TRANSVERSAL ANTRO POSITIVO

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Gostamos de ser livres. De poder falar o que quisermos, de criar caminhos sem amarras e autorizações, sem precisar pedir desculpas por ir mais longe que o óbvio, ultrapassando os limites da caretice e das convenções. Gostamos e vamos continuar assim. Esse Caderno é uma prova disso. Transversal, como é chamado, por alguns sentidos: atravessaremos o ano com acontecimentos e tudo aquilo que nos estimular criar fora de hora e em paralelo; também servirá aos intervalos entre as edições da Antro Positivo, pois muitas discussões e espetáculos precisam de diálogos urgentes, e ler grandes textos em blogs é mesmo incômodo e nada interessante. Esse Caderno Transversal, portanto, será nosso instrumento de libertação e ação ao presente. Não há uma lógica que o edite. Há estímulos e vontades. Não há objetivos finais. E sim junções e o que acontecer a partir das aproximações. Um espaço em movimento e ao que vier. Prepare-se ao imprevisível.

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realização

editores

Ruy Filho [texto] Patrícia Cividanes [arte] resenhistas

Ana Carolina Marinho Claucio André Marcio Tito Maria Teresa Cruz Patrícia Bergantyn Renato Bolelli Rebouças Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio:

antropositivo@gmail.com

aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo

ANTRO POSITIVO é uma publicação digital, com acesso livre, voltada às discussões sobre teatro, arte e política cultural.

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lhar o horizonte. Encontrar dentre as árvores que se estende aos olhos os silêncios das matas e o tempo do pensamento. Perceber as nuvens pas-

sando em céu imenso e seu contorno tão próximo ao pensar. Olhar e sentir, deixar-se perceber e sonhar. E, então, permitir que surja outro frente à imensidão da natureza. Por fim, invadido de possibilidades, ressurgir em criação. A arte perdeu o contexto do olhar para além de si. Excessivamente massacrada por um tempo que não lhe oferece invento, por contornos que impendem o sonho, de algum modo os olhos se voltaram apenas ao próprio criador enquanto o distancia de tudo o que verdadeiramente deveria ser sua potência criativa. A vida, ao contrário do que tanto insiste o contemporâneo, pode sim ser mais. Basta frearmos, recuperarmos as pausas, respirar com prazer e construir tempos aos olhos. A arte, essa mesma tão esgotada em procuras obsessivas, ressurge sempre que investigada nos espaços protegidos da alma. Para tanto, é preciso encontrar caminhos. Não gosto do termo saída, pois este parece definitivo demais. Caminhos, caminhar, caminhadas, percursos, trajetos... Seja como for, entre um estado a outro, uma condição à outra, um mecanismo a outro, o deslocamento é essência às transformações, portanto, ainda que esses também se necessitem mentais e psicológicos, está em sua dimensão de realidade o valor mais radical. Deslocar-se significa, então, ir além, trocar, escolher. Pelo espaço. Entre espaços. É exatamente essa a grandeza do Campo das Artes, idealizado por Luís Melo, na pequena cidade de São Luiz de Purunã, próxima à Curitiba. É preciso deslocar-se da capital para chegar, e percorrer o sentido contrário, indo de encontro aos silêncios e horizontes. No ponto alto da Serra, cercado por paisagens que se transformam a cada

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estação, mais próximo ao céu do que os arranha-céus, disponível aos ventos forte e trovões, a natureza é a dimensão mais profunda para o deslocamento fundamental. Chega-se não apenas a um espaço de cultura e arte. Chega-se principalmente a uma dimensão possível de civilidade, em que, paradoxalmente, a utopia se valida como utopia se comprovando possível. O que Luís Melo sonhou parece grande, desde o primeiro impacto. Sala multiuso de teatro, cinema ao ar livre, espaço gourmet, refeitório, espaços para criações de cenografia e figurino, horta, chalés para residências artísticas, biblioteca, arte por todos os cantos, paredes e situações. Teatro, dança, performance, artes visuais, moda, gastronomia, design, cultura popular, gastronomia local, artesanato local, artistas locais. As mesmas coisas. Os mesmos. Local, no Campo das Artes, é a soma ampliada das artes, tais quais são definidas pelos sistemas, e das ações mais íntimas de cada um. Assim, novamente Melo provoca os caminhos ao que entendemos como experiência estética, incluindo e não segregando. Construindo e deslocando percepções. Tornando possível o surgimento de olhares e horizontes outros ao indivíduo. Em cada edifício já erguido, cada qual com seus intuitos e possibilidades, o Campo das Artes surge na dimensão de uma grandeza que não se esgota pelo uso das paisagens. Entre. Desloque-se aos interiores. O gentil e precioso trabalho de Renato Santoro contextualiza a arquitetura de JC Serroni. O que é impactante por fora é íntimo e familiar por dentro. Assim, arte e pertencimento se aproximam de modo convidativo à imaginação e às memórias. Cada objeto, cada escolha, traz em si uma vida acumulada, potencializando sua própria existência agora transformada por novos usos poéticos. Arte e descoberta se confundem de

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modo a ampliar a criação de memórias. É preciso deixar a voz sumir e assumir os espaços internos também como próprios, enquanto o mundo ao redor redimensiona a possibilidade de nossa eternidade. Seguimos. Nos deslocamos pelos trajetos e prédios. Ao fundo, cachorros nos esperam e brincam com nossas mãos. Sorrimos. Nos deslocamos de nós mesmos. E, em cada um ali trabalhando, pintando, erguendo, terminando, com quem cruzamos durante o caminhar, o orgulho é a face mais evidente. Apertos de mãos, pequenos sinais com os lábios ou movimentos de mãos e cabeças. Melo conta sobre seus crescimentos. Há uma dignidade exposta em forma de uma comunidade que se formou em tornou de um projeto maior. Não se trata de um espaço às artes. Trata-se de inventar outro mundo. Não se quer outra civilização. Quer e se consegue outra qualidade de civilidade. A dimensão humana é o grande campo sendo erguido no alto da Serra, perto das nuvens, próximo aos raios. A humanidade, seja do artista, do homem comum, do comum como também arte, do qualquer um, é a imensidão do horizonte revelado a todos pelo sonho de mais de uma década de Luís Melo. Nada é capaz de descrever ou dar conta do quanto tudo isso é urgente e especial. A experiência vale por si. E é inesgotável enquanto sensações e transformações. Tanto quanto deve ser nosso agradecimento por Luis Melo ser capaz de sonhar. Evoé, meu caro. e como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver justamente com um incômo do que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um

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de crítica [ micro-seminário i ]

quem disse que seminário precisa ser chato? vamos falar de crítica Cada fala dura 5 minutos. O apito toca. É uma provocação. O debate se estabelece. Não há formalidades. Não há censura ou auto-censura. a seguir, leia três dessas falas.

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Um artista pega uma pedra ea lança ao lago po r c l au ci o a ndr Ê 30

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Do que o crítico fala? Da pedra? Do artista? Do lago? Dos canapés servidos aos convidados? Das ondas causadas no lago? Do construção simbólica de pegar a pedra e lançar? De como a pedra modificou o lago? De como a pedra modificou o artista? De como o artista modificou o lago? De como o artista modificou a pedra? De como o artista modificou o lançar? De como o lançar modificou o artista? De como o lago causou o artista? De como os astros causaram artista, lago e pedra? E pra quem? Pra quem viu? Pra quem vai? Pra quem não viu e nem vai mais? Pros artistas? Pr’aquele artista? Pros lançadores de pedra? Pros veranistas do lago? Pra mim? Pras árvores? Pros astros? O que me dá condições de resenhar? O quanto sei de lagos, pedras e lançadores?

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Um artista pega uma pedra e a lança ao lago

Ou o quanto vejo em gestos, ondas e astros? Numa cultura em que se aplaudem de pé vasos e desonestidades, por que eu escrevo, e por que escrevo como escrevo? Uma prévia, uma sinopse, um parâmetro, uma indicação de especialista, um carimbo comercial, uma confirmação sensível, um aval. Para além da micro utilidade, há espaço para uma macrocrítica? O que seria uma macrocrítica? Dialogar com o artista? Provocar o leitor? Orientar o público? Expandir as formas de leitura? Responder poeticamente? Se a obra deve bastar por si, sem a necessidade de sinopses, referências prévias ou meas culpas, e a crítica, não? Escrever me põe em certames ditames tatames éticos, estéticos, esquéticos.

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Faço-o por mim, pro outro, pela arte, pela humanidade? Quem segura a caneta? Meu ego? Meu amor? E se no palco sobe a máscara do ego, ou do amor – Por que escrevo o que escrevo? Por que intermedio o silêncio sem ser requisitado? Resenho, numa mão a gaivota morta, na outra o crânio de Yorick, sobre Godot ou sobre Édipo serei o lago, a pedra, outro artista, uma onda? “É pelo sentido que adquire no contato com o mundo que uma ação é ou não revolucionária. Atirar uma pedra nunca é apenas ‹atirar uma pedra›. É algo que pode congelar uma situação ou desencadear uma intifada. […] Um movimento só vive pela série de deslocamentos que opera ao longo do tempo. […] O gesto decisivo é aquele que se encontra um passo à frente do estado do movimento e que, rompendo com o status quo, abre acesso ao seu próprio potencial.” (“Aos Nossos Amigos, Crise e Insurreição” Comitê Invisível; n-1Edições)

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Hoje escolhi vazar algumas mensagens que recebo diariamente

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Via inbox ou por email.

Os autores são artistas, direto-

res, atores e atrizes que me procuraram para falar de suas estreias. Escolhi deixar os diálogos na íntegra e torná-los públicos pra vcs, fazendo apenas pequenas alterações nos nomes dos autores e dos espetáculos. Esse vazamento é um esforço de oferecer material que amplie a nossa compreensão sobre o poder midiático da crítica, os mecanismos internos de sua formação e um exemplo do diálogo urgente e exemplar entre a arte e a imprensa.

PRIMEIRA Olá, Leandro, tudo bem? Obrigado por aceitar o convite de amizade. Queria lhe convidar para a estreia do espetáculo que estou dirigindo chamado O Rei da Vela. O mesmo vai acontecer dia 16 às 20h, lá no Teatro Oficina. Podemos contar com sua presença? Também gostaríamos de saber da possibilidade de ser divulgado uma nota da estréia no Estadão e no Blog Café Teatro. Sabemos da importância que você tem tido para os espetáculos da cidade. grande abraço, Zé Celso (Muitos dias depois) Leandro - Olá, Zé Celso, td bem? A peça ainda está em cartaz? Zé Celso - Oi Leandro, está sim, inclusive hoje tem espetáculo Leandro - Você pode reservar um ingresso pra mim, por favor? Zé Celso- pronto. Acabei de colocar na lista.... Esperamos que goste. (Na manhã seguinte) Zé Celso - Olá, ficaríamos felizes se você publicar sobre o espetáculo no Estadão e no Blog. É de grande importância para divulgação do nosso trabalho. Se publicar algo, me envia o link pra eu dar uma divulgada?

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Hoje escolhi vazar algumas mensagens que recebo diariamente

Se sair no impresso me avisa tb, pra eu poder acordar mais cedo e ir na banca? (2 dias depois) Zé Celso - Opa, e ai Leandro.... tudo bem? (1 dia depois) Zé Celso - Olá Leandro, tudo bem? Agradeço pela resenha e me interesso muito pela opinião do espectador, seja ele um especialista ou não. Acabei de ler e com certeza me fez pensar num todo. Essa mesma resenha sai na versão impressa ou apenas na digital? Leandro - Apenas no digital Zé Celso - Que pena! Espero que, na medida do possível, nos acompanhe, Leandro.

PRóXIMA Oi Fernando, tudo bem? Eu acompanho o seu trabalho tem um tempinho. E eu gostaria de convidá-lo para ver esse meu trabalho que está em cartaz. Ficaria honrado em tê-lo na plateia da peça Macunaíma. A respeito, sou diretor do Centro de Pesquisa Teatral, aqui no Sesc Consolação. Com carinho, Antunes Filho. Antunes Filho - Ops, LE-AN-DRO, e não Fernando, hehehe. Mil desculpas, fui traído pelo “auto completar”. Sorry. Será um prazer te ter como convidada! Leandro - ConvidadA? Antunes Filho - Nossa! Mil desculpas, novamente, queridO.

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PRóXIMA Hey Leandro, como vai? Aqui é a Fernanda Montenegro Leandro - Olá Fernanda, tudo e vc? Fernanda Montenegro - Tudo ótimo querido! Não sei se vc ficou sabendo, mas vou estrear Eles Não Usam Black Tie, lá no Teatro de Arena? Queria que vc me visse no palco. Estou bem ansiosa. Ta sendo um trabalho lindo com o Guarnieri. (7 dias depois) Fernanda Montenegro - Oi Leandro, to te aguardando queridíssimo! Beijokas (4 dias depois) Fernanda Montenegro - Queridooooooo! Adorei te ver na plateia. Foi lindo, não foi??? (1 dia depois!) Fernanda Montenegro - Queridooooo! Você poderia nos ajudar com clipping, por favor? Bjs.

MAIS UMA Boa noite Leandro, tudo bem? Na época em que eu morava em SP e atuava crítico não tive o prazer de conhecê-lo, mas fiquei feliz por você ter aceito o convite para ver o ensaio da minha peça “Um Deus Cruel”. Inclusive, como estão todos do Estadão? Trabalhei bons anos aí. Quem ainda está com vocês? Sábato? E o Décio, como ele está? Saudades. PS: o auto-corretor fez várias traquinagens na mensagem acima, mas espero que tenha entendido... Haha. (3 dias depois)

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Boa noite LEONARDO, tudo bem? Você virá ao ensaio amanhã? Por favor me avise a hora pra podermos nos organizar. (1 dia depois) Desculpe, LE-AN-DRO, tudo bem? Meu auto-corretor não me deixa ter um papo decente com as pessoas! Agora estou em casa e no computador posso escrever sem medo que ele troque palavras, nomes e me coloque em situações embaraçosas. Ainda bem que não saiu nada pornográfico... rs Um abraço, Alberto Guzik.

PRA TERMINAR: Leandro, Tudo bem? Lembra-se de mim? Sou o Antonio Araújo, curador da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo ao lado do Guilherme Marques, mas você pode me chamar de Tó, rs rs. Querido, queríamos te convidar para a mostra. Tenho algumas fotos, o release e a programação completa. Posso mandar no email? Leandro - Oi, Tó, o Guilherme falou comigo. Pode mandar o material no meu e-mail por favor? Tó - Claro! Abraço. (3 dias depois) Tó - Oi Leandro. Recebeu meu email? Leandro - Olá, Tó recebi sim. Tó - Você acha que vai sair alguma notinha na Folha?

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Conclusão: Podemos apontar dois culpados pela atual cena da crítica e do teatro: Meu pai, por escolher meu nome, e o corretor automático do celular.

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Uma mulher sem doutorado po r A na C ar oli n a Ma r i nho 40

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iante da provocação de Ruy, a partir de uma fala que fosse motivada por inquietações e problemati-

zações que me assaltam no exercício da crítica, e tomada pelo estado crítico em que nos encontrávamos, ocupei o meu breve tempo em propor um mergulho sobre questões que me atormentam com frequência e que provocam a pensar novos modelos de cumplicidade e de integridade: Qual o distanciamento necessário que um crítico deve ter dos envolvidos numa obra e dos próprios realizadores de festival? Muito disso diz respeito ao fato de que os festivais costumeiramente convidam o mesmo corpo de críticos, o que gera um pensamento único e pouco transversal. Além do fato de que os críticos muitos vezes encontram-se cerceados, imperceptivelmente, pela estrutura que os acolhe: como manter a distância crítica quando o crítico é pago pelo próprio artista ao qual reflete ou ainda pelo festival que o sustenta? Em que medida o crítico se censura para não dizer exatamente o que pensa, devido aos meios de produção em que se insere, ou, ainda, para não ferir o “amigo”? Lembro da figura do crítico de gastronomia que frequentemente não aceita ter o jantar pago pelo restaurante quando ele vai criticar o prato. A crítica de teatro utiliza o suporte próprio da literatura. Às vezes, me assalta que uma crítica literária está, de fato, mais em diálogo com a obra do que a crítica de teatro, que utiliza-se de outro suporte para falar com a obra. Fico me questionando quais as possibilidades de realizar uma crítica audiovisual, ou crítica cênica.

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Uma mulher sem doutorado

Qual a responsabilidade do crítico diante de uma cultura de editais que gera, cada vez mais, obras em que a argumentação, a defesa e as justificativas se sobrepõem ao teatro? Diante do exercício de escrita fundamental aos artistas que constroem suas obras com suporte financeiro público, é comum nos deparamos com programas (o material gráfico disponibilizado na entrada do teatro) mais interessantes que os próprios espetáculos. Escrever é, de fato, uma realidade para inúmeros artistas. Me questiono o quanto mais do que defender a obra, se a escrita dos editais se aproximasse de uma escrita de si, não seria mais interessante à própria criação e, por conseguinte, me deparo escrevendo não sobre a obra, mas com a obra, buscando compreender em que espaço eu existo ali e como ela me convoca ao diálogo.explignihil inis re nis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continui dade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver jus tamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provoca dores. Avaliamos que os vídeos fun cionaram muito bem como recurso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determina do tom da família que ainda não tínha mos encontrado. Quando se chama al guém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodificar o que é dito

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participaram do nosso primeiro micro - seminário , dia 21 de março de 2017 , no centro da terra , sp

Antro Positivo (SP) ana carolina marinho claucio andré maria teresa cruz patrícia bergantyn ruy filho leonardo shama ( df )

Revista Bravo! (SP) gabriela mellão

O Estado de S. Paulo (SP) leandro nunes

Revista Barril (BA) daniel guerra

Aplauso Brasil (SP) fernando pivotto

Farofa Crítica (RN) diogo spinelli heloísa sousa

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para que o cĂŠu nĂŁo caia

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“O xamã yanomami não dissocia a sina de seu povo da do restante da humanidade. Não são apenas os índios, mas também os brancos que estão ameaçados pela cobiça de ouro e pelas epidemias introduzidas por estes últimos. Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um. Formulada nos termos de uma metafísica que não é a nossa, essa concepção de solidariedade e da diversidade humanas, e de sua implicação mútua, impressiona pela grandeza.” C la u de L é vi - S t raus s

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p o r pat r í c i a b e r gan t yn

nevitável não levantar questões estéticas, mas principalmente éticas de Para que o céu não caia, da Lia Rodrigues Cia. de Danças. Nele, um é sempre bando; a força

está no coletivo. Mesmo com coreografias em uníssono, a individualidade se destaca dentro do grupo. A unidade não surge pelo cumprimento de uma forma, e sim pela manutenção de energia. Estão ali, juntos, pisando o mesmo chão. Por

isso mesmo, fica evidente a diferença de quando a aparição dos solos se dá, o sair por ser “a hora de mostrar seu solo”, e de quando é atraído por uma força, como um ímã que singulariza a potência para fora do coletivo. Quando este estado se mantém, dentro de uma coreografia declaradamente marcada, a dança acontece naquilo que escapa. O trabalho é inspirado no livro «A queda do céu» do índio yanomami Davi Kopenawa, que reivindica a incomunicabilidade do homem branco perante os índios, que, ignorante e arrogante, há séculos vem causando tamanho extermínio de inúmeras tribos violentamente devastadas. Segundo os yanomami, a dizimação de seus xamãs impede que os espíritos xapiris sejam cultuados, o que pode causar uma catástrofe: a queda do céu. Partindo da inspiração de uma metafísica tão outra em relação a nossa, a primeira questão que urge é acerca da apropriação cultural, e quais as consequências de uma coreógrafa branca criar uma obra inspirada em um livro tão engajado como este, escrito pelo próprio xamã. Tive o privilégio de escutar a fala do próprio autor e perguntei se a peça o representava. Em tempos onde vivemos num mundo desencantado, instrumentalizado e insensível, abro mão da minha análise racional e priorizo seu relato ao assistir à peça: “É muito forte. É forte para vocês ouvirem. É forte para fazer vocês acordarem. Eles imitam a natureza, o grito dela. A árvore chora quando é cortada. A gente chora quando matam a natureza. Me representa. Representa o nosso grito.”

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Para que o céu não caia::crítica Uma vez posta no mundo, a obra se excede e toca questões a priori imprevisíveis. Cito André Lepecki, no que se refere a dois aspectos deste transbordamento: “Primeiro, dança é muito mais do que produz à vista ou faz ver, é sempre mais do que uma imagem. E segundo, o trabalho sempre produz mais do que nós pensamos e bem mais do que o autor pretendia”. Capturo esse trecho na sugestão de que, talvez, ao criar esse trabalho, Lia e sua companhia até fizessem menção às turbulências do novo governo de Michel Temer em âmbito federal, mas, provavelmente, não imaginavam que, durante a temporada na cidade de São Paulo, a Secretaria de Cultura teria congelado a (já pífia) verba da cultura. Sequer contavam com o desmonte do Fomento à Dança, modelo de Programa para o Brasil todo, inclusive para países da América Latina, tampouco com o cancelamento da contratação de arte-educadores de programas como Piá e Vocacional, prejudicando mais de 8 mil crianças, jovens, adultos e idosos. Do mesmo modo que para os yanomami o céu vai cair se os espíritos xapiris não forem cultuados pelos xamãs, se nossos representantes políticos não respeitarem a classe artística, o céu também vai cair. As demandas são muitas e infinitas, mas uma coisa é fato: o céu está acima de todos nós e não discrimina raça, gênero e nem classe social. Em todos esses âmbitos, o diálogo é necessário e a escuta, urgente. Todos nós estamos à beira de uma catástrofe ambiental ao exterminar os povos indígenas e à beira de uma ruína cultural e educacional quando se ignora anos de luta e conquista da classe artística. Essas consequências ferem a todos nós, sem distinção. Na maior parte do tempo, os nove bailarinos vibram o chão com seus pés. Um só calcanhar soa pouco, precisamos ser tropa para reivindicar todas essas lutas juntos. Mais do que nunca, precisamos de ossos largos, toneladas de calcanhares, cascos, patas. Para que o céu não caia é preciso fazer o chão tremer. Dança é política. E deve voltar a ser perigosa.

