Antro Positivo_ Especial MITsp 2018

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PUBLICAÇÃO especial mutante março.2018


não tem sumário

esta é uma

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publicação mutante e serå atualizada durante toda a mostra

vive. respira. renova. a n t ro + M I T s p

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editorial

C

inco anos depois. Desistimos das mesmices e obviedades. Aviso: as críticas dos espetáculos não serão apenas isso. Seria fácil demais. As ações

paralelas agora buscam aproximar mais o espectador, convidando-os à reflexão juntos. De alguma maneira, isso ficou esquecido, e aqui investigaremos o quanto ainda é fundamental. E é. Por não ser plausível escrever sobre uma mostra sem vivenciá-la, e por ser simplista demais concluir apenas ao final, essa edição ousa em ser também mutante: acompanhando os acontecimentos, experiências, silêncios e descobertas dessas semanas. Pois começamos antes, desde o primeiro dia, antes da estreia. Estaremos, portanto, nas salas de espetáculos, encontros, conversas para, diariamente, trazer algo maior do que apenas resumos. Esse Especial oficializa a parceria iniciada no primeiro ano, e quem tem nos permitido explorar novas possibilidades de escritas e vivências. Por isso, ainda que só o folheie após passada a MITsp, saiba que continuará pelas interrogações que não se pretendem respondidas, pelos estímulos que se propõem ecos, pelas tentativas em formas de diálogos. Vamos adiante. Dia-a-dia. Inquietos e diferentes. E com vocês. Evoé.

março I 2018


quem? o que?

ANTRO POSITIVO é uma publicação digital, com

acesso livre, voltada às discussões sobre teatro, arte e política cultural. Este especial faz parte da

programação oficial da MITsp 2018

editores

ruy filho [texto] patrícia cividanes [arte] colaboradores

ana carolina marinho anna zêpa daniele sampaio guto muniz marcio tito maria teresa cruz matheus macena maurício perussi vinícios piedade

Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio:

antropositivo@gmail.com

aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo.

www.antropositivo.com.br @antropositivo


PRÉ 6

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RÉ

VAMOS AQUECER?

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já publicamos

SOBRE AS EDIÇões anteriores clique sobre os números para ler tudo o que refletimos sobre a MITsp até aqui. Bom mergulho!


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a

2014

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4

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2015

2017

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já publicamos

SOBRE AS EDIÇões anteriores clique sobre os títulos para ler nossas experimentações críticas na MITsp até aqui. Bom próximo mergulho!


canção de muito longe de ivo van hove

críticas performativas ça ira

de Joël pommerat

crítica dentro

a tragédia latino-americana de felipe hirsch

Ó

de Christian duarte

crítica participativa a n t ro + M I T s p

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já publicamos

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Críticas

Experimentações sobre críticas

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Reflexões

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88

Resenhas

diálogos

9

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ações

Entrevistas

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já publicamos

SOBRE espetáculos da MITbr clique sobre os títulos para ler tudo o que refletimos sobre estes espetáculos até aqui. Bom terceiro mergulho!


caranguejo overdrive de aquela cia.

crĂ­tica performativa

crĂ­tica a 3 dinamarca

de grupo magiluth.

com maikon K dna de dan.

entrevista

crĂ­tica imediata a emparedada da rua nova de eliana de santana.

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PRรณ 16

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รณlogo a n t ro + M I T s p

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PRólogo

N

ão é nada fácil explicar São Paulo, ou o por que o teatro é sim relevante. Ali, onde o garoto não entra, existe um teatro. Outro. Ele está fora e a rua é, de certa forma, seu único universo narrativo.

Demasiadamente

real,

habita a realidade pela teatralidade de quem se serve da cidade por uma espécie de simbologia crua, explícita. Não sabe dos seiscentos espetáculos ao ano ou de acontecer uma mostra internacional. Do lado de dentro, acomodados, nós, os espectadores, entregamo-nos às tentativas de reinvenção ou tradução do mundo oferecidas por outros. A condição dessa busca, esse querer estar na sala, reflete também a fuga de uma sobrevivência que não quer mais ser percebida. O excesso tornou-nos insensíveis à realidade, inclusive à própria. E São Paulo, além de tantas outras coisas, é uma experiência excessiva, aceitemos. A avenida não parece concreta o suficiente. O distante está mesmo distante demais. Talvez porque não estejamos tão abertos a percebê-los, velados por tantas camadas de proteção, certezas, afirmações, incluindo as estéticas. Inclusive as que apagam o garoto. Ele não sabe o que é teatro, não conhece dramaturgia, não exercita desdobramentos críti-

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cos a partir de experiências estéticas. Não? Nada é mais teatral que a realidade dada. Sem saber, sem precisar saber, o garoto vivencia isso melhor do que qualquer um. Na verdade, somos nós quem precisamos urgentemente descobrir esses aspectos. Estar na sala de teatro possibilita vivenciarmos a espetacularização em seu estado mais explícito, direto, produzindo inconscientemente depois o reconhecimento de seu uso no comum. Essa cidade indecifrável, cuja história é uma dramaturgia errática de personagens anônimos, serve ao propósito de um experimento teatral como poucas. E por isso é apaixonante. Dentro e fora da sala. O teatro das relações e conveniências inúteis, das recepções calculadas e distorções incontroláveis. Sendo o paradoxo uma das dimensões mais teatrais dessa megalópole em dívida com a realidade, requer do teatro, da linguagem quando transposta em arte, o gesto de tornar a realidade mais crítica às dividas de nossas subjetivações. Durante a MITsp, tudo aqui se converte em palco possível a artistas e interessados de muitos cantos, janelas transportam a narrativas culturais inesperadas, o outro é alguém e algo a ser percebido e reconhecido. Ainda se lembram do menino? Há um teatro explícito na existência do garoto na calçada que expõe violentamente o teatro íntimo pelo qual nos escondemos. É especial que uma mostra internacional ocorra em São Paulo. E é especial, sobretudo, pelo interesse inerente da cidade por sua encenação. Entremos na sala, então. O menino pode esperar um pouco mais, enquanto torce para, enfim novamente sensíveis, frente às experiências não calculadas e surpreendentes, sermos capazes de enxergá-lo não como mero personagem. A arte, quando arte, possui o poder de nos afetar, arrancar do seguro e trazer de volta ao real.

por ruy filho


www.antropositivo.co

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ingles

om.br/

entrevistas exclusivas em inglĂŞs

acompanhe compartilhe distribua


a histรณria recomeรงa por ruy filho

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A

história parece feita por acontecimentos. Somos levados a acreditar nisso, estimulados pela suposta aleatoriedade pela qual nos atingem os fatos. Um após o outro, acumulando-se ao tempo, como se não necessariamente estivessem alinhavados por estruturas subjetivas. Segue assim, o inconsciente, admitindo os acontecidos por sua qualidade, ainda que tragam ecos de outros e

propulsionem observações aos próximos. O que aconteceu, aconteceu, diz-se. No entanto, a história, ainda que reconhecida pelo trajeto desenhado entre pontos de singularidades, precisa ter os mesmos escolhidos de acordo a valores e interesses. Aí está o risco maior de tentar apresentar o que permanecerá como história. Interesses implicam em ignorar acontecimentos menores, laterais, tangenciais, e, mesmo assim, fundantes de novas trajetórias. Valores requerem constituir identidades aos acontecimentos suprindo dos demais relevâncias estruturantes. Dizer o que é história, portanto, é menos importante do que observar a história em mutação, sem caber no olhar a dimensão conclusiva, seja qual for. Pensemos diferentemente, então. A história, em sua construção e movimento, revela-se não por acontecimentos, e sim pela narrativa que conduz o interligar entre eles. A história é somente a percepção de uma narrativa em perspectiva ao presente. Acordado isso, vamos ao porque nos voltarmos a ela. Noite de abertura da MITsp. Novamente, recebidos no Auditório do Ibirapuera para cerimônia e falas e também o espetáculo primeiro. É nesse momento específico, trivial como acontecimento, mas nem tanto sobre o que nele se escondeu em narrativa, que a história aponta mais um epicentro à sua trajetória. Voltemos a dois anos, nesses cinco dos festivais. Não precisaremos mais do que esses para entendermos sobre qual narrativa escrevo. 2016, mesmo auditório. Plateia cheia, convidados e convívios; falas e discursos. Naquele momento, passeavam por ali representante de instituições parceiras e governamentais. Nada de estranho, quando se é preciso envolver tantas instâncias, inclusive públicas. 2017, Theatro Municipal de São Paulo.

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O marco de abrir uma Mostra Internacional na casa mais simbólica da cidade, já oferecia outra qualidade ao acontecimento. Mas foi durante os discursos que algo mudou: pela primeira vez, as três instâncias governamentais – Municipal, Estadual e Federal – são vaiadas. O tom crescente de uma a outra levou ao impedimento de alguns. Foi impossível apropriar-se do momento como acontecimento político pelos Governos, enquanto artistas e convidados tomavam para si a política como discurso de protesto. Por mais que se direcionassem ao “Fora Temer”, sobretudo, havia ali uma reação que só pode ser percebida agora. Em 2018, não houve tentativas ou falas de representantes de qualquer um dos três poderes. Secretarias e Ministério se ausentaram do encontro público mais amplo. Apenas o Secretário Municipal da Cultura, em um pequeno grupo no subsolo se dirigiu, por alguns segundos, aos convidados dentre os convidados. Não mais do que um parabéns e vamos lá. E fim. Essa é a narrativa que trago à percepção: a de que, diante do diálogo impossível entre sociedade e governantes, os poderes públicos foram expulsos do palco, ainda que necessários à festa. Há nela a graduação de uma consciência que se difere da existente até então: sim, cabe às esferas públicas fomentarem, efetivarem, propiciarem as manifestações culturais como política pública e democratização do pensamento e das experiências simbólicas. É sua tarefa estarem próximas. É sua obrigação se envolverem. Todavia, uma mostra como a MITsp pertence radicalmente aos artistas e pessoas comuns e não aos poderes. Falou-se sobre perenidade, permanência, arte, sobre Ruth Escobar e o quanto chegarmos aqui é reflexo de sua luta pelo teatro e pela Cultura, sobre convívio, pluralidade. A política de verdade está na intersecção entre esses e muitos outros acontecimentos que a realidade da MITsp produz na soma de um ano a outro. A narrativa, portanto, aponta para a percepção da arte ser maior do que os oportunismos estruturais das eferas política. Se isso não é iniciar uma pequena insurgência, então não saberia explica-la melhor. O fato fundamental nisso é a história se revelar, enfim, em movimento pelo desejo de um coletivo amplo e plural, que fora capaz de impor pontos de acontecimentos e iniciar assim uma mudança de percurso. Dá vontade, por mais louco que ainda esteja esse país, de ser otimista ao futuro.

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e m co rรณtsih a n t ro + M I T s p

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dobra 26

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Uma Mostra Internacional precisa ser percebida ao tempo, pois está na convivência com a diversidade sua dimensão mais profunda sobre a produção contemporânea. Nesta Edição Especial iniciamos outra

crítica qualidade sobre a Escrita

Crítica: os espetáculos serão colocados em perspectivas a outros que participaram da MITsp nos anos anteriores. Uma maneira de ampliar o pensamento, a percepção, a experiência, os convívios e olhar ao presente e ao teatro com mais amplitude e curiosidade.

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país clandestino

a missão em fragmentos

mateluna

de eugênio lima (4a edição _ 2017)

de guillermo calderon (4a edição _ 2017)

campo minado

ça ira de joël pommerat (3a edição _ 2017)

arquivo de Arkadi Zaides (2a edição _ 2015)

trilogia de rabih mroué

(4a edição _ 2017)

black off

hamlet

de Ntando Cele (4a edição _ 2017

still life

de dimitris papaioannou (3a edição _ 2016)

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king size


A gaivota

de yuri butusov (2a edição _ 2015)

sal.

de Krystian lupa

árvores abatidas por que o Sr. R. eEnlouqueceu? de susanne kennedy (4a edição _ 2017)

palmira 100 % São Paulo

Rimini Protokoll (3a edição _ 2016)

cineastas de mariano pensotti (1a edição _ 2014)

suite o n 2

de joris lacoste


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dobra crítica

suite no 2

o que está acontecendo diante de nós cineastas

Por Ana Carolina Marinho

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dobra crítica

P

ara quem, ao pronunciar as palavras, facilmente é identificado como estrangeiro é fácil compreender que essa constatação inevitável está na melodia e na cadência com que cada lugar organiza sua oralidade. O mesmo se define quando alguém por simpatia - ou não – imita o famigerado sotaque, causando um desconforto tremendo ao estrangeiro ouvinte. O desconforto se deve, muitas vezes, pela

inconsistência da imitação; o primeiro erro está em mudar apenas alguns fonemas. A melodia de quem imita é, quase sempre, caricaturada, cheia de opiniões. Soma-se a isso a problemática cotidiana que o teatro enfrenta sobre a representação, os privilégios e os lugares de fala e tem-se o quadro angustiante em que eu estive durante os primeiros minutos de Suíte no 2, de Joris Lacoste: um espetáculo francês que põe em cena trechos reais de falas de pessoas de vários países em contextos distintos. Só conseguia pensar na balbúrdia que o espetáculo causaria se fosse criado em São Paulo por atores paulistas e utilizasse como “documentos sonoros” trechos de falas de várias cidades do país. Conseguia sentir o descontentamento de quem não se vê representado por aqueles sulistas e de quem reconhece e se incomoda com a caricatura do sotaque nordestino. O espetáculo, porém, conseguiu superar parte dessa inquietação e me conduziu por essa espécie de acervo oral com maestria (que poderia ter sido ainda mais imersivo e provocador se o texto final, com uma fala de alguém em São Paulo, fosse dito pelos atores e não por uma gravação. Afinal, era a primeira vez em que poderíamos encarar a imitação sobre nós, fiquei desejando saber que tipo de sensação isso me geraria). Passei a constatar que a forma com que se fala interessa mais do que o que se é dito. Nesse sentido, o diretor optou pelo esvaziamento do personagem, os gestos dos atores não são para reforçar as personas, mas para encontrar apoios para que aquela voz se aproximasse ao máximo do documento sonoro captado. E, nesse instante, o jogo proposto por Lacoste fez-se realidade: interessava menos imitar as nacionalidades e mais investigar a cadência e a melodia que os contextos geravam na fala. É por isso que é possível reconhecer um pe-

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suite no 2 <> cineastas _ Por Ana Carolina Marinho

dinte dentro do vagão de um trem em qualquer lugar do mundo, a melodia com que se pede mantem um padrão. E é sobre esses padrões que Suíte no 2 se adensa. O espetáculo valia-se também de cartelas que enunciavam da onde o trecho foi recortado e servia para darmos contornos àquela melodia que estava por vir. O que, para mim, já era suficiente; dispensaria as legendas e manteria apenas as cartelas, a brincadeira com os textos projetados poderia ser mantida em seus idiomas originais: alternativa para esgarçar o jogo sobre como se diz em detrimento do que é dito. O fato de parte das falas em inglês não terem sido traduzidas gerava um incômodo que patinava entre a dúvida de uma escolha estética, erros ou a arrogância de achar que toda a plateia sabia falar inglês. Bom, e se pudéssemos sintonizar todas as vozes do mundo em um só instante? Suíte no 2 é essa rádio que sintoniza, ao mesmo tempo, as frequências do mundo. Ouve-se de tudo: reclamações, pronunciamentos, eventos esportivos, brigas familiares, encontros amorosos, situações de perigo e violência, mantras etc. Com um rigor de orquestra musical, os atores investigam falas de diversos idiomas. A combinação dessas vozes soa como uma composição musical orquestrada pelos timbres e cadência de cada fala. As falas, que são reais, foram retiradas de seus contextos de origem e deslocadas para o espaço entre outras frases transpostas, o que gera inevitavelmente diálogos novos. As sobreposições criam novos contextos, novas possibilidades de interlocução. Ainda que o discurso não exista com a consciência dos demais, quando ele é apresentado ao lado (ou sobreposto) aos outros constrói uma nova realidade para si. O espectador não consegue destituir-se dos outros signos que lhe é dado, ele soma tudo que vê e ouve no instante da encenação, habitando essa rádio do mundo, esse espectro oral de Lacoste. É nesse ponto que proponho um diálogo entre Suíte no 2, apresentado na MITsp de 2018, e Cineastas, espetáculo argentino com direção de Mariano Pensotti apresentado na MITsp de 2014. Tanto lá quanto aqui, os espetáculos trabalham com sobreposições e montagens paralelas.

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dobra crítica

Não se trata do que aconteceu ou do que poderia acontecer, mas do que está acontecendo diante de nós. Nesse caso, os espetáculos habitam um espaço entre a ficção e a realidade, fazendo com que o instante abrigue mais de uma vida simultaneamente sem que eu possa identificar com precisão qual e quantas. Em “Cineastas”, por exemplo, o cenário divide dois espaços de encenação: um deles comporta a vida cotidiana dos personagens e, o outro, a ficção de seus filmes; os dois espaços acontecem sinergicamente e a legenda é projetada na linha que os divide. O espectador espelha os diálogos e constrói uma nova dimensão de leitura. Assim como no espetáculo francês, o argentino consegue, através da simultaneidade das cenas/falas, esgarçar os contornos e propor novas relações, é que não há como ter o casamento dessas imagens sem que haja a destruição das duas. A legenda, por exemplo, serve algumas vezes à ambas, fazendo com que o jogo de enunciação em Lacoste dialogue com o uso da legenda em Pensotti. Compreendendo a palavra como perspectiva de identidade, é possível traçarmos mais alguns diálogos entre as duas obras. Ao dar ênfase às palavras, o jogo que se configura revela poéticas e problemáticas determinantes dos países de origem. No caso francês, a palavra sempre foi acompanhada de valores iluministas que se espalharam pelo mundo influenciando pensamentos e escritas e, por isso, ver o trabalho de Lacoste e esse exercício de oralidade, de reconhecer o outro e a fala do outro - sem impor a sua - revela uma alteridade incomum e necessária quando pensamos no processo de colonização francês. As sobreposições também nos conduzem a esse espaço de alteridade, ao deixar os idiomas existirem e coabitarem o mesmo espaço-tempo; no caso argentino, a palavra abriga uma atmosfera de perda, ausência e, também por isso, imaginação influenciada pela turbulenta história do país. Nesse sentido, o espetáculo de Pensotti também é fruto dessa atmosfera ambivalente entre vida e ficção, ausência e presença, história e memória, entre o que se é e o que aparenta ser, por isso o jogo de sobreposições faz-se como uma possibilidade de coabitar esse território ambivalente. Além disso, a peça se ambienta em

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suite no 2 <> cineastas _ Por Ana Carolina Marinho

Buenos Aires, a cidade mais filmada no cinema mundial; mesmo que os filmes não se passem na Argentina, muitas produção filmam na capital por ela abrigar várias cidades dentro de si. Nos dois espetáculos, a sobreposição da imagem real (a vida cotidiana em Cineastas e as cartelas em Suíte no 2) com a imagem ficcional (a película em Cineastas e a composição sonora em Suíte no 2) ganha especial atenção. Tanto a imagem real quanto a ficcional querem servir-se uma da outra para, quem sabe, gerar uma dimensão terceira, intraduzível e arrebatadora. É sobre nesse território híbrido que abriga inúmeras possibilidades, que os dois espetáculos se instauram. A montagem paralela gera essa sobreposição dialética de sentidos, oferecendo ao espectador leituras infinitas sobre o que é visto. O jogo é o que mais interessa e os dois diretores sabem bem como brincar. ______________________________________________________ _________ _____________________________________________ ____________________ __________________________________ _______________________________ _______________________ __________________________________________ ____________ _____________________________________________________ _ ______________________________________________________ _________ _____________________________________________ ____________________ __________________________________ _______________________________ _______________________ __________________________________________ ____________ _____________________________________________________ _ ______________________________________________________ _________ _____________________________________________ ____________________ __________________________________ _______________________________ _______________________ ________________________________________ ______________ _______________________________________________ _______ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ________ Leia a crítica sobre ______________________________________________ ___________________ “Cineastas”, por Ana Carolina Marinho, ___________________________________ ______________________________ em nosso especial fotos bea borges MITsp 2014.


dobra crítica

suite no 2

100 % São Paulo

os possíveis esconderijos no outro Por ruy filho

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dobra crítica

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m dos aspectos mais impositivos ao teatro diz respeito ao quanto o mundo se infunde através dele. É um fato. A imponderável condição de representar uma parte da realidade, mesmo que seja negando-a, dialoga com a condição de ser o teatro um invento do ou a partir do presente, realizado em tempo presente pelos artistas, organizado e acessado cognitivamente pelo presente dos

espectadores. Não há saída a isso. E nem precisa. Se for o espetáculo sobre acontecimentos, histórias, as veracidades desses serão confrontadas às possibilidades de como ocorreriam no mundo real, e não sendo plausíveis, assume a peça a perspectiva de imaginação. Assim, o mundo, inevitavelmente, permanece parâmetro do que é ou não razoável aos acontecimentos em cena. Se o espetáculo for sobre personagens, a mesma qualificação sobre realidade e irrealidade virá pelo entendimento de quem são aquelas pessoas. Em outras palavras, reconhece-se ou não o mundo no palco exatamente por se ter o presente como observação para avaliações. Afinal, conclusões precisam ter parâmetros, e entender algo significa concluir a seu respeito. Partindo disso, então, é preciso assumir a realidade por sua imposição, alicerce maior até mesmo quando negada. Com ela ou para além dela, nunca sem ela. Alguns espetáculos serão literais, e o presente, portanto o mundo, será exatamente seu espelhamento, tal qual um retrato fotográfico. Outros, instituirão amplitudes poéticas para superá-lo ou metaforizá-lo por estruturas representacionais inesperadas apropriando-se do mundo como referência inicial. Por realidade compreende-se, aqui, os contextos reconhecíveis, os acordos comuns. Por conseguinte, sendo o teatro a tradução inerente ao que simplesmente está aí, é ele também a assinatura de como o mundo é oferecido em sua qualidade de informação. Surge, então, a disposição para uma terceira possibilidade: a qualidade de teatralizar a informação, que lhe exigem narrativas e estéticas de como apresenta-la ao espectador. Para tanto, assume-se, como qualidade maior, a performatividade pela qual o teatro ainda é teatro, mesmo não sendo o teatro que se espera às

