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quem? o que?
ANTRO POSITIVO
é uma publicação digital, com acesso livre, voltada às discussões
sobre teatro, arte e política cultural. Este especial faz parte da
programação oficial da MITsp 2018
editores
ruy filho [texto] patrícia cividanes [arte + fotos]
www.antropositivo.com.br @antropositivo
março I 2018
performance de
com
nuno ramos danilo grangheia luciana paes
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duração:
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do ínício do fantástico ao final do jornal nacional
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crítica dentro Caderno Especial Antro Positivo MITsp 2 0 1 8 por Ruy Filho 1 1 de março / 1 2 de março
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C
rítica Dentro é um experimento de escrita crítica que ocorre simultâneo e dentro de um espetáculo, incluin-
do na abordagem reflexiva a percepção do espectador em tempo real e descrições de cenas, quando necessárias, como impulso para aprofundar as questões próprias ao teatro e ao contemporâneo. Em A Gente se vê por aqui, os atores - e apenas eles - ouvem a programação da Rede Globo e as reproduzem sem contextualizar e acrescentar falas pessoas. Ruy Filho permaneceu as 24 horas ininterruptas do espetáculo na plateia acompanhando-o e escrevendo sobre tudo o que ali se passava dentro e fora do palco. A Crítica Dentro é parte das ações oficiais da Antro Positivo realizadas durante a 5a. MITsp, em São Paulo.
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plim dica útil - ou não iluminação quente: programação iluminação fria: comerciais
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Nesse momento, milhares de pessoas estão em suas casas, diante da televisão. Alguns jantam, talvez a pizza de domingo de sempre; outros se aventuram a jantares românticos; e há aqueles que se entregam a pratos e sanduiches. São muitas as possibilidades e as tentativas de descrevê-las são inúteis adivinhações.
Um fato, porém. Os televisores estão ali.
Nas salas, nos quartos, nas bancadas das cozinhas, apontando suas imagens para casais, maridos, famílias, namorados e solitários de toda espécie, inclusive humana.
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20:51 Nesse momento, são
e o Fantástico está prestes a começar.
Nada mais programa de domingo do que essa revista televisiva de variedades. O teatro, ao seu modo, já foi mais o espaço dominical noturno das famílias.
Décadas depois, os anos 50 ficaram no esquecimento, o teatro aceitou
sua condição de entretenimento, e assim a arte passou a ser menos algo e mais um negócio ali, para o qual alguns, e cada vez menos, decidem ir aos finais-de-semana.
Calma, tem muita gente nas salas. Falo dos espetáculos que se aventuram a ir além da diversão banal, dos que se querem linguagem, dos que se configuram inesperados e inviáveis aos passatempos. Os bons, portanto; os que valem mesmo a pena sair de casa aos domingos. É onde estou. Galpão do Folias, São Paulo, grupo tradicional da cena paulistana. No palco, o equivalente a uma casa ou sua sugestão: piano, mala, estante,
mesas, sofás, colchão, cozinha, saco de box, geladeira, banheiro (químico, claro), legumes, verduras.
O público entra para assistir a performance A gente se vê por aqui. Há
muitos amigos e conhecidos ao redor, isso é importante, pois ficarei, ficaremos, eu e atores, ao menos, por 24 horas. A eles cabe a função de falar
tudo o que os programas da Rede Globo transmitirem às salas familiares, em seu instante real. Não temos a tevê como imagem, acessaremos apenas pelas vozes de Danilo Grangheia e Luciana Paes, dois dos mais inquie-
tos e interessantes artistas da geração atual. Eu ficarei escrevendo esse texto. Esse mesmo. 24 horas entregue aos devaneios, ideias, sensações, fatigas, ridículos, silêncios que surgirem. E o que mais vier. Já me parece óbvio que fracassarei. O espetáculo performance ou performance espetacularizada – teremos tempo de sobra para pensarmos sobre isso nessas muitas horas – é uma
proposta de Nuno Ramos. Não é plausível defini-lo como isso ou aquilo.
São tantos os dispositivos artísticos e intersecções de linguagens em suas criações que basta compreendemo-lo como artista. Já é muito. Não há pra que lhe dar mais problemas. Público acomodando-se. Atores ansiosos. O que será que eles escutam? Faustão!, óbvio. Nesse momento fico extremamente feliz que apenas eles possam acessar o som da televisão.
Atores a postos. Danilo observa a plateia, Luciana dança. Cada qual ao
seu jeito se prepara. Tento explicar o que será a performance a alguém sentado perto, mas eis que o Fantástico começa.
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Primeiro ataque de riso, eles cantam a abertura. A primeira notícia não podia ser diferente: violência. A irrealidade da conversa entre os bandidos assume condição tão absurda que surge naturalmente a artificialidade de um teatro entranho, antigo,
superficial. No entanto, muito na cena que se desenha lembra aspectos
da dramaturgia contemporânea: fragmentação, aleatoriedade, narratividade performativa. Sobre o que eles conversam? Sem as imagens é quase
impossível. Relógios? Enquanto eles se dedicam a traduzir os contextos à cena, o teatro se reinventa apaixonante, divertido, singular. Ao tempo em
que descobrem as informações que devem nos oferecer; encontramos a dimensão humana no que se refere ao existir patético. São sobretudo personagens. Não por serem outros, pois desses são só vozes e tentativas, mas pelo ridículo das especificidades. A representação de objetos/cores
por outros em cena, agora pelo uso de qualquer um, qualquer coisa, confirma a necessidade do espectador trazer consigo a imaginação. Não venha sozinho, traga seu repertório e crie o que quiser.
A realidade é mais ridícula do que sua própria ficção. Comerciais. Talvez nenhum texto seja mais constrangedor. O que significam quando se propõem somente a vender?
Ele come banana. Ela bate em um saco de box. E tudo ganha significante. Quanto mais literal, menos parece ser o que é. O que a imagem da televisão ilustra, o corpo dos atores não é suficiente para ser apenas ela. Ações, gestos, olhares e subtextos ganham possibilidades metafóricas. O deslocamento do real ao possível, ao imaginativo,
constrói sobre a realidade a própria graça. À principio pode parecer ser apenas ridículo. Há mais. O deslocamento é a graça e não aquilo que por ele ressurge. A realidade é por si a perspectiva mais idiota sobre tudo.