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fotos sammi landweer

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p or c l au c i o an d r ĂŠ e maria teresa cruz

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ocês esperavam ser bombardeados, e foram. Como vocês avaliam o balanço entre o resultado final, o risco da exposição e a resposta pública?

Embora soubéssemos que é um território tenso, nunca trabalhamos com o objetivo de gerar incômodo. Trata-se de

uma tentativa real de entender diversas coisas, e o processo foi realmente modificador nesse sentido. De qualquer forma, por enquanto nós fomos atacados em apenas uma crítica, dentre pelo menos cinco que já saíram, algumas ótimas, e prefiro não comentar as críticas. Imaginávamos que esse tipo de coisa poderia acontecer. É um território tenso que se presta também a muita disputa. De qualquer forma, continuamos cada vez mais acreditando na urgência de que nós, brancos, nos pensemos enquanto detentores de privilégios, que nos racializemos, nesse sentido de entender que não somos algo dado, mas sim, algo criado socialmente, e que a nossa calma para falar de tudo, o nosso próprio olhar sobre o nosso racismo e o nosso mal estar também; enfim, tudo isso está permeado constantemente por privilégios fundantes. Sobre a peça, ela está em transformação, como é de se esperar. Na estreia eu acho que foi um tateante, eu acho, sobretudo a parte da família - a camada ficcional do espetáculo. No segundo dia acho que a peça foi ótima, como eu a tinha imaginado. E no terceiro dia nós colocamos uma cena a mais, feita na hora, que não funcionou - vamos retirá-la para a reestreia. No entanto alguns outros detalhes que adicionamos ficarão. A peça está em movimento - e talvez sempre vá estar. Vocês reavaliaram o seu lugar de fala nesse contexto, enquanto artista e enquanto branco? Reavaliamos completamente o nosso lugar como um todo nesse processo. Foi realmente transformador, e por isso acre-

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ditamos que o resultado dele também pode ser transformador para outrxs brancxs. A transformação vai no sentido de nos percebermos enquanto brancos. Um dos pontos cruciais foi a percepção, ou o pensamento, de que justamente ali, onde achávamos que já sabíamos sobre o nosso racismo, ali é que estávamos sendo racistas em um outro nível. Porque nesse ponto não éramos capazes de aceitar que o nosso olhar não dá conta de tudo. Que é necessário um outro olhar para que nós conheçamos a nós mesmos inclusive. Nesse ponto, o encontro, o embate com os provocadores foi crucial e moveu efetivamente muito a nossa própria compreensão disso tudo. Fazer a peça foi necessário para entender essas coisas. Vocês hoje acreditam que as “desculpas antes da culpa” tiveram um peso menor ou maior do que a medida ideal para esta peça/processo/provocação? Achamos que não houve “desculpas antes da culpa”, porque não se trata de culpa e sim de responsabilidade. Trata-se de assumir a existência de um lugar de privilégio e portanto de responsabilidade, um lugar que é constitutivo da barbárie onde vivemos. Olhar ativamente para isso é uma tarefa dx brancx que quer transformar essa mesma barbárie, que quer que a sociedade caminhe numa direção menos opressora.. Por isso a peça não é mesmo, talvez, muito gostosa de ver. É para dar a sensação mesmo desagradável de que tudo aquilo se sustenta em algo de muito sinistro. Toda a calma, o tédio, e mesmo o desconforto, as dúvidas da família, tudo isso está constantemente sustentado em sangue, em morte. O público incomodava-se. “Branco” cumpriu o objetivo que vocês se propuseram? O incômodo tem vários sentidos possíveis. O público não me parece ter uma reação única, tampouco. Isso, nessa

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Alexandre Dal Farra::entrevista peça, é ainda mais verdadeiro. Certos incômodos são bem vindos, outros, não são o que buscamos, e sempre estaremos procurando evitá-los - e por isso também a peça não está fechada, nunca estará talvez. No último ensaio os provocadores manifestaram a opinião sobre um dos vídeos utilizados, afirmando que estava redundante, se comparado ao que o “núcleo familiar dramático” da peça já discutida. Vocês não só mantiveram como criaram uma nova versão do vídeo. Por quê? Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver justamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como recurso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodificar o que é dito em relação com o ponto preciso em que o trabalho está. Eles vão voltar e vamos conversar novamente, de qualquer forma. Houve auto censura? O que vocês teriam feito de diferente? Não houve autocensura, e nem acho que isso exista, embora entenda o que vocês estejam querendo dizer. Acho que o processo da peça foi um aprendizado profundo, e tudo o que queremos dizer está sendo dito. Não penso em auto censura. Mas penso em tentativa de processar questões. Penso na tentativa de repor uma trajetória. De qualquer modo, não há nada que nós gostaríamos de fazer e não fizemos por algum tipo de auto-repressão forçada. Tudo que está ali é o

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que demos conta de processar em algo de extremamente complexo e difícil para nós. Você acredita que Branco dialoga com A Missão por oposição radical, concordância completa ou nem uma coisa nem outra. E por que? Ou ainda se é impossível traçar esse paralelo? Não tenho como saber, porque não assisti à peça, já que apresentamos nos mesmos dias. Não tenho como opinar. omni occum nest, totam, volorerum ut et unt et ant, samenis et andio. Nequoss untotat aut etus, consequiae non re puditio ipsapie nimiliquis explaut hicium as quate prerchil in nonseni maxim ipid modic tem ad mi, conserum aut explignihil inis renis nobisquate vo lup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles ex ista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver justamente com um incômo do que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodifi car o que é dito em relação com o ponto preciso em que o trabalho está. Eles vão voltar e vamos conversar nova mente, de qualquer forma. omni occum

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: o cheiro do lírio e do formol

Di reçã o Al ex andr e d al Far r a e Ja n ain a Le it e Dramat ur gia Al ex andr e d al Far r a

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A empatia que

te faz culpado

p or m a ri a te r e s a c r u z

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Na margem - Olá, com licença, vim acompanhar o ensaio. - Ah, sim. Você é a garota do e-mail. Pessoal, ela veio acompanhar o ensaio. Entra, fique à vontade. Quer um café? Um aceno sem graça para todo mundo. - Sim. Sem açúcar. Estava olhando aquelas pessoas pela primeira vez. Também estava tomando contato com aquelas palavras, os gestos – e também as ausências deles – pela primeira vez. O cenário tinha algo de displicente, um desarrumar proposital. Os figurinos poderiam ser aqueles, mas poderiam ser qualquer outra coisa também. Um projetor. Luzes. Uma geladeira completamente fora de lugar. Assim como eu me sentia um pouco naquele momento. Era um olhar estrangeiro. Era um olhar de fora para dentro. Tinha algo de disponível naquela geladeira. Assim como em mim. Texto. Texto. Volta um trecho. Repete, que essa intenção aí não é exatamente o que tinha pensado quando escrevi. Sou avisada de que alguns vídeos que usarão no espetáculo não estão prontos. O barulho do interruptor. Apaga, acende. Acende, apaga. Preto, branco. Branco, preto. Um diálogo imaginário entre um provocador e o dramaturgo é projetado na parede. Me desligo por um instante do momento presente e começo a criar um diálogo imaginário que estaria tendo com alguém que, ao ser interpelado sobre o descumprimento de uma promessa, consegue apenas dizer que eu errei o café. Me acusa. Eu insisto na pergunta. Me acusa novamente dizendo que o café ficou fraco demais. Mas com quem eu falo? E quem eu escuto? Me coloco no lugar do provocador. Não me encaixo. Não é meu aquele lugar.

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Branco::acompanhamento de processo

A trilha sonora é tensa. Boquiaberta, eu chego a babar. Um barulho na porta de ferro da sala de ensaio e, ao fundo, parece um leve toque na sinaleira da minha bicicleta. Sobressalto. Desço correndo as escadas para checar se ela ainda estava lá. Alívio. Retorno ao ensaio, me desculpo e dou um sinal de que está tudo sob controle. Não posso ocupar o lugar de um provocador, mas a peça me provoca. Eu digo aos atores e ao dramaturgo que o argumento da peça, que é inclusive esmiuçado ao longo dela, une todas as justificativas para que a peça não tenha razão de existir. E questiono se essa não é também uma forma de se proteger. Se não é uma espécie de autoindulgência diante de uma acusação que imaginam que recairá sobre eles. E que isso pode soar arrogante. Ao mesmo tempo, digo que é justamente essa dialética, que permeia todo o espetáculo, o que o faz tão presente, tão vivo, tão necessário. Algo como uma incoerência necessária. Até porque, essa relação (ou a ausência dela) entre o lugar de fala e de escuta, tem sido demasiada incoerente. Saio pedalando e algo dentro de mim me incomoda. Aquele texto, aquelas pessoas, aquela conversa, me impactou irremediavelmente. É noite. Estou submersa em todas aquelas questões levantadas. Sobressalto. Um assalto. Um murro na cara, alguns chutes. Minha bicicleta, agora sim, é levada. Na delegacia, algumas horas depois: - Senhora, o criminoso era de que cor? Silêncio. - Senhora, por favor, a cor da pele do cara que roubou? Consegue lembrar? Ser cúmplice é também uma forma de culpa.

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Contemplação No segundo encontro, uma situação do ensaio anterior ainda reverberava em mim e incomodava. A ideia de que aquela família – pessoas, casa, elementos, diálogos – bem como toda a verborragia proferida como em fluxo de consciência do dramaturgo não passavam de delírio. Quase uma literalidade de um sonho. Ao mesmo tempo, fiquei pensando que o temor de virar alvo talvez tenha provocado em todos os artistas envolvidos no processo, o cuidado de explicar e ao mesmo tempo criar um ambiente confortável para que pudessem se abrigar, caso a repercussão do trabalho fosse tão negativa. Ou seja: recorrer ao delírio. Mas parecia tão real. A presença de dois provocadores negros me fez sentir desnecessária ali. Quase como quando você tenta vestir uma calça que não lhe serve mais. Como poderei eu contribuir com alguma coisa se o tal lugar de fala está aqui personificado por dois atores negros? Alguns novos elementos apareceram no ensaio. Figurinos já mais determinados. Os vídeos que seriam projetados nas paredes estavam prontos. Fiquei ansiosa pelo resultado. Os atores já em cena, acabei absorvida por observar como os dois artistas negros, chamados até lá com o intuito de opinar sobre o processo, reagiam às cenas. Eles ficaram vidrados. Não esboçaram o que pode se chamar de reação. Eu ficava tensa ao tentar fazer o exercício de imaginar o que se passava na cabeça deles. Um cochicho. Dois cochichos. Um ensaio de um riso de canto de boca. E só. Comecei a constatar que os diversos momentos da peça em que eu ria – e eu ria muito – poderiam ser subterfúgios. Um riso de vergonha. Talvez desespero. O ensaio terminou. A palavra passa a quem é de direito, ao menos naquilo que convencionou-se chamar de moralmen-

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Branco::acompanhamento de processo

te correto. Os dois artistas negros compreenderam a mensagem. De certa forma, respiro aliviada, porque, até aquele momento, poderia eu estar passando por um delírio a ponto de conseguir acessar aquilo que mobilizou o dramaturgo – e posteriormente os artistas envolvidos – a escrever e levar a cabo a peça. Algumas considerações estéticas. Outras mais voltadas ao que consideraram excessivo e repetitivo. Nesse sentido, talvez, concordasse com eles. Em alguns momentos, a mea culpa se sobrepunha a potência da provocação que aquele texto suscitava. De toda forma, não tive mais dúvidas: era insanamente real. E provocador.

Um mergulho Estar onisciente. Tem uma dose de pertencimento nisso. E, de certa forma, um conforto, porque sei que não serei surpreendida. Ao redor, eu posso sentir um misto de curiosidade daqueles que ouviram falar que “Branco: o cheio do lírio e do formol” é uma peça de brancos sobre racismo. O terceiro sinal. Revejo aquela família. Os diálogos me causam incômodo. A técnica de banalizar as palavras ditas pelos personagens consegue criar a exata crueza de como as relações ficam na superfície e se estabelecem. Sou abraçada pelo desconforto das pessoas ao meu redor. O espetáculo acontece em três eixos: o dramático, representado justamente pela família; o narrativo, evidenciado nas projeções e em textos escritos ao longo do processo; e o reflexivo, aonde o dramaturgo se coloca em primeira pessoa, na voz dos atores, assumindo, quase que em uma espécie de confessionário, a dificuldade em lidar com um tema tão importante e tão delicado, e ao mesmo tempo espinhoso.

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Apesar de ter o privilégio de, de certa forma, saber o que aconteceria, fui surpreendida, sim, ao longo da apresentação. A gente precisa, sempre que possível, lembrar que na educação financeira e em uma discussão, menos é mais. A convergência dos recursos utilizados e a criação da sobre tela nos momentos de fluxo de consciência do dramaturgo, além de se pretenderem como comunicação estética, dialogavam com a relação entre lugares de fala e de escuta. Além disso, é impossível não pensar na teoria do espelho, inspirada no positivismo de Auguste Comte, que dizia que determinado conceito/informação é como é porque a realidade assim determinou. Nesse sentido, reproduzo, mas muito pouco posso fazer para transformar. A sensação é algo como ser um completo imbecil diante da realidade. Estar preso à paradigmas que você observa, não lhes dizem respeito, mas ainda assim você reproduz. Eu me olho, me vejo, mas meu discurso é sobre quem? Sobre mim mesmo ou sobre o outro? Tenho eu o direito de falar do outro? Falar sobre e falar de são conceitos diferentes? A gosma branca comunica: “Olha lá, tá falando merda”. Ao mesmo tempo, ao colocar um ator branco para ler o texto como se fosse negro, o argumento do espetáculo perde um pouco o tônus. A falta da presença do negro, por si só, já criou a narrativa do invisível. E isso é potência na montagem. O pai, o filho, a tia. Uma família típica. Um arranjo de parentes banal. São letárgicos, non-sense, apáticos. Banais também são os diálogos. Ficam sempre na superfície, não querem se aprofundar, mostrando um desejo de não se envolverem em questões que exigirão uma reflexão maior. Eles estão na superfície. Assim se protegem e garantem que não irão se afogar no pantanoso terreno que é discutir o quanto são privilegiados. Mas, em determinado momento, são chamados a tomar uma posição. E se sentem acuados. Tanto quanto

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Branco::acompanhamento de processo àqueles que costumam oprimir ao se omitir. Aquelas pessoas não existem individualmente. Muito menos aquela casa. Aquela composição pode ser encarada como a mente de todo aquele que se omite. Aqueles diálogos operam no plano de um fluxo de pensamentos de uma pessoa que se acovarda diante dos fatos. Ela quer evitar o conflito. Até porque o que motivou o conflito não lhe diz respeito. Aquele lugar de fala não é o dela. Ela é branca, cis, classe média alta. E com essa justificativa, ela pode, de consciência tranquila, simplesmente se eximir de toda e qualquer culpa que lhe tentem imputar, em qualquer possível relação que se estabeleça e apareça alguma situação de preconceito. Afinal, pensa ela, se esse lugar de fala não é meu, deixa a quem é de direito e vou apenas olhar. Tenho o privilégio de nunca ser alvo. Por que então me arriscarei? O oprimido só ocupa esse papel social porque existe o opressor. Estar na bolha é muito confortável. Falar para convertidos, então, é garantia de aplauso. “Branco” foge dessas duas lógicas e, talvez também por isso, seja uma experiência tão desconfortável. Alguns trechos chegam até mesmo a constranger. Não ouvir o outro pode ser fatal. E, por isso, o protagonismo daquele que ocupa o lugar de fala de uma pessoa que represente uma minoria – na maior parte das vezes, não em número, mas em direitos – é tão importante. Mas há um lugar de escuta. E uma diferença abissal entre se ausentar e ocupar esse lugar. E estar de um lado ou de outro depende apenas de duas coisas: empatia e coragem. Um espaço só surge quando aquilo que o ocupava vai embora. Morre. É na ausência que o movimento acontece. O cheiro das flores em uma sala de um velório que nunca aconteceu. O cheiro do formol no necrotério que só está na imaginação. Nas caixas, já sem vida, estão o bom senso e a capacidade de diálogo. Não há flores, nem formol, mas é incrível como

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é possível sentir a presença desses elementos. O diálogo só é possível quando há espaço. O espaço só aparece quando há ausência. A ausência só acontece quando há morte. Diante do acirramento dos discursos, da intolerância com o pensamento daquele que difere de você, só há espaço para o silêncio. Mas o silêncio também é privilégio. E ainda estou tentando entender o quanto pode ser incômoda a experiência de ser cúmplice.

maria teresa cruz acompanhou ensaios do processo criativo do espetáculo.

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Condicionador Branco

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ada vez que um HCBHCM questiona o lugar de fala, há poucas saídas e muita confusão. Na versão mais infantil do pensamento, o HCBHCM deve calar e ouvir, e as-

sim pagar a dívida histórica para com todos os oprimidos que fundaram os vícios dessa estrutura social. Nas versões mais maduras, o HCBHCM não deve se ausentar, pois é próprio da covardia de quem não tem que lutar por seus direitos; é um processo racional bem simples e fácil, este que é o de perceber como os privilégios se manifestam; portanto, o HCBHCM deve vigiar e questionar-se no lar, na rua, no trabalho, dentro de si sobretudo, para desnaturalizar a discriminação por cor, gênero, condição social ou sexualidade. A questão que levanto é: quando é que se pode falar? Indo mais além: é possível existir um plano de ação que não torne o debate numa versão mais banal do universo processual de Franz Kafka, onde alguém é culpado até que se prove o contrário? – Em tempo: HCBHCM é a sigla que eu inventei para “homem cis branco hétero classe média”. Não representa nenhuma minoria ou grupo oprimido, pois este indivíduo é contemplado pela estrutura social. (É preciso usar o termo “privilégio” com cuidado, pois assumir esta condição é reconhecer uma superioridade na condição que, embora usufruída antes de percebida, não deve ser naturalizada no discurso.) São muitas as questões e os xeques desse debate. É por isso que foi corajoso que entre os espetáculos do “núcleo racismo” da 4ª MIT-SP houvesse uma cia. de teatro formada só de brancos. Que tenha dado fala a um grupo que, em teoria para alguns radicais, nunca deveria ter sido ouvido. A proposta dos curadores previam a polêmica, assim como os criadores de Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol. Ela veio. Um dos pontos do espetáculo escrito por Dal Farra é justamente sobre o lugar de fala. “Branco” é dividida em três pilares. Um deles, retórico e metateatral, levanta a questão expondo o próprio

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Branco::acompanhamento de processo processo criativo e as armadilhas do “local social” onde os artistas brancos envolvidos numa obra sobre o racismo estrutural se encontravam (e ainda se encontram). Por meio de depoimentos ou projeções, expõe-se ao público o conflito ético e estético envolvidos no espetáculo ao longo dos meses de gestação. Durante esse período a cia. convidou artistas e pensadores negros e engajados na causa racial; o papel desses provocadores foi o de criticar e oferecer retorno de ordem retórica, conceitual, intelectual, o que fosse. Parte da forma “final” de Branco – o pilar em questão e a voz do autor/diretor – nos revela sobre aqueles momentos de troca, as reverberações das pauladas recebidas e ao que elas levaram: além de autocrítica, alterações radicais na estrutura da peça. Eu mesmo participei de um desses momentos e pude perceber que mesmo os mais moderados provocadores, estes elogiando a coragem da cia. de dar a cara branca à tapa, ainda não possuem resposta de ação ao branco que não quer ser apenas espectador da mudança. Assim, um terço da obra é uma espécie de exposição, confessionário, para alguns “mea-culpa”. Nestas falas de confissão eles assumem que perceberam que o racismo estrutural operava na criação do texto nas primeiras versões do texto. Eles previam a reação dos movimentos negros e o linchamento, e ainda assim continuaram. Nestes momentos da peça revelam-se as razões pela quais eles não desistiram do projeto nem arredaram o pé num debate usualmente hostil. Como eles mesmos dizem na obra, pior que dizer o que se diz é desistir de fazê-lo; colocar-se em silêncio equivaleria a aceitar o não-engajamento, o comodismo e o privilégio de quem se encontra em posição estabilizada nas relações padronizantes da sociedade de origem escravocrata. Outro pilar da obra é o núcleo familiar de um homem, sua irmã e seu filho adolescente, caracterizados pela cor branca e condição social de classe média. Nesta família paira uma catatonia

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entediante, mas reconhecível. A primeira impressão que tive assistindo aos ensaios foi uma proximidade com algumas das obras de Samuel Beckett, guardadas as devidas proporções. No irlandês os diálogos aparentemente desconexos revelam um “nada” de uma natureza existencial humana. Em “Branco” os diálogos refletem um vazio de relações sem empatia, sem interesse, sem escuta; conversas cheias de “ah”, “ah é?”; uma troca de dados, não o desenvolvimento de um tema. Dentro da esfera burguesa e racista, “Branco” está contido em Beckett, embora soaria pretensioso afirmar o contrário, uma vez que os personagens ansiosos, frustrados e apáticos desta família são incapazes de pensar profundamente a própria existência; eles precisam de uma ameaça de morte para expor seus mecanismos subjetivos: racistas, mas antes de tudo medrosos, mesquinhos e materialistas. De certa forma, Branco tem semelhança com o espetáculo Por Que o Sr. R. Enloqueceu, também da MIT-SP 2017. As ações, ou, quando muito, reações, são frutos de um oculto paradigma que leva cada personagem a pensar apenas no universo de suas paredes. Embora a relação indireta entre esse egoísmo cansado e o racismo estrutural não seja evidente, é bom notar que o estilo de vida egoísta e consumista é um dos fatores que tem resultado na estafa social e na manutenção de uma estrutura racista, misógina, xenófoba, “monocordial”. Ao usar esta palavra tento sintetizar um fenômeno evidente no sistema sócio-econômico vigente, pois junta três ideias: a) a tal da cordialidade brasileira, apontada por Sérgio Buarque de Hollanda como a característica de tomar decisões levadas pelo coração, ou seja, pela emoção pessoal, pelas relações afetivas próximas, não pela razão ou causa maior; b) a cordialidade é potencializada pelo círculo vicioso de quem não confronta as próprias ideias com as opostas, o que acontece entre muros, shoppings e redes sociais cujos logaritmos