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suite no 2 <> 100% São Paulo _ Por ruy filho

representações; atores são personagens deles mesmos, mas não deixam de ser ficções de suas presenças; histórias são menos trajetórias e mais acúmulos de informações pelas quais se validam experiências de como ler o mundo e não apenas respondê-lo. É preciso diferenciar o que se convencionou denominar por Teatro Documentário do Teatro de Documentação. Ambos apropriam-se dos atores em suas qualidades reais, portanto como performances. Contudo, ainda que construam narrativas através da realidade em seu estado puro, cada qual se destina a um objeto diferente. O Teatro Documentário parte daqueles em cena como elementos reais e lhe importa serem eles; o Teatro de Documentação parte dos documentos importando-lhe mais a realidade daquilo que informam. Não são iguais, ainda que insistam críticos e teóricos em padronizar a uma mesma categoria. O primeiro oferece limites ao encenador, pois, em excesso, desconfigurará a realidade necessária ao performer; o segundo determina limites aos documentos, pois, se aleatórios, não se justificarão como coleção. Entre as dezenas de espetáculos apresentados durante as cinco edições da MITsp, alguns que por São Paulo passaram eram claramente Teatros Documentários. Outros equivocadamente definidos como tal. Dois, em especial, diferem-se dos demais por serem inequivocamente Teatros de Documentações: escolheram trazer aos espectadores estratégias de catalogações do mundo real: Suíte no 2, do francês Joris Lacoste (MITsp 2018) e 100% São Paulo, da companhia alemã Rimini Protokoll (MITsp 2016). Olhar as escolhas de quais materiais acolhem suas catalogações e como apresentam-nas, portanto, percebendo suas diferenças, redimensiona a complexidade do acesso e reconhecimento do contemporâneo e do quão amplo podem ser os dispositivos cênicos. Joris Lacoste iniciou na última década a catalogação de palavras, falas, discursos, conversas, depoimentos, pronunciamentos, apresentações, explicações, dentre outras qualidades da palavra falada, até mesmo quando em aplicativos virtuais, para elaborar um complexo mapeamento da oralidade em nosso tempo. A esse processo de pesquisa resultou a constru-

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dobra crítica

ção de Encyclopédie de la parole, aonde permanecem arquivados diversos usos da palavra, das cotidianas e informais às oficiais e formais, das recolhidas em meios de comunicação e das conversas íntimas, e disponíveis à consulta no site oficial, por diversos mecanismos e percursos de suas interpretações. Já desdobrada em três espetáculos, a edição atual da MITsp convidou a segunda experiência. Suíte no 2 possui uma encenação simples, atores em cena diante de microfones ou acomodados em cadeiras, compondo pela sonoridade uma ambiência exploratória da palavra. Palavras que também estão como recurso cenográfico ao serem projetadas em diversas variações estéticas. Algumas vezes, o inusitado da fala recolhida é o ponto chave, em outras, a qualidade em propor sensações sobre quem seriam os indivíduos. O silêncio, igualmente, assume a possibilidade discursiva, contraponto ao acúmulo de vozes, palavra ausente ou em estado de espera. Assim, Joris compõe sonoridades particulares a cada fala estudando suas articulações, ritmos, idiomas, intensidades, subjetividades, humores, poesias, ineditismos, casualidades. O espetáculo é direcionado às sensações oferecidas pelas palavras e sons interpretados pelos atores, mas não só. É também o mapeamento da expressão do indivíduo no presente, em sua perspectiva solitária, confusa, caótica, ridícula e melancólica, e tantas outras. As compreensões dialogam como cada espectador reconhece nele próprio as sensações. O mundo apresentado pela catalogação de Suíte no 2, portanto, é um emaranhado de possibilidades em aberto de como somos e quais as palavras que nos atravessam. As palavras como dimensões estéticas de nossos inconscientes, que Suíte no 2 se aventura em apresentar e não representar. Rimini Protokoll, por sua vez, escolhe outra potência ao gesto de mapear, de compor panoramas específicos. Em 100% São Paulo as catalogações se interessam por observar o pertencimento social, cultural, religioso, sexual, econômico, político, comportamental, moral. Trata-se mais de um projeto do que espetáculo, propriamente. Ainda assim é teatro. E, como tal, tem sido replicado em diversos países e festivais sempre atualizando as informações com dados recolhidos frente às especificidades de cada lugar.

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suite no 2 <> 100% São Paulo _ Por ruy filho

Cem pessoas são selecionadas na cidade, observando a maior pluralidade possível nessas muitas questões. No palco, apresentam-se brevemente ao público e passam a responder perguntas diretas, cujos retornos se dão ao público e não apenas aos que indagam, e quase sempre se validam com sim ou não. Todavia, é na resposta que o espetáculo encontra sua chave estética. Movem-se, circulam, trocam de lados, confundem-se, misturam-se e criam agrupamentos e desenhos específicos a cada questionamento. O humor inerente ao acompanhamento das características incoerentes ou surpreendentes descobertas reflete o desconhecimento sobre todos nós. E o que poderia ser somente estatística assume mais profundidade quando, no escuro, perguntas sobre estupro, morte, violência, aborto, mentiras profundas, erros irreparáveis, sofrimentos são quantificadas pelo acender de lanternas, sem que importe sabermos quem as acionou, apenas visualmente quantos. Pergunta à pergunta surge o retrato dessa micro-sociedade escolhida. Retrato à retrato revela-se a macro-sociedade e os dilemas de suas condições. Em ambos os espetáculos a dramaturgia e atuação confrontam-se com a perspectiva de servirem, a partir da realidade trazida, com as qualidades da ficcionalização própria do dramático. São outra coisa, portanto. Em Suíte no 2, a materialidade teatral é a fala real que não pode ser esquecida de sua realidade, enquanto, em 100% São Paulo, a dramaturgia surge no acúmulo das presenças como estados não inventados. O que institui os dois trabalho a uma mesma categoria, a do Teatro de Documentação, por sua vez distancia-lhes pela perspectiva de Joris trazer à cena o outro por meio de suas falas em presenças não próprias; já Rimini Protokoll inclui o outro como presença para encenar os que não estão em cena ainda que fundamentais à construção da realidade recortada. No escolha por documentar a fala e a presença, os espetáculos caminham paralelos olhando ao mundo por diferentes estratégias. Joris propõe a documentação do outro como percepção ampla de sua subjetividade e inconsciente. Rimini Protokoll provoca a documentação do próprio como percepção ampla das semelhança e do quanto há de semelhança no existir de diferenças. Desse


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dobra crítica

suite no 2 <> 100% São Paulo _ Por ruy filho

modo, em Suíte no 2, o corpo daquele que falou necessita do corpo do ator, é a materialidade primordial para sua presença sonora e por quem valida sua existência como documento. É pela voz emprestada que a verdade é recuperada e não apenas pela palavra isolada de contexto. Por sua vez, em 100% São Paulo, é a qualidade individual da identidade que busca reconhecer pelo convívio com outras, nesse existir narrativo da presença, sua documentação como identidade sociopolítica cultural. Por estar em relação que a identidade se confirma presença, então, e não apenas pela própria corporalidade isolada. Mapear o mundo. Isso não é pouco. E mapear a nós mesmos para compreendermos quem somos nesse mundo, ou seja, o eco daquilo que construímos a ele. Joris Lacoste e Rimini Protokoll não brigam com a imposição do mundo ao invadir o teatro com sua realidade, nem se apegam às estratégias de apenas narrar personagens ou acontecimentos como no Teatro Documental. Superam os recursos assumindo no teatro sua dimensão informativa desse mundo catalogável por maneiras diversas. Rimini Protokoll com um pouco menos interesse pelo teatro, é verdade, mais voltado ao humano utilizado pelo palco para se fazer estético. Joris, por sua vez, encanta ao parecer ter o teatro como intuito final, propiciando o reconhecimento do presente pela experiência de convivermos esteticamente com as subjetividades humanas. Nos dois espetáculos reside certo distanciamento do espectador, afinal são documentações e como tais exigem um tanto de frieza. Todavia, Suíte no 2 seduz muito mais pela qualidade de sua investigação cênica e técnica - superando as estatísticas que em vários instantes parecem limitar a teatralidade de 100% São Paulo - , fazendo de uma enciclopédia de palavras e discursos algo vivo capaz de incluir, ao mesmo tempo, informação, mapeamento, percepção e, para além de tudo, poética. Talvez Joris merecesse um palco menor. Deveríamos estar mais próximos. Olhar nos olhos daqueles que falam e, assim, sentir mais intimamente a ambiência sonora, certamente seria mais emocional e o impacto especial. fotos guto muniz

Leia a crítica sobre “100% São Paulo”, por Ruy Filho, em nosso especial MITsp 2016.


suíte no 2

diário sensível

Diário Sensível_ano2 é uma proposta da Antro Positivo em criar imagens poéticas autorais como desdobramento de um espetáculo, gerando um convite à reflexão. Acompanhe durante a publicação.

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árvores abatidas

Por que o Sr. R. Enlouqueceu?

Entre a espera e o suicídio Por ruy filho

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teatro se movimenta, sobretudo, quando nele existem perspectivas adversas às expectativas. Importam menos as estratégias, uma vez que essas só significam algo relevante se trazidas para ampliar as percepções sobre as consequências do processo civilizatório, o homem e a própria arte. Dessas desdobram-se infinitas outras. Corre-se o risco, ao olhar

mais atentamente esses pilares, do teatro limitar-se ao discurso reflexivo sem incluir na própria fala sua resposta, também por isso é comum o teatro ser apenas acusativo sobre a diluição da realidade, apontando culpados e destruidores, esquivando-se de si mesmo. O mundo está errado e os artistas sabem disso, entretanto o que fazer com essa informação, uma vez ser a arte participante e corresponsável pela configuração do mundo como temos? A resposta mais básica atenta-nos ser o artista mais um na complexidade desse processo: o teatro, em seu movimento de contramão à realidade, necessita entender a falência da sociedade, por conseguinte do viver, e, no interior dela, a do indivíduo. Sendo o artista igualmente indivíduo, incluamo-lo entre os fracassos de nosso tempo. Tudo se passa no teatro pela esfera da representação. Parece mesmo que, muitas vezes, esquece-se disso. Em parte, consequências e paradoxos dos discursos que se alimentam de ideologias e posições às justificativas sobre a utilidade da arte. Todavia, a representação insere em si mesma uma condição crítica e política ao ser escolha manifestada pela estética. Discursos, por sua vez, quando mais literais e objetivos, precisam alimentar as escolhas estéticas e não o inverso. Está na potência de como se escolheu representar, além de o quê, a preciosidade da autoria. Nesse aspecto, dois caminhos se provocam possibilidades: o literal, realista, reconhecível, comum e o metafórico, simbólico, singular, inesperado. O preconceito atribuído ao primeiro recorre do cansaço do excesso de espetáculos banais destinados ao entretenimento e comercialização do tempo como passatempo. Não é verdade, porém, ser o realismo ou naturalismo ruim, é de longe o mais difícil de ser realizado tecnicamente e de se justifi-

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car como proposição exatamente por ser muito próximo a quem o observa na plateia. Também não é real que a escolha pelo segundo trajeto confira de imediato ao espetáculo qualidade de objeto de arte. Quase sempre, a arte é tratada pelo estereótipo de ser incompreensível, inacessível e narcísica (inevitável julgamento quando se tem por estratégia não ser simplista), e diferenciar isso é complexo. Nesses cinco anos, a MITsp tem oferecido dispositivos criativos diversos e autorais ao público, espetáculos tão distintos entre si, em um primeiro olhar, e que oferecem um panorama sobre o contemporâneo e seus entremeios exatamente pela pluralidade pela qual o representam. Dentre eles, Árvores Abatidas, de Krystian Lupa (5a edição, 2018) e Por que o Sr. R. Enlouqueceu?, de Susanne Kennedy (4a edição, 2017). Enquanto o diretor polonês olha de volta ao mundo por meio da literatura do austríaco Thomas Bernhard, a alemã utiliza-se do cinema do compatriota Rainer Fassbinder. Ambos não partem da dramaturgia escrita para teatro, utilizam-se de outros estímulos estético-narrativos para erguer dramaturgias próprias. Derivam de cada processo suas escolhas, e Lupa segue pela primeira via, provocando estranhamento ao preciosismo do naturalismo dado aos ritmos dos pensamentos, falas, ações e não ações dos personagens, enquanto Susanne escolhe a segunda, estranhando brutalmente as mesmas questões ao ir tão longe do real. A distância aparente entre as proposições dialoga o fazer teatral com outros aspectos sobre os artistas, além de suas nacionalidades, culturas e histórias locais preenchidas por grandes mestres que os antecederam: os 34 anos que separam suas gerações. Lupa é, indiscutivelmente, o maior nome da cena polonesa, pelo qual já reverberam duas outras gerações de criadores. Susanne assume a qualidade de renovar a Alemanha, da criação jovem instaurando-se como poética madura, intuindo um teatro com percurso estético reconhecível por algumas origens e que, ainda assim, consegue ser radicalmente singular e inicial. Há muito para aproximar como reflexão entre os espetáculos. Começo, então, por Árvores Abatidas, por ser o trabalho presente na atual edição da mostra. A reunião de um grupo de artistas amigos e conhecidos, após

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o suicídio de Joana, atriz que se percebeu isolada ao não ter a presença de qualquer ator do Teatro Nacional em sua aula. O jantar tardio, ao qual um ator do mesmo Teatro fora convidado a se unir, é o estímulo ao intrincado microcosmo que une fracassos, vaidades, invejas, expectativas, julgamentos, críticas, conflitos, dominações e tantos outros aspectos, durante a convivência na sala social, de jantar, banheiro. É como respondem à morte e regem a partir dela, para se auto-salvarem, que as personalidades de cada um se desenham. As quase cinco horas de espetáculo tem o espectador como cúmplice dessa reunião, mas não só. Thomas, personagem narrador, ora dentro ora fora da cena, observa e julga sem pudor a todos e aos que se tornaram como artistas. É ele Thomas Bernhard e Krystian Lupa, escritor e diretor, em uma espécie de descrença conclusiva sobre os demais também como suas próprias criações. Dessa maneira, a presença constante do diretor ao imaginário dos atores é determinante para o espetáculo não apenas como narrativa, também como acontecimento artístico. As falas provocam silêncios e vice-e-versa, Lupa elabora um precioso estudo ritmo a ambos com iguais importâncias à narrativa. Se entre eles a conduta é falsamente amigável e se esfacela aos poucos, Thomas desestrutura a dinâmica abrindo sua incredulidade sobre a arte e os artistas, sobre os atores e o teatro, voltando-se ao espectador. A faixa vermelha no proscênio que demarca o interior ficcional do palco também delimita a realidade por sua presença diante de uma plateia acesa. O espectador, portanto, não é um voyeur passivo, é sua disponibilidade para expor seus tormentos e indignações. O que trazem esses monólogos são agressões por irem além das acusações e reclamações: a condição diante das estruturas culturais, as submissões mercadológica e ideológica dos artistas, o oportunismo, o esgotamento dos projetos envelhecidos ainda impostos como grandiosidades, a incapacidade em superar o narcisismo vazio e ordinário. Agridem, portanto, por exporem sem permissões as condições do fazer artístico e existir do artista na confusão da contemporaneidade. Ao espectador comum, as falas são caricaturas quase incompreensíveis; aos artistas na plateia tornam-se questionamentos sobre suas artimanhas

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e farsas. Nada escapa. E o jantar, com horas de atraso até chegar o ator, implode cada um exigindo seu desmascaramento público até o insuportável. Só resta fugir. Só resta tentar um mínimo de si construído ao outro como ilusão de grandes artistas. Ou, ainda menos, o que lhes exigiria uma atitude mais radical. O suicídio parece-lhes mesmo uma saída para dignificação. Talvez Joana, não estivesse tão errada assim, afinal. Lupa ergue o espetáculo entrelaçando com maestria a presença como algo estético, palavras como esconderijos, observação como julgamento, levando os 13 atores a comporem pequenas particularidades tão preciosas que se pode escolher esse ou aquele para acompanhar até o final. Confere a todos tons patéticos e absurdos sem diminuir o plausível de suas personalidades. Assim, a excepcional direção de atores fala mais sobre ele próprio, enquanto a empatia nos aproxima sem pressa dos intérpretes. São tantos códigos falsamente escondidos que os instantes de espera dos personagens, seus silêncios, suas inações convidam a percepção ao reinvento das simbologias encontradas: Thomas sentado na cadeira próxima ao proscênio remetendo ao diretor polonês Tadeuzs Kantor; os sapatos abandonados sobre o fio limite de luz vermelha que separa público e palco, como que perdido entre a realidade e o teatro; os cigarros coreografados em gestos mínimos expondo o quão falsa é a naturalidade social; os filmes que voltam a narrativa em presente paralelo dos personagens, mas assistidos por eles como memórias; o giro do cenário revelando ambientes e acontecimentos que virão, e que subverte o próprio giro ao ultrapassar o início nesse tempo que não se refere necessariamente ao cronológico... São muitos os códigos nessas quatro horas e quarenta. O tempo estendido é também mecanismo fundamental

à narrativa

em Por que o Sr. R. Enlouqueceu. Sem pressa, sem atropelo, momento a momento. Susanne, por sua vez, ergue outra qualidade ao espetáculo. Homem familiar, profissional comum, possível de ser qualquer um, o personagem central convive com o cotidiano de maneira insuspeita, permitindo sua dinâmica existir sem grandes acontecimentos. Por que nada lhe importa muito, nada lhe importuna excessivamente, e o homem se-

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gue a rotina banal e emocionalmente mínima e satisfatória. A vida segue o seu rumo e não lhe cabe ir além de obedecê-la. Aos poucos, o que era suficiente torna-se gigantesco, a monotonia assume outros contextos e formas. Existir ao presente desperta oo insuportável que é ser aparência e indiferente. A consequência é trágica: Sr. R. mata a família, os companheiros no trabalho, mata-se, talvez para dar fim ao tormento de precisar ser novo, talvez para se congelar no estado atual. Susanne foge ao mais distante do realismo, propositadamente, como meio de abordar a assepsia do cotidiano. Poderia sim representar os personagens como pessoas reais, mas cobre os rostos dos atores com máscaras deles próprios artificializando a presença e identidade, indo além da mera caricatura. Os atores dublam os textos que não forma gravados por atores, impondo às falas profundo distanciamento das emoções e de qualquer tentativa de pessoalizá-las. O humano que resta às figuras em cena são as somas dos mínimos aspectos reconhecíveis, sejam gestos, sejam palavras. É preciso conviver com o tédio da espera, em sua condição prática, para apreender a experiência teatral proposta pelo espetáculo. E, uma vez conquistado isso, o espectador é conduzido a um universo sensorial absolutamente singular, onde seu próprio existir é questionado como materialidade real, limitado que está a ser apenas consciência de si mesmo. Sr. R. existe no contexto de uma classe média medíocre, exatamente por ser o mediano aceitável, correto e suficiente, encontrando no cotidiano os dispositivos para sua desintegração psicológica, até ter o real como insuportável. Suicidar-se é, por fim, sua ação libertadora frente ao tormento do mediano; matar, libertar o outro de sua mediocridade igualmente responsável pela sustentação do cotidiano que o sufoca. Não é tão distante, então, da conclusão entre os convidados de Árvores Abatidas, ser o melhor ao artista o suicídio em resposta a sua mediocridade, para poder permanecer verdadeiro ao menos por sua memória, livrando-se das condições que o submete à produtificação superficial circunstancial. Ambos os espetáculos tratam a realidade como o problema a ser vencido. Com uma diferença: em Árvores Abatidas a realidade não suporta a vida,

