outros pontos. AC: ela não chegou a escrever o porquê da aproximação. o
que me fez buscar as minhas próprias. é, ainda acho que a conversa mais solta pode ser mais estimulante. pro diálogo e pros comentários. RF: sim. mas não chegamos a fazer uma metacrítica, na verdade. acabamos não avançando fazer uma crítica sobre a própria crítica. de todo modo, o exercício de reescrever é angustiante e muito profundo. talvez mais a quem escreve. ainda precisamos deixar saboroso e curioso ao outro.
legenda (adoro essa ideia). eu acabei a sobre a “fila”, e vou escrever agora a carta aberta ao honeroso...rs. AC: hahahhahah beleza, querido! vou correr aqui, então. RF: caiu a internet, mas acho que está ótimo. te vejo quando voltar pra sp. bjs querida. e obrigado por estar nessa maluquice comigo. vc é incrível. AC: Querido, eu que agradeço a confiança e a parceria. Admiro muito você! Obrigada pela maluquice rs beijo e ate a volta.
AC: verdade. e esse é um desafio constante. fiquei surpresa com a quantidade de curtidas e visualizações das críticas no facebook, isso parece dizer um tanto. RF: com certeza. mais algum aspecto que vc queira trazer aqui? AC: não, acho que é isso e você? RF: muitas coisas.... rs. mas acho q para cá está de bom tamanho. não se esqueça de um texto para o caderno especial de “fim” e da reflexão sobre a
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nossos agradecimentos aos que, de alguma forma, tornam o teatro a possibilidade de algo concreto para todos.
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