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Branco::acompanhamento de processo comerciais acabam mostrando só o que você costuma curtir; c) e isso resulta em uma mania de ideia única, protofascista, monocórdica, monótona, que se consolida pela manutenção de medos e condicionamentos criados por vias mediáticas; ideias monocromáticas das quais não se consegue em si enxergar – a variedade neoliberal é a concepção de uma gôndola e consumidores, não de uma sociedade e cidadãos. O terceiro pilar da obra é também parte das revelações do processo: cenas cortadas, diálogos imaginários, projeções de cenas de versões anteriores filmadas, ou seja, os pedaços daquilo que ficou pra trás (só que não). Este pilar faz a ponte entre os confessionários e a resultante familiar, embora em alguns momentos ele complemente, outras apenas destoe e cause estranhamento. Há na concepção cênica da obra diversos elementos interessantes, como no caso do banho de creme condicionador no chão, o homem que segura o adaptador de tomada para celular num colete “porta-tudo”, os tapetes de couro de vaca decorando a sala, ou mesmo o tom “kadarshiano” na voz da tia – referência cool, embora muitas vezes inconsciente, signo do desinteresse, um jeito de falar e que tem posto alguns fonoaudiólogos em alerta. Algumas dessas decisões de encenação no espetáculo causam antes um estranhamento formal do que essencial – que, acredito eu, seria a percepção do racismo estrutural na família branca. Não posso escrever sobre o consciência desse resultado, pois o percurso do estranhamento cabe à liberdade criativa do autor. A obra sob diversos aspectos dá assunto para conversas extensas. Escolher um ponto de partida e de chegada para escrever este artigo foi dificílimo, pois coloco-me no lugar do Tablado de Arruar nesse discurso tão cheio de armadilhas, ruas sem saída, não-lugares. Mas esta é a posição onde a mostra nos colocou: perceber as estruturas e os muros que nos separam. Foi uma proposta interessante e polêmica estrear ao mesmo tempo dois

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espetáculos sobre o racismo no Brasil, um produzido por grupo só de negros, outro só de brancos, e depois seguir temporada no mesmo local e tempo (“A Missão em Fragmentos”, do grupo Legítima Defesa, em abril faz par com Branco no CCSP). Se consideradas como medida de discussão “o quê” e o “como” se fala, e menos “quem” fala, a comparação das obras poderá promover reflexões transversais e frutíferas. Por fim, não se deve ignorar os indícios que alimentam o “apartheid discursivo”; parece ser justamente este o objetivo final de muitos argumentos nas “lutas” e nos grupos: branco não pode falar de negro, homem não pode falar de mulher, hétero não pode falar de LGBT, ou, pior, diferenciar graus de negritude, “níveis de homossexualidade”, trans não pode falar de mulher, moreno não pode falar de negro e por aí vai. As bizarrices do debate multiplicam-se (ou melhor: dividem-se) a cada dia, sendo necessário que todos os comovidos comecem a se preparar e sair de cima do muro, antes que a estratégia de separação aumente a bolha do ódio, ou, ironicamente, a perpetuação discriminatória. É disso que chamo de “apartheid de discurso”. Por trás da bandeira de “igualdade” e “justiça” está a velha, pura e crua vontade de poder; absolutamente compreendida se houver empatia, somos todas falíveis; mas inadmissível se pretende-se caminhar para uma sociedade que enfim valorize as capacidades do ser humano, não suas características físicas.

claucio andré acompanhou ensaios do processo criativo do espetáculo. antro+

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foto guto muniz

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12 cenas de descolonização

em legítima defesa

e ugê n io lima

a missão em

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A MissĂŁo em Fragmentos::acompanhamento de processo

LEGĂ?TIMA CERTEZA

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ugênio Lima, o encenador de fissuras entre o bangue da forma e o rolê do conteúdo. O sociólogo Milton Santos definiu o espaço como

uma acumulação de tempos. O coletivo Legítima Defesa, notando o espaço do teatro como solo fértil para eclodir este pensamento em forma de ação cênica, parece organizar sua tese através deste eixo. Em cena, o coletivo produz um tipo de síntese histórica que procura caber (não caber) no palco. Os furos na forma e as rupturas por onde escapa o ar da montagem, ainda que possam deixar a obra em estado de alerta, pois o todo parece ensaiar sair do controle estético; ainda assim, parecem intencionais e destemidos. Ainda que o objetivo esteja claro e o arsenal retórico tenha sido visto e revisto por ideologias precisas, na tensão que é explodir um discurso coletivo e de união, afim de trazer para a liberdade cidadãos até então considerados ilegais, como se fosse ilegal ser negro, resta na boca o permanente aviso (ora enunciado e outrora silencioso) - trata-se de uma MISSÃO! Não é uma ideia e nem um ideal - é uma missão intransferível e radical, uma missão com nome próprio e auto-imposta através de um levante da consciência que, de início, é encabeçada por apenas um até, após desdobramentos, tornar-se coletiva. Em cena, vê-se uma constante revisão da História e a criação de neo-mitos bem alinhados com vozes de resistência de ontem e hoje. Disto surge o Haiti como referência ímpar para uma revolução recente e única. Os Racionais MC’s como um resgate de ordem cultural e à brasileira. Também surge o slam e a música sagrada (tribal) como vozes transcendentais e atemporais que colocam o presente como instância sacra mediada pela ideia de libertação, ao menos verbal, intelectual e religiosa do sujeito negro contemporâneo.

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A Missão em Fragmentos::acompanhamento de processo Com isto, está traçado o panorama que possibilitará criar um jogo de idas e vindas formais, até encontrarmos Heiner Muller em uma batalha de MCs. O que de fato está posto é a realização de um objeto estético e cultural - por fim - um objeto NEGRO. E o palco, tradicional catalizador de épocas e também tradicional sentença para o pescoço dos tiranos, em uma justa função para o teatro ocidental, apresenta uma militância que se pretende catártica e também combativa, embora épica. Há nesta montagem uma dança que não pretende narrar (apenas ser) e uma dramaturgia que não deseja conduzir, ao contrário, no desenlace das cenas que sempre negam o sentido racional da narrativa passada pretende-se, através da fusão e da confusão, atravessar o condutor implicado (o ator) e abrir-alas para instrumentalizar a presença da plateia, que, supõem-se, conectada. Com roteiro e direção de Orson Welles, “O Processo”, filme inspirado no romance de Franz Kafka, durante a cena inicial do filme homônimo ao texto vemos um homem que acorda julgado e culpado. O protagonista é acordado pela polícia que já o sentenciou. O protagonista desconhece seu crime e tampouco seus acusadores desejam revelar-lhe coisa alguma. E isto, no filme, produz uma absoluta noção da incomunicabilidade que há entre o que penso ser e aquilo que o outro, o de fora, deduz sobre quem sou. A decisão do grupo por trabalhar a voz do oprimido segundo suas canções dançantes e, em alguma medida, sua “festa”, produz efeito similar ao efeito que nos causa a cena acima descrita. Pois, ser detido durante uma festa, durante o transcorrer pacífico de sua vida em sua terra natal ou durante o próprio sono (como no filme) é ser preso sem nunca ter imaginado a existência da prisão.

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É viver sem jamais prever que há uma condenação inexplicável, enquanto você está distraído, viajando ao seu encontro. Enquanto no filme, o expectador agonicamente busca compreender qual seria esta perversa estrutura militar e “legal” que condena pessoas sem ao menos enunciar o crime ao culpado, assim aconteceu ao povo negro, outrora escravo e outrora livre, sem maiores explicações. A cena produz perguntas que perseguem algum tipo de ordem racional por trás da sociedade escravocrata. Por fim, numa tragédia humana implacável , tudo o que se pode encontrar para justificar o dano irreparável da escravidão, é um mal racional e premeditado. Por dentro da ideologia racista só existe o lucro que sonha acumular-se até criar uma sociedade perfeitamente tecnológica e segura para uma minoria de seres humanos escolhidos aleatoriamente pela cor da pele, por sua cultura e religião. Na peça temos a chance de notar que o processo de escravização deu-se ao contrário de um sequestro contemporâneo, em que as vítimas sabem a razão de terem sido violentamente retiradas de sua comunidade; o coletivo está pasmo, quase à um passo de acreditar que o passado nunca aconteceu. A motivação escravagista pode variar hipocritamente através das décadas e esconder-se atrás de uma razão alegórica - a cor da pele. E o direito à compreender porque o mundo voltou-se de forma inabalável contra sua liberdade nunca foi outorgado ao povo negro. É uma guerra não comunicada, e ao mesmo tempo de longuíssima duração. O interlocutor, tão desumanizado, não é convidado para participar de seu próprio contexto, pretende-se que a individualidade do negro seja um enfeite desimportante no processo racista. A escravização da sociedade negra deu-se à base do “assim é que é” e do “aceite”. E jamais encontraremos a cura

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A Missão em Fragmentos::acompanhamento de processo sem assumirmos que a “democracia racial “ é uma falácia voltava ao interesse do sujeito branco. E hoje, ainda na conquista da representação na língua, das mídias, das formas e dos meios de produção, o povo negro deseja e luta para que esta equação se veja transformada no século 21, não mais os negros descenderão de escravos. Agora serão os brancos quem descenderão de escravagistas. E isto fará toda a diferença. Ao menos na literatura de resistência e nesta peça de teatro é possível imaginar que a nivelação das diferenças não é um ideal impossível. Não deixa de ser um teatro que, apesar de realista, carrega uma visão otimista, ainda que sob a neblina de palavras de ordem e tom combativo. Também não se trata de um teatro que pretende dar o parecer final acerca do tema, inclusive a forma montável das cenas pressupõe espaço (um vão de sentido) entre as peças do móbile. Em um ato fundante, o coletivo cria um teatro negro de contribuição, pois há investigação formal, ideológica, acadêmica e prática suficientes para traçarmos diversos eixos, portanto, com esta convergência. Talvez ainda de forma descontroladamente poderosa, vemos o teatro tornar-se uma religião. A palavra “religião” designa uma cartilha de rituais, costumes e ideias que tem em comum religar o ser humano a algo que este, em grupo ou só, pensa ou sente estar desconectado. Isto pressupõe um passado espiritual ou físico aonde o ser agora desconectado via-se mais completo do que vê-se hoje. Ou seja, quer religar-se, por necessidade de plenitude, a algo que o completará como ser humano e espiritual. Então, teatro religioso, porque religa seus fazedores e público ao ponto de partida sócio-histórico, e isto completa sim algumas lacunas na vida privada e pública. Fica claro que ao falar desta temática há também um exor-

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cismo público das inúmeras questões que tentam bloquear o contado do espírito negro contemporâneo com sua ancestralidade. Este teatro religioso, ao invés de idealizar uma utopia, como demandam as religiões tradicionais, busca realizar na Terra seu paraíso. É que a MISSÃO, acima elaborada, será perpétua, mas não eterna. E, outra vez na contramão das religiões tradicionais, o real encontro com a falta e a transformação do vazio existencial está para além da morte, pois, acontece agora e ainda em vida. Por fim, para esta MISSÃO, a única oração possível é a revolução.

marcio tito acompanhou ensaios do processo criativo do espetáculo.

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fotos ju ostkreuz

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por que o sr. enl

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louqueceu? SUSANNE KENNEDY

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Surtez de um brasileiro preambulante

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Vamos combinar: não falarei de Sr. R. no Paulo Autran, falarei de Sr. R. no Largo da Batata.

Subi a Teodoro puto puto bêbado e cheirado, embora nem pó, nem álcool nem sífilis no sangue, pois a substância é estética, e ética. Subi a Teodoro incerto se zangaria a noite, se voltaria pra casa, se tiraria a roupa, se dormiria, se chamaria a crush às pressas, se arrombaria a porta logo, se logo a arrombaria à porta, se chamaria o ponto G de gross growth gag gang god grito gore gulag godot gozei, só não gourmet, só não gugu, não só gogó. Pinheiros. Precisei subir o bairro ziguezagueando os quarteirões de comércio absolutamente incerto se eu queria mesmo ir pra casa assentar aquela ira de cores tão ignéditas. Os olhos insanos, digo à vizinha, “vi uma peça; que público perturbador!” e saí andando. Isso tudo só passou quando sentei a libido no teclado. Então estamos combinados? Estamos combinados. Por que o Sr. R. enlouqueceu?

Esc Pinheiros Já dizendo: não assisti ao filme. Já dizendo: não precisou. Também avisando: antes da peça, vi duas rodas de conversa. Para além: a obra mudou radicalmente após os aplausos. Logo após. O público aplaudindo, como se não discreto charme. Sentado no sofá em frente a escada rolante do hall do Teatro Paulo Autran, assistindo aos capítulos finais daquele ritual perfumado.

Roda I – Dramatour Entra Susanne. A diretora, dramaturgista e atriz são informadas ali sobre o tema da roda: a transposição do cinema para o teatro. “É uma adaptação, precisava achar minha versão.”

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::percurso Participantes perguntam sobre a dramaturgia; sobre o sistema de financiamento do Estado; as dificuldades de fazer isso no Brasil; a precariedade; o público; sobre a função da dramaturgista; sobre quais foram os desafios dela no processo. (A peça tem dois anos e meio, a dramaturgista era outra.) Diretora não gosta muito de dramaturgistas, mas entende a importância de suas observações. Voltamos ao tema. Poucos ali tinham ido à peça na estreia da noite anterior. Conversa com cuidado para spoilers.

Livre arbítrio em cena Querem saber do processo. As falas foram gravadas; as vozes são dos funcionários do teatro, não dos atores; aqueles foram orientados para ler com ausência de emoção e neutra entonação. Não sabiam o contexto das falas, que foram depois encaixadas umas nas outras, às vezes desconexadamente. A descrição me lembra um dos curtas-metragens de David Lynch. Em cena, as falas são dubladas; elenco só movimenta a boca. Os gestos também são marcados, precisão pragmática. Quase não há liberdade de atuação. Para completar, as faces também são tapadas com máscara de silicone. Onde está a criação do performer? E seu lugar de atuação? Está no ar. “Não há espaço para o ego. Atuação e processo de criação foram e são para levantar a questão: o que é ser um ser humano? O ator tem que fazer o que tem que fazer” – responde a alemã, aqui sem medo de revelar a incerteza de suas certezas. Alguém se lembra de perguntar à atriz sobre como é estar nesse local. Ela, doppleganger do Mick Jagger, se entusiasma: It’s crazy! (No intervalo, Suzanne Kennedy me conta: David Lynch é um dos seus favoritos.)

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Bottom button The play is the thing em Hamlet. The PLAY is the thing em Sr. R. A peça começa quando se aperta o botão. O áudio será reproduzido todas as noites igualmente, da primeira à última apresentação. O que isso diz sobre o que se quer dizer? Trabalho, bar, família. Família, loja, bar. Trabalho, bar, família. Família, loja, bar. Sr. R. não consegue se lembrar da canção que o fez feliz. Dá; da-dá; dí. Dá; da-dá; dí. “Reconhecem?” Papo reto. Freud acredita que a segunda fase do desenvolvimento psicossexual é a fase anal. Crianças de 18 a 36 meses capacitam-se no controle do esfíncter e criam consciência erótica do defecar. Se tiver uma experiência atípica nesta fase, de má educação ou treinamento, resultando num comportamento de resistência ante à obrigação do vaso, a criança poderá se tornar um adulto controlador, obsessivamente pontual, abusivamente respeitoso à autoridade. Um C.D.F. No extremo contrário, ou seja, se ocorrer rebeldia à funcionalidade do ânus ou ao apego fecal, chances há de ser bagunceiro, folgado, muitas vezes insensível aos sentimentos alheios. Um cuzão. Um homem com algum tipo de distúrbio retardante mental entra na sala e corta a cena da roda. Ele pergunta por Vanessa. Ninguém sabe quem é ele, nem quem é Vanessa. Máscaras de silicone no rosto dos organizadores. (Vimos seus olhos, vimos seus olhos...;) Sensação de pânico mode on, preparar, apontar… já não precisa. Atraído pelos bolos e docinhos, o homem é convencido por uma das participantes a ir procurar a Vanessa lá fora, com umas bolachas no bolso. Fala-se de afeto, mas poucos ali, eu incluso, já estavam preparados para lidar com humanidade no caso do abrupto interromper de um homem deslocado de todas as suas rodas sociais. A diretora nota a coincidência.

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::percurso Facsísmile Ela também relembra que uma das circunstâncias atuais na Alemanha põe em alerta todos os humanistas atentos. O fascismo mete a fuça pelas frestas invisíveis quando o modus operandi da vida burguesa torna-se mais que uma referência, mas uma meta – trabalho, família, bar; família, loja, viagem; trabalho, família, bar; família, loja, viagem; com um toque gourmet e registro social. Quando a interrupção desse modus torna-se insulto e faísca pra o ódio, o fascismo corta caminho. O sistema também existe por lá, ela nos conta preocupada. Em “O Fascismo Eterno”, Umberto Eco enumera 14 características que os governos fascistas compartilham entre si; nem sempre todos os itens, mas uma mistura, cada um com sua própria receita. Uma dica ao ler a lista: não pense em Mussolini e Hitler, pense em almoço familiar, causas diversas e Facebook. Culto à tradição; Recusa da modernidade; Culto da ação pela ação; Nenhum sincretismo pode aceitar críticas; Aversão à diversidade (incluindo racismo); Apelo às classes médias frustradas; Obsessão pelo complô (incluindo xenofobia); Ressentimento pelo inimigo em paralelo à ideia de superioridade moral; Vida pela luta (querer a paz é estar de conluio com o inimigo); Elitismo popular (povo superior) submetido a uma hierarquia militar incontestável; Culto e mitificação do heroísmo (alô, séries da Marvel, alguém?) Machismo (vazão peniana, quando guerra e o heroísmo não podem ser jogados); Populismo qualitativo e eleição teatral, ou: a vontade da maioria é a vontade de todos;

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Newspeak (1984): no entanto a linguagem emburrecedora está nos meios da “entreta”. The PLAY is the thing. Faixa a faixa nos CD’s de cada toca-disco, as trilhas sonoras massificadas, buscando cada um no seu fone uma canção que dê cor ao clima de abate que o silêncio ecoado nas mentes nos imporia. Faixa a faixa as cenas vão avançando num tocar sem fim e sem graça. Não há espaço para contato humano na esteira capitalista. O xerox não é perfeito, mas dá pra ler.

Roda II – O Teatro Surtou? Um ator sobe ao palco e diz: – Eu. Ele diz o que gosta: – Eu. O mundo se coloca hoje como gostais: eu. Por meio, muitas vezes, de coletivos. Eu. Susanne afirma: “Não estou preocupada em provocar.” Ela prefere provocar-se. Daí talvez o embate constante de não dar espaço para o ego de seus artistas, nem ao seu. A faca ataca e se afia, o ator mata e morre, o ninja corta e corta-se.

Peles Livro Felicidade, Cia. das Letras, página 106. “Mas assim como se constata hoje que a exploração do meio ambiente natural pelo homem vem produzindo uma séria ameaça de desastre ecológico, parece razoável supor que estejamos vivendo um espécie de crise da ecologia psíquica, produzida pelo crescente descompasso entre o ambiente interno do anima homem – a natureza humana pré-lógica e pré-civilizada que herdamos da nossa trajetória evolutiva – e o ambiente externo da civilização tecnológica. A pergunta básica que fica

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::percurso é: a civilização entristece o animal humano?” Trabalho, bar, família. Família, loja, bar. O debate esquenta. Andreia Horta: hoje temos mais liberdade. Eduardo Gianetti: a permissividade é apenas técnica. Horta: o corpo! Gianetti: tá raso. Horta: e a carne? (No mesmo dia, na manchete, deu JBS e BRF.) Dadí, dadí, dá; Dadí, dadí, dadá.

Vitrinity Neocapitalismo. “O processo civilizatório é uma constante construção de aparências e imposições afetivas. Quanto mais civilizados, mais nos tornamos atores.” Gianetti não é danone. Quantificação e qualificação. O modus operandi não pode permitir espaço para rituais; tribos são targets etiquetados. E aí entra o teatro. Ajuntar-se com outros numa hora e espaço marcado, silenciar para ouvir por certo tempo um artista, silenciar o celular no bolso e dar-se por inteiro, aplaudir no fim e repetir na próxima vez – ir ao teatro é um ato de resistência, pró-ritual, pró-conexão, pró-outro. Para Kennedy, um dos poucos rituais que ainda sobrevivem. O teatro, quando dá certo, consegue ser revolucionário, pois não há competição; ou não deveria. Quebra-se o comportamento padrão de lá fora, que é o de querer tornar-se mais interessante que o outro, e anula-se o ego. O artista, quando em proposição humana e estética, ajuda ao outro ser humano abrir-se a uma sensibilidade por meio de uma experiência. “Provocar-me. Menos antropo, mais autofagia.” (licença poética)

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Síndrome Tanto se admira por cá o pragmatismo alemão, os brasileiros das rodas poderiam se apropriar disso. Em vez de fabulações ensimesmadas, perguntas. Em vez de resumo de teses, perguntas. Em vez falar, ouvir. – Mas não as perguntas sobre processo de trabalho, duração dos ensaios, pois é crise anunciada: aqui não temos condições disso, aqui não tem patrocínio praquilo, die blablabla., logo o brasileiro, o criativo das galáxias. – Mas sim o artista. O outro. Essa é a convenção teatral. Ou não? Que bom que em algum lugar da Terra se faz teatro para que olhamos como parâmetro. Mas comparar-se é reduzir-se. Esperar das instituições é reduzir-se. Em tempos de frozen-cultura, let it go. O que me faz lembrar de algumas metas médias:

Regourgitação Fora, picolé gourmet! Fora, hambúrguer gourmet! Fora, boteco gourmet! Fora, varanda gourmet! PF gourmet, PM gourmet, carnaval gourmet, yoga, yogurte, circo, teatro, pet shop, barba, rock, sertanejo, alface, chá, fora todos os novos símbolos check-points de comportamentos diferenciativos camufladores da insatisfação gourmesa. A revolução não será curtida, ostentada, fotofiltrada, namastizada ou tatuada. Em tempo: Fora, Kassab versão gourmet! Fora, golpe versão gourmet!