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e criar se faz a saída para sobreviver, mesmo que seja criar a si mesmo. Não o sendo possível, melhor ao artista seu desaparecimento, então. Em Sr. R. é a vida que não suporta a realidade, quando crua e desprovida das seguranças próprias do cotidiano asfixiante. Não sendo possível viver sem reinventá-lo, melhor ao homem desistir. Lupa e Susanne se somam e resultam em uma espécie de niilismo utópico, pelo qual o desistir não é desistência, mas manifesto. Enquanto um diz não precisarmos de mais um artista, o outra dirá não precisamos de mais um. O niilismo aqui é óbvio, a utopia nem tanto: esconde no entendimento de que nada será pior se os atores e artistas desaparecerem, ao invés de mediocrizados por eles mesmos como permitem-se hoje. Pode ser que melhore, inclusive. Tanto quanto, o mundo sobreviverá outro diante do enlouquecimento de um homem cuja chacina alerta às ilusões de uma realidade artificial. Quem sobra, então? Quem deve resistir? Cada espetáculo traz sua resposta nas últimas cenas. Susanne acena trazendo não atores e atrizes profissioanais. Dançam sem máscaras, reais, e mais reais ainda por não serem ficcionalizações da narrativa. Corpos novamente humanos, peles, texturas, cabelos, gestos e movimentos. Corpos envelhecidos e com histórias acumuladas por existências concretas. Neles residem as reações ao cotidiano irreal, provocando a presença a existir como dimensão mais revolucionária quando expressão própria. Lupa, por sua vez, oferece um último fôlego por Thomas, o personagem narrador, quando este percebe a possibilidade de criar outra vez algo potencialmente genial. Não precisa dele mais no palco. Lemos seus pensamento no escuro, no vazio que é a dimensão mais profunda de sua consciência. Ele corre pela rua, contam os pensamentos. Corre em direção a algum lugar para dar tempo de traspor a descoberta do outro, no destruído de cada um, de modo apaixonado pela complexidade da vida em pulso de derrota. Corre para criar como afirmação da vida em seu estado mais amplo e íntimo. Se para Lupa a criação de paisagens pelos atores e monólogos internos são essenciais ao desenvolvimento dos personagens, Susanne, dife-

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rentemente, expõe o performer como paisagem única, imobilizado pelo contexto de uma imagem que não se modifica por acontecimentos, além de impedir que tome para si as falas, textos, palavras, exigindo-lhe exterioridade máxima. São formas profundamente distintas de incluir o intérprete, teatro radicalmente autorais, e que se aproximam da mesma inquietação. Os dois espetáculos, nesse percurso oferecido pela MITsp, portanto, ampliam juntos a percepção da realidade por sua possibilidade poética e concreta com iguais pertinências à reinvenção do indivíduo. E para além disso, o teatro como não uma resposta ou experiência, mas como escolha de resposta. Os 34 anos de diferença conduz cada diretor a entender o teatro por especificidades distintas. Lupa pelo realismo de quem, de certa maneira, acredita ainda no real como dispositivo ao entendimento do homem; Susanne pela artificialização do humano, para quem o real não basta à representação da realidade expandida qual vivemos. São artistas de seus tempos, portanto. E o que parece contraditório ou conflitante é, na verdade, o cerco necessário ao desvelamento de haver ainda outras possibilidades de pertencimentos ao real. Uma ainda a ser descoberta. Ao menos pela capacidade do teatro ser livre. Isso se o homem perceber o quão ele pode ser maior do que seu existir se não conduzido pelos sistemas e padrões. Isso se o artista perceber o quão ele pode ser maior do que seu existir se não conduzido pelos sistemas e padrões. _______________________________________ ________________________ ______________________________ ___________________________________ ___________________ ______________________________________________ ________ ______________________________________________________ __ ____________________________________________________ _____________ _________________________________________ ______________________ ________________________________ _____________________________ _________________________ ____________________________________ __________________ ___________________________________________ Leia a crítica sobre “Por que o Sr. R. ___________ ______________________________________________________ Enlouqueceu?”, por ______________________________________________________ ___________ Ruy Filho, em nosso fotos michal grudzinski especial MITsp 2017. a n t ro + M I T s p

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ĂĄrvores abatidas

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Resistindo Ă mediocridade, ao oco de dentro Por ana carolina marinho

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á um vazio no estômago que se alimenta das vísceras. A dor é cada vez mais insuportável, mas finjo ser fome. Como e, enquanto degluto, tenho certeza de que preencho esse espaço oco de dentro. Até que sou assaltada pelo tamanho do vácuo que se formou e, temendo que eu suma com ele, decido fugir, mas o sofá é convidativo e decido tomar uma última taça de vinho. É

ali, sentada, que me dou conta do fim e que decidi por ele, por medo ou preguiça. É ali, sentada na plateia de “Árvores Abatidas”, que me debruço pelos caminhos que nos levam à estagnação e à imobilidade. O espetáculo constrói um território de inquietações e problemáticas ao ofício do artista, tendo um jantar entre amigos (após o suicídio de Joana, uma atriz do Teatro Nacional) como premissa para o encontro e deflagração de inúmeras questões. É a partir da discussão que o espetáculo Árvores Abatidas, de Krystian Lupa, se adensa sobre a função do artista e do suicídio da atriz, após frustrações com o seu ofício, que proponho o diálogo entre ele e o espetáculo A Gaivota, de Yuri Butusov, apresentado na MITsp 2015. Joana, no começo de sua carreira artística, bebia do mesmo furor e encanto que Nina, mas com o tempo, e principalmente dentro da estrutura do Teatro Nacional, sua vivacidade tornou-se opaca. Lupa utiliza-se dessa opacidade para construir a atmosfera de sua encenação. Permanecer dentro daquela estrutura subvencionada pelo Estado, que não pode caminhar senão de mãos dadas com ele, é o início da construção do oco de dentro, desse vazio que consome os órgãos e paralisa. O Teatro Nacional passa a ser um instrumento de manutenção de olhares conservadores e os atores marionetes desse jogo de poder. Lupa transpõe essa cruel realidade para o palco, escancarando o vazio dos artistas poloneses (impossível não pensar em nós mesmos) que não problematizam o cotidiano, que se amparam no conforto da estabilidade e transformam o processo criativo em mesquinharia e egolatria. Butusov, por sua vez, alimentado pelo ânimo de Nina, eletriza a cena em contraposição à monotonia do lugar onde

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vivem os personagens. As escolham são radicalmente tomadas. Se de um lado, os personagens são como a gaivota que teve a vida assaltada por um homem que “por pura falta do que fazer a mata” (como no conto de Trigorin), do outro eles são espelho de uma floresta abatida, sem viço. Os personagens russos, porém, alimentam-se da gaivota morta como que para entender os caminhos que a levaram até ali e consumir toda a vida que havia ali dentro, e os poloneses engolem a seco, engordando o vazio de dentro. A atmosfera de decrepitude é a mesma. O furor, contanto, que assalta a encenação russa, atrita o texto e cria novas camadas para a relação do público com a peça. Os impulsos destruidores que permeiam as duas montagens põem o teatro para resistir à morte. O temperamento dos diretores está escancarado em cada uma, de um lado o apoteótico Yuri Butusov, do outro a radicalidade do inquieto Krystian Lupa. Dois diretores que compreendem seu ofício como um movimento que não cessa, que transformam a cena em laboratórios vivos sobre a sociedade, que fazem da recepção do espetáculo um exercício contínuo de fabricação de sentidos e questões. O clima asfixiante às artes reina como névoa no mundo inteiro. As proibições de obras em espaços públicos que “rompem” a moralidade, a nudez que “escandaliza” famílias, a intolerância às discussões de gênero e sexualidade e a imposição de normas e condutas são alguns dos exemplos que estampam manchetes pelo mundo afora. Na Rússia e na Polônia o mesmo acontece. Porém, os espetáculos de Butusov e Lupa nos revelam caminhos de como o teatro pode ser território fértil para uma discussão, como a cena pode dialogar com o entorno, para além das paredes do teatro. Eles são como uma lâmina de água capaz de refletir quem observa e permite olhar lá dentro, no interior. Inscrevem-se no tempo e que, diante de nossa imobilidade, dialogam com contextos diversos (como o nosso); são respostas às imposições que sofrem no cotidiano, às amarras que dificultam qualquer movimento autônomo, à manutenção dos princípios de rebeldia que habitam os jovens artistas e escapam ao passar do tempo. Os dois espetáculos são arautos para

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novos dias, um nos apontando uma força revolucionária fundamental e o outro revelando a estagnação amorfa que generaliza as tensões e as consciências; ambos refletindo sobre o processo de amortização diante do conservadorismo. O espetáculo polonês conduz-nos a um território de medo, cansaço e desconfiança como resultado desse ultrajante cenário conservador. Como um cão acuado que teme a presença de outros cães ou homens, os atores reagem ora agredindo uns aos outros, como se o outro tentasse impedir sua fuga dali, ainda que não houvesse nenhum ímpeto de movimento, ora se tornando imóvel, com a pupila dilatada que, voltando o olhar para dentro, não enxerga nada, senão o vazio. A cena constrói-se sobre esse marasmo que nos acomete quando não sabemos ao certo – ou fingimos não saber – o que nos paralisa ou como conduzir o corpo ao movimento. Soa como uma denúncia à estagnação que reclama incessantemente, mas pouco faz para sair do conforto do sofá e apagar o cigarro. O espetáculo russo, por sua vez, é como um animal predador que encontra outro de mesma espécie e trava uma disputa pelo território. A excitação é fundamental para manter o corpo atento, pronto, viçoso. A regra do espetáculo é oferecer inúmeras leituras para as cenas, o que gera no espectador um processo de cognição que não se finda, entusiasmante e provocador. Vale lembrar que Butusov dedica o espetáculo a uma atriz russa, Valentina Karavaeva, que viveu uma juventude de fama e sucesso, mas que caminhou para o esquecimento. No fim de sua vida, sozinha e definhando, ligou uma câmera e falou o monólogo de Nina. Como não tinha mais ninguém, ela morreu diante das lentes, que permaneceram atentas ao seu corpo já sem vida. Butusov, com isso, revela sua alternativa para escancarar os problemas aos quais estamos todos acometidos – é preciso mover-se para existir. Impossível não aproximar esse episódio à Joana de “Árvores Abatidas”, sua fuga da vida é como uma resposta àqueles que permanecem imóveis, ela não foi abatida como uma gaivota, ela segurou a própria arma. Ter dado cabo à vida é o maior movimento impresso no espetáculo, é o que desestabiliza os persona-

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gens. E Lupa parece responder ao episódio tal como Butusov: é preciso fazer a roda do mundo girar para não apodrecer. Os dois espetáculos têm cenas memoráveis com todos os atores postos ao redor de uma mesa. No caso russo, a mesa está fartamente composta e no caso Polonês, a comida é apenas o suficiente para dividir a todos. Arkadina (de A Gaivota) sentada à mesa tem o mesmo temperamento do ator do Teatro Nacional (em Árvores Abatidas), sabem apenas falar de si, não conseguem reconhecer o outro, senão na esfera de intersecção da vida deles a sua. Eles são formas que emolduram a manutenção do status quo, da vida repetidamente fingida, falsamente alegre. Eles são o reflexo de quem alimenta o vazio de dentro e sucumbem a cada lapso de consciência e, por isso, esquivam-se dela. Os dois espetáculos, em certa medida, se constroem na metalinguagem em que a própria cena se escreve. Os dois criticam o fazer artístico, o teatro e os atores. Eles esgarçam, o russo através da pujança e o polonês através da imobilidade, regras e expectativas para que do espetáculo brote o seu avesso, esgotam as possibilidades para escancarar o vazio, extraem as máscaras para exporem o oculto. Os dois diretores tomados pela consciência do risco do totalitarismo e do conservadorismo que assalta seus países tomam para si a consciência de uma radicalidade e rebeldia criativas; seu teatro, ao contrário do de seus personagens, é vivo e inquieto. Eles apresentam a monotonia da vida e das crenças dos personagens com tamanha força que estimula em nós – público – o desejo em movimentar a estrutura, por em risco as estabilidades e criar um terreno fértil para a criação. E, para isso, é preciso dar cabo das frivolidades costumeiras, é preciso desassossegar-se, manter-se crítico mesmo quando você é beneficiado (pelos editais, verbas públicas, pelo Estado). Tanto em Butusov quanto em Lupa, há a exposição da artificialidade e leviandade do mundo artístico através de encenações rebeldes, em que só há duas saídas: a genialidade ou o fracasso. O radicalismo reside em evitar a estabilidade, vista como medíocre. É por isso que assistir a esses espetáculos não é – e jamais poderia ser – confortável. É difícil deglutir,

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porque é duro encarar a nós mesmos, fazedores de arte, e as nossas aspirações mesquinhas de sucesso, é difícil reconhecer o marasmo que nos destinamos (assim como àqueles personagens), quando nos damos conta que andamos de mãos dadas com quem nos financia. Os personagens presos àquele contexto de frivolidade fracassam enquanto aspiram por reconhecimento e estabilidade, ao passo que o teatro que os ampara, a encenação que vemos, escapa, resiste e reestrutura ao protestar. Lupa sabe bem o quanto a felicidade amortece alguns entendimentos e inibe as verdades, por isso sua direção opta por um desconforto contínuo, às vezes o marasmo dos personagens é tamanho que mal sabemos quem fala por não enxergarmos nenhum resquício de movimento que revele quem é o emissor. Há uma rebeldia que aspira o fracasso para jamais tornar-se medíocre: jamais ser um cadáver artístico vivo. Melhor ser o pior, porque assim já se é alguma coisa. Não há escapatória para o vazio: ou se foge dele, ou finge suportá-lo. ____________________ ___________________________________________ ___________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ___________ ___________________________________________ ______________________ ________________________________ _________________________________ _____________________ ____________________________________________ __________

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uma publicação especial sobre a cena contemporânea da

^ acesse e acompanhe as atualizações

www.antropositivo.com.br/

especiais


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king size

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Duas dimensĂľes para encenar a vida Por marcio tito

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ágica é quando a realidade não parece possível. É quando o truque, ainda que declaradamente mentiroso, submete o visível ao seu encanto misterioso. King Size, de Christoph Marthaler é, neste sentido, um espetáculo mágico. Assim, quando o truque se revela e de sua verdade surge empertigada beleza, sabemos ter encontrado aquilo que

determina o desejo dos artistas: o profícuo diálogo entre o Horrível e o Belo, entre o Fundamental e o Inútil. Still Life, encenação trazida pela edição 2016 da MIT, de Dimitris Papaiouannou, é igual símbolo para este modo de operar a agonia através de imagens no palco. Então, constrangendo o que é real, possível, tátil e lógico, mágicas acontecem e nos fazem saber que algumas coisas são muito mais que coisas porque são acontecimentos, porque são eventos superiores ao óbvio do cotidiano, e é aqui o ponto onde os dois espetáculos emergem em diálogo simbólico entre si. A implacável magia do sonho, aquela que de tão autoritária só pode ser vista pelos olhos fechados de quem dorme, pois os olhos acordados ofereceriam muita resistência aos fatos lúdicos, quando revista pelo teatro, por encanto, nos faz submissos ao seu gesto quase inconsciente, ao seu fabular mecanismo pensado para dissimular e emprestar perversidade àquela cena que de tão rarefeita nos convence de que os atores estão ali em um devir nunca ensaiado. Tudo se passa enquanto dinâmica essencialmente realizada no tempo presente, e este jogo que se revela mais direto que as já absorvidas formas reconhecíveis, finalmente conecta Still Life e King Size. Esta qualidade de cena destinada ao onírico (em King Size) resgata, com forma pautada na construção paciente, parte da tônica de Still Life. Entre os dois espetáculos existe a poética capaz de desdobrar-se ou em metáfora para a realidade e o sonho, ou num espaço denso entre alegoria e a matéria. Se em Still Life as cenas resultam da sobreposição de procedimentos que à primeira vista pareciam fugir ao destino de narrar um contexto, mesma fortuna visual surge do emaranhado de procedimentos que, espelhados, constituem o principal eixo de King Size.

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king size <> still life _ Por marcio tito

Still Life fez-me sentir bicho, animal encantado e apavorado com a noite e o dia. Still Life, ao construir o firmamento dentro do palco, que pouco fez para não mostrar-se palco, revelou com força a pequenez dos fatos e desejos humanos perante o irreprimível dos astros, ainda assim urdia na cena um ímpeto pela vida, um inabalável aventura da espécie humana contra seus maiores dilemas. Em King Size a equação é outra. O grau de humanidade e confusão revela, então sim, o anacrônico de nossa miséria e eterna carência, porém existe aqui a supressão da esperança que parece orquestrar Still Life. Um quarto achata muito mais que um horizonte. Ainda que o quarto pareça belo e o horizonte configure um escuro mortalmente terrível. Still Life, tornando material o céu, deixando um pouco mais próxima a alvorada, não constrangia-se em oferecer alguma forma de esperança enquanto King Size, ao mostrar tantas e tantas camadas que significam apenas a “descomunhão” dos dias e das horas, do silêncio e do canto, da solidão e do encontro, da fome e da indigestão, deflagra, sem concessões, parte de nossa irreparável condição humana, quase sempre, irresponsavelmente sonhadora. Still Life é uma peça que sonha. King Size é uma que é sonhada. Still Life embriaga. King Size está embriagada. Still Life é humana, é gente vagando no espaço e em busca de alguma misericórdia. King Size é a Humanidade, é gente esbarrando na existência e dando com a cara nas horas que passam devorando carne, ossos e espírito até que reste apenas a nossa figura abobalhada e entregue ao sabor do riso de nossos desavisados semelhantes. A misericórdia é impossível àquilo que é ridículo por natureza. Still Life é a expectativa da vida entregue ao útero infinito de possibilidades, King Size é um segundo após o parto, quando os olhos se abrem para não enxergar e o choro não significa mais que um berro desesperado e submisso a um medo ainda desconhecido, inominável e colado para sempre em nosso destino. ______ ______________________________________________________ __ sobre Leia a crítica “Still Life”, por Marcio ____________________________________________________ _____________ Tito, em nosso especial _________________________________________ _______________________ MITsp 2016. fotos guto muniz

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king size

diĂĄrio sensĂ­vel

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contaminar ou afastar? eis a questĂŁo Por maria teresa cruz

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dobra crítica

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intenção da aparente leveza de um cenário bem construído, um quarto de hotel - cafona, porém de boa qualidade -, se coloca como forma de distrair a plateia para a real intenção da história que se quer contar. São tons de azul, delicados, harmônicos. Tudo parece estar em perfeita harmonia. Nada está fora do lugar. A engrenagem funciona naturalmente. É um hotel, mas poderia ser um

quarto de algum casal aristocrata. Dois funcionários se colocam na condição de patrão por um instante. É verdade ou sonho? No teatro musical King Size, de Christoph Marthaler, tudo é propositalmente artificial. As canções remetem aos desenhos de princesas e fadas com melodias leves e letras frívolas, repletas de clichês. Os personagens são patéticos. As ações coreografadas dentro desse contexto musical acabam provocando risos na plateia. Ao lançar mão do estranhamento, Marthaler pode pretender gerar incômodo. O uso do recurso evidencia as referências dele, já que esse tipo de escolha narrativa aparece com força no início do século XX com encenadores como Erwin Piscator e Meierhold, esse segundo em especial, colocava a música como protagonista da cena. O cadenciamento de ações cotidianas, como o arrumar e desarrumar da cama, e o tempo dos artistas em cena para realizar atividades banais, como abrir um bombom - com o devido barulho do embrulho - provocam em quem assiste sensações. Mas o que surpreende nos primeiros 15 minutos de espetáculo, transforma-se em repetição que acaba cumprindo o papel da forma, mas não do conteúdo. Afinal, qual a história que King Size quer contar? Me parece que a intenção do músico e diretor teatral Marthaler é fazer uso de clichês musicais para acessar o imaginário da plateia e, muito mais do que uma narrativa, pretende suscitar reações e sensações a partir do que é apresentado. Há uma preocupação estética quase exagerada com relação aos quadros das cenas e a harmonia entre gestos coreografados que, assim como o conjunto todo, devem provocar estranhamento. As relações dos atores em cena são artificiais e algumas atitudes beiram o estapafúrdio. Tudo proposital. Ao constranger, o diretor consegue que a plateia ria. Mas esse encade-

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amento circular entre cenas se repete e fica-se com um desejo de que algo além do que se vê aconteça, mas não acontece. Ele se encerra na forma e não desenvolve o conteúdo. Nesse sentido, fica difícil compreender, afinal, o que quer Marthaler. As pontas soltas da montagem, propositais ou não, fazem com que todo esse efeito do estranhar, incomodar, perca musculatura e passe batido. A figura da mulher mais velha e atrapalhada, que instiga o espectador a tentar desvendar de onde surgiu, por que veio e como poderia se encaixar na cena, é a única tentativa real de colocar na narrativa o estranhamento evidenciado na música. Ela não serve à cena e isso é muito divertido. Tem algo dos personagens de Molière e, até por isso, gera um efeito de humor. Mas, tal qual foi colocada, acabou desperdiçada. O ridículo como artifício na comédia já foi usado à exaustão na história do teatro. E não há mal em seguir esse modelo. O que pretendo discutir é o que vem depois do recurso formal para que haja uma intenção e não seja uma escolha gratuita. Essa lógica pode ser encontrada em Black-Off, da sul-africana Ntando Cele. Negra, ela sobe ao palco com um microfone, com uma peruca loura e se transforma em Bianca White. O texto debochado e a figura absolutamente ridícula, geram estranhamento e, evidentemente, risos. “Eu gosto de gente negra, até convivo com algumas”. Assim, com esse e tantos outros clichês racistas, Cele desenvolve a narrativa da peça que pretende constranger, incomodar, tirar de um lugar confortável. A cena dos prendedores remete a ideia de que os negros precisam afinar os traços para serem bonitos e aceitos. Ela é cômica em alguns momentos. Noutros tantos, causa constrangimento. E é proposital. O racismo deveria incomodar. E, no entanto, é tão naturalizado. A previsibilidade é o ponto de convergência entre o teatro musical de Marthaler e a performance de Ntando, que, em muitos momentos, se assemelha ao stand-up comedy, que foi febre uns anos atrás. No palco, Cele é personagem de si mesma. Em uma quase metalinguagem, ela satiriza o “white people problem” em um figurino de branco, mas de um ponto de vista do negro, criticando o racismo estrutural e a ideia de democracia racial. Tudo é propositalmente artificial, como em King Size. Em ambas as montagens, faltam camadas que se interseccionem mostrando que o formalismo não é