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Caminhamos entre vulcões, agora nadamos entre tubarões. 38 pessoas dentro de um jipe. Verdade? Verdade. E o que isso importa? Quando entram as vozes comuns, quanto não são elas preparadas às telas, as das pessoas anônimas, crianças e adultos, tornam-se mais cons-
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truções mais inverossímeis do que as profissionais. A naturalidade é estranha quando ouvida apenas como natural.
Os primeiros espectadores saem. Retornam a suas casas e, alguns, certa-
mente ligarão seus aparelhos de televisão. Na Globo? O que incomoda: a ausência do teatro tal qual se espera ou a presença explícita do cotidiano?
O dilema é responder a isso. Sair ou ficar? Sair do cotidiano representado ou ir de volta ao cotidiano não percebido? Deixar o teatro não teatralizado ou ficar para a encenação de um anti-teatro?
Por que filhos dos mesmos pais não têm a mesma altura? A ambiência elaborada pelos comerciais, dada suas variedades, suas banalidades, institui a possibilidade de um convívio. Ainda que ilógico nas relações, surge o diálogo como consequente. Não entre eles, na forma de troca, dentre eles. O diálogo como o reconhecimento do próximo. Pouco
importa o que dizem, portanto, a ambiência supera a presença, e a presença é matéria suficientemente discursiva ao surgimento de um diálogo.
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Por que ninguém salvou a menina? Marcas, manchas, denúncias. A seriedade preenche a sala e, ainda mais assumido como conversa entre
eles, o tom jornalístico da reportagem oferece profundidade. Sendo a
reportagem preenchida por perguntas, a cena se torna menos performativa e mais épica. É curioso como a lógica épica se verifica apenas pela especificidade de haver nas falas denúncias. Público em silêncio.
Todos estão em uma escuta uníssona. O teatro reassume o que se es-
pera, o lugar dos discursos importantes, das urgências, das utilidades. É preciso tratar das questões profundas.
Quantos cabelos uma mulher pode ter? Não importa, Ketty Perry é amiga da Gretchen.
As histórias retiradas da imagem ganham beleza, mesmo as mais ab-
surdas e ridículas. A poesia, ao seu modo, talvez esteja na simplicidade. Aonde vai cair a estação chinesa descontrolada? E Luciana dança descontroladamente.
Quem é Raimundo Filadélfia? Meu primeiro gole de café.
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As palavras chegam aos ouvidos, uma a uma. O que significa descobrir a frase ao final. O tempo é suficiente para os atores conhecerem o primeiro estágio da informação: a objetividade. No entanto, não conhecem as pos-
sibilidades que virão, e mesmo objetivas, as frases provocam suspenses ao desconhecimento seguinte. Aos poucos, elaboram uma estratégia co-
mum: enfatizam palavras chaves. Surge assim um contexto que se descobre a posteriori, e informar passa a ser a procura do próximo ponto de
apoio. Nem sempre ele surge. E aí está a graça. A informação se perde
respirando pela somatória dos apoios conquistados. Não a informação na sua intencionalidade, mas a informação como estado bruto de sensações, pelas quais subjetivamente algo pode ser identificado como próprio.
O primeiro movimento da iluminação coloca o palco em uma penumbra. Não está escuro. Tudo permanece visível. No entanto, ganha a cena teatralidade mais próxima ao que se entende por teatro. No palco, Danilo
e Luciana contam como foi o envenenamento do espião russo. Movimento acertado ao dramatizar aquilo que na televisão provavelmente estaria dramatizado.
A luz retorna à claridade inicial. Nada da mesma história parece real, agora
que o teatro se foi. O teatro, por vezes, é capaz de ser a parte mais real de uma realidade incompreensível.
Mesmo nos momentos mais divertidos e engraçados a plateia já não ri tanto. Pouco a pouco esvazia mais do que é preenchida por quem chega.
23:02 São agora
Faltam vinte e duas horas de espetáculo.
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De Trump a Ophra, pra festa do Oscar, o assassinato do espião russo, as eleições chilenas. Rodamos o mundo.
E no Brasil voltamos às corrupções que ganham ares de dramaturgia
novelesca ruim. O noticiário apresentá-las assim implica em uma escolha, ainda que não esclareça o argumento: a novela como narrativa mais
facilmente reconhecível pela convivência com a linguagem ou como ma-
nipulação dramática das informações para construir camadas não necessariamente reais?
A matéria é tão desproporcionalmente maior, em relação ao que se
apresentou até então, que os atores passam a brincar com uma bola de borracha por tédio.
As narrativas de fatos, mesmo no teatro, são tediosas quando não superam elas mesmas.
Uma terceira possibilidade, então: longa demais para que não sejamos capazes de prestar atenção?
Enquanto trazem os gols, Luciana vai ao piano. O que ganha valores nonsense de melancolia, mesmo não tendo nada disso no que é dito.
O público aplaude ao dizerem que o Fantástico terminou. O público se anima ao avisar que começará o BBB.
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hey, brothers! 44
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A luz em foco sobre a cama, palco apagado, enquanto novos espectadores adentram o teatro. Tinha certeza de que esse seria um dos momentos
escolhidos pelo público. Misturam os textos sob o edredom. Tudo se torna
ainda mais imbecil. O BBB deixa de ser um show da realidade para ser a realidade de um show por aquilo que é menos real: o teatro. Difícil saber qual teatro, se o do palco ou da tevê, é mais ficcional.
O primeiro bloco do BBB expõe o ridículo da situação e da participação. Sem o contato com a imagem, nada tem lógica. A expectativa de que seria aos espectadores um momento de pura diversão surpreende com a presença de um sorriso acompanhado por uma interrogação.
Contudo, o que importa é: Patrícia, Caruso e Diego, caso você não tenha assistido a formação do paredão.