Por que o Sr. R. Enlouqueceu – A peça Cada cena, um quadro, uma faixa. Os cenários iguais em todos os ambientes, os elementos repetidos cor pastel de pêssego, luz de LCD, tela de LCD. O balcão gabinete, o balcão recepção, o balcão de comer, beber e xavecar: toda a vida parece passar por uma cozinha americana planejada.

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::percurso Então ao longo do espetáculo vemos cenas banais do cotidiano deste Sr. R.; círculos de afetividade esquemáticos até mesmo no seio familiar ou no happy hour da firma. Suas emoções logo se diluem na próxima linha do roteiro, esterilidade impecável. Nada ou quase nada acontece de estimulante; é a absoluta padronização das relações e dos ires e vires de uma vida classe média padrão numa cidade média alemã. Os personagens de Sr. R. parecem uma oposição cromática dos extremos psicossexuais freudianos da segunda fase: relaxados demais e apáticos, mas sem assumir uma autoria na rotina previsível e controladora; apenas seguem, folgados com a vida, respeitosos à autoridade do sistema. Há também os símbolos. A máscara de silicone, mais que uma ferramenta para a performance do ator, também lembra a padronização facial das modas embelezadoras; ou a busca por uma juventude eterna como contraponto ao desespero surgido pela percepção de um tempo utilizado em descartáveis experiências; ou ainda a ausência de emoção das pessoas em suas relações sociais e a distância entre corpos até quando dividem a mesma cama. As plantas em vasos me fazem lembrar de “Mantenha o Sistema”, de George Orwell, escrito antes mesmo da II Guerra Mundial, em que a aspidistra, vegetal que se tornou símbolo de bom gosto na burguesia europeia dos anos 30, torna-se também índice de um status quo que o autor critica. Por fim, temos a réplica miniatura de uma estátua clássica; tudo ali é a pasteurização decorativa. Um quadro do Romero Britto. De fato estão lá as falas dubladas, burocráticas, monótonas, desconexas e com espaçamento agoniante entre uma e outra. Meu insight se confirma: parece mesmo “Rabits”, aquele curta surreal do David Lynch que também é mostrado em “O Império dos Sonhos”. O que se fala não importa. Nada vai acontecer de novo. Ninguém vai de fato se ofender. Ninguém

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vai se importar com o brinde. Estão todos, personagens e atores, cumprindo papeis à risca, sem ousar sair do roteiro que lhes foi imposto.

Insosso insossego Que sono que dá ver o espetáculo. A vida de Sr. R. é o peido relaxado de um um domingo de cerveja e reality show. Família, trabalho, bar, loja. “Eu não sei o que faço”, ouvimos. É um looping. No entanto, insisto em continuar assistindo; e embora quisesse pular pro fim, ouvir o CD riscado é a experiência em si. Até porque o título entrega: o Sr. R. vai enlouquecer. As cores de sua vida parecem depender da inserção de elementos vendidos e mitificados como as experiências essenciais para tornar a vida algo que se preze. Ou que se prazo. Prize. Price. Já está claro que a vida de Sr. ® se projeta num possível aumento de salário; num desejado aumento na dosagem de medicamentos; num possível crescendo da trilha sonora que não toca nem se lembra; num desejado crescendo afetivo que soa estranho até para a esposa. Uma hora e meia de espetáculo e o Sr. ® ainda não enlouqueceu. E então... Ele ergue a estátua. Acima da cabeça. Um golpe. Outro golpe. Outro golpe de clássico. A réplica que poderia ser o abraço de Britto se torna arma para esmagar crânios. Na poética de Kennedy, até o surto é monótono, dilatado, bipado. Não há desenvolvimento dramático na cena porque não há desenvolvimento dramático no modus operandi questionado. Os papeis são os mesmos, os consumos esperados, segue, segue, segue. A peça é uma sonolência tanto quanto a curva padrão por trás dos Instagrans. ¿Quanto do materialismo alemão – que encabeça junto com Reino Unido e Esta-

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::percurso dos Unidos a criação de um sistema de crenças e comportamentos individualizadores – não existe em nossos olhares brasileiros estrangeirizados, gourmetizados, checklistizados, despolitizados? ¿Quanto dos altos e baixos não são as oscilações de muitos passos, se os altos e baixos ensimesmados forem solapados sob a perspectiva sísmica do tempo de algumas décadas, em nós, seres especiais quantificados em boletos e mercados? A repetição faz a verdade, a verdade é um surto que se contém, a depressão é a doença do século e a solidão é o oceano profundo por debaixo de ondas e marés de redes sociais.

Aplaude, São Paulo Diversas pescadas, o mar é o mesmo. Sono. Olho no relógio. Fim. Os aplausos instantâneos de sempre. Saio. Começo a escrever uma crítica imediata. E então percebo: • Pessoas rindo; • Êxtase; • A forma, a forma! • O filme, o filme! • As máscaras, as máscaras! • Oh a cultura! • Oh o nível! • Oh o pragmatismo alemão! • Que tédio! • Que ódio! • S2 forever! O mesmo nível dos comentários que desinteressou às artistas nas rodas menos interessantes da MIT. Enquanto se comenta processo, produto e forma, como consumidores que entre goles e mastigadas engolem a nova propaganda da nova versão do novo carro de sua nova vida, a obra olha pra plateia e

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diz: obrigado, mas você viu a peça? Por que o público não surtou?! Por apreciar o sadismo de numa vida burguesa? Porque supõe-se Lynch falar só do seu alheio? Porque nem a Guerra Mundial II foi capaz de desviar-nos do que já apontava a aspidistra de George Orwell? Porque é raro encontrar a mistura de Rabits com pastel de banálise? A quem o público assiste por trás da máscara de silicone? De quem é o surto? Há descarrego? Contemplamos obra? Forma? Precisão? Contemplamos a necessidade de todas essas existências? Eu saio do espetáculo me perguntando por que EU não enlouqueci. Qualquer imediatismo soa sadismo para comigo diante de um… “?!”… que, desconfio, não vem do que vi no palco, mas do otimismo que ouvi lá fora, na exaltação do resultado em quatro paredes. Dá pra jantar carnificina. Dá pra manter o sistema.

Pior Melhor Espetáculo Uma breve pesquisa entre jovens críticos sobre os melhores e piores do festival, resultado: Sr. R. leva mais votos nas duas categorias. De fato, o espetáculo de Susanne Kennedy foi a pior melhor peça do ano, ou a melhor pior experiência teatral que já tive. Mas isso eu só descobri na saída do teatro e, hoje, na tentativa de resenhar sobre, pra falar do “senhor erro” precisei falar de cu, Orwell e arte coloridinha. Nesse quadro, meu gosto desimporta. orma, o cinegrafista, indiscutivelmente, a cada plano, ar risca sua vida. O cinema tem disso. Mas e a apresentação Revolução em Pi xels para além de uma experiência que me coloca como aluna e aprendiz do que se

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á várias formas possíveis de eu começar esse texto. Eu poderia recorrer a toda sorte de teorias da psiquiatria para admitir que o senhor R., um sujeito absolutamen-

te comum, sofria de uma doença pregressa – que poderia ser Borderline, esquizofrênico ou psicótico. Eu poderia optar por um caminho reducionista, muito utilizado pelo senso comum, quando tentamos explicar uma situação ou atitude irracional de alguém e dizemos: “Fulano surtou”. Poderia assumir meu raciocínio behaviorista e dizer que senhor R. é fruto do meio, em alusão aos teóricos da psicologia comportamental e cognitivista. Tudo isso pode estar certo, mas vou optar por outro caminho: o de radicalizar ao extremo o exercício de síntese. Começarei o texto respondendo a pergunta que dá título à montagem: Por que o senhor R. enlouqueceu? Tédio. Senhor R. enlouqueceu de tédio. Os que detestam spoiler devem estar me odiando. A eles peço que se acalmem. Apesar de eu ter desvendado a motivação da loucura do senhor R., isso não soluciona a questão maior: a de como o tédio pode levar a pessoa a atitudes extremas e irremediáveis. Uma caixa revestida de madeira. Um vaso de plantas. Um balcão e duas figuras humanas. Uma pilha de CDs. Uma música incidental quase ingênua. Uma porta. Tudo isso compreendido dentro dessa caixa era o cenário com que a plateia se deparava ao entrar no teatro. As cenas transcorrem diuturnamente. Os atores vestem máscaras e se revezam em personagens que, à exceção das roupas, são todos muito parecidos. São todos tão sem graça. Todos iguais. A banalidade das atividades rotineiras de qualquer pessoa fica evidente pela linearidade dos acontecimentos. É tudo muito reto. Não há curvas narrativas, nem nuances nas personalidades dos personagens. É tudo muito plano, muito normal. Nada, absolutamente nada, acontece. Assim como o rosto dos

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p o r M ARIA TERESA CRUZ atores, plastificado pelas máscaras de silicone, as cenas, aparentemente inocentes, vão se sucedendo como se nada fosse acontecer. Alguns risos. A plateia se divide entre aqueles que desistem de toda aquela armação simbólica e dormem, e os que começam a se entregar ao tédio diante da monotonia de personagens tão desinteressantes. Eu certamente me encaixaria mais no segundo grupo, mas admito que estou olhando para os dois. E dentro de mim sou abraçada por uma angústia ao notar que toda aquela encenação é absolutamente real. O sono me puxa pelo pé como uma forma de proteção. De fuga. Não sinto vontade alguma de rir. Sinto pena do senhor R., ao ponto de passar a ter compaixão tamanha que de desinteressante, ele se torna um anti-herói. O único ser humano daquela vida real, que eu enxergava em perspectiva, capaz de romper aquela gaiola de Skinner. Num exercício hipotético, começo a pensar ser, na verdade, aquela caixa um experimento onde todos os personagens se comportam em condicionamento operante. Por isso, a menção à caixa de Skinner, instrumento fundamental para a psicologia comportamental, onde ratos eram ensinados a ter determinados comportamentos baseados em reforçamento positivo ou negativo; ou seja, a partir de determinado comportamento, o animal receberia uma recompensa ou uma punição. Mas, em “Por que o sr. R. enlouqueceu?”, esses ratos não se arriscam. Em vez disso, optam por manter um pretenso e utópico equilíbrio pelo temor de uma imaginária punição. E assim passam toda uma vida, recebendo a recompensa de não terem qualquer conflito. De viverem dentro de convenções, e dessa forma não serão pressionados ou interpelados por qualquer questionamento sobre o comportamento deles. São seres humanos, basicamente, exemplares. Não falam palavrão, são educados, pedem licença, não elevam o tom de voz, não discutem. Para mim, no entanto, são uns chatos. Nesse ponto, recorro ao psicólogo Abraham Maslow e sua teoria das necessidades humanas. Naquele cubo, as relações huma-

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::crítica nas, tão plásticas, tão superficiais, não aconteciam em profundidade. A pirâmide de Maslow mostra que temos algumas necessidades básicas ao longo da vida, mas que a primordial é a auto realização, sentir-se satisfeito com o que você representa para você mesmo. Depois há necessidade de segurança, de se relacionar com o outro e se sentir amado, as necessidades fisiológicas, como o sexo, por exemplo. À medida que vamos sanando necessidades, seguimos para outras e assim a vida segue. E o que fazemos quando nos damos conta de que não sentimos necessidade, porque nada nos motiva, tudo nos parece artificial? Nos resignamos ou nos rebelamos. Portanto, o senhor R. tomou uma atitude drástica para romper aquele padrão de comportamento que o aprisionava e causava tédio. Senhor R. morreu por excesso de sanidade. “Tédio, logo mato”, parafraseando Descartes. O título da peça deveria ser outro. “Por que o senhor R. recobrou a consciência?” Ou ainda, “Como o senhor R. se curou da loucura?”. Os loucos, ali, são todos os outros. Menos o senhor R, que se tornou, no máximo, um criminoso. Mas essa seria, talvez, outra peça. As sensações provocadas no público pelo diálogo entre construção narrativa e cênica nos fazem ter um impulso de nos mexer. Mas não o fazemos. Pela convenção, talvez. Ou realisticamente, por preguiça mesmo. A ausência de movimento dos personagens depois do episódio sinistro protagonizado pelo senhor R. é bruscamente cortada por uma cortina que se fecha e, ao se abrir, uma velha senhora, sem máscara, dança livremente, sem julgamentos próprios e absolutamente despreocupada com o alheio. Ela sorri e se move pelo cubo com tímida dose de hesitação, para então explodir em movimentos desordenados dos braços. Tomada por uma emoção inexplicável, eu choro. Ninguém chora ao meu lado. Ao lado da atitude extremista de senhor R., essa dança foi a única coisa verdadeira da peça.

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foto guto muniz

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cotidiano sustenta o indivíduo provocando-lhe principalmente um estado de inação. Precisa que assim seja, ou o perceberíamos, e a reação seria atingí-lo

de volta, vingar-se, destruí-lo livrando-se da monotonia. É a apatia manipulada e conduzida quem impede o surgimento das catarses individual e coletiva, cujas presenças instituiriam no ser desdobramentos de sua percepção crítica fundamentando-a apenas em sensações e não mais pelo racional. Ser racional, nos dias de hoje, portanto, tem uma importância ao contexto de poder, é conviver com o tédio aceitando-o, o que torna o existir obviamente superior frente aos que tanto se abalam, ou os apaixonados, os sentimentais, os irracionais. Assim, perceber o cotidiano seria demasiado perigoso à estrutura que lhe exige. Mas não só. Também ao indivíduo não preparado para viver diferente, livre, distante de seus limites e seguranças. Enfim, para além de um controle ao modo de existir comum, é um constante jogo de poder entre diálogos forjados e concessões falseadas. Foi o filósofo japonês Kuniichi Uno quem atualizou os preceitos de biopoder ao demonstrar no contemporâneo a condição de “deixar sobreviver” imposta ao homem. Ao seu ver, os sistemas de poder precisam de pessoas capazes de produzir e criar possibilidades e desdobramentos a eles mesmos, como meio de renovação e sustentação, sem que conquistem independência e liberdade. Isso se provoca pela mera instituição de uma rotina servil, pela qual o indivíduo tem sua condição de sujeito social ampliada, em uma aparente participação vitoriosa frente à realidade estabelecida. Por que o Sr. R. Enlouqueceu?, espetáculo criado por Susanne Kennedy junto ao Münchner Kammerspiele, importante teatro alemão, parte do filme de Fassbinder, de 1970, quando a diretora ainda não era nascida, para retratar um homem sem grandes interesses e motivações, em uma rotina banal

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por ruy filho limitada às convivências no trabalho e familiar, que confronta a própria inércia de modo violento e trágico contra todos, e a ele, inclusive. A pergunta no título não requer uma resposta simplista objetiva. Surge como um desdobramento da ausência de utopias que construíram esse indivíduo esvaziado e frio, ao tempo em que as deformações se deram lentamente pelo acúmulo dos espaços emocionais tomados por frustrações e tédio. Se algo lhe existe em excesso, são as concessões diárias decorrentes de sua servidão ao sobreviver de um cotidiano asséptico e nem por isso menos contundente. Alguns desses aspectos tem sido investigados com insistência por Susanne em seus espetáculos recentes. O tempo estendido das cenas; os longos intervalos entre falas e reações; personagens quase estáticos, apresentados quadro à quadro; o contar a história sem lhe permitir formas de envolvimentos emocionais. Nada nisso é fácil. É preciso que o espectador se provoque ao convívio extremo, perceba o convívio que traz estetizado e artificializado sobre o palco a partir de parâmetros não-naturalistas, distantes de como é comumente consumido, quase caricato na maneira como sintetiza o indivíduo e a sociabilidade. Entretanto, é pelo estranhamento estético que o reconhecimento do próprio espectador se faz mais incisivo. Ao buscar a sintetização máxima, alcança o ordinário com eficiência e instigante singularidade. Ao provocar imediato distanciamento das representações literais, aguça ainda mais a percepção sobre o que nos é induzido como próprio. A atualidade com que inventa uma linguagem teatral provoca também o teatro alemão, tão excessivo e acumulativo em seus procedimentos estéticos e retóricos, dessas últimas décadas. Susanne supera essas estratégias, e vai além. Trata o sujeito como algo despovoado de vida, mecanizado, biologicamente artificializado, distante de qualquer sensação e incapaz de reproduzir reações. A síntese atingida em cada

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::crítica momento amplia o universo impessoal e estranho provocado pelo uso de vozes gravadas sem qualquer registro de sentimentos e as faces travestidas por máscaras de silicones que impõem a mesma expressão aos personagens, aconteça o que acontecer. Não se nega, portanto, a teatralidade. O que redimensiona a experiência a outra condição subvertendo a lógica da convivência esperada. É preciso aceitar sua proposição e por ela assumir serem as mais de duas horas, no caso de Sr. R., um ruído, uma interferência. O biólogo Henri Atlan desdobrou, a partir da perspectiva do ruído, todo um arcabouço teórico que se estendeu para matemáticos, físicos e filósofos. Para ele, as especificidades de um organismo vivo se revelam sobretudo por suas capacidades em estruturas princípios organizacionais e não propriedades vitais irredutíveis. Essa condição, qual ficou denominada por fiabilidade, é que lhe permitiu perceber o organismo inevitavelmente ser atingido e modificado, de modo a aumentar sua complexidade. A isso, que em alguns autores se denominou por erro sistêmico, em Atlan foi traduzido como ruído. E é frente a aptidão de integrar o ruído sem se levar à destruição que caracteriza os sistemas auto-organizadores, por se enriquecerem com eles e não por se tornarem perturbados. Sem essa reformulação, seja um organismo, seja um indivíduo, portanto, chegará a sua desordem total, provocando sua imobilização tendo para si uma ordem estabelecida e definitiva. Reagir significa, então, agir pela contaminação de ruídos que conduzem o indivíduo à se transformar. Quanto mais agressões, ruídos, mais respostas. É a Lei da Variedade Indispensável, uma equação por sobrevivência e não afirmação, entre a variedade das perturbações das respostas e dos estados aceitáveis. Sem isso, seja por qual desajuste for, se emocional, racional, físico, a ambiguidade acumulada no sujeito forma sobre si um efeito inverso, autodestruidor. Em outras pa-

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lavras: somos sistematicamente atingidos por estímulos que não nos pertencem, de modo a nos exigir adaptações que se traduzem em mudanças e respostas. Ao não reagirmos, destruímos as próprias características, nossa identidade, e nos tornamos inevitavelmente destrutivos. O cotidiano, como bem mostra a narrativa do espetáculo, sabe disso e se ocupa em fornecer estímulos calculados e programados para produzir respostas específicas. É sua maneira de manter o movimento de transformação na condição de sobrevivente e não de ação. O toque na esposa que estranha o contato, o gesto de aproximação com o chefe que recusa intimidade, a inabilidade de diálogo com o filho são momentos em que o ruído escapa ao previsível e estruturam no personagem sua explosão. Não são cotidianos previstos. Não são ruídos previstos. E, após tanto silenciar-se, os pequenos movimentos acabam desestabilizando a coerência dessa sobrevivência social. Tudo isso está brilhantemente resolvido na postura dos atores. Não se trata de permanecer estático em cena. Susanne provoca uma qualidade especial ao corpo conduzindo-os a um quase movimento. Todo o tempo parece que algo está para ocorrer, que alguém irá agir de modo inesperado. E é nessa possibilidade que o gesto se formaliza como uma intenção presente em cada um, mas limitada pelas estruturas de um convívio cotidiano que requer distâncias e não variações. É preciso falar sobre os três movimentos da representação. Enquanto o palco se valida da perspectiva dos personagens, o televisor ao lado amplia a presença do real como que intrometendo às cenas o cotidiano. Assim, o que parece ser estranho se faz a exclusão consciente de outras possibilidades de convívio. É a soma entre os dois que provoca o deslocamento de um a outro, quase em uníssono. O cotidiano se realiza na falsificação das convivências, enquanto a convivências se

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Por que o Sr. R Enlouqueceu?::crítica formaliza como a construção do cotidiano. O terceiro, por sua vez, quando a tela frontal recobre a cena e projeta espaços e presenças aparentemente deslocadas do contexto, entramos em uma espécie de possibilidade onírica ou delirante dos próprios personagens ou, que seja, apenas de Sr. R. Muitas vezes, o esvaziamento simples do ambiente é a tradução da solidão. Ali, quando aparecem, os personagens não estão com máscaras. São humanos. Os mesmos que retornarão ao final do espetáculo, implodindo a artificialidade, enquanto dançar parece ser a resposta mais correta de como reagir aos efeitos destrutivos dos ruídos, ou seja apenas sentir e deixar que o sentimento aconteça. Resposta essa, que o Sr. R. não foi capaz de compreender. Em Por que o Sr. R. Enlouqueceu?, a diretora lapida o que tem se firmado como assinatura e cria um espetáculo verdadeiramente complexo sobre o mediano de todos nós, questionando e provocando a comodidade de nossa aceitação pela mera sobrevivência apontada por Koniichi Uno frente aos ruídos impostos. Se o incômodo é grande por estender a linguagem do teatro ao seu limite, é de se atentar o quanto, no papel de indivíduos, quais executamos tão simplesmente, aceitamos sem constrangimento ou indisposição os estados a nós fabricados. Ou resolvemos logo tudo isso, esse tudo que fingimos não acontecer e existir, que nos impõe formas e limites de se relacionar com a realidade, ou a tendência será chegarmos ao mesmo fim de Sr. R. Para muitos, simbolicamente isso é já um fato. Para outros, infelizmente, de modo literal, exigindo-lhe ações extremas e inexplicáveis. Por oferecer ângulos inesperados, Susanne nos auxilia a construir novos escapes críticos que inconscientemente nos ajudarão a dar conta da concretude de modo mais problematizador. Susanne suscita o ruído e nos obriga a reagir com inteligência. É impossível sair do espetáculo sem ser atingido. O teatro,

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por sua provocação, então, se torna radicalmente o urgente meio de revelar e superar o insuportável. expligni hil inis renis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tin ha a ver justamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodifi

car o que é dito que difere o espetáculo da ação Pen explignihil inis renis no bisquate volup Não me parece que en tre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continui dade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver jus tamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provoca dores. Avaliamos que os vídeos fun cionaram muito bem como recurso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sem pre necessário fazer ao mesmo tempo um antro+

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foto phil le deprez

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marche!