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apenas parte do conteúdo, mas é o que dá sentido à história que se quer contar. Mas na montagem suíça, o excesso de teatralidade faz com que o teatro não aconteça. Em Cele, para além do tema polêmico, há uma potência provocativa naquela mulher que acaba servindo como desforra para todos os negros e negras que já enfrentaram no dia-a-dia algum tipo de racismo. Ela contamina, enquanto King Size afasta. Contudo, Cele se coloca em um lugar perigoso que, em muitos momentos, soa polêmica pela polêmica. Nesse sentido, o recurso do constranger acaba vazio de sentido. Pode causar risos, mas consegue chegar a um discurso expressivamente transformador? Tenho minhas dúvidas. O curioso é que o recurso do estranhamento aparece nas duas montagens. E cabe aqui, em que pese o fato de que em nenhum dos casos o equilíbrio entre os recursos aconteceu, analisar por que em uma funcionou mais do que na outra. E para conseguir responder de forma minimamente honesta essa pergunta é preciso passar por outro questionamento: qual o efeito desejado a partir da escolha feita? O recurso do desconforto não sustenta uma narrativa inteira. Em King Size, a mim particularmente, provocou um riso inicial, mas com o passar dos minutos a certeza de que o teatro proposto não aconteceu. De surpreendente passou a enfadonho e foi desidratando até provocar uma luta interna em mim de um cansaço que rapidamente se transformou em irritação. O que se busca dentro do contexto do teatro musical: uma estética irretocável, uma narrativa bem construída, nem um nem outro ou a harmonia e diálogo entre os dois conceitos? Me arrisco a dizer que buscar o diálogo entre um e outro é um caminho possível para que a montagem se transforme e represente, de fato, uma inovação no teatro contemporâneo e pós-dramático que pode até lançar mão de fórmulas existentes, mas vai além e nos toma pelas mãos, pés e mente. A pós-dramaticidade não acontece a medida que se insiste em ser purista e pelo medo de arriscar. No final das contas, o conceito do ridículo resvala em King Size, mas não tinge com força a encenação. Se assim o fosse, poderia, sim, surpreender e representar um caminho de linguagem possível para colocar a pós dramaticidade no que já foi feito no âmbito do teatro musical. fotos guto muniz a n t ro + M I T s p

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os poucos, a dramaturgia sentiu necessidade de estar mais próxima ao real. Passou, então, a falar da vida comum, do homem comum, dos problemas comuns, todavia ainda criando o comum por sua ficcionalização. O que se oferecia era o reflexo do espectador e o mundo a qual este pertencia. Tornou-se pouco, e logo se viu que a dramaturgia,

ao aliar-se ao comum, poderia expandir ao expectador sua percepção sobre a realidade. O comum revelou-se maior do que o indivíduo e o teatro ocupou-se também em manifestar tudo aquilo distante propositadamente e não. O que era um escrita inventiva ao reconhecimento da realidade tornou-se mecanismo para revelação crítica às consequências e mecanismos à realidade existir como tal. Entre interesses e ideologias elaboraram suas versões sobre as faltas, dívidas, agressões; afinal, fosse qual fosse a análise, julgamento e conclusão sempre existiria um fora, um universo tangencial inexplorado; a abordagem limitada pelos próprios argumentos. Dentre as pontas soltas resistia excluído tudo aquilo não próprio da ficção. Era preciso olhar ao Real mais do que à Realidade. O que atingiu os desejos de praticamente todas as linguagens, no teatro fundou outra possibilidade de criação: sem a ficção, aquele no palco passa a ser ele mesmo; aquilo, acontecimento ou experiência impossível de ser dividida se não por quem o vivenciara: o ator não mais precisa ser ator, a narrativa não mais precisa ir além da narração. Por conseguinte, em suas já muitas variantes processuais e estéticas, coube nomear essas tentativas como documentais. No palco, documentos reais, vivos, depoimentos insuspeitos. O teatro enquanto reparação da história e episódios. Parece simples, agora que tornado fórmula. Ocorre, porém, nem sempre o real estar em cena ser suficiente para validar a própria experienciação de uma realidade específica, exigindo novos artifícios dos por quês de certas escolhas, pessoas, fatos. É nesse labirinto subjetivo que muitos espetáculos encontram falsas saídas e justificativas e terminam

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sucumbindo ao modismo da linguagem. É tão complexo que mesmo quem instituiu os preceitos iniciais do estilo ontem acaba, por vezes, fracassando pela insistência por mantê-lo. Nada disso significa resumir ao espetáculo ser ruim, pois não se trata de qualidade, e sim de coerência ao proposto. É possível ser interessante, bem realizado e contrário aos próprios estímulos e interesses. Quando acontece, tem-se um resultado dividido entre realização e ideia. O quanto o documental se funda sobre a ideia que contradiz ao executá-la é a grande questão. A proposta inicial da diretora argentina Lola Arias, em Campo Minado (5a. Edição, 2018), é, por meio do teatro documental, reativar as consequências decorrentes da Guerra das Malvinas por meio de maior compreensão sobre como os acontecimentos se deram também sobre os soldados participantes no conflito. Assim, a dramaturgia costura um encontro entre veteranos argentinos e britânicos para exporem um ao outro suas vivencias e percepções como estratégia de humanizar diferenças e aproximar realidades. Exatamente isso é o assistido pelo espectador. Homens de meia-idade e mais expurgando suas dores, lamentos, traumas, dúvidas, crises, enquanto conhecem as do inimigo histórico. Os dois extremos se tornam profundamente parecidos quando percebidos pelo prisma do humano. Fruto de sua época, cultura, sociedade e sobretudo da política, a guerra em questão é mais deles do que das estruturas, poderes e governos, e apenas entre eles é possível encontrar um epicentro ou equilíbrio. Expor um ao outro e teatralizar o momento, na expectativa de movê-los ao centro. O espectador cúmplice testemunha o instante, é elemento crucial à narrativa. Porém, por estar tão emocionalmente próximo, talvez não perceba o outro aspecto: nada ali é mais verdadeiro, espontâneo; nada é original; não há mais documentos, só a ficcionalização treinada da emoção longe de ser instintiva e traumática, argumentos reescritos e elaborados como são os de quaisquer personagens dramáticos daqueles longínquos primeiros momentos da dramaturgia, quando lhe interessava trazer a realidade ao palco. Em Campo Minado, o exposto como sendo documental é

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apenas teatro, e as presenças, ainda que verdadeiras, depois de anos repetindo as mesmas falas, rigidamente estabelecidas definitivas como comprovam as legendas, somente efeitos de presença. Se fossem atores profissionais o que ali mudaria na representação? O emocional, apenas. Lola manipula a emoção da plateia para justificar e compensar não haver mais combustão em cena. Por isso eles precisam estar ali. O documental, qual se argumenta, não pode existir sem documentos. Em outro momento do percurso construído pela MITsp, nesses anos, Arkadi Zaides apresentou o espetáculo Arquivo (2a. Edição, 2015). O solo tem por premissa reativar no próprio performer os gestos, movimentos, posturas dos corpos reinventados pelo cotidiano dos conflitos no Oriente Médio. Escolheu para isso os territórios ocupados em Israel, onde soldados e guerrilheiros israelenses foram filmados por palestinos. O peso das armas que requer outra postura, o chão arenoso impondo outra qualidade de apoio, a cidade em suspense constante exigindo o olhar alerta, as fronteiras reais, imaginárias, psicológicas, a possibilidade eminente de um ataque ou contra-ataque ou erro, o estado de permanência deslocado do tempo estabelecem corporeidades específicas, equilíbrios físicos próprios, jeitos artificiais agora naturalizados, vocabulários singulares desse outro corpo estetizado pela guerra. Arkadi corre as filmagens e pausa em frames aleatórios. E refaz os corpos na tela reinventando-os pelo seu, em uma inevitável necessidade de estudo e aprendizado sobre como deixar de ser apenas ele e encontrar a particularidade daquele. Na insistência de acumular cópias, o artista supera o gesto e expõe a dinâmica de uma narrativa ao processo de reinvenção do corpo. É como se nos conduzisse a perceber a guerra pelo atravessamento de sua presença, sem precisar de qualquer didatismo ou maiores explicações. Aos poucos, gradativamente, vemos transformar o homem em cena nesse outro, cujas características confrontam nossa realidade segura, colocando-a em xeque, em estado de alerta diante de nossa alienação. Há nisso um tanto do discurso de documentação que se propõe expor o real pela urgência de sua crueza mais explícita e paradoxalmente ignorada. Não

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fossem verdadeiras as gravações, tudo seria mero instrumento à serviço da comprovação de conceitos prévios. No entanto, lá estavam os homens, e isso muda radicalmente a perspectiva sobre como percebê-los. Arkadi pode ser em cena somente ele. Não requer assumir a posição de personagem e nem mesmo de autor, mas a de instrumento simbólico-narrativo ao presente exposto por um ângulo específico. Representar a guerra, seus subtextos e contextos, é premissa a ambos os artistas, então. Enquanto a diretora argentina se firma pelo pretexto de ser um assunto à instalação teatral, ao coreógrafo bielorrusso existe pela dinâmica de acontecimento em movimento. A distância entre as proposições explicita os espetáculos: em Campo Minado o soldado poderia ser substituído, fosse por familiares e suas lembranças, namorados e suas distâncias, crianças e suas infâncias. Falar sobre as Malvinas poderia acontecer por mil caminhos e, ainda assim, ser historicista e documental. Em Arquivo, diferentemente, os corpos reativados em cena dependem intrinsicamente do peso das armas, da ambiência em questão, das relações em suas condições máximas de complexidades. E falar sobre os corpos transmutados pelos territórios ocupados é impossível de ser substituído por outros, pois cada qual trará em si específicas consequências. Dessa maneira, Arkadi é, sem se definir assim, mais documental do que Lola, exatamente por não entender o documental como algo estático limitado ao passado. Trata-se, por fim, de compreender aqui por quais percursos o espectador se relaciona com as obras e o quanto neles institui-se paradigmas particulares com maiores ou menores efeitos. Ao trazer o outro para a cena, ainda que já adaptado e acomodado, Lola Arias ativa a emoção por aquilo assistido. O espectador participa, portanto, pelo convívio com informações e estados estáveis, controlados, anteriores, escolhidos, experimentados, decupados. Aquilo exposto em cena, ação e narrativa, conduz o observador a existir na qualidade de leitor do material documentado. Não há tanta diferença se encontrado o conteúdo em um livro ou palco, por exemplo. E a leitura, enquanto estado performativo de en-

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contro e recriação do lido, é o que transfere ao inteiro a potência de sua emotividade. Em Arkadi cabe ao espectador encontrar o documento por meio da observação do artista em cena. Difere, pois, na maneira como estabelecer proximidade e intimidade convidando à percepção, sobretudo. É no movimento de perceber algo nesse alguém e não apenas por alguém, sendo o algo outro que não aquele que lhe revela, que a emoção pode surgir. Em Campo Minado entender é necessário para realizar o encontro com a obra, e para tanto é preciso se deixar conduzir pelas escolhas da artista. Em Arquivo, o entendimento surge sem o espectador ser capaz de concluí-lo, aceitando-o em seu enigma e possibilidade, sem qualquer indução ou sugestionamento específico. O documental ou documento qual ambos buscam para reagir ao contemporâneo e às experiências desse estado de guerra ao sujeito é mais literal em Lola e por isso mesmo enfraquece-se enquanto proposição. Por vezes, tem-se a impressão de ser importante mais o discurso sobre o acontecimento do que o próprio, o que coloca em xeque sua escolha. Havendo outra possibilidade de apresentar o mesmo discurso, com igual resposta, a artista abriria mão das Malvinas e daqueles em cena? Talvez no início tenha sido realmente assustador aos seus não (?) atores enfrentar o palco, a plateia, os ambientes dos festivais, uns aos outros, suas culturas, suas certezas, suas histórias. Hoje, dividem as mesas e hotéis há muito, quem sabe até mesmo como amigos, não havendo mais o horrível inicial para suportar a necessidade do espetáculo. Arkadi não tem saída ao que se propôs e, por isso mesmo, Arquivo é o sistema único ao propósito. O espetáculo provoca-lhe diretamente poética e violentamente. A cada apresentação, a cada reintrodução no seu corpo dos corpos reinventados pela guerra, assimila-os como próprios, até que, inevitavelmente, pequenos movimentos, escolhas e gestos não estejam separados de sua pessoalidade. Enquanto Lola assiste seus convidados, Arkadi arrisca-se a se tornar os seus. Lola está segura e segue à próxima criação. Arkadi cria a seguinte não mais apenas como ele. Ao documento de Lola basta fecharmos o livro e encontrar outro as-

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sunto. Arkadi segue como um documento vivo assimilando o mundo e perdendo-se a cada instante. De fato, a arte, para além de existir como espetáculo, reside mesmo no inconsciente de ser um risco verdadeiro. Sem isso é apenas estratégia a um mercado de provisórias invenções, mesmo que com traga consigo indiscutíveis qualidades. ______ ______________________________________________________ __ __________________________________________________ _____________ _________________________________________ _______________________ ______ ______________________________________________________ ___ ___________________________________________________ _____________ __________________________________ _______________________ ______ ______________________________________________________ __________ ____________________________________________ ____________________ ________________________________ _______________________ ______ __ ____________________________________________________ ____________ ______________________________________ __________________________ ____________________________ _______________________ ______ ______ ________________________________________________ ________________ ______________________________________ __________________________ ____________________________ _______________________ ______ ______ ________________________________________________ ________________ ______________________________________ __________________________ ____________________________ _______________________ ____________ _______________________________________ _________________________ ______________________ _______________________ ______ ____________ __________________________________________ ______________________ ________________________________ ________________________________ ____________________ _______________________ ______ ______________ ________________________________________ ________________________ __________________________ ______________________________________ Leia a crítica sobre “Arquivo”, por Ruy ________________ _______________________ ______ __________________ Filho, em nosso ____________________________________ ____________________________ especial MITsp 2015. fotos guto muniz

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O espaço de elaboração simbólica na arte Por maria teresa cruz

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laborar uma trauma a partir de ressignificação de símbolos que remetiam ao horror impositivo de uma guerra. Se pensássemos a partir da perspectiva de Jacob Levy Moreno, a montagem Campo Minado, da argentina Lola Arias, poderia ser uma grande sessão de psicodrama assistida. A imputação da encenação nessa teoria da psicologia dialoga com a proposta da diretora. Até porque, o imperativo

categórico de se estar em uma guerra suspende qualquer tentativa de acessar pressupostos éticos e morais. Em Campo Minado os limites entre ficção e realidade são nebulosos nos depoimentos e diálogos entre os seis veteranos de guerra que se revezam em um cenário onde as linguagens se interseccionam. Esse, aliás, um traço forte da pesquisa de Lola, que, a partir do resgate da memória, busca revisitar relações com o outro e consigo mesmo. As construções narrativa e estética propostas no quadro cênico do “tornar-se soldado”, muito mais que um conteúdo documental a partir do depoimento, é o reconhecimento de que não somos, mas estamos em determinada condição em uma fase da vida. Isso fica evidenciado no encadeamento de depoimentos aparentemente despretensiosos, mas que mostram que a vontade não significa realização e que a escolha passa por uma determinação do acaso sobre a qual não há muita escolha. Não há espaço na guerra para ser. A ordem é obedecer, reverenciar, não questionar, se automatizar na tentativa de sobrevivência. O que sobra no retorno varia de amargura, recalque, passando pelo arrependimento e chegando à banalização, quando se obriga esquecer o que é dolorido lembrar. Talvez essa seja uma pista para entender por que para muitos deles tudo terminou em rock and roll. Ou seja, sobrou pouco ou nada do que foi vivido. O contrato de silêncio que todo ex-combatente assina quando retorna para a casa tem dois caminhos mais óbvios: o suicídio ou a insanidade. Ainda mais na Guerra em questão, das Malvinas, um dos maiores desastres da história mundial recente, que atendia ao capricho do general Leopoldo Galtieri e é, até hoje, uma ferida aberta para argentinos. Não era de território

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que falavam. Era muito mais um embate entre a supremacia tatcheriana e a arrogância militar em tempos de ditadura argentina. E é essa história que Lola quer contar: o quanto as decisões alheias aos desejos de seis homens marcaram de forma indelével suas vidas. Tanto que à ela, como diretora e pesquisadora, interessa muito mais o testemunho e a relação que se estabelece com o público do que qualquer tipo de resultado estético. É impossível negar, no entanto, que a sobreposição de linguagens típica de uma montagem documental não apresente efeito na construção narrativa e no acesso da emoção daquele que recebe aqueles depoimentos. É um olhar de fora para si mesmo. Como se uma experiência de horror pudesse te colocar no estágio extracorpóreo a fim de que fosse possível expurgar as dores e ressignificar os traumas. O recurso principal da perpetuação da memória, no final das contas, é a palavra. Em segundo, e não menos importante, é o símbolo, o objeto, a constatação concreta de que ali esteve, que ali sentiu, que ali sangrou. “Memorabilia” perde o sentido com o tempo e fora do contexto. Por isso que, parafraseando Freud, uma bandeira rota às vezes é só uma bandeira rota. Um apanhado de coisas velhas que muitos podem definir como entulho. Mas um objeto como propulsor da memória que precisa ser resgatada, contada e, por fim, elaborada, adquire significado e importância para se contar uma história. A esmerada preocupação com a sonoplastia do espetáculo, muito mais do que uma decisão estética, busca acessar a sensação de estar naquele lugar de fala. A mim, como recurso estético funciona mais do que como recurso de acesso à essas emoções. A fragmentação do sujeito a partir de uma experiência e a tentativa constante de reconstrução, a partir das sobreposições de memórias verbalizadas e sentidas, dão o tom de Campo Minado, como na trilogia do libanês Rabih Mroué. É curioso observar que Mroué e Arias são da mesma geração e um dado histórico os une: a guerra. Arias era adolescente quando o general e ditador de seu país, num ato de insanidade, decidiu invadir as Ilhas Malvinas. Ela testemunhou, mas pouco ou nada pode fazer à época para agir sobre tal realidade dada. Mroué, por outro lado, ainda convive

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com a ideia de um conflito que começou e não tem data para acabar. Arias tem um papel contemplativo na pesquisa. Mroué exerce um papel de influenciador. Tanto que ele se coloca claramente nos textos e tenta até mesmo ser propositivo com relação a esse registro histórico iconográfico da realidade, como, por exemplo, na palestra Revolução em Pixels. Mroué fala sobre como agir no curso da história. Lola pretende revisitar para não esquecer, para que horrores como aqueles não se repitam. E para que as gerações como a dela entendem, talvez, porque velar os corpos dos combatentes das Malvinas e homenageá-los em praça pública é tão significativo e importante para os que ficaram. Em Cavalgando Nuvens, Mroué procura trazer as lembranças do ponto de vista de quem viveu perdas de uma guerra, mas pelo lugar de fala de superação, não de revolta ou reflexão. Em Tão Pouco Tempo, o acesso às memórias fica no campo do afeto e tudo que se produz remete à saudade de algo que não aconteceu e uma complacência sobre o que o destino reserva às nossas vidas, diante de situações que nem sempre passam por escolhas pessoais. Ambos os diretores trabalham com a ideia de que o teatro e as opções formais para criação das cenas - as palavras, as fotografias, as gravações, os sons, as sobreposições de tela entre o que acontece ali, agora, no palco, o que se grava e transmite, e aquilo que se reconta - tornam-se uma grande máquina de fabricar recordações. Eu vejo a gravação de um conteúdo ou vejo o conteúdo que foi gravado, enquanto eu procuro contemplá-lo? E, nesse sentido, o da palavra “fabricar”, que pressupõe criar a partir de uma matéria prima, torna impossível apontar, no teatro dos dois, o que é a persona e o que é o personagem e quando um se sobrepõe ao outro. Sou eu falando ou sou eu falando sobre mim mesmo? Me arrisco a dizer que em Lola essas fronteiras entre o que aconteceu de fato e o que se propõe como elaboração são mais evidentes do que em Mroué. Uma das evidências narrativas para isso é a separação em capítulos, como se ela estivesse recontando em ordem cronológica o que levou aqueles seis ex-combatentes a estarem ali.