Ao término do programa, parte significativa da plateia se levanta e sai. O teatro começa a ficar vazio.
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Somos agora em pouco mais de vinte e o micro-ondas estoura o milho da pipoca.
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Com o início do filme, o tempo é outro. As falas não se acumulam, não há pressa, ganha em tons naturalistas e fica mais simples aos atores conviver com elas, pois possuem fluidez e encadeamento mais perceptíveis.
Para nós, espectadores, o deslocamento é paradoxal. Ao tempo em que é
possível acompanhar a narrativa, a relação entre Luciana e Danilo é menos
própria ao espetáculo. Isso por ser menos improvável ao ambiente da cena comportar falas tão específicas a outros contextos.
Assim, história e narrativa precisam ser compreendidas por convívios distintos: a primeira como aquilo que é contado, a segunda como o assimila-
do. A narrativa, por conseguinte, é a soma entre história e acontecimento,
sendo o acontecimento os atores e não o que é contado. Amplia-se a qualidade do teatro ser o acontecimento como experiência pura, independentemente do que lhe suporta ou sugere. A experiência teatral em sua pos-
sibilidade de presentificar o espectador ao contexto de acontecimentos.
Essa é a distinção maior, até aqui, da performance, que, diferentemente, presentificaria o acontecimento ao contexto da presença do espectador.
Por ser mais teatro, então, passamos a assistir belos momentos de interpretação de Luciana e Danilo, desenhos de intenções dos personagens quais representam como se estivessem preparados e os conhecessem.
A imensa cena de silêncio ou de ausência de falas no filme, traz a primeira experiência com o tédio. Não em seu sentido negativo, e sim como linguagem narrativa.
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Em uma dramaturgia tradicional, o tédio seria preenchido por sequências de pequenos momentos e interpretações. Só que isso demanda conhe-
cer o roteiro, da saída à chegada. Não sendo possível, uma vez que des-
conhecem o segundo seguinte, não há como preenchê-lo por escolhas coerentes. Diante disso, ambos escolhem assumir a ambiência cênica como realidade maior. Não importa se as falas preenchem corretamente,
ao contrário. São elas uma das possibilidades no universo em que estão.
Distantes do naturalismo que ressurge aos poucos com o desenrolar do filme, a linguagem do tédio inverte a lógica teatral e exige a presença como atributo também do espectador.
Acertadamente, aproximam-se de nós. Chegam ao proscênio. E passamos a assisti-los enquanto nos assistem. Temos um gesto cúmplice, portanto, e o tédio pode ser renomeado como suspensão.
Suspendido o teatro, estamos no mesmo tempo. E essencialmente no mesmo espaço entre os tempos.
Baterias não duram para sempre. O técnico entra e troca as dos
microfones. Não estranho que alguém surja e intervenha. O jogo está dado e nada é capaz de interrompê-lo. Esfiha de carne pra mim,
salgado de quatro queijos para Patrícia, guaraná. Eles comem pipoca.
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1:11 Somos menos de dez. E tudo segue bem. São crianças e não atores. Crianças de cinco anos descobrindo o mundo
por meio de um improvável jogo aonde são principalmente eles mesmos na soma do serem tantos. Crianças que, sem quererem mais do que apenas isso, reinventam o mundo ao tempo em que o descobrem.
Nem importa mais se teatro ou performance, nem importa mais se há espectadores ou apenas alguns. De olhos fechados, entregues aos seus no-
vos mundos, conduzidos por expectativas e não por tentativas, ambicionam uma existência lúdica que não serviria a um mundo adulto. Mas que deveria. E poderia. E serviria para nos provocar outra possibilidade de inventar futuros, mundos e a nós.
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Encostados no sofá, jogados ao chão, trocando as falas pelos sons, abs-
traímos e nos distanciamos da resposta técnica de um exercício. Poderia
ser um hiato. Ao contrário. Traz o respiro necessário, depois de mais de
quatro horas exatamente, por possibilitar ao espectador igual respiro ao acúmulo racional inevitável. E as coisas se transmutam. Passa a ser uma
experiência poética, pela qual a tristeza revela a possibilidade de falso espelhamento. Não somos aqueles no palco. Somos aqueles que se perde-
ram nas crianças que esquecemos de ser. Por elas surgirem nos atores, percebemos não existirem mais em nós. Hey, Brothers!
E a poesia se esvai. Fica o triste, apenas. E logo o triste, por tão triste, se refaz ridículo novamente. E rimos.
Chega a madrugada. E nos comerciais surgem os zumbis da publicidade.
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O novo filme, que não tenho a menor ideia de qual seja, assume sua condição de teatro do absurdo. Se a história é, por si só, incompreen-
sível em muitos aspectos, Danilo e Luciana jogando palitinho, bebendo chá, ele enrolado no edredom, ela de volta com os saltos altos, sentados como estão na pequena mesa como único universo necessário,
resume como o teatro do absurdo ainda pode ser encenado e fazer sentido como estética e linguagem no contemporâneo. Superado os artifícios de sempre, das regras e escolas, o absurdo reafirma a qualidade
de ser uma cena imprevista. Há novidade no absurdo como estratégia, é o que esse novo momento demonstra.
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Como perdemos o Brasil?
A fala surge por acaso em um filme que não é sobre nós. Misteriosamente, é também, e muito.
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Se o peixe sobreviveu com o aquário, o vaso de flor, não.
Danilo é um risco delicioso ao cenário. E a cena de limpar o chão se repete diante ao desastre.
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Já fomos cinco.
Os espectadores voltam, dentre eles, novos.
2:42 Às
voltamos a ser cerca de vinte.
O tom assumidamente cômico retorna. As risadas se tornam alta. O can-
saço de alguns também possibilita o surgimento do riso com mais facilidade. Não se trata de querer ser engraçado. A conquista se dá pela
escolha dos atores aceitarem a circunstância sem buscar nela qualquer
entendimento. Apenas coexistem ao filme. Por surgir cômico, o espetáculo assume outra dinâmica, e a iluminação assume sua capacidade
de dialogar esteticamente, assimila os momentos, os interesses, recorta, fortalece, amplia, aproxima.