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artista confere em seus trabalhos sua vida, refletindo neles o que está no domínio de seu contexto. Assim, da mesma maneira que em uma obra artística

está, direta ou indiretamente, inerente seu entorno, devemos considerar também este parâmetro ao olhar para a mesma. Já foi-se o tempo da racionalidade moderna cujas fronteiras tinham seus contornos de acordo com cada campo específico de conhecimento. Essa pele que outrora delineava e delimitava seus contornos de cada área artística, desde os anos 70 até hoje, já tem sua membrana mais porosa, e pede, portanto, atitudes condizentes. Muito foi dito à respeito de “Avante Marche!”, nas mídias, nos veículos de divulgação, considerando-o “híbrido”, como se estampasse sobre ele um holofote peculiar, do tipo “imperdível” ou “inovador”. Mas de fato o que o faz ser considerado avant garde? Para qualificarmos um trabalho de híbrido, temos que partir do pressuposto de que a linguagem artística ainda comporta o puro, limpo, sem mistura. E o quê, na contemporaneidade, obedece essa castidade? Dança é quando tem corpos em uníssono? Música é quando tem instrumento e canto? Teatro é quando tem fala? Só nos questionando sobre essas purezas poderemos qualificar sua mistura de caráter híbrido. A peça em questão, dirigida por Alain Platel e Frank Van Lae-

cke, só reforça essas combinações. Logo de início podemos perceber o quanto a temporalidade de atuação do ator se assemelha à da bailarina em “Veronique Doisneau”, de Jérôme Bel – a expectativa daquele corpo de baile que aguarda ansiosamente pela virada da música só para transferir o tendu derriére para o devant. Na sequência, o delírio do protagonista Wim Opbrouck remete ao livro “O Perseguidor”, de Cortázar, aonde o personagem Johnny é um saxofonista no fim de sua carreira, já perdendo o senso de sua fala,

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p o r pat r í c i a b e r gan t yn em conflito e depressão. “Toca ou estaremos perdidos”, ele exclama, claramente se referindo à aclamada frase da Pina Bausch, substituindo o verbo dançar por tocar – novamente uma aglutinação de linguagens, musidança. Ou o próprio modo como seu pensamento se organiza, não só pelo jogo poliglota “my mouth ist kaputt”, mas pelo conteúdo de seu discurso, também reiteram essa mescla que é a inevitável coexistência de pensamentos e linguagens. Com adventos tecnológicos, hoje a percepção da hibridização entre os meios é dominante, assim como sua potencialização. As artes cênicas são híbridas por ser toda uma amálgama de fontes artísticas diversas (dança, teatro, cinema, música), ou como o filósofo português José Gil diz: “todas as artes são mães de todas”. Exemplo disso, ao longo da peça, instrumentos de sopro viram de percussão, atores cantam, ar se materializa em água, músicos dançam, e até um dançarino dança. Dança? No momento em que «o dançarino dança” com o percussionista de fato duvidei quem era o dançarino ali. Ou porque meu olhar já viciado lhe reconhecia bailarino, sendo que a presença, disponibilidade e mobilidade do percussionista eram tão mais hábeis em termos de qualidade de dança do que as do “dançarino que dança”. Hibridez, portanto, não estaria atualmente já dentro dos parâmetros intrínsecos a um trabalho cênico? Será que este ainda é um termo esperado e ansiado pelo olhar dos espectadores? Enobrecer o caráter híbrido não seria reforçar o conceito de pureza às avessas? Talvez seja o caso de assumirmos que os limites estéticos já foram borrados, que nossa membrana merece seus poros mais expostos, e sobretudo que essas multilinguagens coexistem. O que faz ser designado como sendo desta ou daquela área é apenas um direcionamento, foco, ponto de partida ou zona de aprofundamento.

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Avante, Marche!::crítica

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penas o ar. E o quanto sua existência ou não determina aspectos de nossa humana e sociabilidade. Respirar pode parecer um pretexto narrativo

simples demais para compor uma obra, e muitos poetas já se dedicaram a entender como tal processo involuntário se apropria da existência, de modo a ser mais do que meramente o movimento de inspirar e expirar. É preciso pensar sobre a respiração para trazer consciência ao gesto, para interferir sobre ela; ou é o próprio corpo quem nos recorda sua execução, ao gritar pela urgência e falta. Não existimos sem isso. Não sobrevivemos sem ar. E é no limite da falência física desse contexto impositivo que o velho trombonista de uma orquestra de sopros tem sua realidade transformada. Pulmões que não respiram o suficiente, o ar que não lhe alcança. Parte Pirandello, portanto, de O Homem com a Flor na Boca; muito deles mesmos, o trio Frank Van Laecke, Alain Platel e Steven Prengel, que, reunidos novamente, se voltam ao ambiente da música e orquestra, tão caro, desde seus espetáculos de décadas atrás, para construir uma micro-representação da sociedade e das relações. Confrontando o próprio corpo em processo de destruição, o homem busca lampejos de dignidade nas últimas fileiras da orquestra. Resta-lhe tocar os pratos junto à percussão. Como se o ar estivesse disponível a todos, menos a ele. A subversão necessária para aceitar tal condição provoca-lhe toda sorte de emoções. O início é solitário, limitado a um gravador cujos pratos deverão existir em tempo exato. Não acerta. Permanece assim, deslocado no contexto da orquestra como quem se afasta da própria sociabilidade, ao ter retiradas suas estruturas mais particulares de participação. Lembra a cena, Jérôme Bel, coreógrafo francês, cujos espetáculos se voltam a desconstruções das especificidades mais óbvias da dança, comprovando não serem tão

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por ruy filho simplórias e determinantes assim. Lembra, mas, ao mesmo tempo, não é ele. A aproximação se dá sobretudo pela solidão que amplia o sujeito, após esvaziado de seus recursos. Se Jérôme insiste ainda por aplicar tal fórmula à própria dança, Platel, diferentemente a conduz ao indivíduo, e elabora uma íntima tese sobre isolamento e melancolia. É preciso reinventar-se ou permitir que surja o próprio pelas frestas dessa identidade em esfacelamento. Assim, caminha o trombonista por entre idiomas, como quem permite ao pensamento liberdade plena. Afinal, os idiomas possuem características próprias de materialização de sentidos e argumentos pela potência de suas retóricas, manifestando leituras particulares sobre o que descrevem e atingem. Entre a raiva acusativa e a doçura convidativa, gritos e lamentos estruturam emocionalmente o homem, enquanto sua identidade se esvai e precisa buscar nos mínimos sentidos das palavras o fôlego para se reconhecer vivo. Tanto quanto o ar, o pensamento não pode não existir. É incontrolável. E pensar em voz alta, aos microfones, é, por conseguinte, ater-se ao corpo como amplificação da própria presença, gesto desesperado por continuar ali. Salvo um único momento. Como se tudo ainda pudesse ser reescrito, a mulher vestida em trajes de baliza, que ora é uma, ora é composta em duplo espelhado, ora precisa ainda ser duas para compor um único corpo, usa os mesmo recurso e microfona seus sussurros. Revela-lhe sempre tê-lo amado. Um passado expandido ao presente que não mais resiste ao tempo para se valer ao futuro. Pois não há mais o futuro ao homem. E o beijo que esta deseja se realiza na paixão de quem ainda é jovem, e não de quem já o fora. É potencialmente esse momento o mergulho ao que mais romântico se pode haver no espetáculo. Mas não como amorosidade, e sim tal qual propunha a estética alemã, na qual a idealiza-

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Avante, Marche!::crítica ção do desejo se perdia entre o movimento de desejar e de ausência de concretização. Lembra, então, também os textos de Karls Valentin, no início do século passado, entre o expressionismo e dadaísmo, especialmente Orchesterprobe, por manter as aproximações com o contexto patético que implica em desordem e humor à estrutura de uma orquestra, ainda que subsista a melancolia como resquício nessa atualização. Apenas lembra, e nada mais. E a situação do músico é portanto paradoxalmente divertida e triste. Tanto quanto se releva o amar alguém a quem nunca se mostrou amor. Tudo se passa durante os ensaios de uma sinfonia de Gustav Mahler, compositor tcheco-austríaco do início do século passado, responsável por trazer a música à Modernidade, cujas composições se voltaram sobretudo à criação de obras mais sombrias e melancólicas. Assim, o ex-trompetista toca o que seria seu próprio funeral, prepara seu cortejo de despedida simbólico e não só, enquanto a orquestra busca não se despedir e continuar. Ele insiste, e quase é ignorado frente uma ordem estruturada por comportamentos estabelecidos e convenções. Não sendo as palavras suficientes para mudar as pessoas, então dança. Dance ou estaremos perdidos, disse certa vez Pina Bausch. Em Avnte, Marche!, no entanto, o homem exclama Toque ou estaremos perdidos. Abrindo espaço para o espectador agregar suas próprias referências ao espetáculo, Platel torna a obra uma dimensão poética de narrativa supostamente aberta às lembranças e citações. Por isso é comum tantas projeções ao que, na verdade, se faz suspenso e não definitivo. Por isso as leituras tão múltiplas ao final do espetáculo e resenhas. O esvaziamento do trombonista nos convida a preencher os espaços ausentes de ar com possibilidades poéticas, tornando o corpo envelhecido não mais como alguém vencido em doença e tempo, mas como quem carrega em si os percursos

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mais fundantes de toda a arte contemporânea. Não precisa dizê-las, apenas permití-las. Não precisa respirar, apenas encher-se por pensamentos. As aproximações entre os performers se recuperam momentaneamente, aos pares, aos espelhamentos, somando-se ao outro em um diálogo físico. Volta-se ao corpo, inevitavelmente a todo instante. O outro expandindo o gesto e a possibilidade de existir do homem como se fosse a respiração que lhe falta. Dançar é seu respiro último, sua vitória momentânea, portanto; sua maneira de confirmar o corpo como ainda aceitável. Apropriando-se de outra característica de Mahler, a forte presença do coro em suas composições, o homem é apresentado à sua despedida da orquestra. Eles “cantam” como se fossem os próprios instrumentos, um coral de sopros humanos em vozes instrumentais, cabendo ao ex-trombonista o destaque maior na execução da melodia. Avante, Marche! é uma sentença de ordem que estrutura o movimento coletivo até torna-lo, revela-lo, sustenta-lo militarizado. Todavia, também um sentido ao homem solitário para o seu deslocamento a outra direção. O quanto cabe insistir e resistir é a grande questão. Assim, o espetáculo se assume manifesto sobre o esfacelamento do pertencimento e da resistência, ampliando-se para além dele mesmo, como metáfora das próprias discussões quais provoca, e dialoga com suas inquietações ao integrar dezenas de músicos e maestro locais em cena. Como é comum aos espetáculos de Alain Platel, as cenas centrais nunca são necessariamente as mais importantes. Estão ali para sustentar o acontecimento, nem sempre para ampliar a narrativa. Tanto quanto confunde propositadamente as linguagens da dança, teatro, performance e música, o faz com cenas circunscritas e aparentemente aleatórias, muitas vezes mais elucidativas aos conceitos explorados que as pró-

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Avante, Marche!::crítica prias imagens centrais. São os movimentos laterais, então, que esclarecem a micropolítica da sociedade representada. Seus arcabouços sustentados por rotinas e devaneios, suas fingida capacidade de lidar com o imponderável. Portanto, é preciso escolher o que assistir em cada instante, e perceber não caber a experiência pelo todo, mas, e sobretudo, definida ao próprio gesto do espectador quando optar como pertencer ao espetáculo e resistir aos deslocamentos e desvios fundamentalmente poéticos. Vivenciamos, de maneira surpreendente, uma época assustadora de anulações do modos de construções culturais de reconhecimento e pertencimento, enquanto se perde muitas das conquistas e possibilidades de ação. Frente ao espetáculo do Les Ballets C de la B, é impossível não trazer para si a falta de ar e isolamento. Somos ou estamos, ainda teremos que descobrir/escolher, o corpo em estado de resistência. Podemos insistir em ser trombonistas, limitarmo-nos aos pratos em participações sutis ao fundo da cena, ou simplesmente deixar a orquestra se despedindo com um impressionante e transformador pas de deux, ou sumir ao fundo em uma espécie de apagamento e ausência. Todavia, quem você tiraria para dançar? Responder não é simples. A ausência de ar é consequência do excesso de palavras. Toque ou estaremos perdidos, pode e precisa ser compreendido em sua possibilidade de metáfora. Toque a si, ao outro, a todos. A quem puder. Conscientes, porém, de que esse momento, essa época, gostemos ou não, e independentemente de nós, continuará sua composição e melodia. Certamente pior sem nós. explignihil inis renis nobisquate vo lup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles ex ista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo

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tinha a ver justamente com um incômo do que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodifi car o que é dito

foto matheus josé maria

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presença caótica, humorada e profunda com que a música se inscreve no espetáculo AVANTE, MARCHE! me aproximaram inevitavelmente das obras

de dois cineastas Emir Kusturica e Federico Fellini. Tanto

porque a própria orquestra se instaura como um microcosmo capaz de revelar pulsões, medos e angústias, quanto pela força da música diegética, que não surge para criar climas ou atmosfera, de forma incidental, ao contrário, surge diante de nossos olhos pelos instrumentos postos à nossa frente, uma música produzida e ouvida pelos personagens. A orquestra só existe pela sua qualidade de coletivo. Não há como se ter uma orquestra ou banda com um só músico, ora pois. O indivíduo está sempre diante de tantos outros e dessa forma, seu comportamento tem influência do coletivo. A orquestra brasileira se comporta com a polidez que lhe é comum, mas os músicos belgas rompem as expectativas desse comportamento próprio de músicos eruditos. Talvez porque depois daquele ensaio não haverá mais música, ao menos não tocada por aquele formação: um músico se despede. Em se despedir, a música é tocada como se fosse a última vez. Há tanta tragédia nisso! Assim como em “Ensaio de Orquestra”, de Fellini, diante de nós estão os músicos prontos para ensaiar. Mas ensaiar para quê, se nunca mais irão se apresentar? Para que os encontros acontecem se não há um fim que os direcione? Depois de tantos anos, é preciso despedir-se do sopro vigoroso, da pulsação no tempo exato; o corpo começa a dançar em um novo ritmo, com dificuldades nunca experimentadas. A doença se anuncia. O espetáculo provoca a sensação de que o tempo acelera tão bruscamente, que é preciso dançar com os segundos, tirar o relógio para um passeio, soltar a coleira do tempo que nos prende. AVANTE, MARCHE! é uma espiral ascendente de força e loucura, com pinceladas de um silêncio brutal. Há

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p o r an a c ar o l i n a m ar i n h o tanta força num instrumento de sopro! Ele ressoa pela força do ar que habita dentro do músico! Quantos problemas um trombone engole todo ensaio? Quantas palavras ficam presas na saliva dentro de um trompete? É emocionante o corpo envelhecido do músico, que se despede de seu instrumento. É emocionante o instrumento que sussurra pela presença do músico, para que ele tome sentido e grandiosidade. O corpo não suporta a música que carrega! O corpo receia os minutos que correm. Mas é esse mesmo corpo que rompe as fronteiras e abriga uma imensidão de impulsos, desejos e dores. Não há como escapar à dor da despedida. Não há como não sentir o sopro de cada instrumento que grita pelo músico. É possível sentir a solidão anunciada do instrumento prestes a ser abandonado. AVANTE, MARCHE! é, ao mesmo tempo, cadência e partida, é instante de vida e de morte. O abismo de um músico é sentir sua respiração descompassada, seu coração com arritmia. AVANTE, MARCHE! insere o espectador em uma sala de ensaio em que o passado se apresenta com tamanha vitalidade que o presente antecipa o por vir. O músico precisa partir, mas a música não deixará de ser ouvida. explignihil inis renis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continui dade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver jus tamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provoca dores. Avaliamos que os vídeos fun cionaram muito bem como recurso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determina do tom da família que ainda não tínha mos encontrado. Quando se chama al antro+

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foto fundacĂ­on teatro a mil/felipe fredes

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guille r mo ca lde r รณn

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“A lei não é a pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares.” Michel Foucault

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rabalhar com um documento vivo confere um risco às conclusões da narrativa. MATELUNA escara isso e, portanto, é construído de forma inconclusa, lançando

ao espectador mais perguntas que respostas. O espetáculo transita entre o espanto e a busca por justificativas que expliquem a conduta do documento vivo, nesse caso o ex-guerrilheiro Jorge Mateluna que lutou para derrubar o regime de Pinochet, e que hoje está preso por roubar um banco. O ex-guerrilheiro é mote e influência para a construção do espetáculo ESCUELA de Guilherme Calderón e, agora, surge como uma inquietação ética: Mateluna modificou o curso do tempo, alterando as expectativas de seu futuro, alterou a interpretação de seu passado. Calderón vê-se, então, em uma contradição abissal: o que conduziu o ex-guerrilheiro a assaltar um banco? A aparente mudança ideológica de Mateluna põe em cheque as motivações do seu espetáculo anterior. Se o passado existe em seu processo de enunciação através da narrativa e se cada vez podemos organizar essa história de forma diferente, o passado é passível de alterações. Suspeito que apenas do presente possamos tomar conclusões mais assertivas. O que aconteceria à Hamlet, se não houvesse sido sentenciado na cena final? O que seria de Jacy, se ela tivesse visto o espetáculo de sua vida

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p o r an a c ar o l i n a m ar i n h o sendo apresentado? Como reagiria Gabriela, após assistir LUIS ANTONIO GABRIELA? O que seriam dos espetáculos que, se seus personagens existissem para além deles, não se encerrassem após os aplausos? A prisão de Jorge Mateluna alterou as expectativas sobre seu futuro e a interpretação sobre seu passado. O que aconteceu para que a vida de Mateluna tomasse esse rumo? Calderón não encerra a narrativa no seu ápice, na imagem mais bela da revolução, constrói MATELUNA para desmistificar o heroísmo, relevar as contradições na conduta do homem, para revelar que a história contada muitas vezes pode, sim, se tornar cada vez mais mentirosa e fantasiosa. Porém, está ai o ponto de virada. Há mais coisas a serem ditas que não se encerram na prisão de Mateluna. O que aparentemente se revela como contraditório pode ser uma construção fantasiosa. Calderón revela argumentos e provas que demonstram a inocência de Mateluna diante do crime ao qual é condenado. O espetáculo provoca o espetador a discutir a má-fé da justiça. Mateluna está preso não pelo roubo, mas por ser nocivo ao Estado que tem ganhado cada vez mais força, e é por isso que calam Mateluna e o encerram na prisão, antes que a sua voz volte a soar como resistência, rebeldia e inspiração. Temendo uma reviravolta, alteram o presente para desqualificar o passado e a história. A justiça revela mais uma vez estar mais preocupada em o quê o Estado deseja para a sociedade, do que em o quê a sociedade deseja para si mesma. O Estado posto aqui no Brasil e no Chile e a grande mídia (porque fazem, em suma, parte de um mesmo organismo) buscam desmobilizar o pensamento de esquerda através do esforço em frustrar a imagem de heroísmo a que alguns concebem à líderes de esquerda. Sabendo da força que as narrativas heróicas geram em seus contextos, antes que Mateluna se

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Mateluna::crítica re-anuncie como uma figura necessária, há o desmonte de sua trajetória, de suas intenções, criando-se contradições. Dessa forma, se um líder é desmontado, desmonta-se por conseguinte seus seguidores, suas intenções, seus argumentos e suas bandeiras. Calderón teme o desmonte da esquerda e constrói MATELUNA como um manifesto poético em defesa de um homem, de uma luta por resistência, de uma sociedade mais humana e justa. Que MATELUNA seja capaz de libertar Jorge Mateluna da prisão, mas, mais ainda, que seja capaz de libertar os pensamentos da temerosa resistência à imaginação criadora. Que MATELUNA devolva paixão à resistência, devolva forças à mobilização. explignihil inis renis nobisquate vo lup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles ex ista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver justamente com um incômo do que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodifi car o que é dito explignihil inis renis nobisquate volup Não me parece que en tre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continui dade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver jus

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que há de teatralidade ou de performatividade em Revolução em Pixels? Como existe o espectador numa obra como essa? O que a torna espetacu-

lar? Penso na conversa que presenciei com Jean-Louis Comolli, em que ele provocava as possibilidades de se filmar o inimigo. Para quê e por que eternizar a imagem do seu algoz? Revolução em Pixels propõe uma discussão ética e estética (se é que é possível separá-las) sobre os registros audiovisuais das manifestações na Síria. Não há como

negar a importância desse documento como instrumento para mobilização, evidências e provas. Em tempo real, esse documento toma uma dimensão ainda mais profunda: não há como duvidar da fidelidade dos acontecimentos. O “ao vivo” alarga a impressão de imparcialidade e cria a base para o “ver pra crer”, mas não há como negar que todo processo de registro é um processo de recorte do real; há uma escolha (pouco ou muito) consciente do quadro. Dessa forma, a noção de simultaneidade gera, ao mesmo tempo, uma ilusão de verdade mais profunda: é difícil duvidar daquele ponto de vista, é difícil entender que aquele é apenas um ponto de vista. Há pontos de vista numa guerra? Ao contrário do que propõe Rabih Mroué, não acredito que o cinegrafista, que com a câmera filma a iminência de sua morte, não se dê conta do que pode acontecer, tampouco não consegue decifrar aquela imagem como sendo realidade sua. Ao contrário, suspeito que ele está devidamente ciente do risco, e o que o faz persistir é a compreensão do espectador: ele o torna presente e fim para pular no abismo. Ele não encerra a filmagem antes de seu término. A tragédia está anunciada e ele não foge, toma consciência e vai até aonde puder capturar. O cinegrafista - falo dos amadores, dos que nem se importam com esses títulos, apenas com a necessidade de filmar - segura a câmera por-