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campo minado <> trilogia Rabih mroué _ Por maria teresa cruz

Com efeito, o teatro documentário serve, conquanto, como registro histórico e nos provoca a pensar como isso pode ser arte. Ou ainda, isso pode ser arte? De que forma? Seu conteúdo artístico está atrelado a uma transformação daquele que está no palco ou do interlocutor ou da relação possível entre os dois. Do contrário, tira-se a palavra teatro e deixa apenas o documental. Nesse sentido, é necessário considerar as fontes primárias do texto e as secundárias. Ou seja, aquele que diz e aquele que ouviu dizer. A partir disso, é preciso ir além e pensar como a relação dessas forças, do que de fato aconteceu com o a história que se pretende contar, pode gerar uma terceira narrativa. Um caminho possível é entender o que se pretende com essas revisitas. Se essa narrativa servirá a uma “espiação” de culpas e receios particulares dos envolvidos no processo para acabar tudo em um grande show de música. Se essa narrativa servirá para compreender o que passou, reverenciar o aprendizado, não repetir, em tempo algum, aquilo que se considera erro, sob pena de conspurcar a história de um povo. ______ ______________________________________________________ __ __________________________________________________ _________________________________________

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a missĂŁo em fragmentos

Na trincheira da memĂłria Por ana carolina marinho

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xiste uma trincheira aberta, escancarada, que revela o lugar de abrigo de outrora. Encontrar essas trincheiras é reconhecer as escavações no terreno da memória, os buracos que nos servem ao mesmo tempo de proteção e ataque, que nos garantem, por vezes, uma segurança bélica, atroz, que se empreende na insegurança do outro. E, diante dessa consciência, a noção de abrigo se esvai, dando espaço

para uma sensação de não pertencimento gerenciado e amortizado pelo esquecimento que é sustentado em legítima defesa. É a partir dessa ideia, de como a memória opera em legítima defesa para ambivalentemente proteger e atacar, que proponho um diálogo entre os espetáculos Campo Minado, da argentina Lola Arias, apresentado na MITsp 2018, e o brasileiro A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa, dirigido por Eugenio Lima, que compôs a MITsp em 2017. Os dois espetáculos se constroem com a presença dos detentores daqueles testemunhos, o que concede uma legitimidade ao discurso e uma força ao pronunciamento de cada palavra. No espetáculo argentino, os atores são ex-combatentes da Guerra das Malvinas e compartilham conosco as lembranças, traumas, objetos de guerra e diários do processo criativo, uma constância de arquivos reais. No espetáculo brasileiro, a encenação é construída no atrito entre a obra de Heiner Müller, A missão, trechos de obras de escritores negros e depoimentos pessoais dos atores, afim de compreender processos contínuos de discriminação, intolerância e violência contra os negros. É preciso, então, compreender como cada discurso faz existir o outro e o público, e como o convite a esse diálogo é feito. Se numa guerra é preciso que os lados sejam inimigos e intolerantes uns aos outros, a fim de que algum conquiste a supremacia, Campo Minado faz existir no palco o oposto disso. Não há intolerância ao outro, num processo de alteridade, o inimigo de outrora se torna parceiro naquela composição. Campo Minado faz da trincheira abrigo para si e para o inimigo, aproxima as diferenças, tenciona o passado recuperan-

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campo minado <> a missão em fragmentos _ Por ana carolina marinho

do o presente como uma experiência única. Atrita a realidade com composições fictícias, o público (as motivações de cada país à guerra) com o privado (os traumas, angústias, desejos e diversão dos combatentes), para construir uma ficção autônoma que decompõe os limites do real à medida em que se instaura sobre a memória, sobre os relatos de vida e sobre as inquietações com o mundo. Falando de si, cada combatente dialoga com o mundo num processo de reconhecer no outro as mesmas angústias e as diferentes visões e envolvimentos com o conflito armado. Assim, o espetáculo se constrói a partir de narrativas pessoais que, através da fricção entre representação e apresentação, entre o que se mostra e o que se é, submete cada história a contínuos cruzamentos e pulos entre diferentes registros. Lola Arias deixa o acordo ético claro. Os personagens expõem suas narrativas pessoais através da mediação da forma: não é uma confissão, pois, já que o próprio personagem está em processo de formalização de seu discurso. A presença do diário, símbolo da confissão, faz-se útil para revelar o percurso de criação dos combatentes no espetáculo, uma vez que não eram atores, mas tornam-se no ato de (re)apresentarem a si. O espetáculo de Eugenio Lima, por sua vez, faz da trincheira um terreno para defender-se, em que o objetivo é dar acesso a outros canais e vias, possibilitando o combatente de comunicar-se com os seus iguais e juntos organizarem um plano de defesa contra o inimigo. O inimigo, porém, não está no palco: na plateia, talvez. A missão nos esclarece que não é uma guerra, apesar da trincheira cavada, é uma missão e, como tal, abriga uma noção de poder intrínseca de realizar ou fazer algo para ou por alguém. A trincheira está cavada porque se espera, após a experiência empírica, que haja ataques contra eles, e como não se sabe da onde vêm as balas, o plano é agir em legítima defesa, o que pressupõe o ataque como resposta a outro ataque. Vale ressaltar, porém, que resistir é premissa, mas existir é fundamental. Existir em toda inteireza e dignidade que lhes cabe. A missão, ao nos revelar não ser uma guerra, nos aponta que o foco é viver e não sobreviver, que o primeiro para isso é reconhecer e unir-se.

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Nesse sentido, o público é convidado a conhecer as trincheiras e o drama de quem precisa dormir de olhos abertos e teme qualquer movimento, mas que olha o inimigo olho no olho e se reconhece em sua insegurança e confusão. Olhando nos olhos do inimigo, é possível se ver inteiramente exposto, entregue. A vulnerabilidade não está em o outro lhe ver, mas em ver-se refletido na íris alheia, em compreender que parcela sua habita aquele ser. Em Campo Minado, a guerra já se findou, o que restou foram algumas bombas ainda armadas que podem explodir a qualquer momento, os corpos que atravessam aqueles dias nas Malvinas e resistiram carregando em si inúmeras marcas e cicatrizes e aqueles tantos que morreram no campo de batalha ou depois dele por não suportarem o peso das cicatrizes no corpo e na alma. Pois como diz Brecht: “quando a ferida não dói mais, dói a cicatriz”, e olhar para ela é encarar um passado sem possibilidade de rasuras, é lembrar para sempre da ferida que ali existiu. Sendo assim, enquanto Campo Minado se adensa no território das lembranças cicatriciais, A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa mergulha na ferida aberta, exposta ao vento e às intempéries do cotidiano que arrancam a casca impedindo o processo de cicatrização. Os testemunhos no espetáculo brasileiro remontam ao passado dialogando com o agora, constroem uma nova narrativa à história oficial ao modificar o narrador e escancarar a guerra cotidiana e secular a que estamos inseridos sem nos darmos sequer conta de quem é o inimigo. E está ai outro ponto de proximidade e distância entre os dois espetáculos. Ambos reconhecem o perigo, porém um olha para o passado e entende as consequências daquele espaço-tempo em que se deu a guerra e suas reverberações para a vida íntima dos combatentes e pública de cada país; o outro não consegue recortar no tempo a violência, não sabe quando se iniciou e muito menos quando findará, tudo o que consegue fazer é embarcar numa missão sem prazo de validade, o que revela uma investigação contínua sobre os pontos de partidas e as possibilidades de chegada.

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campo minado <> a missão em fragmentos _ Por ana carolina marinho

Os dois espetáculos, cada um a seu modo, propõem novas leituras e possibilidades para a construção dos sujeitos sociais e de pontos de vista. Essa mistura entre teatro, guerra e missão revela a força tanto destrutiva quando arrebatadora da coletividade. O quanto aproximar as trincheiras e diminuir as distâncias entre os corpos, fazendo os olhos se encontrarem, pode ser o caminho à construção de novas perspectivas para a vida, novos fôlegos para as peles que abrigam as cicatrizes. O passado não se modifica, mas a leitura sobre ele é contínua e reflete no agora e no por vir. ______ ______________________________________________________ __ __________________________________________________ ________________________________________

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campo minado

diĂĄrio sensĂ­vel

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dobra crĂ­tica

campo minado

ça ira

Entre a melancolia eo deboche Por marcio tito

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dobra crítica

O

teatro é assíduo frequentador de certos temas e alguns outros fazem quase parte de sua constituição intuitiva. O Poder é quase instância emblemática na hora de pinçarmos os grandes motivos da dramaturgia mundial. Hamlet é figura fixada a não nos fazer duvidar deste argumento. Talvez por isso, o encanto nunca se perca e se renove a cada experiência aon-

de o Poder é um pouco revelado segundo suas contradições e paradoxos. Este texto se pretende um objeto a fazer escapar um pouco o teatro que adentrou minha vida através das cenas que vivi em dois espetáculos. Elaborando conexões entre Ça Ira, espetáculo trazido na edição 2016 da MITsp, e Campo Minado, presente nesta edição, penso ser possível refletir para além da forma dos espetáculos e, embora ambos ofereçam em suas formas chaves para lermos os conteúdos das obras, ambos parecem também romper o espaço da cena. Em Campo Minado os veteranos de guerra são a partitura aonde os homens de Pommerat, durante o processo de construção de uma revolução, escreveram - digo alegoricamente e através de uma aproximação não literal -, a História dos homens e suas guerras pelo poder e pela paz. Fazendo surgir um documento melancólico, Lola estrategicamente aproxima o documento do público e cria total empatia entre quem é visto quem vê. Pommerat, revelando um sardônico deboche, torna petulantes o poder e seus instrumentos, criando a desagradável sensação de sermos parte daquela alegoria formal que torna incontrolável o processo social e político. Para além de nosso entendimento cotidiano. Ça Ira empresta deboche ao seu argumento total e cria uma forma que, por tão densa, se transmuta em quase paródia de si para colocar o publico em lugar desconfortável, quase abaixo da encenação, deixando o espectador livre para sentir o ridículo que os protagonistas lhe impõem, tal qual um tufão que revela a dor sem medir o paciente. Pommerat não guarda o público. Não esconde o esquema e nos abastece com espelhos impiedosos.

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campo minado <> çai ra _ Por marcio tito

Em contradição a isso, é possível analisar que Lola torna seu esquema quase um cenário para fazer caber o efeito de realidade e que, nesse processo, o espectador é afagado, como se a tragédia que pudesse lhe ocorrer, e que de fato ocorreu com os homens em cena, se tratasse de uma injustiça coletiva. O processo empático faz a cena encontrar conexão na humanidade do próximo. Estes dois eixos tão distintos entre si fazem valer, talvez, a vocação primeira do tema tratado por ambas as encenações. A luta pelo poder ou o poder em luta. O poder como agente ou o poder como sedução de agentes. Assim ,o poder (enquanto narrador absoluto da vida dos homens e mulheres) termina por figurar em ambos os trabalhos como um catalisador para outros possíveis conflitos. Desde o desejo de paz dos veteranos ao impasse retórico contido em Ça Ira, tudo evoca a ideia de que não somos senhores de nossos destinos e que existem processos a rodear sempre a banalidade da vida. Quase imperceptíveis, porém sempre elaborados, esses processos cruzam a transversal do tempo e definem a época qual habitamos. Cada uma das estratégias formais recorre ao uso de metáforas para dar conta de tornar o público submisso ou sensível ao ideal da encenação. Assim, e aqui encontramos o ponto de conexão mais poderoso entre as obras: o poder exercido pelos que contam historias e determinam o enquadramento da realidade. Por fim, o rigor das construções acaba se tornando o tema: a forma e o conteúdo precisos para fazer valer suas teses que fazem mira nas estruturas do poder, suas castas e contradições, seu ideais e suas tragédias. Ça Ira é a retórica que faz do verbo ação, um tipo de Gênesis que antecede a via Crucis dos corpos em guerra. Enquanto em Ça Ira a metáfora estética dá conta da teatralização do princípio conceitual da dramaturgia, em Campo Minado a teatralização revela a falta de metáfora aonde estes veteranos se viram inseridos e, portanto, se viram postos em um front sem saída. Foram obrigados a serem tão reais quanto é real uma bomba, e nada subjetivos como é subjetiva

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campo minado <> çai ra _ Por marcio tito

dobra crítica

a palavra dita em qualquer instância, seja política, filosófica ou estética. A palavra, embora idealizadora da realidade, mostra-se sempre carente de matéria, e aqui está a chave: alguns homens, por meio de orquestração política, são capazes de motivar, através de seu poder legitimado pela força de suas palavras quase reais, jovens a realizar na vida o que primeiro aconteceu em seus planos vaidosos. Ça Ira e Campo Minado parecem contribuir para a construção de um quadro fundamental acerca do poder e seus desdobramentos ontem e hoje no teatro ou fora dele, e, portanto, para notarmos o simulacro que o poder exibe em sua natureza e sua constante presença em nossa vida social, tal qual o equívoco que é escaparmos ao destinos de lutarmos contra os poderosos ou lutarmos para termos nosso cabido poder. Um pensamento solto, de Dráuzio Varella: O poder é um espaço abstrato que jamais fica desocupado. ______ ______________________________________________________ __ __________________________________________________ ________________________________________

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campo minado

diário sensível

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na ficção, vida sem ficção ares de passado mal passado uma escola sem escolha: ódio ares de presente vivo sendo vivido língua das memórias variadas. veteranas inglesas, argentinas, Malvinas minadas. oponentes sobreviventes você mandaria um filho para a Guerra? would you? have you?

foto: obra de Klara Lidén a n t ro + M I T s p

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sobre ser clan des tino fotos exclusivas

patrĂ­cia cividanes


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frança

uruguai

Um namorado, por isso foi ao Uruguai pela primeira vez. E ali aprendeu espanhol. Tinha a sensação de que algo haveria de passar lá. Enamorou-se também por Buenos Aires. Anos depois, conheceu as pessoas, e novamente o que era algo se tornou mais próximo de se revelar.

Mäelle Poésy a n t ro + M I T s p

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argentina

brasil

Ele me diz: a primeira vez, aqui, foi por luto, apĂłs se separar da namorada. Rio de Janeiro e SĂŁo Paulo se tornaram seus lugares de cura. De certa forma, revela, sempre fantasiou viver nessas cidades. Seriam elas outros lugares seus no mundo.

Jorge Eiro 122

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uruguai

espanha

Estava se separando, quando foi a primeira à França, mas não essa a cidade a esse momento. Com metade do dinheiro gasto, seguiu à Espanha. Barcelona, Granada, Valência... E, sozinha, sentiu, enfim, como se estivesse vivendo uma constelação familiar entre países.

Florencia Lindner a n t ro + M I T s p

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espanha argentina A avó na sala escutando tango, cantando ao violão, bebendo. Bastavam dois vinhos para cantar Gardel. Foi à Argentina pelo Governo Espanhol, afinal, diz seu pai, não se pode morrer sem ir à Argentina. Mas, quando precisou escolher entre ela e Cuba, os levou à ilha. Guarda o sentimento de lhe dever a Argentina.

Lucía Miranda 126

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brasil

frança

Falava melhor francês quando criança, ele diz. Pelas ruas de Montmatre, aos onze anos, percebeu-se do lado de fora do apartamento, após a porta bater. Talvez ir junto à boemia francesa com os pais e os artistas com quem se encontrariam. Foi no metro que os encontrou vestido de pijama.

Pedro Granato a n t ro + M I T s p

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Os diretores posam para as lentes de Patrícia Cividanes, em meio ao cenário ainda em montagem para as apresentações durante a MITsp, no Teatro Cacilda Becker.

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Pedro Granato é o único diretor brasileiro. Em São Paulo, mantem o Teatro Pequeno Ato.

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O que do outro é também parte sua? O que seu é de mais alguém? E como histórias são passagens entre pessoas que não se conhecem ou países que se visitam? O quanto pessoas e países são as mesmas dimensões de cada um e de descobertas sobre quem se é? Há uma clandestinidade na maneira como escapamos ao mundo e de nós mesmos. Mas há também o inevitável de sermos a perspectiva daquilo que ousamos imaginar viver. 134

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dobra crĂ­tica

paĂ­s clandestino

mateluna

Onde estĂĄ o epicentro? Por ana carolina marinho

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dobra crítica

L

embro da primeira vez em que a terra sob os meus pés tremeu. Estava em casa, em Natal, quando vi as panelas sobre o fogão se moverem sozinhas. Desliguei rapidamente o fogo e esperei que o terremoto passasse. Pouco depois que migrei para São Paulo, compartilhei com alguns amigos o ocorrido e para meu espanto, muitos descredibilizaram ou fingiram acreditar naquele “causo

nordestino”. É que no Brasil, para muitos, não há terremotos, fendas ou encontros de placas tectônicas, desconhecem a maior falha geológica do Brasil, localizada no município de João Câmara, interior do Rio Grande do Norte. Naturalmente, sendo nós - os brasileiros - um povo metonímico, é preciso compreender que uma parte apenas representa o todo se estiver localizada ao sul, próxima ao Trópico de Capricórnio. Parte das inquietações do país é silenciada. O que faz, além da localização geográfica, uma parte representar ou achar que representa o todo, não só política mas simbolicamente? País Clandestino, espetáculo que compõe a MITsp de 2018, busca se adensar sobre os percalços das representações políticas e simbólicas, em uma ação que não pode ser compreendida como geral, ela mergulha na realidade daqueles cinco diretores-autores que se apresentam a partir das limitações que estão inseridos. O dado da limitação faz-se fundamental. O público é recepcionado com perguntas que revelam o quanto o nosso pensamento vive cercado, por muito tempo, com reflexões estereotipadas dos países, o meu olhar volta-se para dentro, quando uma espanhola me pergunta o que eu achava da Espanha quando criança, e ouve o que pode ser ora divertido ora intragável. O espetáculo foi construído no epicentro do terremoto (Nova Yorque) e, através dos abalos sísmicos que provoca, propõe dialogar com outros territórios, partindo da idiossincrasia de cada diretor-autor. Há um desejo de transformação, de compreender as estruturas normativas que paralisam o pensamento crítico, que impedem de compreender a realidade de forma analítica, que mergulham o sujeito em uma

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país clandestino <> mateluna _ Por ana carolina marinho

esquina rodeada de prédios, sem que seja possível enxergar o horizonte. É exatamente nesse momento, que é preciso compreender quando a máxima metonímica faz ainda menos sentido. O quanto a ideia de um sentimento nacional está imbuída de pensamentos discriminatórios e egóicos que só conseguem discernir o outro a partir do incômodo que ele gera. Surgem, então, os radicalismos. Como fuga para esse caminho trágico, o deslocamento faz-se uma realidade. Pôr-se em movimento, em trânsito, compreender o outro e seu contexto, reconhecer em si as diferenças e dialogar é, sem dúvida, um caminho necessário. É por isso que todos sabem da força que uma viagem gera no indivíduo. Quem, porém, tem acesso à ela? Em um país em que a mobilidade urbana é um percalço sem escapatória, que mantém inúmeros cidadãos sitiados em seus bairros, como construir um diálogo com o outro? Como propor o deslocamento como metodologia para a interlocução? Por mais que todos nós saibamos das infindas vantagens em viajar, nem todos nós apresentamos as condições que favorecem e permitem essa ação. O mesmo acontece sobre o pensamento educativo, todos sabem que o estudo é capaz de transformar as realidades miseráveis do país, o que muitos esquecem é que existem disposições necessárias para que o indivíduo consiga se engajar afetiva e cognitivamente no mundo escolar. Nesse sentido, trazer ao espectador a necessidade de que cada um de nós sejamos cidadãos do mundo, que rompem as fronteiras nacionais e embarcam em viagens como condição intrínseca para construção de pensamentos criativos politizados é de um lugar que beira a perversidade, porque faz parecer que esse pensamento e sua concretização são “naturais” ao homem, sem perceber que, na verdade, são fruto de um processo de socialização próprio de uma classe. País Clandestino parte da experiência individual para construir um diálogo entre os diretores de cinco nacionalidades distintas. Trabalhar, porém, com narrativas reais de pessoas vivas confere um risco sobre os caminhos da história, já que sem desfechos, a obra se torna um fragmento de espaço e tempo passível de transformações e novas leituras.