É um dos grandes momentos,
desde que começou o espetáculo. Essa última hora poderia ser uma peça em temporada com igual brilhan-
tismo dos atores ao que estamos assistindo agora em improviso, mesmo
se exaustivamente treinados. O todo é superior aos efeitos. Acontece um teatro de um nível raramente assistido por aí. Esses atores são realmente especiais.
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Vicente Garrido, por favor... E assim vamos a um novo filme. Dessa vez, nacional. Mais silenciosa, a sala do teatro é invadida pelo som das pessoas fora dela. Conversam como se não estivessem aqui. Por sorte, os atores usam fones de ouvido. Eu não, e os outros me distraem. Imagino que não saibam ou que não se importem. Curiosamente, não parece que estou no teatro
mais, e sim na sala de estar da casa de alguém diante da televisão, quan-
do não há responsabilidade em se manter atento e ok perder algo. São costumes distintos. Também o vínculo com a atenção perfeita à cena não significaria muito aos outros.
Dura, agora, seis horas e meia, o espetáculo. Um quarto do que terá.
E a duração revela ser interessante escapar para retornar ao espetáculo.
A cada volta, a certeza de que se quer ficar um pouco mais. A cada ida, a dúvida do abandono. Por isso alguns retornam. Por isso alguns insistem
em não se despedir. Aqueles do lado de fora falam pela condição de não estarem nem aqui nem longe, mas presos em algum momento do espetáculo que não lhes permite perder ou se despedir.
O filme dá a primeira oportunidade de encontro direto entre atores e es-
pectadores. Como se mostrasse fotos um ao outro, os retratados são aqueles na plateia.
Empatia imediata. O riso retorna. A plateia está viva e segue junto.
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Ganho um pão de queijo de Nuno. Obrigado.
Agora percebi, estava com fome. Incluo outros goles de café
ainda quente, quase oito horas depois. A garrafa térmica que
trouxe da Polônia de fato funciona bem. Seria péssimo se não retivesse o calor.
Porque resolvem desaparecer – ela escondendo-se no banheiro
químico, ele atrás da geladeira – um novo momento se faz: o convívio com a ambiência cênica em seu estado de personagem. En-
quanto as falas são dadas sem os corpos, a ausência ressignifica a perspectiva da presença. No palco não existe vazio, mas aquilo que não está. Essa não presença é por conseguinte a presença em si; o ausente é a totalidade infinita de possibilidades condensada a um único código.
Por alguns instantes,
o não-vazio descansa os olhos. Não estando, podemos desacelerar a observação e seguir instintivamente. O quanto o teatro contemporâneo precisa desses
momentos de liberdade visual, de solidão ao olhar, de perda de objetivos, parece óbvio nessa experiência. Acumulamos imagens todo o tempo, milhares a cada minuto, em forma de cores, de palavras, de presenças, de rascunhos.
O teatro realmente precisa recuperar o esvaziamento do espectador e não apenas do palco.
Foi delicioso estar vazio ao se perder na presença de suas ausências. Eles retornam.
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Há ainda uma não presença que permanece. Leva um tempo para diluir. O filme trata da criação de um passado, história de uma mulher que o assume e se apropria como real para construir outro futuro. Argumento tão próprio ao palco que é preciso reinventá-lo.
No entanto, tudo parece possível. Eles encontram seus caminhos: afinal, um forno de micro-ondas como telefone e um dedo do pé que se estende
como um caralho, adornado pelo consolo, não poderia ser imaginado por nenhum roteirista em sã consciência.
As soluções trazidas por Danilo e Luciana não se esgotam,
nem a vontade de se divertirem.
Fim. Do filme, claro. Seguimos em Mentes Criminosas. Quase uma metáfora desse dois gigantes em cena. E de Nuno.
4:18
A dezena no teatro talvez não saiba que agora são
É por isso que você ensina os presos a ler? Se ganhasse a liberdade, o que faria com ela? Liberdade parcial é algo que não existe.
Meu cérebro gira, volta a uma outra peça. Parece que já li esse texto. É outro. Esquece. Força, retorne para o agora e pare de delirar.
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Onde estou acomodado, surge uma cena inesperada. Luciana se senta
para comer uma fruta. Vejo apenas seu corpo. Seu rosto está tampado pelo saco de box. Parece-me a pintura contemporânea de um personagem de Vermeer pop. Ou é apenas a madrugada em mim. De todo modo, é uma bela imagem em sua melancolia e intimidade.
O cansado chega lentamente aos dois. Luciana o sente primeiro. Por não insistirem mais em construir as emoções, elaborando as falas com as
energias possíveis, nasce um melodrama inesperado que não se opõe ao realismo. A representação acontece por aceitarmos a presença como performativa em si. Não é preciso mais do que isso. Entre o filme e os comerciais, ainda que iluminação mude o estado de cada momento, mais fria e realista nos intervalos, mais quente e cênica às ficções, as falas soam
iguais, fica mais complexo compreender a narrativa e mais especial para olharmos o empenho dos atores.
Um dado importante para esse momento: Danilo limpa o
chão depois de derrubar água.
O cenário ainda resiste. Sigamos. Luciana ao piano, Danilo modelando argila. Pequenos focos de luz, en-
quanto falam sobre crimes e possibilidades. A cena ganha qualidades de um thriller psicológico com especificidades de musical, e expõe o quanto
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o teatro pode ser inesgotável. Termina o filme. Certamente esse foi um dos ápices poéticos do espetáculo. É inacreditável a beleza que os dois construíram apenas conduzidos pela cumplicidade de seus cansaços.
Depois disso, é certo: o teatro precisa recuperar urgentemente a beleza de ser um projeto poético. Seria importante essa sala estar lotada de artistas agora. Hora Um.
Para quem está em casa, talvez. Para nós, hora oito. A poesia se rompe com o noticiário que retorna. Não há mais dúvida:
chegamos ao dia seguinte. Notícias que não queremos ouvir, informações que não deveríamos nos acostumar. O dia começa como tantos outros trazendo a realidade no que lhe há de mais cru e manipulado.