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p o r an a c ar o l i n a m ar i n h o que sabe a potência das imagens que captura. O atirador também conhece essa potência e por isso olha nos olhos da câmera e mira para ela. Além do que se vê, é preciso compreender o universo que existe em extracampo. Existe, portanto, uma criação. Qual consciência opera no atirador que mira na câmera? Ele quer que seja filmado aquele prenúncio de morte? Ele o faz como artimanha para a posteridade? Ele chega a confundir a câmera com uma arma? Todo registro audiovisual é construído para a posteridade. Não é efêmero com o teatro que vive só enquanto se encena. Mesmo depois de anos, o material pode ser revisto, reeditado, remontado. O material consegue se reproduzir ilimitadamente e tomar uma abrangência nunca vista. Quem filma e quem é filmado sabem disso. De toda forma, o cinegrafista, indiscutivelmente, a cada plano, arrisca sua vida. O cinema tem disso. Mas e a apresentação Revolução em Pixels para além de uma experiência que me coloca como aluna e aprendiz do que se é dito, como ela me provoca a existir? O que difere o espetáculo da ação “Pensamento em Processo” que aconteceu posterior a ele? O que há de espetacular nele? Tive a sensação de que seria mais honesto que as luzes estivessem acesas e que pudéssemos acompanhar à palestra com os caderninhos em mãos. A palestra, diga-se de passagem, era bastante interessante. Mas naquela noite, queria ver teatro. expligni hil inis renis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tin ha a ver justamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os

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U

m tiro atravessa a cabeça e atinge mais do que o corpo. Destroça junto, feitos os pedaços de crânio que se espalham dentro desse corpo, a capacidade

de construir linguagens, a dimensão de presença e convívio com o passado. Não mata aquele que atinge. Mas assassina sobretudo o sujeito que por ele se manifestava, distanciando homem e sua representação social de modo definitivo. Esse é paradigma mais complexo, dentro outros pequenos desenhos que circunscrevem esse novo corpo, utilizado para se atingir a instância política da invalidação do sujeito, utilizada por Rabih Mroué ao contar e se apropriar da história de seu próprio irmão. Se necessária ser real a narrativa, é outro ponto a ser considera. Afinal, o quanto a realidade é importante ao teatro, ainda que o documental, uma vez em cena, é sempre subjugado ao contexto da ficção? Importa. E muito. Pois aquele sobre o palco é também a dimensão da realidade inacessível por ele mesmo. A afasia, nome dado a incapacidade de construir linguagem, sua sequela particular, diz muito sobre a verdade do que ele vivencia. Não há para ele metáforas, ressignificações, subjetividades, signos, representações. O que vivencia em cena é uma espécie de acontecimento real em plano de negação ao teatro que facilmente projetamos existir. Não se trata mais, portanto, de uma cena. O que assistimos é o estado pleno de existência de um acontecimento sobre o percurso de alguém. Isso é maior do que o teatro em si, do sua ficcionalização, do que as técnicas dramatúrgicas para construção de efeitos narrativos. É alguém, um outro destituído de sujeito, esvaziado de história, uma vez que perdera a dimensão acumulativa de experiências e percepção crítica de si. O tiro que acerta o homem vai além. Atinge, enquanto assistimos suas consequências sobre esse alguém, também a dimensão teatral da manifestação social.

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por ruy filho Sem o sujeito, temos o convívio com um corpo em estado de reinvenção. Não está pronto, pois não lhe é possível corresponder a fins estruturados e específicos. Trata-se, antes de ser outro ator ou performer, da presença bruta, pré-simbólica, resumida em sua aparição e nada mais. Inevitavelmente, por não estarmos em iguais condições, tratamos de impor-lhe as figuras de linguagens e sentidos. Contudo, essas são nossas, apropriando da materialidade disponível para completá-la aos interesses de nossas expectativas sobre como devemos reconhecê-lo e classificá-lo. Condições impositivas ao nosso racionalismo para assegurar sua validade política na esfera das relações humanas. Só que o diálogo se faria se algo mais se fixasse aos dois lados envolvidos. O que não é possível. O que não ocorre. Luhmann denominou esse processo de incapacidade de atingirmos a plenitude do reconhecimento por improbabilidade da comunicação. Ainda que sua pesquisa fosse um debruçar sobre os porquês dos desentendimentos entre o que se diz e o que se entende, o mesmo posse ser aplicado ao corpo como discurso sócio-político em ambientes específicos. Ou seja, exatamente por ser um lugar determinado a um fim, nesse caso o teatro, o corpo deveria trazer em si as explicações do que ali significa ser. Curiosamente, o filósofo alemão não vem da linguística, e sim do direito. O procedimento cênico que busca dar minimamente os contexto para trazer ao corpo um rascunho novo de identidade apropria-se de ecos do próprio teatro. O homem em cena apresenta suas memórias em vídeos curtos e muitas vezes abstratos sobre si mesmo. Suas falas gravadas são lembranças apropriadas de sua história, quais não é possível reter. A dimensão dessa exterioridade de tudo aquilo que talvez seja é a soma de escolhas aleatórias ao instante. Afinal, e se for trocada a ordem das imagens? E se as fa-

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Cavalgando Nuvens::crítica las errarem os contextos ao serem sobrepostas? Qual novo homem surgirá disso? Certamente não o mesmo. O passado construído, portanto, resume a precariedade de sua manifestação incompleta e inviável. Ainda que a história permaneça, é o sujeito quem não se define, ou, ao menos, se define cada vez por ângulos próprios descolado do próprio corpo.Lembra, em tudo isso, de uma maneira revisitada, A última gravação de Krapp, de Samuel Becket. Com uma diferença fundamental: para o dramaturgo, o homem percorre sua vida como um processo de perceber a própria morte; enquanto que em Mroué, o homem percorre supostamente sua memória como processo de conceber a si mesmo a perspectiva de vida. Nem todas as citações, já que não devemos reduzir em lembranças os acúmulos em voz e imagem, são claras e auto-explicativas. É a improbabilidade de Luhmann comprovando a necessidade de contexto às memórias e conclusões. Não existindo, permanecem mais ao campo poético de uma existir em movimento ao devir do que ao presente. Uma identidade que ainda se formula como preparação a outro sujeito; por conseguinte, a outra constituição da manifestação política ao ser. O quanto o espetáculo se realiza, depende do quanto estamos aberto ao poético e sua capacidade de sensibilização ao homem e não apenas à sua história. Mas, e principalmente, depende do quanto estamos disponíveis a superar as objetividades pragmáticas sobre o utilitarismo do outro, para recompô-lo ao campo simbólico apenas como manifesto por uma insurreição da própria existência. O homem ali exposto em realidade pura e não apenas cênica é a documentação de nossas expectativas e limites de aprisionamento por respostas. Não existem. Ele apenas é. Isso deveria sim ser o suficiente para construção de valores e discursos até mesmo para o teatro.

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foto guto muniz

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d e zĂŠ c e l so e noilto n nune s

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de c a mila pita ng a e be to bra nt

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p or r uy fi lh o

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foto Matheus Brant

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I

r ao cinema é um movimento talvez em extinção. Não o cinema como linguagem, mas o ir, propriamente. Digo isso, sem maiores responsabilidades ou grandes

argumentos, pela perspectiva de quem observa o movimento que conduz o espectador à sala. Séries televisivas

dão novos contornos ao comportamento do que assistir e também onde. E como são muitas, e muitas vezes mais interessantes, as salas tradicionais às grandes telas acabam se valendo de filmes de ação, efeitos, tridimensionalidades, personalidades em excesso e estratégias de marketing. Raros são os filmes que se querem arte. Ao menos por aqui. Em casa, na comodidade dos horários escolhidos, das pausas sem dilemas, do voltar a fita, das conversas em alto volume sem qualquer preocupação em atrapalhar a experiência, tudo é mais leve, mais fácil, mais adaptável, mais oportuno, mais atraente, mais e mais. No conforto, tudo parece mesmo ser mais. Ir ao cinema, por sua vez, é caro, quase sempre, e depende dos interesses das salas e distribuidoras do que poderemos e quando assistir. Sem falar da inevitável condição de enfrentar os insuportáveis corredores dos shoppings. Então, se não o cinema em si está em extinção, afinal há cineastas excepcionais em muitos cantos por aí, e confessando desde já o apelo dramático ao início desse texto, ao menos extingue-se boa parte do que a ele é produzido. Sem espectadores, alguns filmes não sobrevivem. E esse é o maior desassossego aos apaixonados pela sétima ou qualquer arte, pois é essa exatamente essa a parte que mais vale ser assistida. Ir ao cinema é a ilusão de reconhecermos nossa época. Digo isso, diferentemente, então, com certa complexidade na sentença, argumentando a partir da dimensão do quão o Brasil, e especificamente ele, nos é apresentado nas produções recentes. Entre comédias românticas e comédias

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simplesmente, surgiu na última década uma geração de cineastas que volta o olhar ao país e suas entranhas. Mas nem tanto assim. As tentativas de muitas dessas narrativas são reviravoltas ao mercado, é verdade, contudo limitadas ao que delas se espera como argumento. Olham o entorno como quem defende uma tese que o antecede, apenas para validá-la, e não problematizá-la. Há nisso o imediato preenchimento de uma lacuna ideológica que não mais se via representada esteticamente e, cada vez menos, politicamente. Se a rubrica do ideológico serve bem aos contextos argumentativos de certas posições políticas; não se pode dizer o mesmo quanto à criação estética. As linguagens triviais sustentam roteiros fracos, de um suposto naturalismo crítico, no entanto mais como disfarces conceituais ao resultado simplório e superficial de nossas fotografias, retóricas, diálogos e proposições. O cinema brasileiro, por fim, se tornou a inevitável face à serviço de discursos, afastando-se das possibilidades de invenção da linguagem, de ser antes a dimensão poética dos artistas que o realizam. Exatamente a parte que mais vale existir. Então chegamos inexplicavelmente a 2017. Sobrevivemos ao ano que passou e a mesma conclusão já pode ser dada a este. Sobrevivência como sendo uma espécie de resistência vazia, pela qual apenas o existir e permanecer parecem ser suficientes. Tem sido assim há décadas. E pouco, de fato, se transformou com tal postura dos nossos artistas. Ao contrário. Estamos cada dia pior, e nada parece ser forte o suficiente para inverter essa trajetória. Reclamações e acusações se provaram ridiculamente inúteis. Será? Se discursos não servem para modificar contextos bipartidos; se protestos não servem para o cinismo impregnado; se lamentos não são capazes de sensibilizar; se valores são transitórios e por isso mesmo manipulados; se verda-

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O Rei da Vela e Pitanga::pensamento sobre

Frame retirado do filme “O Rei da Vela� 150

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des não mais existem; se a realidade se amplifica e desdobra sobre ela mesma em variações e sistemas de poder; se o outro tem menos importância do que o próprio; se o amanhã está inevitavelmente contaminado e destinado, então como reagir? Como pode o cinema empreender ao outro um estado sensível que vá além dos mercados de conclusões e sensações programadas? A resposta parece mesmo impossível. Mas não é. E nesse mesmo descontrolado 2017, dois dos mais relevantes filmes modernos brasileiros ocupam as telas de cinemas, ainda que por poucos dias, poucas salas, ainda que só em ocasiões. Curiosamente, ou nem tanto assim, ambos trazem um Brasil passado que exige ser novamente futuro, que solicita a dimensão do amanhã pela perspectiva de outro visível possível e não mais a melancolia decorrente da estagnação. São, ambos os filmes, gritos, e são também carnes. São verbos e são olhos. São rasgos e destroços e medos. E liberdades tamanhas, que não se pode controlá-las. São, para além de tanto, arte, em seu sentido mais humanizado e dionisíaco. O REI DA VELA e PITANGA deveriam estar em todas as salas desse país atingido pela desesperança, em todas as televisões e casas sucumbidas pelo niilismo, em todas as paredes de escolas convidando as pessoas a abandonarem suas mesas e lousas para olharem a grandeza de existências poéticas. E deveríamos, então, assistir O REI DA VELA dançando junto a quaisquer outros em praças públicas. E deveríamos assistir PITANGA, à beira-mar, de mãos dadas a qualquer um, após um pôr-do-sol. Quando Zé Celso montou o texto de Oswald de Andrade, na cada vez mais próxima de retorno década de 1960, revolucionou a perspectiva do teatro em muitos dos valores até então dados como imprescindíveis. Abriu o teatro brasileiro ao que de mais moderno poderia existir à sociedade.

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Não o modernismo andradeano da academia esclarecida, mas o oswaldiano libertário. A antropofagização como estado inerente de devoração estética e simbólica; a regurgitação como proposição anárquica e libertária. Precisou de décadas para que o filme fosse finalizado, após viajar por continentes escondido e surgir aqui e ali contrabandeado. Sobrevivente às violências e histórias, hoje aparece mesclando cenas de ensaios, apresentações no teatro e pública, ficcionalizações da própria montagem, materiais documentais do cotidiano e pequenas instâncias do viver comum, depoimentos. E a resposta é espantosa. O filme é ainda o que de mais alucinado e potente essa estética foi capaz de produzir. Essa? Esqueça as fronteiras dos movimentos. Não apenas como tropicalista ou qualquer coisa assim. Abra o olhar. É mais. Falo sobre ser grande mesmo dentre os maiores. Há na montagem propositadamente caótica a explosão das artificialidades que se fingem perfeitas, não para lhe produzir efeitos de obra pura, mas para lhe retirar qualquer dimensão purista e puritana. E se realiza, ao fim, como a soma das experiências narrativa e estética que necessitam o próprio corpo do espectador em seu estado máximo de alerta. É preciso ver, ouvir, assimilar e se deixar possuir pela dinâmica de um rito fílmico, cujas três horas de projeção evocam. Não há tentativas de facilitar esse convívio. A cadência é crescente como se fosse realmente chegar ao grito mais profundo de um animal acuado. Assusta e seduz. Ou melhor, assusta por tamanha profundidade de sua sedução. E seduz assim porque passamos as suas horas em profundo desafio sobre nós mesmos, nossos limites, nossas emergências vazias, buscando referências que se esbarram e ainda assim são insuficientes. É inevitável associá-lo ao discurso incontrolável de Glauber Rocha e suas

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películas, ao carnavalesco de Arthur Omar e suas imagens em colorido eufórico, ao mítico de Miguel do Rio Branco e a presença como estatuto de rebeldia, ao existir em ação de Oiticica, às vozes em canto das rádios e a utopia de um país futuro, à verborragia sonora de Duprat... Alguns vieram depois, outros surgiram praticamente ao mesmo instante. O fato é que o Brasil se fez e se descobriu mais específico a partir da peça O Rei da Vela, ampliando seu desejo por revolução em muitos aspectos. E o filme, ainda que possam ser trazidas muitas outras aproximações, tem igual capacidade em reinventar o país nesse novo instante. É, por conseguinte, muitos e ele mesmo. É soma e singularidade epicêntrica que não busca mais a revolução, e sim a insurreição contra as mais precisas certezas. Como base estão principalmente artistas, e nada mais. Um devaneio poético surgido consequente ao existir ao seu tempo, e que podemos conferir como fundamental ao agora, sem nada perder. Poucos trabalhos são tão impressionante quanto o de Renato Borghi em cena. Possivelmente o maior já realizado por um ator aqui, seja no teatro, seja no cinema. E é, assistindo a ele e tantos outros brilhantes, que se entende a dimensão maior alcançada ao não querer traduções e simplificações, ao não ser a voz pública e dizer o que se espera ouvir. O REI DA VELA, Zé e Renato, sobretudo, essa união cósmica entre dois gênios nascidos no mesmo dia, do mesmo mês, do mesmo ano, expõe de modo definitivo o quanto a produção cinematográfica no Brasil está previsível, careta, chata e rendida aos discursos e aos sistemas de mercado regidos por ideologias e contra-ideologias. Se cabe algo mais a esse filme é a competência em ser incontrolável, imprevisível, belo, anárquico, necessariamente perigoso, autoral, erótico, pornográfico, multidimensional. O REI DA VELA é uma aula sobre outra

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potência do que pode e precisa ser a arte no cinema. E, acima de tudo, uma aula do que é capaz alguns homens e mulheres quando se olham e se reconhecem artistas. Como disse, antes, são dois filmes... Quando Camila Pitanga resolveu fazer um filme sobre e com seu pai - nessa década que simplesmente se tornou aterrorizantemente outra, desde o inicio do projeto -, revolucionou a maneira de como podemos entender muitos dos valores, até então dados por perdidos e insolúveis. Antônio Pitanga está longe de ser qualquer pessoa. E o filme é mais do que sobre isso. Ao construir sua persona e não apenas traduzí-la, Camila concretiza um olhar à cinematografia brasileira também a partir da figura do negro. Isso é revelador. Por mais que digam ser alienação não ter percebido isso antes, não é apenas sobre a obviedade do existir negro que trata. Vai muito além. Rascunha sociedade, política, cultura, religiosidade, épocas e outros tantos aspectos. Sem precisar ser excessivamente ideológica, os argumentos surgem pela trajetória e potência oferecida por Pitanga, expõe haver sim um espaço maior ao artista, quando este se fundamenta como tal. Em nenhum momento nega-se a negritude ou as condições de submissão imposta ao negro, portanto. Opta acertadamente não fazer disso o discurso autoexplicativo. Se o fizesse, chegaria aos mesmos limites e estereótipos de muitas produções atuais à desculpa de manifestos. E por superar, o filme é imensamente mais profundo. Ao trazer o negro como identidade possível também ao artista, o filme conduz o espectador a algo mais inesperado e dolorido. O negro como apenas alguém. Alguém como apenas a possibilidade de ser qualquer um. O qualquer um como igual e digno de ser apenas ele mesmo. Não é essa postura simples de ser assumida, em tempos de confronto ao racismo ainda imposto de maneira tão cruel. O que amplia a

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80 anos de ZĂŠ Celso e Renato Borghi, no Teatro Oficina foto Jennifer Glass

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urgência em assistí-lo em tela grande, em público, em conjunto, mais do que no silêncio do quarto. Assim, Pitanga, o ator, é inicialmente o artista, e não apenas o corpo, a pele. É arte em expansão e superação das regras brancas que a ele não se impuseram plenamente. É a face de uma brasilidade destemida, sedutora, linda, apaixonante e afável. Se em O REI DA VELA descobrimos, durante o passar do filme, os artistas existentes naquelas pessoas, em PITANGA surge o homem, dionisiacamente, ao artista exposto, ao convívio com um talento especial, cuja qualidade vaza em gestos e olhares improvisados. Para ele, as câmeras é como se fossemos nós, instrumentos ao contato com o outro, conversas, abraços fortes, carinhos sinceros. É encantador assistir a cada momento seu nesses muitos clássicos do cinema nacional. Pitanga esteve em todos os instantes importantes da nossa história e do cinema dialogando através de sua imagem, colorindo a tela branca com seu existir negro em movimento, como se define em determinado momento. Todavia, ainda que isso seja muito, é pouco perto dele mesmo. São os instantes de conversas com convidados os mergulhos mais preciosos. Encontros com quem compartilhou sua vida, romances, trabalhos, ou mesmo os dois. E é esse homem, essa divertida figura realmente incrível, já que não é possível dizer menos, a real revolução que precisamos recuperar. Por trazer em si o sorriso, Pitanga desestabiliza por sua sedução. A fala gentil, o gesto amigável, os olhos sempre próximos aos com quem conversa. Frase à frase surge sua inteligência crítica singular, irônica, experiente. Experimentada, melhor dizendo. Pois fez da vida seu alicerce aos desejos, e não o desejar como desculpa ao viver. Sim, isso muda muito. É preciso aceitar-se vivo, e assim se querer. É preciso pulsar e nisso descobrir o infinito. PITANGA é

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sobretudo a dimensão possível de um homem apaixonado pela vida, e por isso deseja o amanhã como quem se diverte com o presente com a mesma proporção. Há nisso uma juventude inesgotável. Molecagem descontrolável. A sensação não é de Pitanga participar da história desse país, mas da história correr a ele sempre que precisa recuperar um pouco de humanidade. Poderia ser somente um artifício ou argumentação solta, conclusão qualquer. Responde a isso a inteligente solução dada à montagem nessa direção conjunta entre Camila e Beto Brant. Cenas e conversas. Nessa ordem. Intercaladas, nem sempre são passíveis de reconhecimento imediato aquele/a com quem o ator contracena. A face surge depois, no presente e não no ontem, e surpreende de quem seja. Assim, a ilustração inevitável nessa soma se vale pela capacidade em provocar curiosidade em descobrirmos cada um. O processo repetido durante todo o filme sustenta o interesse e oferece dinamismo à narrativa. Por ir e voltar no tempo, ao não ser uma catalogação linear das obras quais Pitanga participou, conclui-se que o interesse é mais pela construção do homem do que do artista. Ou melhor, do homem por dentro desse artista. Um alguém único. Um alguém de fato especial pela lucidez e doçura. Assistir ao filme de Camila sobre seu pai é olhar para o que perdemos nesses anos todos. As décadas passaram, o Brasil mudou, se libertou, ou é o que achávamos; melhorou, ou é o que pensávamos; fez-se outro, ou é o que desejávamos. Até tudo ruir. Quem, de nós e em nós, sobrou nesse esfacelamento ideológico e simbólico é impossível descrever. Tornamo-nos sombras sem iluminações capazes de produzir consciências às presenças. Retornamos às cavernas destituídos de nossos mitos. Animalizamo-nos à caricatura errática de uma carnificina intelectual e mo-