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É a partir dessa observação que proponho uma aproximação entre esse espetáculo e Mateluna, de Guillermo Calderón, apresentado na MITsp de 2017, que transita entre o espanto e a busca por justificativas que expliquem a conduta do documento vivo, que nesse caso é o ex-guerrilheiro Jorge Mateluna que lutou para derrubar o regime de Pinochet, mas que hoje está preso por roubar um banco. Em Mateluna, Calderón propõe uma teia de inconclusões, põe em cheque o seu espetáculo anterior Escuela, ao revelar o quanto a prisão do ex-guerrilheiro Jorge pôde alterar o curso da história e das interpretações sobre ela. O espectador, munido de inúmeros pontos de vistas apresentados pelos atores, duvida e suspeita das versões. Esse caminho de suspeitas é o que mais interessa à obra. Em Mateluna, ao contrário de País Clandestino, não interessa a individualidade dos atores, ainda que a obra também se sustente a partir do encontro e discussão entre eles fora do palco. No espetáculo chileno, os atores cobrem seus rostos com camisas e se adensam sobre os ecos do passado para compreender as expectativas frustradas do presente, é um manifesto poético contra as barbáries da justiça, contra o desmonte do pensamento crítico e em defesa de uma sociedade mais humana e justa. Os atores transformam o teatro em uma barricada, eles estão de vigília, atentos e cautelosos, fazem do ato criativo um lugar de embate de pensamentos. Mateluna tateia o tremor de terra para investigar as características do epicentro e as consequências para as bordas. Nesse sentido, o espetáculo chileno nos provoca ao deslocamento, à sair da zona de conforto para compreender as fissuras do caminho. País Clandestino, por sua vez, pisa no mesmo terreno mas com sapatos impermeáveis, não sente nos pés a chuva que não cessa, ainda que permaneça na rua. Existe uma docilidade que costura o encontro entre os cinco diretores que parece tecer a ligação entre eles mais pelas viagens pessoais e experiências de uma juventude que pôde sair pelo mundo afora para passear, se drogar e conhecer gente nova do que pelos conflitos políticos e simbólicos que enfrentam os seus países. Os dois espetáculos buscam habitar esse limbo

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em que as certezas são uma massa amorfa presa em camisas de força e grades. A principal diferença, porém, reside em como o espectador é convocado ao diálogo em cada um deles: de um lado, mais perguntas do que respostas são lançadas, provocando uma instabilidade necessária e do outro, as apresentações de “eus” que buscam ressonância no “todo” (suspeito que tenha sido esse o ponto que distanciou inúmeros espectadores da obra: é difícil reconhecer-se naquelas histórias de pessoas com trânsito livre pelo mundo, quando muitos de nós ainda estamos contando as moedas para ver se passagem para o transporte público é viável). Ainda que não haja o desejo por parte do diretor paulista em representar a totalidade do povo brasileiro, invariavelmente absorvemos suas opiniões como uma possibilidade de apresentação das questões e problemáticas brasileiras, uma vez que ele precisa falar do seu país para estrangeiros. Porém, faz-se necessário perceber que todos os cinco diretores nos provocam a resistir, a lutar e a manter acesa a chama de um futuro mais humano. Os dois espetáculos nos provocam a compreender o que deixamos passar; os tremores que, por não nos atingirem, desacreditamos; o presente que não se encerra em uma única leitura e a força criativa dos encontros. Há que resistir para fazer teatro, há que se lutar para fazer política. País Clandestino e Mateluna são um convite para pisar nas bordas de um terremoto de alta magnitude que está por vir, os ecos, porém, já são audíveis. ______ ______________________________________________________ __ __________________________________________________ ________________________________________

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____________________ Leia a crítica sobre ________________________________ _______________________ Mateluna, ______ __por Ana Carolina Marinho no caderno Trasnversal. ____________________________________________________ ____________ fotos guto muniz

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cinco corpos na corda bamba da linha do tempo das ditaduras, dos movimentos dos ataques, dos fardos de ser um país desaparecendo filhos de país desaparecido um despaís refletindo impossibilidades flashs viajam para realidades em cinco tempos: Argentina, Brasil, Espanha, França e Uruguai. cartas, cartazes, vozes pais, mães, morte conflitos se imprimir na história se entender na memória um fruto futuro ?

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o mergulho de hamlet ensaio fotogrĂĄfico exclusivo por PatrĂ­cia Cividanes

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Julian, músico e performer do espetáculo Hamlet, dirigido por Boris Nikitin, invade as águas quentes do verão da paulicéia, em uma manhã de mais de 30oC.

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Agradecimentos: Hotel Comfort Nova Paulista, Annett Hardegen e Adrea Caruso.

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susanne Residência artística com a encenadora alemã


kennedy notas por maurĂ­cio perussi


Residência artística com a encenadora alemã sussane kennedy

o ataque do presente o ataque da cena contra 1. everything seems very meditative _ 2. everything seems very photographic _ 3. search the “tension” in the relaxation _ 4. keep the energy when stopped _ 5. “don’t be dreaming” _ 6. the fundamental action for the directors: to strictly position the objects and the actors in the scene _ 7. they thoroughly organizes the tableau vivant _ 8. the positions that the actors occupy are very important. the actors change, but the positions don’t. _ 9. the actors and the objects seem to have the same statute _ (they are in the same level) _ 10. the tension between the bodies. the tension between the objects _ 11. “feel the image.” _ 12. having the arms heavy is very important for the actors _ 13. composition is fundamental for them _ 14. “the nakeness of the actions” _ 15. the actors should sustain the voice over without leaving it falls in the ground _ 16. if the situation / composition is clear too much it becomes less interesting

1. tudo parece muito meditativo 2. tudo parece muito fotográfico 3. “buscar a “tensão” no relaxamento” 4. “manter a energia quando parado” 5. “don’t be dreaming” 6. a ação fundamental das diretoras: dispor rigorosamente os objetos e os atores em cena 7. elas organizam minuciosamente o tableau vivant 8. as posições que os atores ocupam são muito importantes. os atores mudam, mas as posições, não 9. os atores e os objetos parecem ter o mesmo estatuto 10. a tensão entre os corpos, a tensão entre os objetos 11. “feel the image” 12. ter os braços pesados é muito importante para o ator 13. composição é fundamental para elas 14. “the nakeness of the actions” 15. os atores devem sustentar a voz over, sem deixá-la cair no chão 16. se a situação/composição é clara demais, ela se torna menos interessante

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notas por maurício perussi

contra o resto do tempo a o resto do teatro 17. “criamos um universo em que nada é surpresa, tudo é cabível, tudo é possível de acontecer” 18. não há monólogo interno nesse universo. se há alguma coisa parecida, seria algo como: “sim, é isso. o que você vê é o que você vê.” 19. não há passado, não há futuro: apenas o presente 20. “virar primeiro a cabeça e depois o olhar” 21. “nunca perder a sensação/consciência dos pés e das mãos” 22. “no statues, no zombies, no robots, no dancers, no actors, no animals” 23. as posições são mais importantes que os personagens/ atores 24. piscar os olhos é uma ação muitíssimo importante 25. estar atento para a tensão que surge quando a ação é finalizada 26. se há dramaturgia ela é completamente sintática (posicional) e não semântica (o sentido surge depois, ele não está lá desde o início) 27. buscar o olhar do espectador e o dos outros atores é uma forma de reconstruir a tensão 28. “what you see is exactly what you see. if you see something else that’s your busyness.”

17. “we are creating a universe wherein nothing is surprise, everything is appropriate, everything is possible to happen” _ 18. there’s no inner monologue in this universe. if there is something like that, it would be something as: “yes, this is it! what you see is what you see.” _ 19. there’s no past, there’s no future: only the present _ 20. “turn the head first and then the gaze” _ 21. “never miss the sense / awarness of the feet and the hands” _ 22. no statues, no zombies, no robots, no dancers, no actors, no animals _ 23. the positions are more important then the characters / actors _ 24. blinking the eyes is a very much important action _ 25. “be attentive for the tension that arises when the action is completed” _ 26. if there such thing as dramaturgy in it, it is completely syntactic (positional) and not semantics (the meanings arises later, it is not there since the beginning) _ 27. searching for the gaze of the audience and for the gaze of the other actors is a form of rebuild the tension _ 28. “what you see is exactly what you see. if you see something else that’s your busyness.”


Residência artística com a encenadora alemã sussane kennedy

29. too much abstraction it’s not good. everything has to be very concrete _ 30. there´s always a awarness of being showing something for someone _ 31.the substance of the silence = the materiality of the time _ 32. the work on the silence and on the time makes noticeable the concrete weight of each event _ 33. it is as if the daily life were inhabited by several artificial codes, and as if each scene could dissect this fact in front of the audience as if it was a surgery table, or a surgery tableau which examines the nonsense in which we all are immersed _ 34. it is as if the mobile phones were machines of grinding the present, and the theatrical situation (the scene) was a machine that could counterattack the audience again with the lost present, crunching, in this way, the rest of the time _ 35. there should not be much oxygen in the air. the air should be compact _ 36. it is the audience that should go in the direction of the actors and not the contrary _ 37. the actors should not “disturb the air” _ 38. the scene should not disturb the state of suspension _ 39. the actions are clear in the same measure the situations are enigmatics _ 40. it is as if the embarrassment inherent to the theatrical situation (people watching other people making strange things) could become clear and palpable. it is with that embarrassment that the audience “plays”

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29. muita abstração não é bom. tudo tem que ser muito concreto 30. há sempre uma consciência de estar mostrando alguma coisa para alguém 31. a substância do silêncio = a materialidade do tempo 32. o trabalho sobre o silêncio e sobre o tempo torna perceptível o peso concreto de cada acontecimento 33. é como se o cotidiano fosse habitado por vários códigos artificiais, e é como se cada cena dissecasse isso na frente dos espectadores; é como se a cena fosse uma mesa de sirurgia, ou um tableau de sirurgia, que examina o nonsense no qual todos estamos imersos 34. não pode haver muito oxigênio no ar. o ar deve estar compacto 35. é o público que deve ir em direção ao ator e não o contrário 36. o ator não deve “perturbar o ar” 37. a cena não deve perturbar o estado suspensão 38. as ações são claras na mesma medida em que as situações são enigmáticas 39. é como se o constrangimento inerente à situação teatral (pessoas assistindo a outras pessoas fazerem coisas estranhas) se tornasse evidente, palpável. é com esse constrangimento que o público “joga” 40. é como se o ator tivesse que equilibrar uma total consciência da presença do público com uma total indiferença em relação à ideia de uma “ação dramática”


notas por maurício perussi

41. o silêncio dos atores é uma espécie de solicitação para a plateia. os atores aguardam por uma atitude da plateia 42. “as coisas não têm significação: têm existência. as coisas são o único sentido oculto das coisas” (alberto caeiro/fernando pessoa) 43. o olhar, ao mesmo tempo perscrutador e “neutro” dos atores na direção da plateia, parece indicar que a cena tem uma lógica de funcionamento, ou uma configuração de memória, diferente daquela na qual a plateia está imersa 44. é como se nós não estivéssemos no teatro para ver uma peça de teatro, mas para testemunhar a situação que produz o teatro 45. trata-se de algo entre os autômatos de büchner, a super marionete de craig, e os robôs do krafwerk, mas não é nada disso exatamente 46. a voz é sempre uma intrusa nesse universo 47. os gestos dos atores se relacionam mais com uma ideia de entonação do que com uma ideia de ilustração. talvez essa seja a diferença entre usar o corpo todo, e usar somente a periferia do corpo para se expressar 48. a sonoridade das palavras é mais importante do que o seu conteúdo 49. a cor da voz 50. o corpo é a voz 51. a voz é um sinal elétrico que flui pelo corpo 53. não há sobressaltos e nem surpresas para os atores. há apenas a frase: “sim, isso é o que nós que fazemos”

41. it is as if the actor had to balance a total awarness of the presence of the audience with a total indifference with the idea of a “dramatic action” _ 42. the silence of the actors is a kind of request for the audience. the actors are waiting for an audience attitude (response) _ 43. “things have no meaning: they have existence. things are the only hidden meaning of things” (alberto caeiro/fernando pessoa) _ 44. the actor’s gaze towards the audience which is at the same time scrutinizing and “neutral” seems to indicate that the scene has a functioning logic, or a configuration of memory different from that in which the audience is immersed _ 45. it is as if we were not in the theater to watch a play, but to witness the situation that produces the theater _ 46. it’s something between büchner’s automata, craig’s super marionette, and the krafwerk’s robots, but it’s not exactly that at all _ 47. the voice is always an intruder in this universe _ 48. the gestures of the actors are more related to an idea of intonation than to an idea of ilustration. maybe that’s the difference between using the whole body to express oneself and using only the borders of the body to do that _ 49. the sound of words is more important than their content _ 50. the color of the voice _ 51. the body is the voice _ 52. the voice is an electrical signal that flows through the body _ 53. there´s no alarms and no surprises for the actors. there´s only the sentence: “yes, this is what we do” _

a n t ro + M I T s p

175


ResidĂŞncia artĂ­stica com a encenadora alemĂŁ sussane kennedy

Tire tudo de mim

por matheus macena

1 76

a n t ro + M I T s p


O

que ocorre no teatro é estranho. Não só o ritual, de encontrar a sua espécie para

de forma ou de outra falar sobre a própria espécie, mas também a necessidade

de comunicação entre a mesma faz com que o movimento catártico – característico do fazer teatral – se justifique. O partilhar de uma informação já é em si, performaticamen-

te, teatro. O alastramento de informações com o intuito da criação de teias comunicativas através do simples mecanismo da relação entre aquele que dá e aquele que recebe os dados informacionais, já configura o fenômeno do teatro como o entendemos.

M

as, para além do desmiuçar da manifestação artística teatral, a residência com Susanne Kennedy se encarregou de elucidar a problemática da repre-

sentação. Num tempo em que se fala assiduamente acerca das questões de re-

presentatividade, de sujeitos invisibilizados, o campo da representação parece anteceder a discussão da representatividade; e ainda persistir e insistir em se fazer presente na manufatura das artes cênicas.

S

egundo Bianca Van Der Schoot e Suzan Boogaerdt, performers colaboradoras da poética criada pela própria Susanne, há no teatro a constante tentativa de con-

vencer o interlocutor de que algo está acontecendo, o que necessariamente subjuga

o que de fato acontece em cena: pessoas na frente de pessoas. Dentro da poética de Susanne desiste-se da tentativa da representação, já que a mesma funciona criando

uma rede de falsos sinais que pretendem ser decodificados pelo interlocutor, de forma

também falsa. Logo, a proposição aqui é de que o processo de comunicação se dê

sem que algum fingimento atropele a simples relação vazia entre o público e o artista.

C

omo performer, ou ator, ou bailarino – eu Matheus – fui treinado a vida inteira para que a minha presença evocasse comunicação ou produzisse significado. E

como primeira impressão, eu sofri para me abster de todas as armas que utilizo nos meus processos de significação. Em nosso “training”, éramos extirpados de todas

as ferramentas usuais da cena; os copos devem estar parados, a voz não deve estar impostada, talvez não haja voz, não há o ímpeto de fingir nada além do que realmente

acontece. Pessoas na frente de pessoas, essa é a cena. Há um senso egóico que envolve os performers à ser implodido, e mesmo depois desse esvaziamento, depois de me tirar tudo, ainda havia espaço para redescobrir a minha liberdade em cena.

E

xiste, é evidente, uma forma com a qual a comunicação teatral opera. Esse traba-

lho é justamente um trabalho pré-formático, que se propõe a operar uma comu-

nicação que tenha como alicerce a divisão da responsabilidade (entre o performer e

espectador) de carregar a informação transmitida no simples acontecimento da existência do público diante do artista.

E

também é evidente que, qualquer trabalho que se autodenomine pré-formático, já

possui em si uma forma. Mas o interessante é como Susanne consegue, mesmo

dentro dessa “forma-pré-formática”, deslocar o conteúdo da realidade em sua con-

figuração usual, criando – por exemplo com as máscaras – uma realidade artificial aonde um copo de água pode virar um evento fenomenológico interessantíssimo.


Residência artística com a encenadora alemã sussane kennedy

diário sensível

por patrícia cividanes 1 78

a n t ro + M I T s p


a n t ro + M I T s p

1 79


Des-norma tividade: workshop

Possibi lidades criativas de expres sĂŁo


A dramaturga e encenadora sueca

Liv Elf Karlén

,

autora do livro “Mais que isso – Pensamento sobre Atuação Gênero-curiosa”, criou um método para investigar estruturas normativas instaladas tanto no cotidiano quanto nos processos artísticos. Através do esgarçamento das normas, Liv propõe um mergulho parar compreender como as expectativas sobre gênero, sexualidade e raça se inscrevem de forma preconceituosa no dia-a-dia. por ana carolina marinho


workshop

1

03 de março

E

ra o último dia de encontro. Foi uma

o mesmo princípio: da menor partícula de

ritório cheio de provocações e eu che-

real observada em pesquisa de campo)

semana inteira de imersão num ter-

gava ali como se tivesse acordado de

um sono profundo em um lugar desconhecido. Não sabia ao certo o que havia

acontecido durante os olhos cerrados,

mas reconhecia o trânsito constante de pessoas em estado de desequilíbrio.

Não havia desejo vindo de nenhuma das partes para que os exercícios fossem estáveis, o anseio era por continuar a

investigação de como romper os limites do trivial, do cotidiano, da norma para

compreender que novos lugares podem ser acessados. O percurso, como anunciado, não é sereno. A diversão e o riso frouxo ora eram reflexo do desconforto

emoção (nesse caso, a mimese da cena

à maior expressão daquela forma. A investigação apontava para a evidente es-

trutura normativa em que estavam inse-

ridos e não nos damos conta: cabia às expressões femininas sempre o lugar da sensualidade e às masculinas o lugar da brutalidade. Os próprios participantes,

ao final do encontro, em roda, manifes-

taram suas inquietações ao perceberem,

em ato, na cena, o quanto estão afundados em formas discriminatórias presas

em seus inconscientes. Que no ato de

esgarçar as normas, percebiam o lugar comum que muitos caiam e que não encontravam saídas.

bito, do comum, do esperado. O exercí-

D

uma expressão/sentimento até rompê-la

vida de cada um. Muitos participantes

em exceder à norma, em esgarça-la; ora

da constatação do ridículo diante do há-

cio que conduziu o encontro era esgarçar

e perder o sentido, ou ganhar novos: um processo de conduzir a menor partícula de emoção à maior expressão possível

daquele estado. Isso conduzia a todos à compreensão de como a norma é um

contorno autoritário e discriminatório recheado de moralismos. Esse processo

fazia reconhecer em nós mesmo estruturas normativas que aprisionam leituras e

possibilidades de existência distintas das que incutimos e decretamos sobre nós.

Liv propôs, em seguida, que alguns participantes mostrassem ações masculinas e femininas que observaram na rua e as mostrasse ao grupo. O exercício seguiria

urante a roda de conversa, Liv propôs uma avaliação da semana e de

como a experiência vivida ganhava reverberações para outros contextos da levantaram questões sobre o processo.

“Ao quebrarmos normas, criamos novas

e como essas novas podem estar livres de preconceitos? Em que medida elas também não ditam regras?”. Liv, porém, explicava a importância em manter essa dúvida sempre acesa, mas relativizava

apontando que o foco não está na desconstrução, mas na des-normatividade e, por isso, mais do que propor novas

normas, o foco encontra-se em reconhe-

cer as existentes, exagerá-las e trabalhar

a partir delas para avançar o diálogo. É nesse ponto que entendo o trabalho de

Liv como uma investigação fundamental


para compreender padrões estruturais

e do Drag King: eles são uma encenação

gem extremamente preconceituosos e

renciada do que é tido como “normal” e

de atuação e construção de persona-

que habitam inúmeros processos criati-

vos. Alguns dos participantes relataram experiências em que reconheceram ex-

pectativas (preconceituosas) para a atuar conforme algumas convenções: já estiveram em processos em que o personagem

era negro e, portanto, precisa agir como tal. Como podemos enquadrar o negro,

a mulher, o pobre, o gay, por exemplo, como padrões normativos? Enquadrá-los é uma tarefa das mais cruéis e retira toda

a complexidade da vida. Essa crueldade reside na expectativa que temos para lermos tais formas.

S

uspeito que o mais interessante nes-

se processo de avaliar, investigar e

problematizar a normatividade é reconhecer os caminhos em que as idios-

de si, uma construção consciente e dife“dentro dos padrões”, ao mesmo tempo que revelam a realidade sem mediações

e esgarçam padrões, provocando inúmeras leituras.

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sincrasias são silenciadas a partir de

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os outros, o que gera sucessivas frustra-

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expectativas que temos para nós e para ções cotidianas sustentadas por precon-

ceitos, intolerâncias e autoritarismos. Ir até o máximo da forma normativa gera

um lugar de estranhamento que faz o ser em investigação explodir as normas fun-

dadoras, fazendo com que elas percam o sentido originário através do esgarça-

mento de seus limites e atingindo o máximo de expressão. Passamos, então, a

olhar e reconhecer suas inconcretudes,

sustentadas por valores e imposições. Uma das saídas é, sem dúvida, viver em

estado de performatividade, tal como nos revela a força da presença da Drag queen

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Ser ou nĂŁo ser: workshop

um autorretrato em revolta


O diretor suíço

Boris Nikitin

apresenta suas refle-

xões e práticas na desconstrução de conceitos comuns ao teatro contemporâneo, como falso, duplo e fraude, propondo aos participantes do workshop modos e invenções de como lidar com a realidade e identidade, compreendendo-as como ficcionais, problematizando a perspectiva do teatro documental. Apresentando cenas de recentes espetáculos seus, os participantes serão estimulados a elaborar um autorretrato performativo em rebeldia, tendo a própria biografia como material a ser explorado. por marcio tito


workshop

1

07 de março

B

oris Nikitin persegue uma arte que so-

naufragar grande parte das cenas autorais,

nha qualquer constrangimento em utilizar

cena, alguns artistas optam por, em de-

bretudo possa revelar. Embora não te-

recursos estéticos e retóricos para isto,

Boris organiza as pautas que lhe tocam

pois, por medo de não seduzir com sua trimento da realidade, oferecer ao público alguns Efeitos de Realidade.

entre o que deve visitar a cena e o que

N

rante o processo. Parecendo não enxertar

figurar no mundo como qualidade. O dom

profundamente e, fazendo valer o Teatro como potência, estabelece as fronteiras deve, por exemplo, ser destruído ainda du-

o processo na cena, mas sim a cena no processo, como se o ensaio tivesse que seguir determinado rigor para alcançar o

corpo da cena, Nikitin, ainda que organize um processo que pareça livre e quase

permissivo aos delírios da imaginação, tem claros seus procedimentos e organiza to-

das suas pautas e ideias em um processo metodológico autoral e circunscrito em

produzir resultados claros e diretos. Talvez este rigor e esta predileção por partituras formem o seu oportuno diferencial.