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luciana se esforça para dar as notĂcias. 74
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É manhã, ainda que no teatro seja igual. A caixa preta impede o dia chegar mais próprio.
E é aniversário de Recife. Mortes, confrontos, assassinatos, o Rio de Janeiro em guerra. A morte é um dos principais temas do teatro desde sempre. No entanto, a sequência descrita é de tamanha brutalidade que a realidade supera a relação teatral.
Se até agora coube com facilidade a morte na ficção, como lhe cabe bem
na dramaturgia, é insuportável ouvi-la no teatro como verdadeira, pois ga-
nha ainda mais dramaticidade e horror. A importância que cada palavra assume em cena torna o acúmulo indescritível e insuportável.
Confesso, aguardava com expectativa Luciana apresentar o Tempo no telejornal. Torcia para que fosse ela. Luciana faz do corpo um mapa geográ-
fico ilógico cuja coerência pertence apenas a ela mesma. Aponta partes,
detalhes, enquanto nomeia lugares e variações de temperatura. Sabe fa-
zer graça com algo tão simples. É sua qualidade ímpar de humorista que, acima de tudo, diverte-se em ser assim.
5:28 Agora são
avisa o jornal.
Exato momento em que temos
o segundo ataque de riso dos atores.
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futebol, cenoura e tapioca. esquece a tapioca, o gás não saiu. espera, esquece o esquece. nuno deu jeito. tapioca e queijo branco, então. 78
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Nesse momento, assim como Danilo e Luciana, milhares estão na cozinha preparando o café-da-manhã. Televisores ligados no jornal. Talvez torra-
das ou um pão com margarina; muitos com pressa e prestes a se atrasarem. São tantas as possibilidades, e imaginar como começam os dias é inútil e se perde em preconceitos. Quem é capaz de dizer como são as
manhãs dos brasileiros? O jornal continua e boa parte insiste sobre o tempo e trânsito. Devem ser essas as questões principais, então. Ir e chegar.
5:48 São
O jornal segue na descrição de crimes pelo país. Nada mais programa de segunda do que trazer ao máximo as desgraças, como que culpando os telespectadores pelas diversões alienantes dos seus finais-de-semana. A culpa deve ser sua por tudo o que aconteceu. Sinta-a. O teatro, ao seu modo, raramente é o espaço matutino das pessoas. Ainda
no século XXI, o entretenimento deve caber fora dos horários principais destinados aos sérios e relevantes. E a Cultura não cabe nele.
Calma, tem muita gente chegando a parques, caminhando, exercitando-se, nas salas de ioga e pilates. Falo das manhãs voltadas às exigências de uma vida saudável e suas rotinas precisas e imponderáveis.
Os espaços de arte não pertencem à indústria da saúde.
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É onde continuo. Galpão do Folia. Eu, alguns realmente poucos, os atores, Nuno e equipe. Permaneço ao espetáculo e o que mais dele vier.
Área de alta pressão. Tempo firme. Mas amanhã pode colocar uma meinha mais quente no pé.
Tenho quase certeza que a falta de assunto, enquanto falam sobre a festa da uva, como é feito o vinho, a importância da festa, serve bem à metáfora
dos silêncios por detrás dos encontros barulhentos familiares nas casas comuns. E assim seguimos a mais um jornal. Mais um dia daqueles. A diferença é que hoje a gente está na luta. É o que resta.
6:30 Terceiro ataque de riso.
Motivo. Vai saber. Me inclui.
Enquanto isso, o jornal cita a frase de uma faxineira sobre o problema do lixo sujar a cidade. Como o teatro pode ter a ilusão de ser mais perspicaz
que a realidade? Na dúvida, Luciana e Danilo jogam um pouco de tudo pelo palco.
Um chegou. Outro dorme profundamente. E eu. É quem somos por aqui, além da equipe.
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7:00 Quase
da manhã.
O Globocop vira Robocop. O que pode ser mais enfadonho do que o comentário detalhado de diversos jogos de futebol? Quem chutou, quem errou, os gols feitos, torce-
dores, líderes, técnicos, trocas, contratações, pancadarias... A descrição
exageradamente detalhada, imensa mesmo, só é interrompida por des-
crições dos acidentes no trânsito, os já descritos dezenas de vezes e os novos. Assumindo a condição inútil das informações, os atores deitam no colchão. Aconchegam-se quase em gesto de piedade a eles próprios, e
o carinho, a cabeça acomodada no colo, o abraço provocam estranheza maior ao que é dito. Futebol não é lugar para delicadezas como essas. Não
cabe ao universo macho. Mas é próprio ao teatro ressignificar os códigos,
inclusive os de conduta. E se o futebol é o que é, se há tanto espaço para ele, o teatro se dá a liberdade de dissolvê-lo pelo toque. Um gesto entre eles, e a notícia se reinventa pela possibilidade de negar o impossível.
Nova troca de baterias. Aproveitam e encostam na porta do banheiro, como que emparedados. A troca ocorre como se fosse uma batida policial.
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Tchau, São Paulo. Bom Dia Brasil. Paletó nele, vestido longo nela. Flores
nas mãos, xícara de café. Sentados juntos em bancos altos. A ambiência muda. A circunstância muda. Eles mudam. Menos as notícias. Lá vamos nós ouvir tudo outra vez.
Quando Luciana acende as duas velas azuis em castiçais e adorna os cabelos com flores, juntando-se a Danilo sentado no tapete, a construção
de outra possibilidade de representação às falas do noticiário revela outra
perspectiva, mais inesperada. Mãos apontando às chamas, vozes sutis, luz em foco. Os textos são ditos como que em meditação ou reza. Por
falarem sobre problemas intrínsecos da nossa realidade, ganham ares tristes, como quem busca saídas para além das humanas ao trato da educa-
ção e segurança. Recuperam, assim, o trágico ao homem. É exatamente
pela aproximação do trágico à dramaturgia que o teatro se desenvolve inicialmente. Trazido agora, mesmo sem maiores intenções, introduz a percepção do teatro devolver à realidade sua perspectiva trágica por meio de sua representação estética. Vamos falar de futebol? Nada mais simbólico como resposta do que Luciana inalando oxigênio pela máquina. Quarto ataque de riso, então. O futuro pode ser assim. Muito obrigado, Gioconda. Vamos voltar a falar daquele acidente? Dessa vez, o trânsito vem com vi-
tamina de abacate, se estou enxergando bem. Um pouco mais de notícias sobre futebol. Quer dizer, as mesmas de novo novamente outra vez igual. E, então, os acidentes.