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ral, feitos canibais, e não antropófagos. PITANGA nos puxa pela alma de volta à vida. E nos convida a muitas coisas. Quer de nós o sonho, o desejo, a luta, a vontade, a esperança, a diversão, o prazer. E quer, como o homem-artista quis para si mesmo, que se realizem sem rédeas, igualmente anárquicos e descabidos. PITANGA revela o quanto nos tornamos pequenos, caretas, mediocrizados pelo imediatismo, chatos, brochantes, desnecessários e estúpidos. Pitanga, filme e homem, pedem ao espectador seu estado mais poético de alerta para então reconstruir outra qualidade de indivíduo e, por conseguinte, corpo em ação. Obra-prima sobre a urgência de reativarmos nossa humanidade. Então abra seu guia cultural. Procure nas entrelinhas, pois O REI DA VELA e PITANGA não são nada fáceis de encontrar por aí. Por razões óbvias. Porque são fundamentais ao descobrimento de que podemos sim mais, de conseguimos ser melhores e menos servis. Nas praticamente cinco horas que ambos somam, acumulam no espectador tamanha vontade de voltar à vida que é possível, depois de frequentadas, nunca mais ser o mesmo. Ah, o cinema brasileiro... Quando feito certo, existindo em arte e pele de verdade, é o deleite do gôzo vitorioso de Dionísio em plena bacanal. E ninguém sai o mesmo depois de experimentar o prazer de uma boa trepada. Imagine de duas. expligni hil inis renis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tin ha a ver justamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamosque os explignihil inis renis nobisquate vo

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a nfoto t r oPedro + t r a nLoreto sversal

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K

Maikon


K.

n

Sobre b o l h as , b i z ar r i c e s e e s tad o d e e x c e ç ão


TERESA CRUZ por M ARIA

O a rt i s ta c uri t i b an o Maikon K. nunc a i m agi n o u q ue u m a p e rf o r m an c e a c a bar i a n a de l e g a c i a e e m um p roc e s s o p o r at o o bsc e n o

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foto Tathy Yazigi

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em mesmo no maior momento de inspiração de Franz Kafka, o autor que tão bem retratou em “O processo” o quanto o sistema pode enlouque-

cer aquele que é acusado sem provas e o quanto a dita justiça pode ser tão injusta, poderia escrever enredo como o que aconteceu com o performer Maikon K.. No dia 15 de julho, o artista estava apresentando o trabalho DNA de DAN, como parte da programação do Palco Giratório do SESC, em Brasília, quando foi detido por policiais militares. A acusação: ato obsceno. No trabalho, Maikon se coloca dentro de uma estrutura plástica de 7 x 4, uma espécie de bolha, totalmente nu, besuntado com uma substância que faz parte do processo performático proposto por ele. E com um detalhe: depois de passada no corpo, a substância que tem base de gelatina e, segundo ele, outros ingredientes secretos, só sai após a secagem completa, quando ela começa a se quebrar. O artista estava em processo de exibição da performance quando foi surpreendido pelos policiais, que, se negando ao diálogo, destruíram o cenário para pegá-lo dentro da instalação, numa imagem de flagrante incompreensão com o que estava acontecendo no local. As violações posteriores foram inúmeras: Maikon foi levado à delegacia sem acompanhante, descalço e sem documentos. Na presença do delegado e da escrivã, foi questionado sobre se o que estava fazendo era arte. “Humilhante”, contou. Maikon conta que já apresentou o trabalho em diversos locais e nunca teve problemas. “Eu estreei em Curitiba, em 2013, fizemos as dez apresentações em um bosque atrás do Museu Oscar Niemeyer. No aterro do Flamengo, por exemplo, policiais até passaram para entender o que estava acontecendo, mas, depois que foram informados, seguiram o caminho”, disse.

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Ironicamente, o trabalho “DNA de Dan” que estava – ou deveria estar – sendo apresentado na parte externa do Museu Nacional da República propõe, em um dos matizes possíveis de leitura, um diálogo que se estabelece pela diferença. “É uma forma de saber e entender que existem outras maneiras de se colocar no mundo”, explicou o artista em entrevista à Antro Positivo. A diferença de visão de mundo entre o que estava fazendo o artista e os conceitos pré-estabelecidos de uma polícia legalista e despreparada não conseguiram atingir o nível de diálogo que a própria obra, destruída pelos agentes, propunha. Confira a entrevista:

Como você avalia o que te aconteceu em Brasília? Foi uma ação totalmente equivocada, uma bizarrice. Estava na frente do Museu Nacional da República, em uma rampa, onde é possível ver uma praça com várias esculturas; as pessoas andam de skate ali. É um local bem turístico e próximo dos Ministérios. A performance dura aproximadamente quatro horas, que se dividem da seguinte forma: nas três primeiras, a gente infla a bolha, entro dentro, tiro a minha roupa e a Faetusa passa uma substância no meu corpo, que depois de seca vai se transformando numa casca. É nesse momento que as pessoas são convidadas a entrar na bolha e a interação começa. Em Brasília, começamos a montagem por volta das 17h. Estavam sendo montadas torres perto de mim e os que quisessem entrar na bolha teriam que chegar perto das 20h. Eu entrei, ela passou a substancia em mim e saiu depois de meia hora para resolver uma questão técnica. Foi bem nesse momento que chegou a polícia.

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E como foi? Foi tudo muito rápido. Aconteceu em 5 minutos e não teve diálogo. Estava imóvel dentro da bolha e ouvi os policiais falando entre eles: “o que tá acontecendo aí?”, “Esse cara tá pelado, vamos ter que tirar ele daí agora, caralho, porra”, enfim. Eu permanecia parado, porque, caso me mexesse, a gente perderia o trabalho já realizado até aquele momento. Pensei: isso vai se resolver rápido, vai chegar alguém do SESC e explicar e eles já vão embora. Uma das pessoas da minha equipe apareceu e explicou que era um evento do SESC; os policiais falavam que não importava, que poderia ser a ONU ou até o presidente, mas eu estava pelado e assim feria o código penal, portanto, seria retirado do local. Começaram a querer alvará, papel de autorização. E foi aí que ficaram muito irritados, porque fiquei parado, imóvel dentro da bolha.

O que eles falavam? Falavam para eu sair, perguntavam se eu não sabia falar, se alguém falava por mim. Eu estava em performance. Para mim era claro que iriam embora, não ia sair e falar com eles. Foi então que deram um chute na bolha. Ela tem duas aberturas fechadas por zíperes. só que, mesmo aberta, para entrar tem que engatinhar, e eles não iam ficar de quatro. Simplesmente rasgaram a bolha e entraram em pé. Um deles veio na minha direção como se fosse dar um soco, na intenção de me pegar. Eu gritei: “Vocês não vão encostar em mim. Sai daqui. Você não vai me tocar”. Eu não ia ser levado daquele jeito, não estava apenas sem roupa, estava nu e com uma substância no corpo que não ia ser fácil de sair. Coloquei a roupa mesmo com a gosma e fui falar com eles, ao lado do produtor.

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E conseguiram estabelecer algum diálogo? Não. Eles queriam que eu saísse sozinho, insistiam nisso. Imagina que situação humilhante. Quando saí, olhei e tinham uns oito policiais. Nesse momento, viram que fizeram cagada. Sentei em um banco ali perto, enquanto o produtor tentava tratar do tema. Mas chegou um tenente ou sargento, não lembro, e disse que eu iria de qualquer jeito à delegacia, me deu uma chave de braço e eu não consegui reagir. Pedi para esperar que trouxessem os meus sapatos, ele negou; disse que eu iria naquele momento e daquele jeito. Argumentei que estava sem documentos. Mesmo assim, nada adiantou.

E o trajeto até a delegacia? Os policiais me filmaram, tiravam sarro. Fui arrastado até o camburão e me jogaram naquela parte de trás.

O ‘chiqueirinho’... Sim, era um espaço pequeno, me disse pra entrar, porque se não fizesse isso, seria pior. Deixamos o local, e foi bizarro: duas motos com sirene ligada me escoltando.

Você é perigoso, hein? Super perigoso.

O que aconteceu na delegacia? Cheguei lá, no 5º distrito, e aí pediram pra eu ficar em pé olhando para a parede. Chegou a equipe do Sesc e a minha. Durante a ocorrência, o delegado fazia piada com a escrivã: “acredita que ele foi pego porque estava pelado, tinha luz em volta dele e dizia que estava fazendo arte”. E ela: “nossa, mas isso é arte”. Enfim, eu tendo que ouvir tudo isso e, ainda por cima, assinar um termo circunstan-

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ciado por ato obsceno, que gerou um processo legal. Ao dizer que talvez não quisesse assinar, respondeu que eu passaria a noite preso e só sairia na próxima audiência, quando fosse intimado a depor. Assinei e fui enquadrado em ato obsceno.

E o que você pretende fazer agora? Vou ser bem sincero: estou querendo que esse caso vá adiante para chegar num juiz e provar que não foi ato obsceno. Vou apresentar o caso em um evento em BH. Me interessa ir com isso adiante, para que abra um precedente positivo. Porque não é simplesmente ‘vamos arquivar o caso’. Quero questionar o papel da polícia nisso tudo. Era um ato obsceno? Não, não era. Tinham o direito de fazer isso? Não tinham. Eu tinha autorização para estar ali, tanto quanto aquelas esculturas. Não era um cara que acordou uma certa manhã e pensou: “ah, vou ali ficar pelado naquela praça”. Não é verdade. E só a titulo de comparação, lá nos idos de 2005, o Gerald Thomas, depois da ópera Tristão e Isolda, foi vaiado e, em resposta, mostrou a bunda e simulou uma masturbação. O que contava negativamente contra ele é o ato da masturbação. E ele foi absolvido de qualquer processo ou acusação. No meu caso, não tinha contexto sexual nenhum. Então me interessa ir a fundo para abrir um precedente na lei. Para que amanhã ou depois, se acontecer, os rumos sejam diferentes. Já que aconteceu isso, vamos ser educativos e fazer surtir algum efeito positivo pra gente.

Dois pontos me chamaram muito a atenção: o momento do camburão e o momento de assinar o termo. Como você se sentiu? Quando eu fui colocado no camburão, não acreditei que estava acontecendo, porque a gente não conseguia ex-

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foto Victor Takayama

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plicar. Indignação. Era tão óbvio que o contexto artístico. Mas, ainda que ele (o policial) não achasse ser arte, não importa! O fato é que era alguma coisa diferente do que ele achava que era. Ao não ter diálogo, primeiro meu deu uma revolta, depois uma certa pena.

Por que? Você vê que são pessoas que estão ali, porque têm poder para estar ali, mas não têm preparo para exercer esse poder. Depois, no caminho, me deu medo por estar sozinho. Comecei a pensar em mim chegando na delegacia, levando tapa na cara. A gente conhece a polícia. Eu sou gay e tem esse fator também. Tinha certeza que iria chegar lá e ser constrangido de várias maneiras. Até porque, a ação inicial já foi no sentido de constranger. Tem um vídeo que circulou logo depois do episódio, em que eu debato com o policial, quando ele diz que eu tinha que sair e eu não enxergo direito o cara, porque a bolha não é totalmente transparente. Aí ele me chama de tarado e eu defendo: “Tarado, não! Eu estou aqui trabalhando”. O diálogo, quando se deu, foi em um nível tão primário da coisa, que você sente várias coisas. Pensei na ignorância, na estupidez, na humilhação, no absurdo em estar passando por isso. Foi surreal, eu tinha apresentado esse trabalho muitas vezes.

E essa percepção de constrangimento se manteve? Quando cheguei na delegacia tive que ficar em pé, virado para a parede, como um criminoso. Foi tão desnecessário o procedimento. Não podia dialogar, porque qualquer coisa que eu falava, escutava: “fica quieto! você está numa condição de detido”. Eu estava no lugar de qualquer pessoa. (Não importa se era um artista) Isso que ele queria deixar claro. Aí a escrivã perguntou, bem no final, se eu queria

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falar algo. Perguntei se ia mudar alguma coisa e ela disse que não, mas que eu teria que assinar o termo. Acho que a humilhação não foi maior, porque tinha gente do SESC ali. Senão, com certeza ia levar tapa na cara.

E a que se deve esse tratamento? Tudo passa pelo procedimento sem reflexão, uma falta de percepção diante do que estava acontecendo. Eles falavam da famigerada autorização, que eu não tinha pedido autorização. Que tipo de autorização precisa para fazer uma obra de arte na rua? A nudez foi a cereja do bolo. Agora, vamos descontruir o discurso que eles alegam. Mesmo que eu seja um artista independente, eu decido fazer a performance em um espaço e preciso de uma tal autorização. Eu posso fazer uma ação que eu grite por cinco horas na rua. Daqui a pouco virá alguém questionando: “Pô, esse cara não vai parar de gritar? Ele está perturbando a ordem pública”. É absurdo eu ter que pedir uma autorização para um governo se, de certa forma, posso estar querendo fazer algo que vai questionar a própria ordem de governo. A gente vai ter que dar curso para policial de como lidar com arte pública, na rua? Eles fazem a merda, o estrago, e ficam impunes? A gente ia ter dois dias de apresentação. Os dois (policiais) simplesmente destruíram o cenário e não respondem por nada. Eu não sei quem são aqueles policiais, porque eles estão atrás de uma instituição: a da toda poderosa polícia militar. Eu estou lá com meu nome, respondendo como pessoa física, mesmo tendo uma instituição atrás de mim, me apoiando. Eu, Maikon, terei que responder por mim. Eles alegam que foram lá por uma ligação.

Uma ligação anônima? Sim, é o que dizem, mas eu não acredito. E mesmo que fosse, eles deveriam ter ido, averiguar e ir embora. Enten-

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der que o rapaz pelado estava trabalhando. Alegaram que tinha criança. De novo a moralidade.

A sociedade é hipócrita... Tem uma história recente de uma mulher que foi fazer um ensaio fotográfico com nudez e os policiais viram e deixaram. Por que? Porque é uma mulher. Eu ouço, quando estou na bolha: “ah, por que não é uma mulher?”. Se tivesse ali no meu lugar uma mulher, será que teriam feito tudo que fizeram? Eu duvido. Não iriam. Aí eu me coloco ali como uma obra de arte, qual a diferença de mim para uma estátua? Agora, pronto, vamos ter que discutir com o juiz. Vai ser super divertido levantar essa bola.

Existem limites para a performance? A premissa da performance é questionadora. Se tem que pedir autorização, isso perde o efeito. Acho que eles (limites) não existem, tanto que há alguns artistas que mostraram melhor que eu isso. Tem o trabalho do Bruce Nauman, em que ele leva um tiro no braço. Tem trabalho que envolve masturbação. A performance também te coloca num campo de observar que tipo de limite você quer romper, né? Então pode ser limite físico, limite de moral, de resistência ou limites de instituições mesmo. É obvio que, quando eu coloco meu corpo nu, no espaço público, não estou sendo ingênuo. Estou trabalhando várias questões. Você pode até colocar o limite do que é arte e do que não é arte. Isso interessa muito à performance também. A performance nasce com esse símbolo de ser uma irmã bastarda das artes. Você não consegue colocar ela numa semiótica, numa definição. Os policiais podem achar que aquilo não é arte. Eu estou ali para questionar tudo isso. Mas eles não poderiam agir daquela maneira. A performance se coloca nesse

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lugar de enfrentamento. E por isso me interessa. Por isso faço performance e não teatro, por exemplo. Por mais que eu acesse linguagens do teatro e mesmo da dança.

O DNA de Dan foi o causador da polêmica. Como formatou o trabalho, em que momento, o que te moveu a cria-lo? O que você acha?

Eu acho que você traz dois elementos fundamentais que dialogam a todo momento. Então é a ideia da metalinguagem da bolha em que vivemos num mundo atual numa forma mais universalista que é a bolha grande e a bolha que nos é imposta por conceitos pré-estabelecidos, moralismos. Eu vejo um diálogo entre essas duas bolhas. Como você chegou a isso? O trabalho tem essa leitura muito forte, mas não parti dela. A gente vive numa bolha, mas ao mesmo tempo se expõe demais dentro dessa bolha pelas redes sociais. A instalação traz um paradoxo. Eu estou numa bolha, que é um plástico, ao mesmo tempo ela respira, então é um organismo vivo. O que está dentro não toca o que está do lado de fora. Tem a questão do tempo, tudo acontecendo em volta de mim, o tempo da cidade, o tempo das coisas. E eu estou imóvel ali, durante três horas. Tem uma questão de resistência à gravidade, à várias questões do meu corpo. A ansiedade, às várias programações culturais. Esse corpo está nu, sem pelo nenhum, é um corpo que você não sabe se é masculino ou feminino, é meio andrógino. Tem gente que acha que é um manequim. Só quando se aproximam mesmo e notam que estou respirando veem que é um corpo humano. Então também vejo aquela bolha como uma placenta, um organismo vivo, que estou sendo gerado dentro dela. Como um laboratório, uma placenta artificial de ficção cientifica, um corpo in vitro. E do ponto de vista

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foto Faetusa Tezelli.


ritualístico, que é quando a pessoa entra na bolha, trabalho o arquétipo da serpente. Você vai para uma simbologia mais direta, para a mitologia da troca de pele, da sexualidade, da força de um corpo primitivo que está mobilizando as forças mais instintivas. Não é um corpo racional. Vou dialogar com as pessoas em outro âmbito, mais energético mesmo. Mobilizando minha coluna e direcionando minha energia para as pessoas que estão lá dentro. Ele tem o âmbito visual, de escultura, e um âmbito mais do ritual.

Em Brasília, você não conseguiu concluir a apresentação, mas em outros locais onde levou o trabalho, como foi a recepção do público? Eu acho que o trabalho acontece para quem entra na bolha. Claro que você pode usufruir apenas da parte visual do trabalho, mas a performance é muito forte para quem entra. As pessoas ficam muito próximas a mim. Ao mesmo tempo em que estão olhando, estão sendo olhadas. E eu imponho a elas uma espécie de armadilha. Queria que tivessem essa sensação de entrar numa sala com uma cobra. A cobra pode até estar parada, mas o seu corpo já se modifica, porque você sabe que aquele bicho é perigoso e pode fazer qualquer coisa. É imprevisível. Eu queria provocar esse estado de atenção no corpo de quem entra. É isso que eu busco no trabalho, ou seja, não é uma coisa racional, mas é deixar a pessoa num estado corporal que é outro. Eu trabalho com som também, já que quando inicio a movimentação vou comendo aquela pele que está se desprendendo de mim. Traz algo sensorial de uma náusea; ver a pele quebrando é assustador e até um pouco bizarro. Eu costumo dizer que a natureza não é nada romântica, a gente que romantiza. A gente vê um sapo, fala: “nossa que bicho horrível”. Mas um sapo é um sapo, não tem valor estético algum. Você vê a natureza, um ser comendo outro, uma cobra engolindo um

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rato. Não existe o valor do bizarro. Ela come um rato ,assim como comemos uma maçã. Então trago esse corpo animal nesse sentido, de escama, o bicho que come a própria placenta. Quero colocar uma coisa bem próxima das pessoas, por isso que não é num palco, por exemplo. Tem gente que não aguenta, quer sair de lá de dentro. Uma amiga fala que é uma prova de coragem tomar essa decisão. Você tem que se colocar, porque é tudo aberto, transparente. A pessoa também precisa ter uma certa coragem para dizer: “Oha, eu não vou conseguir” ou “é demais para mim, não vou dar conta”. Tem uma parte do trabalho que sempre alguém sai, que é quando vou colocando a mão inteira na minha boca. Tem gente que nauseia muito e não consegue mais ficar.

A permanência fica insuportável e aí se dá uma necessidade de deslocar... Costumo deslocar o lugar que as pessoas esperam, enquanto papel de público e de artista. Toda performance que me interessa trabalha algum tipo de limite. Falar de nudez, se for ver, é tão fora de moda, à princípio. Mas diante do que aconteceu, vemos que não. A gente achou que tanta coisa estava superada nos dias de hoje, mas estamos vendo que não. Tanto retrocesso. A gente está vendo essas instituições gerais se esfacelarem. E agora tô falando de instituições políticas. Mas fico pensando, para pessoas muito tradicionais, vendo a instituição família se modificando. A pessoa vai se apegar a coisas antigas. A gente só precisa se posicionar para não retroceder alguns anos, porque pode ser que demore alguns anos para botar a fronteira de volta adiante. A performance pode então ter esse papel nesse momento. Ao mesmo tempo, é necessário ver que tipo de diálogo você quer. É urgente pensar em, além de chocar as pessoas, formas de trazer essas pessoas para perto. Ou seja, dialogar. É um paradoxo: como

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você questiona certas fronteiras e se choca com certos pensamentos ao mesmo tempo dialogando com isso. A minha arte não é para todo mundo. Não tenho essa pretensão. Nada é para todos no mundo, muito menos a minha arte. A minha é para um público bem pequeno, até porque na bolha mesmo só cabem 50 pessoas. Então não tenho a pretensão de arrebanhar multidões.