S

ikitin sugere que esta fragilidade acon-

teça como mote, que esta vulnerabili-

dade se desenvolva e funcione como for-

ma de perversão para, no espaço da cena, de ser vulnerável. Como se o artista tivesse o “superpoder” de evidenciar sua fragilida-

de e nela encontrar a potência necessária para habitar o palco e, perante si e a pla-

teia, estabelecer a energia que tornará em cena o seu mistério agora iluminado, o diapasão da criação e o interesse da monta-

gem. Construindo a partir da honestidade

da retórica e não a partir do valor “ético” de sua personagem, ou de ou de si, o artista pode expurgar e ao mesmo tempo oferecer catarse.

teatro brasileiro não tem mostrado costu-

I

arte partindo de nosso “segredo” ou da-

da própria identidade é, neste enfrenta-

ua fala no Itaú Cultural instigou o pensamento a ir em direção a algo que o

me. Boris Nikitin sugeriu que fizéssemos

quilo que guardamos por sobrevivência social, e que este segredo não fosse organizado por uma motivação melancólica

ou visceral, mas que viesse da fragilidade para, assim, um pouco livres da obrigação

sto estabelece não o lugar de fala, mas o

lugar de onde se pode ser visto. Ser vis-

to, neste caso, para se tornar íntimo dos procedimentos e frequentar a radicalidade mento, o primeiro movimento interno. O teatro pode finalmente oferecer mais que o

documento ou a cena ficcional, pois assim aparecerão novas e outras possibilidades de escolha aos agentes da criação.

nismo daquele mistério que por medo cria-

S

inviabiliza a autoridade da criação despu-

mo um processo muito conectado a duas

de sermos parte de um tipo de padrão, pudéssemos em cena encontrar o mecamos sem notar. O medo que nos engole e

dorada em cena é, sem dúvidas, o que faz

e fossemos sempre o mesmo Hamlet não haveria motivo para montarmos o

texto do bardo e, curiosamente, isto que parece um combate ao cânone é em resu-

instâncias naturais da cena; a memória e


o presente, uma eficiente forma para trazermos à tona e revelarmos sem pudores

coisas que parecem configurar em um mo-

vimento retórico bastante íntimo. Este tipo de cena nasce das necessidades de um ator em cena e por isto é teatro em sua profunda acepção.

A

pós evidenciar que morte e vida farão parte da criação e que este proces-

so será organizado segundo lógica e não segundo pura emoção, embora existe nis-

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to um conciso valor autoral, o encenador

____ ___________________________

similar, aonde seriamos nós os estudados

___________________________ ____

sugeriu que participássemos de processo por nós mesmos. Fragmentando nossa

auto-percepção foi possível entender que uma personagem não se dá por seus fatos

aberrantes ou incomuns, mas, sim, partindo de uma forma prévia que inocula no leitor a possibilidade de entender aquela personagem como senhora de suas questões

e sabedora de seu lugar no mundo. Os fatos aberrantes de uma personagem são a parte frágil da criação... O passado do documento é o fetiche pela singularidade.

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workshop

2

08 de março

T

endência é quando tudo vai correndo

seca e o fazer dela no processo da cena.

quase internas ao processo da decisão.

ne verdadeiro, e o interesse teatral (ou não)

na direção de algo segundo influências

Assim, embora seu teatro siga com reticências algumas tendências, o encenador

faz valer na realização a própria forma contraditória da arte.

A

Aos poucos restringe o debate ao seu cerpor trás de cada obra faz surgir a verdadeira vocação de cada ideia.

A

pós um rasante por sua obra, como dito, muita coisa se revela. É possível

inda que seus eixos pareçam reco-

dizer que toda a simplicidade está pautada

implícitos valores que transmutam este re-

sar para fazer. Não é um diretor intuitivo e

nhecíveis (e nem sempre são), existem

conhecível em uma desabalada discussão acerca da maneira com que se poderia realizar o objeto artístico na atualidade.

N

o segundo dia, tudo pareceu iluminado

pelo dia anterior. E se no primeiro dia

todo o teatro de Boris Nikitin foi projetado em nossa imaginação, no dia da conclu-

são muitas coisas expostas em vídeos fizeram valer cada passo imaginado. A obra

é sólida e ao mesmo tempo porosa. Cada processo concluído deixou em seu criador

em vigorosa pesquisa. Nikitin precisa pen-

durante seu workshop isto se revela como pedagogia. As respostas derivam sempre de olhos que se alocam ao longe e retornam como uma suspeita de resposta. Não é necessário entender pra fazer. No entan-

to, procedimento após procedimento, será

importante partir de algum ponto onde se possa entender o que de fato está em nosso desejo.

A

cima de tudo, o teatro. Nikitin pensa

a cena na cena. O humano na cena.

determinada experiência e um arsenal de

A cena como medida para o mundo. Sua

gia nos contagia e talvez o próximo tralho

documentar melhor. Aceitar a verdade

perguntas ao trabalho seguinte. Esta enerdo encenador não seja dele mesmo, mas

sim de seus ouvintes que brilhavam os olhos a cada nó teórico que surgia nas falas instigantes do orientador.

D

iscutir mentira ou verdade na arte do teatro é idolatrar o paradoxo. Nikitin

vence este delírio quando impõe a contra-

caça está em superar o documento para como possível realidade e a mentira como

efeito da realidade. Tudo e nada convém

ao evidenciar da realidade e não se pode suplantar a criação em detrimento de possíveis extravios da emoção.

A

gradar não é função da arte. Dilemas sinceros a fazer transcender nosso

dição total e irrestrita. Realidade e menti-

padrão quase hipnótico da realidade. Duvi-

Cada esfera que constrói a forma que dará

verso pré-julgado pelos que louvam inten-

ra. Ilusão. Farsa. Documento real e irreal. conta do conteúdo é para além de seu alcance. Um game ou jogo que nos joga,

enquanto não entendemos completamente

suas regras. Nikitin discute a ética intrín-

dar das intenções nobres e dar voz ao per-

ções cordiais. Curioso pensar que todos estes conceitos parecem configurar uma nova realidade para o teatro e que seriam

todos eles extremamente renovadores. No


entanto, surge na mente o filosofo Dennis Diderot, e este teria dito, há um século, que

“Um ator pode chorar melhor a morte de

um filho do que uma mãe”. Este raciocí-

nio contém uma desafogada renovação da ética e uma peculiar apreensão do que é e seria a estratégia da arte.

N

o entanto, o teatro anda lento por va-

les de renovação perpétua. Tudo se

constrói, enquanto o que está ao redor

destrói simplesmente ignorando sua rele-

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vância. Se Diderot estivesse presente mais

______________________________

S

___________________ ___________

vezes... Onde estaria Nikitin?

e tivéssemos superado nossa fábula

que insiste em se apaixonar pela ver-

dade construída, coletiva e hegemônica, onde estaríamos e onde o documento encontraria sua totalidade irrestrita?

A

s convenções na obra do encenador são reflexos dos processos anterio-

res ao pensamento cênico. Existe primeiro uma ideia. Então vem o teatro como forma.

E esta forma precisa compreender seu li-

mite para, entrando na ideia, se rasgar até encontrar a equalização do resultado com

o principio filosófico da cena. Boris Nikitin é um filósofo visual.

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Ateliê workshop

Enciclo pédia da Fala


Joris Lacoste

tem se dedicado à construção de

um banco de falas pelo qual reuni diversas maneiras de como a palavra é utilizada no contemporâneo, desde conversas casuais aos anúncios publicitários e pronunciamentos oficiais. Em São Paulo, o diretor francês propõe aos participantes do workshop um primeiro mapeamento das falas da cidade e então como essas poderão ser reapresentadas ao outro através de sua exposição estética, tanto como sonoridade quanto escrita. por marcio tito


workshop

1

05 e 06 de março

F

alar até Dizer. A sala simples é mais

do que adequada ao nosso interesse

jogo de cena reitera a todo instante nossa curiosidade.

sofisticação da proposição de cena cabe

S

reproduzir. Sentir e fazer sentir. O círculo

tórias do mundo, sua grandeza ou misé-

e ao formato do workshop. Afinal, e isso suspeitaríamos no instante do encontro, a

em não mais que quatro direções. Ver e ao redor de Joris Lacoste foi aos poucos

tomando a forma de uma roda agitada e

ansiosa, logo à seguir toda a gente tor-

na-se um coro atento e interessado e o

workshop acontece de maneira tão fluida que chega a quase esconder a comple-

xidade da proposta. Cada qual, saberia

mais adiante, estava ali para trazer de dentro do encenador francês respostas

não só às perguntas que figuram na for-

ma de seu espetáculo (Suíte no 2) como também no enunciado de seu workshop.

J

oris é homem revelado. Não exibe

eguimos por dentro do esquema de uma arquitetura vocal que, em lugar

de reproduzir ou catalogar palavras e

frases, captura instantes da fala nas hisria são intencionalmente achatadas pela

equalização de sua forma. Joris propõe

que, partindo da captação da especificidade da fala de sujeitos ‘importantes ou não, conhecidos ou não, que tenham ou

não o que dizer”, toda a gente reunida na sala acabe por encontrar o tom formal daquela fala e que, com isto, se possa

encontrar seu lugar único e irretocável dentre as demais falas da vida. Nós e Joris desejamos fazer caber o quase in-

visível em uma enciclopédia da fala e da palavra de toda gente.

questões. Joris não só é movido pela

E

de preencher o próximo com esta bus-

Joris

mistérios inúteis. É direto no instante

da caçada coletiva ao fundamental das curiosidade, também mostrou ser capaz ca inquieta; suas proposições lançam a ordem do teatro em um esquema vívido de renovação dos mecanismos teatrais,

aonde, por exemplo, se pode encontrar

personagens em contextos que vão para além de seus corpos ou personagens em forma de vozes que não encontram cone-

xão com seus possíveis corpos. Assim,

convencidos de que o “método Joris” é

parte fundamental para darmos conta de

experimentar um teatro essencialmente jovem, porque é jovem Joris, porque é jovem e arejado seu interesse e forma, o

xistem artistas que embora estejam

rastreando o novo, por desatenção

ao peculiar dos procedimentos, o fazem de forma arcaica. Entretanto, até aqui, Lacoste

mostrou-se

conectado

com a realidade e os meios de seu tem-

po, afinal, seria muito dispendioso criar

uma efetiva biblioteca de subjetividades,

caso a internet não fosse parte dos nossos dias, bem como celulares e computa-

dores não figurassem e circulassem pela sala com tanta desenvoltura... Portanto, dando conta de experimentar o agora no

agora e encontrando o Tempo exato para realizar estas propostas, encontramos

aqui, no trabalho e em Joris, uma busca que se justifica para além da renovação arbitrária e do fetiche estético.


T

odos desejam fazer valer o que foi

no corpo. Entre a ideia e a realização do

e este é de fato o mérito total. Estamos

tro. Haverá um hiato e meu retorno será

evidentemente sugado do encenador

contagiados pela instigante curiosidade

que move forma método e realização. E isto de maneira sensível me fez rememo-

rar esta nuance da arte e da vida. Como é importante manter a paixão pela suspeita

e a devoção aos verdadeiros mistérios.

E pensar que as vozes escondem em si tanta matéria. Tanto gesto e tanta cena.

A

pós a orientação inicial, cada qual

trouxe para sala uma sonoridade

humana que pudesse criar o mosaico de interesses expostos no primeiro encontro. As vozes sobrepostas revelaram a

verdadeira dinâmica do trabalho. O que

surgiu da reunião quase desordenada de falas pela metade foi uma oportuna

materialização de tudo aquilo que havia

sido exposto inicialmente enquanto ideia.

A enciclopédia passou a ter corpo. Seu corpo é imaterial. Ainda assim, cada um dos materiais parecia conter identidade e individualidade. Lacoste oferece re-

cursos para a colagem e, evidenciando

ter vivido este processo inúmeras vezes, cada percalço faz surgir a nova possibilidade que faz brilhar os olhos de todos

quando Lacoste se interessa pelo ruído.

O

tempo o fez senhor deste processo e cada obstáculo parece chance

para construir nova arquitetura dentro das balizas do “método

Lacoste”. Os

enunciado, entre a pesquisa e o enconmarcado por me tornar ignorante quanto

ao meio do processo. O instante em que o corpo dos pesquisadores se transmu-

tará em corpo de ator me será impossível analisar. Ainda assim, prevendo o que

não saberei, é certo que o processo de deslocamento da ideia à ação e para os corpos se dará com a mesma dinâmica

aplicada até então. A cola do processo é

simples. Sua maneira é direta. Pesquisa, análise, cena. Resta entender qual textura se revelará e qual será a imagem final

para este grupo que se reuniu em torno

de tão autoral pesquisa, pois, embora exista uma metodologia. É certo que a

alma do trabalho está naqueles que realizam suas dicas criativas.

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áudios apresentam situações e é curioso

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das as situações figurem dentro de um

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ver como o enunciado faz com que to-

escopo ideal. Agora o processo se dará

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workshop

2

09 de março

C

ada forma pode conter um ou mais

dados. Ficou evidente todo o processo e

as formas para encontrar diálogo com os

gina para a enciclopédia. No primeiro dia,

conteúdos e é nosso dever renovar

novos assuntos. Cada conteúdo nasce

para ganhar uma forma e toda forma é uma forma de dizer, um modo para significar. O teatro é a perseguição constante da invenção visual e filosófica.

O

teatro é filho da linguagem, é pai

da expressão. Lacoste compreende

estas ideias e organiza um tipo de cena original que toma impulso no presente.

sua finalidade quando o palco se fez pá-

orientados, experimentamos um pouco

da forma em nossos corpos, reproduzimos um vídeo e Lacoste lapidou cada momento da fala até que realizássemos a proposta. No segundo dia, nós esco-

lhemos os textos que seriam agora parte da enciclopédia através da “encenação”.

A

ssim, sem surpresa, no dia da apre-

sentação, os colegas todos tinham

Um tipo de cena que pertence à inven-

domínio total do repertório e cada sila-

dade. A poética de Lacoste é a doutrina

se fez rastro para entendermos a dinâ-

ção e ao encontro da poesia com a realido entendimento e da curiosidade. Existe a profunda necessidade de explicar algo,

de tonar claro o que é ainda confusão. Seu teatro, como pude perceber nestes

dias e também por meio da distância que

tomei do processo, é a definição de que

o teatro pertence a todos e a todos ele deve incluir. Cada fonema funciona como uma identidade. Cada respiração preserva alguém. O corpo é a transcrição da

memoria. Na conclusão dos encontros, a voz revelou a textura do método. Realizar

as propostas foi mais do que transformar a ideia em ação, foi revelar de fato como

se faz oportuno o teatro proposto por La-

coste. A proposta, por estar escorada na ideia de uma enciclopédia, precisa acontecer com muita organização e foi isto o que se viu no momento final. A cena foi a contenção do processo.

A

té então, eu havia encontrado com

os participantes no dia da sugestão

e no dia da escolha dos materiais abor-

ba ganhou vida e atmosfera. Cada tom mica de Suíte no. 2. É curioso, notando o acontecido, pensar que o palco reverte

tudo em potência, quando as conven-

ções são criadas e, após criadas, são respeitadas como leis do palco. Este é

um teatro performativo que precisa do

teatro... É um teatro que precisa da per-

formance. Uma linguagem híbrida que parte direto ao texto para revelar a cena

contida na linguagem. Falas comuns ga-

nharam tamanho antropológico. A simples enunciação das palavras trouxe até

a sala uma teatralidade rara. Em cena o trabalho não se resumiu ao mimético... O

que está em pauta é a composição não interpretativa de uma forma.

P

ortanto, antes de recriar, o performer

(e não o ator) deve compreender a di-

nâmica específica e construir um paralelo

(não um comentário ou uma interpretação). O teatro de Lacoste é a enunciação do outro. Onde o outro se torna palavra.

O gesto do outro se torna o conteúdo.


A palavra é esvaziada para que o corpo

assuma o sentido. Lacoste propõe uma performance colada ao encontro.

O

workshop terminou deixando em

nós o aprendizado e ainda um pou-

co da curiosidade inicial, pois ainda que

a cena se revele após o processo, o

processo nos diz de onde veio ou como surgiu. A curiosidade é ainda mistério e

todo o ímpeto do diretor talvez não seja

mais que uma homenagem ao humano e ao teatro.

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em breve, mai reflexĂľes, exp e outras sur


ais críticas, perimentações rpresas mais!

) por aqui, segue o baile a n t ro + M I T s p

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mediação 198

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iação a n t ro + M I T s p

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O MAL ESTÁ NAS MEDIAÇÕES por ruy filho

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O

encontro trazia por tema a Mediação, um dos eixos reflexivos aproximados nesta edição da MITsp, a quinta, que incluiu performances públicas, workshop e conversas. Antes, porém, de me ater ao princípio de mediar algo ou alguém, volto à senhora que, após muitos já terem exposto suas perguntas e proble-

matizações aos debatedores convidados, parece ter incomodado inesperadamente algumas outras pessoas. Tudo bem, sua fala ao microfone foi longa e personalista, todavia nada diferente de outros que se estendem, quando surgidas as oportunidades, apresentando mais seus currículos e trajetórias do que questões. Com uma diferença fundamental: enquanto os profissionais buscam, muitas vezes, incluírem-se e aos seus projetos, aproveitando para divulgação e valorização disfarçadas – não é raro depois de falarem saírem de encontros como esse, uma vez dado o recado -, a senhora esperou quieta, atenta, falou de si na tentativa de instituir uma apresentação necessária para que entendêssemos não tratar-se de outra coisa: apenas uma apaixonada espectadora com décadas de plateia: muito mais de poltronas do que a maioria, ali, de vida. De onde eu estava, a linha reta propunha um campo de visão interessante: na minha paisagem cabiam ela, ouvintes quais ela não tinha acesso aos rostos, outros que sim e mais ao fundo algumas pessoas em pé: dentre interessados, curiosos, funcionários do espaço e integrantes da equipe da Mostra. São exatamente por alguns desta última que minha atenção foi roubada, cuja consequência é, em parte, a revisão de meu pensamento sobre mediação e esse texto. A moça, que talvez tenha idade para ser neta da senhora, participante dentre aqueles que desejaram e criaram o encontrou trazendo os temas da mediação e isolamento como fundamentais à arte, artistas, espectadores, cultura, sociedade estava, despreocupadamente de ser notada, incomodada com a fala-depoimento. Não estava antes, quando eram artistas em suas alongadas intervenções, inclusive as sem interrogações; também não, quando o dito não

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tinha a menor coerência com o tema. Parecia fazer parte do processo aceitar a inclusão de devaneios e inquietudes quaisquer. E faz mesmo. Não à senhora. Apontou-lhe, cochichou, gesticulou tentando achar uma maneira de interromper a fala que tinha décadas sobre si mesma para apresentar. Curiosamente, os convidados ouviam, sorriam e alguns lhe agradeceram ao final. Ainda assim, era explícito aos que estavam na linha dessa estrutura visual (e não apenas eu me ative ao momento, pois comentavam) o quão incômoda era aquela senhora por não ser alguém que se queria, não ser convidada, não ser famosa, não ser relevante àquela que lhe julgava. Mal sabe a jovem, que naquele momento deveria agir como anfitriã, ser a tal senhora um baluarte da cena paulista, que frequenta mais de uma centena de espetáculos ao ano: dos comerciais aos mais experimentais; palestras, encontros, debates; nem imagina que aquela senhora esteve na apresentação de Esperando Godot quando Cacilda morreu e em O Rei da Vela nos anos 60; nem imagina ser ela fã de Angélica Liddell e musicais americanos, de ter gostado do Hamlet dos Irmãos Guimarães e acompanhar apaixonadamente tudo que é feito pelo Dos à Deux, ou de ter desistido de alguns artistas por os achar agora óbvios demais. Perdi a senhora, como disse, por muito tempo, enquanto assistia ao exemplo mais claro de que não importava à jovem promover nenhuma mediação com ela, enquanto a cena me resumia de maneira ímpar o por quê o isolamento da arte não é apenas teoria. Pena a câmera estar na senhora, estivesse no meu lugar seria interessante que outros pudessem assistir ao conjunto.

S

aí do encontro consumido por diversas inquietações, sendo o acontecimento descrito um dos mais próprios. Por que, então, discutir a mediação

se não há disposição real ao outro?: fetiche aos temas do momento? Evidentemente o incômodo da anfitriã e poucos outros gritava pela anulação da senhora. Era fato, a teoria é sempre mais vendável do que a realidade. Se artistas e não artistas, se críticos e não profissionais se incomodaram era sobretudo por não lhes interessar explodir as bolhas narcísicas intelectuais e intelectualóides; por acreditarem caber o debate apenas a um lado do processo, evidentemente mais preparado e por isso detentor da capacidade e disposição de ir ao outro: não para ouvi-lo, mas para conduzi-lo, ensiná-lo, explicar-lhe, direcioná-lo, prepará-lo. Que seres superiores são esses com tamanha capacidade mais do que os demais? Seria isso então mediar?: uma teoria não necessária de prática?

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uase tudo, de uma maneira ou outra, passa por Aristóteles. Eu sei, ele é mesmo irritante. E sobre a ideia de Mediação não poderia ser diferente.

Para o filósofo da Antiguidade Grega, a Mediação surge com a necessidade de se estabelecer um terceiro capaz de refletir, ponderar e afirmar o correto diante dos conflitos e diferenças. É sua função, então, construir preceitos e aplicar mecanismos à constituição de normas e estratégias pelas quais as partes, uma vezes tratadas iguais, obterão o que lhes é justo ao limite das perdas mínimas. Sendo assim, a Mediação teria por fundamento a perspectiva de intervir como atributo de beneficiar os demais a partir de um julgamento. Obviamente, o formulado em seus escritos sobre Ética modificaram-se durante os muitos séculos chegando à perspectiva americana, na qual a Mediação também se estabelece ao outro como possibilidade de comunicação revelada a partir das informações descobertas e ofertadas. Na nova qualificação moderna mais próxima, revendo também parte disso, já incluindo a mediação artística e cultural, deixa de ser a Mediação instrutiva para existir ao outro como provocação.