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foto ruy filho
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coragem, hoje
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é segunda-feira. A evidente repetição, sobretudo do que pouco importa, é impressionante. O país entregue ao supérfluo informativo
enchendo os pensamentos dos indivíduos tornando impossível que se atentem ao que importa. O teatro é real
na qualidade de uma dramaturgia que não deixa espaço
aos seus atores, enquanto as pessoas não percebem suas condições de coadjuvantes eternos. A narrativa é manipulada para o esfacelamento da consciência.
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Luciana Paes é Ana Maria Braga.
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danilo grangheia aprende com
ana maria braga a fazer ovo de pรกscoa.
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Pausa. Esqueça tudo. Danilo é Louro José
ou o primeiro pássaro exu da televisão brasileira. Impossível não gargalhar alto.
Acabou a bateria, nem adianta fazer chupeta. Sim, alguém disse isso na televisão.
9:01 São
Estamos na metade do espetáculo. O programa continua. O patético supera a expectativa. Quinto ataque de riso.
Minutos depois, ainda tão perto, o sexto.
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No caos surge um novo espaço, outra ambiência. A fita crepe esticada ris-
ca e diagrama o palco trazendo-lhe mais tridimensionalidade. Por não ser parte do repertório de objetos comuns, os traços suspensos admitem a interferência tanto como propósito quanto incógnita. Quem o riscou, o que
buscava? são perguntas inevitáveis caso alguém chegue agora ao teatro
ou ligue o computador para ver em casa o ao vivo. A narrativa se desloca, então, não mais ao que é dito, e sim ao onde se está. Tudo nesse interior
passa a ser desconfiança e, por isso, criação. Quem disse serem essas
as posições iniciais do sofá ou piano? Insere-se uma disposição à dúvida,
então. Continuado assim, o espaço abrirá a oportunidade para que os atores possam ainda mais se aventurar ao não naturalismo. Amplia-se ao
teatro seu contexto de teatralização e não apenas de encenação. Teatra-
liza-se o estado performativo que não se basta como acontecimento, é preciso projetá-lo ao espectador para ser reconhecido como tal. É curioso como o espetáculo modula ora ao teatro ora à performance, ora ao teatro
performativo, à performance cênica. Não é possível defini-lo em uma única linguagem. Não é justo restringi-lo. O espetáculo é antes ele mesmo, e não cabe mais em categorias.
Lamento, perdi a receita da Ana Maria Braga.
Esqueci de anotar, enquanto me deliciava com os atores. Só sei que na versão daqui, vai rabanete.
Câncer, dieta e uma eternidade em frente à porta da geladeira aberta. Tudo é possível virar uma boa cena. Realmente Luciana e Danilo são surpreendentes.
Fim do Bem Estar. Tai uma frase comprometedora que traduz bem aonde chegamos. Sigamos.
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vamos encontrar que διόνυσος nos
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fรกtima bernardes. ajude.
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Não estou aqui necessariamente para comentar os programas. Interessam-me menos. Ainda prefiro teatro, apesar de ser um telespectador constante,
sem crise por me assumir como tal. Normalmente, quando o programa de Fátima está no ar, eu sigo dormindo. Descobri, agora, ser esse horário tro-
cado uma possível defesa de meu organismo, já que quase sempre durmo com a televisão ligada, ainda que contrariado. Abro, então, apenas essa ex-
ceção. É preciso comentar a humilhação pública que é o programa. Não há cinco minutos com inteligência mínima e a condição a qual os convidados
são submetidos é de um constrangimento raramente visto. Tentarei resu-
mir: é impossível ser mais estúpido. Supera todas as possibilidades de um programa ser apenas ruim. Ao serem isoladas as falas, piora exponencialmente ao ampliar a mediocridade dos comentários. Convenhamos, não é
apenas ele. Depois dos telejornais, três seguidos, a programação banaliza o telespectador ao máximo. De volta ao teatro, o divertido não se realiza pela
qualidade de instituir humor ou acidez, mas pela maneira como os atores acabam ridicularizados pelas situações. A inutilidade de programas como
esses responde à falência na formação simbólica e crítica que atinge esse
país. Ok, você vai argumentar não ser apenas um programa o responsável por salvar o mundo. Você tem razão. Mas quem disse que não basta um para destruí-lo de vez? Ao nível em que são informados, os telespectadores desse programa sofrerão lesões inevitáveis. Fátima conseguiu algo até então impossível: tornar tudo insuportável, até mesmo o teatro.
Como permanecer acordado com tanto assunto desinteressante?
Desisto de Fátima. Nem se houvesse um novo milagre de Fátima. Prendo-me aos atores, detalhes no cenário, movimentos da iluminação. Uma hora isso acaba, rezo.
Trenzinho caipira tocado com luva de box. Assim respondem Danilo e Lu-
ciana. Fica a dica de um excelente nome para uma peça carioca sobre o Brasil atual.
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meio-dia sim, chegamos a ele Lá vamos nós para mais um telejornal. Desconfio que falarão sobre acidentes, futebol, greve dos Correios.
diz o jornal: O que tá ruim pode pior? Pode sim, Tralli. Não é possível entender o que exatamente preparam para o almoço. O aroma começa a tomar a sala. Temperos, sobretudo.