Você acha que esse diálogo é possível? Eu acho que é possível, porque acredito no meu trabalho. Por exemplo, algumas pessoas falam: “ah, acho que isso favoreceu você”. Mas a verdade é que as pessoas estão falando do que aconteceu comigo e não do meu trabalho. A verdade é que quem vai falar do meu trabalho é quem viu. Eu vou continuar trabalhando do mesmo jeito, vou continuar de forma independente. Eu não trabalho com conteúdos racionais, que a pessoa precisa de repertório. Ela não precisa saber da serpente. Acredito, quando a arte vai ali, pelo estômago. Ela pode nem saber exatamente do que se trata, mas ela se afetou, está chacoalhada. O diálogo se estabelece nesse momento também. Não é um diálogo no sentido de explicar, mas é um de saber que existem outras maneiras de se colocar no mundo. É um diálogo pela diferença. Mas sempre tem gente que não vai enxergar e foda-se. Cada um que viva na sua bolha, do jeito que quer. E ótimo.

hil inis renis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tin ha a ver justamente com um incômodo

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que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ain da não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário faz er ao mesmo tempo um trque, segun do avaliamos, também foi o dos pro vocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como recurso, e que talvez a questão que eles colo caram se relacionasse mais a um de terminado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodifi car o que é dito que difere o espetáculo da ação Pen explignihil inis renis no bisquate volup Não me parece que en tre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver justam eque, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda não tínhamos encontrado. Quando se chama alguém para olhar a nossa obra

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foto Tathy Yazigi

de fora é sempre necessário fazer ao mesmo tempo um trabalho de decodifi car o que é dito que difere o espetáculo da ação Pen explignihil inis renis no bisquate volup Não me parece que en tre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver justamea balho de decodificar o que é dito que di fere o espetáculo da ação Pen expligni hil inis renis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tinha a ver justamen

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Race::crítica Notas para um dos melhores espetáculos que assisti nos últimos anos. Não ir ao teatro é como fazer a toalete sem espelho Arthur Schopenhauer

A dramaturgia Impossível tracejar achismo sobre a pergunta que me ocorreu quando durante o transcorrer do espetáculo. Bastará, para dar início ao elogio, expor a questão - Cinquenta trabalhos com esta potência, espalhados entre os aparelhos culturais do país, acessando centenas, milhares, milhões de cidadãos, o que causaria na sociedade, quais discussões cessariam, quais tomariam fôlego, como seria o futuro? Qual a força de um paradoxo? O dramaturgo, figura pouco fundamental, para grande parte do teatro contemporâneo, esta criatura que pode vir a ser substituída pelo primo que fez letras na USP ou pela cunhada jornalista que escreve com boas vírgulas no facebook, aqui, nesta carpintaria radical, neste ímpar teorema acerca do contemporâneo, está à serviço de algo que extrapola a linguagem e encontra a demarcação civilizatória de seu tempo. Está entre a barbárie e a sociedade, entre o privilégio e a opressão. David Mamet é um mestre. Com seu rigor formal, perspicácia temática e irônica articulação das contradições, relembra-nos do perigo que é um dramaturgo atento e agindo em resposta ao seu tempo. Perigo, é claro, para as certezas automáticas, para as falas taxativas...

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p o r m ar c i o t i t o E por ser mestre é também cruel, ou seja, não está aqui para compreender o aprendiz. Sem tempo para didatismos, o mestre aponta o pico da montanha, não sugere botas ou equipamentos. Aponta o ideal e espera o melhor do raciocínio de sua desconhecida plateia. Agora despenquem daí, já! Sobrepondo paradoxos, sem com isto produzir meros enigmas ou sinucas de bico, o autor, sem relativizar as subjetividades, encara com rigor sua pauta. Preconceituosos e “preconceituados” parecem envoltos por uma instância maior, uma densa névoa consciente que esboça sua força através dos subtextos e outrora dissimula seu significado, como fosse tudo tão claro, tudo tão nítido que não devesse ser visto - ou pior - não devesse ser revelado. É impossível (ou seria desonesto?), acompanhar a trama e não elencar os arquétipos do palco, e, elencando-os, furtar-se à não os remeter aos correspondentes em nosso convívio. São pais e mães, amigas e parceiros, transas e maus entendidos, palavras fora de hora e vergonhas remotas, tão remotas quanto inconfessáveis! São nossos racistas de estimação. São nossas vítimas “de casa”. Nossas vítimas que não se importam, nem ligam, são nossas amigas ainda. Bem como nossos agressores que tem bom coração, que não fariam mal nem à uma mosca. Não é bem assim! Você está exagerando! São os que não quiseram dizer isso. Os que ouviram errado. Os que estão sendo “radicais” e “desnecessários”... Somos falíveis e muitas vezes tomamos as nossas falhas, numa estratégia para sobreviver, como fossem purezas. Como se a falha alienasse o nosso raciocínio de sua dívida com o coração do outro. Então o esforço para a vida em sociedade, segundo as personagens de Mamet, está em fazer parecer possível que nossa imoralidade trabalhe como purificador, uma espécie de confessionário público

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Race::crítica que ao ser visitado exime o pecador de sua punição através da exposição do fato vergonhoso. Assim, só a humanidade pode obliterar a perversidade. Encarnamos a miséria para que assim os outros possam idealizar, neste escombro, o próprio rosto refletido. Então o trabalho dos cretinos é adentrar a massa, não tornar a questão individual. Excluir-se. A culpa é do partido. Do poder, das estruturas... Talvez Sade, talvez algum prefácio para a obra de Sade, talvez algum leitor de Sade certa vez tenha dito que “quando uma sociedade comete os mesmos crimes repetidas vezes, somos todos inocentes quando optamos por cometer o mesmo crime”. Mamet não cria circunstâncias para julgar suas personagens, tampouco eu o faria, assim, embora os advogados sejam juízes e a estagiária acumule também a função de carrasco e vítima, não vemos estabelecido um tribunal. De forma reiterada, o que está bem-posto é um clássico conflito Shakespeariano. O reequilibro da justiça em atrito com uma grande força instituída, hegemônica. Por baixo dos panos, abaixo do subtexto, personagens esquematicamente sofisticadas e obstinadas em fazer viver e vencer seu ponto de vista, sua teoria sobre a vida. Bilhetes contendo reviravoltas. Reis perdendo o reinado. Uma dupla de escarnecedores filosofando sobre moral e leis! Excelente dramaturgia. O elenco Grande parte do trabalho do ator, quando encontrado com uma fala clara e de qualidade monumental, é, sem demérito, conseguir não atrapalhar as articulações do autor. Assim compreendido, não seria de ultrajar que um

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ator, ao ouvir tal indicação viesse a questionar a importância de sua interpretação. “Não atrapalhar” não significa interpretar “menos ou menor”, tampouco quer dizer “sair do foco ou sumir no palco”. Não atrapalhar significa que o ator precisa compreender que a interpretação precisa jogar segundo as mesmas atmosferas da dramaturgia. O texto é trançado segundo paradoxos sobrepostos. Os atores, demonstrando tremenda habilidade e consciência de sua porcentagem na construção virtual da obra, elaboram constantes reformulações para os sentidos de suas personagens. Mostram precisão na condução dos estados de leitura das personagens. Somam contradições. São gestos simples, vozes bem moduladas e jogo objetivo entre as personagens. Estes fatores estabilizam o sentido do texto. Não permitem uma leitura pobre. Barram achismos fora de hora. Defendem a montagem, não partidarizam as ideias e não humanizam demais as figuras. Mantém o teatro-de-figuras que o autor propõe. Excelente elenco.

A direção Eu acho que é mentira, mas a anedota diverte e produz entendimento. O diretor farsi e já falecido Abbas Kiarostami, certa vez disse que em um aeroporto ouviu duas pessoas conversando sobre um de seus filmes. Uma argumentou que o filme era lindo e o diretor genial. A segunda respondia absurdada, “aquele filme tem diretor ??”. Teria sido este o elogio que mais o satisfez ao longo de sua carreira. O sentido da anedota encontra corpo em RACE. A direção límpida e, criativa por não ser inventiva, optou, com elegância, por trabalhar cena por cena ao invés de entrar no fluxo

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Race::crítica contemporâneo das encenações totais, encenações onde o espetáculo está representado em pequenas sínteses visuais ao longo da obra. Corajosa decisão em contraponto ao Tempo da Imagem. A direção demonstrou sofisticada simplicidade em diversos momentos, ampliou as possibilidades sem enxertar opinião na obra textual. Soube administrar as fragilidades e as potências do elenco e organizou visualmente muito bem a montagem. Criou um cenário de luz e imagem capaz de receber a montagem em uma confortável estética, que em momento algum disputou com a organização da dramaturgia. Ótima direção.

Ir ao teatro é como ir à vida sem nos comprometer. Carlos Drummond de Andrade

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CENOGRAFIA IMAGINADA

ou CENOGRAFIZAÇÃO NO COTIDIANO

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À

procura de um local tranquilo para iniciar este texto, dirijo-me até o famoso edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a FAU, idealizado

por Vilanova Artigas, um dos mestres da escola paulista, para utilizar seus vastos espaços como área de estudo. O concreto bruto do grande vão, cujo cinza era banhado pelo caramelo filtrado em sua cobertura zenital, encontrava-se ocupado, entre turistas que investigavam avidamente diversos ângulos em suas fotografias, pela formatura dos futuros profissionais graduados na escola. Com suas becas e os conhecidos chapéus pretos, os jovens, seus familiares e amigos realizavam ali um sonho, um desafio, uma etapa cumprida. A FAU, símbolo da herança moderna brasileira, cuja arquitetura política tem inspirado gerações continuamente, colapsava em meus olhos no contraste furioso entre seus ângulos, formas e o cenário montado pelo evento – a formatura. Com 2 sets produzidos para o registro de fotos que provavelmente ocuparão grossos álbuns esquecidos em armários, como demonstração de valor e sofisticação, tecidos adamascados, imensos vasos de plástico dourados e prateados, assim como cortinas brancas drapeadas e um piso cor de vinho compunham um espetáculo que se organizava em planos como numa peça de teatro desenhado pela cenógrafa alemã Anna Viebrock. Os planos, em oposição, me diziam que suas intenções eram legítimas, e que a celebração daquele momento tão esperado e, também, tão conhecido, habitava algum lugar daquelas pessoas que, entre o gostar e não gostar, para além dos conceitos sobre design estudados e praticados durante os 5 anos anteriores proclamava: é assim. Estavam lá naquela cena todos os elementos de um paradoxo con-

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temporâneo que se deflagrava por entre esta fresta: entre nossa origem e nosso desejo, entre nossa veneração por formas de design e suas cópias mal feitas espalhadas pelo mundo, onde se encontra amparado nossos sistemas de valores? Como eles se manifestam visualmente? Por que preferimos as formas reconhecidas, mesmo que exaustas, esvaziadas, arremedo, do que o risco de linguagens autênticas, interessadas no próprio processo de invenção? Ou, antes, por quê temos preconceito com certas formas? Se o neobarroco impera com tamanha opulência em nosso cotidiano, com cidades, casas, pessoas, coisas e símbolos entulhados por toda parte, estas formas nos comunicam desejos e frustrações associados às imagens, a estilos, a tipos. As formas, uma vez criadas na Europa, Nova York ou Japão, em toda a indústria criativa e, também na cenografia, são enquadradas a um repertório de tendências, suas representações e cópias e, portanto, de alguma maneira estamos imaginando/materializando de modo cada vez mais parecido. Isso é grave. Ao mesmo tempo em que as redes digitais oferecem uma plataforma universal múltipla, continuamos a valorizar modelos consagrados. E repeti-los. O caso da formatura marcou minha retina ingênua e fatalista que acreditou, nunca encontraria naquele local tal composição. Seria a formatura e seus aparatos alugados uma invasão de realidade no purismo de uma herança moderna, que não admite o ‘popular’? Estaria o gosto de uma certa tradição embutida em nós, numa perseguição do que se chamou riqueza, em detrimento da negação de uma pobreza? Os cenários da formatura representariam um ideal antigo de riqueza pauperizado, precário, imitado, cenográfico? Ao re-

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petir estes modelos, não estamos reafirmando-os? O que a realidade tem a nos dizer sobre nosso próprio tempo? Em meio a tantas perguntas, a diversidade que temos na cidade e em seus espaços públicos e privados nos oferecem a todo instante possibilidades improváveis, imagens surpreendentes, cenas impactantes, belas, sedutoras, requintadas. Esta realidade desafia-se e supera-se, arrisca-se. Assim, o caso da formatura, aparentemente paradoxal, me indaga e provoca: e por que não? Se a arena pública da FAU está aberta, todas as possibilidades de ocupação estariam ali previstas, mesmo as inimaginadas. Esta história ajuda a contar sobre a cenografia brasileira, suas formas e estratégias de criação entre cenógrafos e diretores, e as experiências que têm oferecido ao público e aos próprios atores. Em que medida nossa cenografia, em suas inúmeras abordagens, tem participado de um movimento autoral na busca de uma linguagem para se comunicar? Que tipo de experiência nossa cenografia propõe hoje? As propostas dentro da sala e site specific têm oferecido um campo vivo de pesquisa, porém pouco se vê uma cenografia investigativa, que assume riscos, renova-se. Não estou falando de resultado técnico apenas, estou falando de estética. Enquanto o designer da cena mantiver seu trabalho circunscrito em territórios conhecidos, reconhecidos, e portanto, não mais instigantes, nossa maneira de imaginar tenderá a um percurso empobrecedor. Claro que há na produção nacional projetos ousados, criativos, surpreendentes, reconhecidos interna e externamente, exemplares. Porém, diante da urgência em reconstruir nossos imaginários, quero dizer, nossos valores, as concepções espaço-

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-visuais podem funcionar como um importante instrumento de transformação. Até quando acreditaremos, por exemplo, no rosa para as meninas e azul para os meninos como escolhas definitivas? É preciso dizer, também, que não apenas os designers, mas diretores e outros artistas cênicos também são convocados a expandir suas imagens e espaços, na travessia de situações cujas todas as soluções parecem já ter sido apresentadas. Não apenas ‘o quê’, mas ‘como’ o espaço/o cenário nos afeta pode ser tomado como o início de uma investigação mais profunda. Sabemos que para isso é preciso investir em verbas para os artistas realizarem suas propostas integralmente, para a criação de escolas e cursos que ampliem os potenciais dos futuros cenógrafos e os renove, em laboratórios de pesquisa, equipamentos e técnicos que auxiliem a criação. E também, é preciso investir na credibilidade de outras formas que não nos contem as mesmas histórias, seja de uma arquitetura, de uma cadeira associada ao luxo ou de uma turma de formatura.

inis renis nobisquate volup Não me parece que entre manter os vídeos e criar uma nova versão deles exista uma continuidade como a questão sugere. Criar uma nova versão do vídeo tin ha a ver justamente com um incômodo que, segundo avaliamos, também foi o dos provocadores. Avaliamos que os vídeos funcionaram muito bem como re curso, e que talvez a questão que eles colocaram se relacionasse mais a um determinado tom da família que ainda antro+

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hegar, nesse espetáculo, é um termo fundante, então peço atenção a ele. Ao contrário do ocorrido na maioria dos espetáculos, quando o artista entra

em cena, elas, diferentemente, chegam. E isso muda tudo. O verbo é uma tentativa minha, assumo, em traduzir o impacto sobre o encontro inicial. Corpos-plantas em uma espécie de instalação díptica, na qual cada uma é a soma independente para um conjunto particular. Híbrido de humanidade-natureza cuja diversidade está em ambas as partes.

Bárbara Elias, Danielli Mendes, Josefa Pereira, Mariana Costa e Patrícia Bergantyn também se acumulam uma a outra, criando o conjunto imagético que supera a imagem individual para se validar como interferência ao ambiente onde estamos. Então é muito mais do que apenas entrar em cena, quando nada provoca ou modifica ao contexto, apenas o ocupando. Chegam, e por ali estarem, a ambiência da sala se torna radicalmente outra, reinventa sua condição poética ampliando o espetáculo à condição de ser também uma instauração. Curiosamente, o espaço da Red Bull Station é uma sala branca de concreto e cimento, propositadamente não perfeita, longe de ser um cubo branco de galeria. A presença das plantas nesse ambiente arquitetônico grita o verde como uma espécie de resistência às estruturas industriais. E por não virem só, por serem extensões das mulheres que

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por ruy filho as carregam, é provocativo o quanto o corpo assume protagonismo ao gesto de chegar, entrar, existir e se mover.

Tudo pode surgir, por fim. Mas o quê? Aonde nos conduzirão essas mulheres-plantas? Ao mais inesperado e óbvio, paradoxalmente: a elas mesmas. De início, os corpos das performer, informação primeira sobre aquelas que iniciam a ação, gradativamente são substituídos pelos aromas de ervas, levando-nos a ater mais às plantas, tornando a natureza centralidade ao contexto performativo, já que é impossível não assistí-las dançar submetidas, frágeis revoltas e resistentes. Até que os gestos humanos se brutalizam, erotizam, reafirmam presentes e novamente as performer tomam para si a centralidade dos diversos quadros oferecidos. Dois então são os labirintos: a colagem como dimensão coreográfica; a naturalização do corpo através de sua afirmação pelo feminino. Ainda que a plateia seja de espectadores acostumados ao convívio com manifestações performativas da dança contemporânea, é possível ouvir quem a procure. No entanto, ela, a dança, está conosco todo o tempo. A colagem nada mais é do que reunir estruturas específicas independentes construindo ritmos entre os elementos. Por ser sobretudo ritmo, há que se compreender o movimento não apenas como aquele próprio ao corpo ou o atribuído às plantas, mas também ao como se conduz o olhar e a percepção ritualisticamente entre os quadros.

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Portanto, em Monstra a dança se confirma nas transições entre os quadros e as exigências de como dissolve um quadro para o surgimento do próximo. Elisabete e Manuela fazem a imagem dançar ao moverem as colagens umas as outras. Com o mesmo ímpeto da chegada, simplesmente deixam a sala, e não apenas saem de cena. Deixa-se, pois ela não mais é asséptica, preenchida que está por fluidos, restos, terra, planta, corpos e vidas. Tem-se um quadro único, portanto, coerente e radical, no qual as colagens são discursos e não somente cenas, em que as mulheres são atributos e não apenas corpos, e as plantas são adjetivações e não matérias. Bastaria isso para Monstra ser um excepcional espetáculo.

Só que há mais. Não apenas o corpo é traduzido como natural, o que seria inegável, também o feminino. Ao ser exposto arquetipicamente, sem qualquer tentativa de ser simplista ou literal, as mulheres expõem partes próprias elaborando uma estrutura que contempla da vestimenta ao nu. Assim, em conjunto, são a narrativa de sua própria representação. Como um corpo feito também em colagem de partes e momentos. É preciso ainda perceber o surgimento do nu ao tempo da ação, o que torna a narrativa o percurso ao seu descobri-

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mento (nos dois sentidos da palavra). Por conseguinte, narra no processo mais do que apenas seu desenho, trata-se de libertar o corpo ao que dele é próprio:

o feminino. Tanto quanto natural, o feminino e as plantas simbolizam um ao outro, e Monstra ganha dimensões mais verticais do que apenas um espetáculo performativo. Faz-se discurso e manifesto pelo reconhecimento do feminino e por consequência da humanidade particular que este contempla. Seja na simulação do prazer, da masturbação, seja no mijo que escorre durante o quadro que nos remete à dança de Matisse, o que se assiste é a humanização do feminino gritar por presença e aceitação. Não se trata, todavia, de um manifesto feminista aos contextos políticos atuais. É muito mais. Monstra é radicalmente um manifesto feminino, plausível de existir apenas se trazido por mulheres, e por isso diz respeito ao humano e não somente a gêneros. Se compreendida a distância entre cultura e natureza, ainda que originárias do mesmo verbete filosófico, o espetáculo é a precisa transposição ao palco de uma despedida do entendimento do corpo da mulher como algo cultural para o feminino no corpo como algo natural. É a cultura, afinal, o problema a esse feminino. São as vestes, portanto as representações, tanto quanto os vasos, portanto os limites, que artificializam mulheres e plantas a contextos não próprios de uso e utensílio.

O nu reage a isso. As plantas, em sons e aromas próprios, reagem a isso.

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E nada desse tanto em cena é banal. Pois é poeticamente discursivo e não apenas discursivamente ideológico. Monstra é um manifesto de reconfiguração dos símbolos, portanto. Se é preciso olharmos à natureza sob novas óticas, e o é, o mesmo pode ser dito ao feminino. É, de modo singular, pura e simples afirmação do quanto precisamos voltar a ser outros:

pré-culturais, selvagens, monstruosos e livres. Um espetáculo como raramente se assiste. Novamente, nesse ano, a dança criada por artistas mulheres é dos melhores experimentos por aqui.

Não há de ser por acaso. nis renis nobisquate volup Não me parece que ent re manter os vídeos e cria r uma nova versão deles exi sta uma continui dade como a questão sugere. Criar uma nova ve rsão do vídeo tinha a ver ju stamente com um incômodo que,

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Romeu e Julieta: Obra-atentado em homenagem aos que morreram lutando” é uma tentativa de destruir a própria obra, de levar ao vazio, para que, quem sabe, em um descampa-

do, apenas coberto pelas estrelas, seja possível recriar as estruturas onde os destinos possam recomeçar. É tempo de luta! A morte no final já é uma certeza. Não estamos com medo! Queremos lutar por aqueles que já morreram e mor-

rer por aqueles que virão depois de nós! Romeu e Julieta é nosso ato de amor. O mais profundo que conseguimos encontrar nesses tempos sem sonho. É, talvez seja isso que possamos dizer aqui. É um ato de profundo amor e luta. E agora, é só isso que queremos. Amar e lutar. E quem sabe, morrer lutando. Porque os corpos se vão, mas as ideias ficam, como um profundo pesadelo. Nós queremos ser o pesadelo.

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Faz um tempo eu descobri algo tão bonito. Há um corpo que se move e há os fantasmas. E os fantasmas estão no vento. Assim, se um corpo corre por muito tempo é possível que por alguns instantes a sua trajetória corresponda a trajetória de um fantasma. A isso eu tenho dado o nome de sonho. Ou de amor.”

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Direção Felipe Rocha Produção Corpo Rastreado Iluminação Maíra Nascimento Sonoplastia Renato Souza Preparação Vocal Marcela Grandolpho Composição Musical Giulia Castro Elenco Ametonyo Silva Caio Caldas Danilo Arrabal Douglas Vendramini Felipe Rocha Giulia Castro Laris Gabrianne Lívia Souza Marcela Grandolpho Marcus Garcia Marô Zamaro

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