Curioso. Muitos são os espetáculo que incluíram a comida ao contexto
da narrativa. Virou moda, em um certo sentido. Todavia, assistir Luciana e
Danilo cozinharem é diferente dos demais. Enquanto o recurso é para os
outros artifícios, aqui, diferentemente, é consequente à duração do espe-
táculo. Almoçar faz parte dos momentos imponderáveis. É menos, então, estratégia e mais desdobramentos ao tempo. Desse modo, os aconteci-
mento, agora, é que são submetidos ao instante. E o momento exige ser o que precisa ser. Quando o teatro perde a artificialização de sua documen-
tação, de seu valor documental, o presente explode por sua dimensão de urgência e surge uma dramaturgia supreendentemente ficcional.
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O que você faz em um dia de folga como esse? Toco louvor e rock.
Assim começa o Globo Esporte.
Afinal, falou-se pouco de futebol até agora. A troca de bateria traz o silêncio ao almoço, enquanto se readéquam as sintonias dos aparelhos. Livramo-nos dos gols.
Novamente, surge poética quando menos se espera. E o que seria mais uma transmissão passa a ser um relacionamento entre olhares.
Seguimos para o Jornal Hoje, e quem poderia se chamar jornal realmente de hoje. Mudam os números dos acidentes que continuam crescendo suas vítimas no correr do dia.
É incrível perceber o quanto Luciana e Danilo dominaram a dinâmica de falar. Depois de mais de dezesseis horas, não apresentam mais as notí-
cias. Passaram a dizê-las, um ao outro, conversam por ela, mesmo sem
lógica alguma. Por conseguinte, os assuntos ganham nessas potência
de reinvenção outras perspectivas. Agora os dois são dois outros personagens em cena cuja realidade os toma como única urgência. Desaparecem os temas banais. Precisam falar, pois precisam olhar o mundo. As notícias se tornam deles.
São vozes que antecipam os acontecimentos em uma profecia incontrolá-
vel, pela qual o cotidiano é previsível por ser recorrente e, mesmo assim, misterioso.
O que, em muitos momentos trazia graça, passou a ser triste. A melancolia direciona o espectador à solidão.
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Sorria, é hora do Vídeo Show. Não tenho dúvida de que será divertido. Mais do que isso, até. Apesar
de visivelmente esgotados, a energia sobe, ressurge com o público que gradativamente chega ao teatro e passa a reagir quase sem pausa. O pro-
grama oferece muitos caminhos à empatia com o espectador. E não só. Ao trabalho de Luciana e Danilo como intérpretes. Poucos são os come-
diantes que sustentariam tanto tempo o riso como estão fazendo nesses muitos minutos.
Assisti-los é encontrar na prática a capacidade do artista manter-se ínte-
gro após ter ultrapassado os próprios limites. É nessa integridade que a
arte surge maior e indivíduo e ato se fundem como os mesmos, indissociáveis por uma entropia não mais diagnosticável de seu início.
A programação continua sua trajetória. Confesso certo desespero. Já assisti o filme e não é bom.
15:33 São agora
Estamos aqui há mais de dezoito horas sem pausa. Estou definitivamente cansado.
Escrever começa a ser a tentativa de empurrar um caminhão.
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Talvez se o filme fosse bom...
Mas, pelo menos, não é a Fátima outra vez. Melhor não reclamar.
Ao começar A Filha do Chefe, nessa que deve ser a milionésima quinta vez que o filme passa na tevê (deve ter algum fetiche ou tara de alguém lá dentro pelo Aston Kutcher), de repente a compreensão de que viverei viver por algumas horas uma ficção me reanima.
De fato, precisa de pouco para instituir outro estado perceptivo quando se está perto do esgotamento.
Na ficção posso sair do estado de alerta, deixar seguir o jogo e apenas conviver. Aos poucos, a ficção revela ser uma estrutura preciosa ao cansa-
ço, impõe com mais sutileza o reconhecimento de histórias, pessoas, gestos, códigos e emoções. Não vem sobrecarregada de pesos e camadas.
Não se sustenta pela opacidade de sobreposições de argumentos e con-
flitos. Cabe-lhe apenas um dilema. No máximo um duplo, desenvolvendo-
-se sem pressa, explicando-se (pois, recordo, é uma ficção simplória) por informações inequivocamente diretas.
Uma ficção não precisa ser exatamente assim, muitas podem ir além de
qualquer facilidade. Mas, de alguma maneira, são ficções banais e inferiores as servidas pela emissora aos seus telespectadores.
No palco, ela é mais indigesta. Pois nem sempre é viável acompanha-la.
Ainda assim, a história pode ser acessada sem o menor esforço. É muito
mais divertido, então, assisti-los em busca de saídas e soluções, enquanto o filme teima em ser longo demais.
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definitivamente, nem danilo nem luciana sabem fazer o pio de uma coruja. que tipo de ave a plateia estรก imaginando agora? a n t ro + M I T s p
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É engraçado ouvir dele Vale a pena ver de novo. Imagina se recomeçam?
Delírios. Acho que estou tendo alguns já. Maria Clara é qual das duas mesmo? A chuva chega sem piedade atingindo a cidade como tem sido nos últimos dias.
Interfere no volume das vozes impondo a necessidade de aumentar os micro-
fones dos atores. É sempre um risco fazer isso. A voz perde a naturalidade e encontra o lugar em que já é mais máquina do que pessoa trazendo certo tom
não-humano. Incomodo-me com isso no início. Aceito, não há o que fazer e não ouvi-los seria perder a própria performance em seu conceito mais fundamental. Nem tudo é perda, no entanto. O Galpão do Folias ganha em alguns pontos da
sala uma delicada cortina de chuva. Eles nos circundam e sublimam a ambiên-
cia renovando a sala. Pela primeira vez, o todo é transformado. E se a sala se modifica exigindo dos espectadores mais dedicação de sua atenção, os atores instintivamente os convidam a entrarem no jogo por outros vieses.
Luciana pega uma imensa parte do rolo de papel pardo e recobre o banheiro
químico. Não serve para nada, isso. E por isso é interessante ver aonde irá chegar. Danilo pela outra parte do rolo e veste Luciana. Não serve para nada isso. Mas, veja só, criou-se à cena uma linguagem estética diferente. A chuva passa. Retorna. Passa outra vez. O público continua chegando. Agora mais do que saindo. Já somos novamente uns 20.
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malhação Óbvio, Danilo pula sobre o aparelho de ginástica.
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tcha cun gun, gun tchã Não tenho a menor ideia do que seja isso.
Luciana está animadíssima em dizê-lo tantas vezes. Digo animada, ironicamente, é claro.
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deixamos o século XXI para retornarmos aos anos 1920 no Brasil. A novela traz duas experiências inéditas aos atores até aqui: em alguns momentos terão que fazer sotaque português – e foi engraçado; falarão, em outros
momentos, em segunda pessoa. Falam. E o contexto cotidiano do espaço cênico, os corpos que não mais reagem às construções e apenas resis-
tem sendo eles próprios provocam certo deslocamento ao contexto, que
estava mais performativo, recuperando a expressividade típica do teatro,
em que personagens se apresentam com o intuito de conduzir a narrativa. Depois de tantas horas, e estamos próximo de vinte, acomodo-me como
quem vai assistir a um espetáculo clássico. E é bom o teatro, a maneira como vão construindo os personagens e trazendo a história, e assisti-
-lo. Ainda é possível se surpreender com Danilo e Luciana? Pois é, sim. Entrego-me completamente ao novo instante do espetáculos. Ou tento.
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Quase me obrigam a ir comer. Patrícia, produção, há um motim contra minha fome. Havia me esquecido dela. Não suportava mais bolachas de água e sal e chocolate. Minha água já estava prestes a acabar. O café não
existia faz tempo. Tento resistir, mas percebo o ridículo de lutar contra. Você pode comer lá em cima.
Animo e vou. Frango, arroz, feijão, legumes.
Tempero no ponto certo. A quentinha estava mesmo quentinha. Eu realmente estava com fome.
Vê-los do alto, mais distante, tendo a ambiência mais ampla no campo de visão, surpreendeu-me. De longe, aqueles dois pareciam ainda mais malucos. Praticamente o dobro de espectadores. A plateia prestes a lotar.
19:18 A chuva retorna às
Outro jornal e nem sei mais o que dizer sobre. Eles também não. Danilo agora é quem aponta no corpo de Luciana o mapa do tempo. Ela ri. Ele
ri. E eu esqueci de continuar anotando os ataques de risos dos dois. Será que já chegaram ao décimo?
Alguém tem cigarro. É o que está no cartaz segurado por Danilo. A plateia
vai ao delírio. A garota entrega-lhe um. Nuno, minutos depois, mais alguns. O jingle insuportável da máquina de cartão de crédito que esteve presente
em praticamente todos os comerciais, desde o início. A reboladinha de Danilo é por desespero, eu sei.
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Eles, através de algum auxílio divino que não me foi oferecido, estão recuperando as energias. Plateia cheia, público até nas laterais superiores. Vai ser um final épico. Mas, antes, mais uma novela e ainda o Jornal Nacional. Criam roupas mediáveis com edredom e lençóis, chapéus e o que
mais encontram nas estantes. Estão visivelmente se divertindo. Danilo não consegue mais corresponder às falas na televisão com igual velocidade e eficiência. Engasga-se com as palavras. E sabe como poucos tirar provei-
to disso. Luciana sendo Tatá Werneck era, sem dúvida, um dos momentos
mais aguardados por todos, quando começou Deus Salve o Rei. Os ridículos se aproximam, estão em tudo: nas caricaturas de vozes e das roupas,
nos textos que se perdem, nos gestos de uma realiza incompreensível,
nas falas que sem contextos não nos informam rigorosamente nada. As
risadas são altas. Constantes. Cortantes. O público gargalha. Eles estão inacreditavelmente impossíveis e donos absolutos de tudo isso. Como é
especial chegarmos aqui. Como é realmente encantador olhar esses artistas profundamente inteiros e íntegros sendo eles mesmos.
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E então, o fim. Quase. Troca de roupa. Agora é preciso algo mais solene. Outra vez calça, camisa, sapatos, paletó. Novamente vestido longo, sapatos... quer dizer, por onde entra o braço nessa roupa mesmo? Esquece, paletó fechado e o
vestido inteiro vai pela metade mesmo. Eles recolhem os pertences que
vieram nas malas abertas na primeira cena. É como uma despedida. Eu, e
só posso dizer por mim, no limite mais profundo do esgotamento em que me encontro, batalho entre a ansiosidade e a vontade de querer continuar.
O Jornal Nacional traz uma sequência de notícias que traduzem o pior e
melhor do Brasil. Traz também a emissora naquilo que lhe é mais próprio, expondo-a definitivamente. Os focos de luz, um para cada, nas laterais do palco, deixam as coisas mais solenes. O teatro, em muitos momentos da última transmissão, fica em silêncio. Escuta. Escuta-os. E não custa ser um pouco otimista e acreditar que escuta-se. Um comercial, dois, três...
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Luciana e Danilo se aproximam, hora das últimas falas. O boa-noite do telejornal é também a despedida do espetáculo. Eles se abraçam. A plateia
aplaude de pé. Eu estou de pé. Eu grito. Eu me reinvento e sou apenas um espectador dessa obra colossal.
Nuno, grita Luciana, vem pro palco! Os três me apontam. Sou uma ínfima parte desse labirinto de reflexões e tentativas que duraram 24 horas. Meu último gesto é abraça-los. E lhe digo: como é que vou viver
sem ter vocês comigo agora? Descubro depois de dormir quase 14 horas
direto que não preciso ter medo. Acordo e Luciana, Danilo e Nuno estão definitivamente em mim.
Termino este texto no dia 13, portanto. É impossível tentar refletir algo mais do que fora a própria experiência. Nem tudo deve e precisa existir em palavras. Melhor que aconteça ao tempo e em silêncio. Amanhã é meu aniversário. Não teria presente melhor do que a loucura de passar 24 horas junto a esses três.
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ho do ano 7 +
to calil + danilo santos de miranda + jô soares + marília pêra s ostermeier + win vandekeybus + denise fraga + antonio araújo hirsch + brett bailey + peter pál pelbart + rodrigo garcia
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positivo conteĂşdos exclusivos
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