S

e ambos os entendimentos parecem distantes pelo tempo, no entanto não o são, quando observados pela prática da ação de mediar. Não por

acaso, Mediar possui entre seus significados estar no meio de extremos e ser e tornar mediano, ou melhor, provocar aos extremos a aproximação equidistante de modo a lhes conferir igual presença e valor. Há nisso o mesmo teor de julgo aristotélico que quer o mediano como não extremidade e favorecimento unilateral, também da mediação cultural no que confere o entendimento do outro a partir de sua equalização do conhecimento. Sendo assim, por décadas criou-se a perspectiva de Mediar ser o existir entre a arte e receptor, e, através da presença do terceiro alguém, construir as provocações efetivas sobre como conduzir à experienciação da arte ou expressão cultural em questão. O valor desse movimento de reconhecimento ou descoberta de algo implica em duas premissas inevitáveis para que seja razoável: a distância da arte e do receptor, em extremos opostos, e a incapacidade do outro em compreender a arte a partir de seu vocabulário e repertório, pressupondo haver graduações ao convívio. Dois equívocos que têm instituído a necessidade da mediação como primeiro gesto e aprimoramento ao espectador e observador. Para tanto ser realizável é necessário estabelecer um, dois, dez, cinquenta en-

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tendimentos específicos sobre o que seja e ao que existe em uma específica obra; ou seja, interpretá-la e traduzi-la. E, por melhor que seja esse movimento, sempre será a partir dos repertórios cultural e social daquele que se propôs a interpretar e traduzir. Não há saídas. Mesmo as respostas mais plurais, ainda assim significam na prática escolher meios e mecanismos de apresentação e vivenciação da arte, no intuito de aproximar, mediar, tornar médio aquilo que compreende ser a informação adequada. Um vez determinados os pontos medianos, ainda que elásticos, exigem a oferta por meio de princípios, técnicas, estruturas e organizações simbólicas e experienciais inevitavelmente reducionistas que acabarão por, minimamente, padronizar as recepções, chegando até ao risco de anular experiências individuais inomináveis e supostamente equivocadas. O erro, aqui, seja na interpretação de uma obra seja na relação dessa como arte, só se justifica sob o argumento de haver uma faixa correta de como percebê-la, portanto. Mediar, por fim, sobretudo a arte, é, pois, interromper a multidimensionalidade de uma comunicação que deveria ser inesgotável. Em outras palavras, a mera existência de alguém ou algo entre o sujeito e a arte impõe a condição ao sujeito de absorvê-la menor e de com ela se encontrar de modo original.

A

singularidade do olhar agora está contaminado inconscientemente pelas crenças daquele que media a experiência, impedindo o surgimentos

de surpreendentes possibilidades criativas, ao tempo em que a Mediação reivindica conhecimentos consagrados em sua exclusiva realidade. Compreendendo, ainda, toda e qualquer experiência estética como construção de discursos políticos ao sujeito: limitar a observação e tradução da realidade, pelos ângulos cristalizados por crenças inerentes de cada mediador, determinará ao produto artístico a incapacidade em ir além da obviedade dos discursos políticos comuns. É preciso se atentar, as Mediações precisarem se ater ao outro por meio da manifestação de vocabulários concretos para serem efetivas. Como resolver, por conseguinte, vocabulários empregados não passíveis de compreensão direta?: uma língua desconhecida, um gesto intraduzível, uma emoção particular a determinado contexto cultural, uma condição cognitiva específica. Uma vez não definido o outro como igual (ainda que inferior) - alguém que necessita de auxílio para ser o espelho de quem o idealiza -, considerando outras especificidades na edificação de

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sua persona cultural e social e o quanto essas reinventam-no como sujeito ininterruptamente, quais os interesses de imaginar razoável a existência de vocabulários concretos comuns, que não os simplistas? Não estruturar ou apresentar uma posição específica ou especial aos conceitos, palavras filosóficas, termos técnicos, elementos, leituras significará trazer ao outro a informação sem traduzi-la, exposta apenas nela em seu próprio contexto e observação crítica, fornecendo ao indivíduo seu espaço pessoal de interpretação, uma vez que a validação de sua identidade e inclusão comunitária darão ao material poético o valor crítico de suas funções diante da realidade: a liberdade em valores críticos de observação do todo e de si.

M

ediar o encontro ou experienciação da arte deve ser, por esse ângulo, construir espaços de reconhecimento do objeto artístico e não o estar

entre as partes; é explicar não serem partes, na verdade, e sim amplitudes de uma mesma realidade que não se diferem em nada à existência ao inteiro. Arte não é aquilo e o outro alguém: é a perspectiva do outro reinventada pela convivência, quando então se descobre o outro ser igualmente a extensão de si. Fora disso, sobra a Mediação como exercício de possibilidade impositiva, do observador como incapaz, da arte como superioridade e do artista como inigualável. E o mundo se divide novamente. E arte se torna estupidamente a afirmação de como os meros comuns precisam ser alertados sobre aquilo que são incapazes de perceber, inclusive as poéticas.

V

olto-me àquela senhora do início. É difícil esquecê-la. O quanto a ela foi silenciosamente requerido que permanecesse em sua pseudo incapaci-

dade? O quanto aqueles que não estavam dispostos a incluí-la e aceitá-la de fato não eram apenas juízes entre falsos extremos, aristocrática e burguesamente construídos desde sempre? E, sinceramente, o quanto ela não era a mais perfeita mediadora ali ao não querer instruir ninguém, apenas provocar desestabilizações às certezas tão dogmatizadas em alguns comentários anteriores?

E

m muitas palavras o passado surgiu como argumento ao como devemos compreender uma verdade. Não foram poucas as tentativas de historici-

zar o processo de percepção tendo por fim o passado; de mediar pontos da história, como se esta fosse imponderavelmente linear e inquestionável. Não por imposições agressivas, mas por sistematizar a maneira de perceber e

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compreender a experiência estética através dos pontos específicos recolhidos na história, que levavam em conta os interesses dos argumentos quais se queriam comprovar. Se tomados outros pontos, outros ângulos, nada ou muito pouco resistirá na argumentação erguida. Então, para que serve mesmo, se não para fortalecer quem escolhera as informações como sendo este o melhor mediador? Ou juiz, disse-nos Aristóteles. E como acabamos em distorções tamanhas, ao ponto de termos juízes às artes e ao público?

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ois alentos fundamentais: Rita Aquino, que se propôs olhar pela história o amanhã - entendendo-o pelo desconhecido que esse exige -, erguen-

do inquietações ao que poderá ser, ainda que desconfiemos - suponho, eu e ela -, nada valer tentar qualificar daqui, do instante, mas é o que nos resta como reinvenção das mediações possíveis. E Maria Lúcia Pupo, ao intervir e apresentar pensadores de agora, como Olivier Neveux, para quem a Mediação serve ao reconhecimento épico, sobretudo: instituição de perspectivas políticas no espectador: nesse sentido tratado especificamente como sujeito. Ainda assim, o intelectual francês lembra-nos preferir a passividade e capacidade de cada sujeito ao invés das tentativas de resigná-lo por sua emancipação, visto não ser homogêneo o teatro contemporâneo, exigindo-lhe conviver com suas manifestações por recursos e interesses distintos e ocasionais. É primordial, segundo explica, recusar a imposição, a coerção de ter a arte por sua edificação crítica, ainda que, por contraposição, necessita-se favorecer experiências singulares heterogêneas rompendo o confinamento sensível ao qual somos mantidos.

É

plausível espelharmos igual inquietação às Mediações quando tratadas como meios, quando medidas, quando tentativas de tornar médias as

distâncias. E, ainda que atribuído ao épico a constituição da política no entendimento do espectador em sua condição de sujeito biopolítico - sobre a qual o desenho mais ordinário se configura pelas fissuras, entraves e sobreposições adquiridas e impostas pelo meio ao qual se está submetido -, outras qualidades do sujeito movimentam-se a partir do processo de dessujeitificação presente nos esfacelamentos da identidade e de seu entendimento de ser algo fixo estável. Substituindo-se o Sujeito ativo por outro em resposta, desloca-se a subjetividade do indivíduo à reinvenção paradoxal de existir simultaneamente desdobramento e contrário. Portanto, querer encontrar ao

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sujeito a melhor medida de mediação à sua constituição é compreender sua composição política como única e não em movimento. Desse modo, a Mediação também acaba por incorrer na problemática de sistematizar o outro por sua leitura prévia, que nada mais é que lhe impor uma realidade no interior de uma realidade recortada.

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or que mediar algo a alguém – essa é a reflexão primordial aqui -, se não pela expectativa de necessitar o outro, ainda que nada por ele tenha

sido pedido? E quem estabelece ser esse ou aquele o melhor mediador, se não a sensação de possuir algo mais que os demais?

E

m um determinado momento, diz-se ser uma curadoria mediação. Há um equívoco óbvio nessa colocação, um tanto problemática na distor-

ção que pode provocar se compreendida generalista. Curar não é mediar obras e artistas, isso seria aproximar produtos e nada além, mas recortar a partir de perspectivas e preceitos determinados contextos, apresentar o recortado e, a partir da lógica pretendida, propor deslocamentos expansivos. Um curador não media a arte, mas o seu desdobramento após experienciada. Muitos são os experimentos curatoriais que expandem a presença do curador como centralidade do processo, permitindo a Curadoria construir-se por dinâmicas abertas, plurais, não objetivadas, não temáticas, tendo por resultante desenhos finais inesperados cujas produções e apresentações exigem também a reinvenção dos próprios processos produtivos. Afirmar ser uma curadoria mediação de obras e artistas, como foi, é não perceber as mudanças das duas últimas décadas e as diversas tentativas já disponíveis. O problema nisso está na condição de submissão que atinge, agora, a comunidade cultural por inteira, menor e incapaz de reconhecer aquilo que definitivamente lhe falta. Afinal, se é preciso lhe apresentar e aproximar desse, disso, daquilo, de alguém, de algo, seja o que for, e apenas o curador tem a condição de lhe dizer o quê e quem responde a essa falta, então a dinâmica cultural faliu em sua qualidade de presidir seus próprios valores ao contemporâneo e precisa ser conduzida ao mundo de volta por essas experiências específicas. É muito curioso que se entenda o curador por essa condição, quando se questiona em paralelo a re-colonização cultural, uma vez que a curadoria, dada por esses argumentos, nada mais seria do que o instrumento de readequar a cultura local a algo maior.

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mesmo pode ser dito sobre a citação de ser a crítica uma mediação. Verdadeiramente, muitas ainda se fazem dessa maneira, e se alicer-

çam, tanto quanto a fala discutida acima, na validação de pontos na história ou nas especificidades técnicas para consolidar qualidades. Sobre a história, os contra-argumentos são os mesmos. Sobre às técnicas, quem determinou que modelos precisam ser rigidamente seguidos? Tanto a Curadoria enquanto complemento mediado, quanto a Crítica em seu papel de tradução mediada ratificam o outro como alguém impossibilitado. É urgente que se pense o oposto a isso. Ao se tratar o outro como apenas despreparado, nem mesmo como igual - já que é impossível sermos iguais senão por termos diferenças -, as relações se tornam dispostas por outros pressupostos nada interessantes ao contemporâneo. Posições essas que nos exigem também certo distanciamento de alguns argumentos de Jacques Rancière, sobre a disposição de emancipação do outro para assim ser capaz de construir conhecimento a partir dele mesmo. Quem o emancipa? Quem é o mediador dele como ele próprio? E quem determina quais os conhecimentos ele não possui ou precisa ter? Evidentemente não falo das questões básicas, estamos discutindo arte. E imaginar que o outro pode por alguém ser emancipado ao entendimento de um espetáculo, por exemplo, em resumo é o mesmo que afirmar a necessidade de uma mediação a um indivíduo estabilizado que será sempre próximo ao que dele espera que seja cada vez que ocupar uma plateia. Nesse argumento estranho, sim, então: o curador é o mediador perfeito à sociedade e cultura qual pertence e o crítico especial aos artistas e leitores. Só que, depois de décadas, parece mesmo que ambos os modelos não fazem qualquer sentido. Mas, por aqui, como sempre, tudo precisa de um pouco mais de tempo para ser questionado, é verdade.

O

que dizer a você que lê esse texto agora, depois de tudo isso? Apenas que não se importe se alguém quiser lhe ajudar a olhar uma obra,

a entender um argumento, a concluir. Permita-lhe, estará fazendo bem ao seu mediador, ao acreditar-lhe estar ele lhe fazendo o bem. É divertido, em um certo sentido. Mas, internamente, siga por seu mundo, erre, divague, reinvente a obra por sua lógica ou falta dê, desrespeite os interesses dos artistas, as explicações (inclusive esta), as conclusões, desafie a obra ser você e não o contrário, e tudo produzirá frutos. Como dito, não existem

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você e a obra, cada um em seu universo e extremidade: há um só em ambas as possibilidades, e qualquer um que se coloque nesse entremeio precisa ser aceito apenas como um intruso bem-intencionado. Além disso, volto-me àquela senhora que em mim permanece: talvez eu tenha compreendido boa parte do que aqui está exposto com a senhora e nem tanto por filósofos e intelectuais, por sua insistência em se manter ao microfone sem se incomodar, por ser a presença da dúvida que se quer exatamente assim, em falas curvas, em perspectivas imprevistas. Isso sim é mediar comigo a qualidade de um mundo em movimento, o nosso mundo, não o meu e o seu: o nosso, onde a arte não se impõe isolada em busca de alguém que a aproxime. Pois somos o Outro do outro, e em cada um cabe tanto o sentido de existir como Outro tanto quanto de Eu. Somos os mesmos, portanto, senhora. E, no fundo, a jovem que se desesperava e não a ouvia, em busca de palavras chiques e argumentos que lhe reproduzissem, também não fazia por mim, e provavelmente não por muitos outros ali. Os dignos da mediação dela eram os escolhidos, os rótulos, as marcas, os nome passíveis de serem apropriados, para deles sugar o que puder. Mediadora mesmo foi a senhora. O resto é sombra e espelho feitas de uma mesma coisa, no intermeio de tudo, tentativa de se reconhecer e existir como especial aos comuns. Melhor deixarmos acreditarem que sim, não importa, enquanto vamos ao teatro sem ninguém interrompendo e se intrometendo em nossas aventuras e transformadores inesperados equívocos.

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Boa tarde a todas e todos! Gostaria de começar agradecendo a Daniele Ávila e a Luciana Romangnolli, curadoras dos Olhares Críticos, pelo convite para participar da programação. Agradeço também a toda equipe da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. As curadoras propuseram três perguntas para esta primeira rodada de falas. Vou me lançar neste exercício não com intuito de oferecer respostas, mas na expectativa de desdobrar outros questionamentos. 1. Onde vocês acham que a cadeia se rompe? Começo cercando o problema das mediações, que diz respeito às relações entre artistas, obras e públicos. Segundo Carmen Morsch, existe um conflito inerente à mediação que diz respeito a quem tem o direito de vivenciar, de exibir, de adquirir ou de falar sobre arte: um conflito quase tão antigo quanto a arte em si mesma1. O problema das mediações é, portanto, tão antigo quanto a própria cadeia a que se refere a primeira pergunta. E esta cadeia, compreendida como sistema, tem por condição a metaestabilidade. Então, precisamos nos deparar com uma questão fundamental: as fissuras são parte constituinte destas relações, as quais não estão descontextualizadas, dizem respeito ao exercício de direitos - e estamos falando de um país racista, patriarcal e homofóbico, no qual os direitos não são, efetivamente, plenos. Podemos acrescentar: trata-se de um problema que diz respeito a todos, sobretudo aos envolvidos na própria cadeia ou sistema da arte: não apenas artistas, mas também curadores, críticos, pesquisadores, professores etc. Em relação aos artistas, a pesquisadora Claire Bishop2 propõe uma visada histórica a partir do recorte da participação, apontando exemplos de trabalhos comprometidos com a imaginação política e reestabelecimento de pac1 MORSCH, Carmen. “Time for culturalmediation [S.l.: s.n.], 2014. Disponível em:<http://kultur-vermittlung.ch/zeit-fuer-vermittlung/v1/?m=0&m2=1〈=e>. Acesso em: 23 fev. 2018. 2 BISHOP, Claire. Artificial hells: participatory art and the politics of spectatorship. London; Nova York: Verso, 2012.

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tos sociais - sobretudo em momentos de notória convulsão sócio-política. Para Bishop, estes trabalhos propõem questões que com frequência orbitam o debate da emancipação ou ativação dos sujeitos, da autoria e da crise da noção de comunidade. Poderíamos adotar, como exercício, este prisma para observar a própria programação da MITsp, e ai encontraríamos uma perspectiva interessante para ler alguns trabalhos, como “Campo Minado” de Lola Arias, “Palmira” de Bertrand Lesca e Nasi Voutsas, “Pontos de Vista” de Ana Luisa Santos e “Você tem um minuto para ouvir a palavra? Maratona de Leituras Públicas”, realizada em parceria com o Festival Panorama. O próprio “La Bête”, do Wagner Schwartz, também pode ser lido nesta perspectiva, o que para mim diz muito sobre o que aconteceu em 2017. Mas daqui a pouco teremos a oportunidade de ouvir o próprio artista a respeito... Então, o que eu quero dizer é que não penso que a cadeia se rompa no contexto acirrado de polarizações políticas, teses conservadoras e agendas reacionárias. Penso que este momento evidencia o problema e emoldura a gravidade das violências físicas e simbólicas que ai se inscrevem. Mas o problema é histórico. E é a partir daqui que de fato começa esta conversa. No meu modo de ver, o mal-estar das mediações diz respeito ao seguinte: Por um lado não nos interessa lidar com a arte da perspectiva de um único sistema interpretativo. Criticamos a mediação que pretende oferecer respostas apaziguadoras diante da pergunta que a arte propõe. Por outro lado, temos que admitir nossa dificuldade de conviver com o dissenso. Nesta tensão, recuamos e “perdemos” espaço.... E aqui é preciso uma ressalva: em um país extremamente desigual, muitos de “nós” nunca sequer ocuparam estes espaços. Então de quem e com quem estamos falando? Penso que, primeiramente, devemos fazer uma autocrítica, sobre o modo como nos envolvemos (ou não) com estas questões, ocupamos (ou não) os

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espaços e estabelecemos (ou não) diálogos, nas apenas entre pares como com outros setores da sociedade. Entre a manipulação reacionária e virulenta da informação e a crítica às propostas de “formação de público” ou “programas educativos” que praticam a transmissão de conhecimento na perspectiva do oferecer um sistema interpretativo das obras pré-estabelecido - achatando a experiência estética e também legitimando outros discursos hegemônicos -, precisamos olhar para o problema da mediação artística e cultural com mais complexidade, alargando a sua compreensão e nos complicando com a questão. 2. Como artistas, críticos, pesquisadores e curadores podem trabalhar juntos para diminuir a distância entre a produção artística e a recepção não especializada? Penso que a resposta esteja contida na própria pergunta: “Como diminuir a distância? Trabalhando juntos”. Porque não se trata apenas de diminuir distâncias, mas de reconfigurar o campo do possível em termos do que pode ser compreendido como um comum. Neste sentido, a mediação não se reduz a uma disciplina ou setor, mas opera como campo expandido. Este “juntos”, e aqui eu me permito relacionar com o “nosotros”, mencionado na masterclass com a Victoria Pérez Royo no dia 06 de março, diz respeito a fazer com, e não para, por ou em nome de. Para mim esta questão, a qual me refiro como prática colaborativa para insistir em um termo recorrente no próprio campo artístico, é o que articula os 03 temas deste seminário: mediação, liberdade e alteridade. E aqui me permito sugerir o desdobramento destes temas em 03 palavras: presença, escuta e diálogo. Ou seja, o que está em jogo é o corpo - são os corpos. A perspectiva de mediação que talvez interesse para nosso debate é justamente aquela que reconhece estas tensões para problematiza-las, questionando as próprias relações de poder, os subtextos inscritos nas formas de relacionar-se com tal cadeia ou sistema. E aqui caberia refletir especificamente sobre o papel das instituições, e sobre a importância de estarmos em uma instituição debatendo estas questões hoje. Esta perspectiva assume o tensionamento como potência para multiplicar

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continuamente as diferenças, contradições e possibilidades de abertura dos discursos artísticos. A mediação compreendida como estímulo a traduções culturais em múltiplas direções, que retroalimenta o campo da arte na produção de heterogeneidades. 3. Que ações de mediação nas artes podem ser efetivas no Brasil contemporâneo? Arrisco uma resposta: nos reconhecendo incompletos e trabalhando juntos, localmente, com diferentes segmentos do sistema da arte e da sociedade. A partir deste princípio, podemos flexionar esta ideia em inúmeras proposições e vivencia-las para então avaliar suas efetividades e também os problemas que necessariamente vão emergir. Repito: é preciso enfrentar nossas próprias contradições. Penso que na programação do Olhares Críticos encontramos ótimos exemplos de mediação. Mas vou compartilhar aqui rapidamente um pouco do que eu tenho vivido a partir do meu lugar de atuação social em Salvador, junto a diversos parceiros e parceiras em projetos artísticos, culturais e educacionais. O espetáculo de dança Looping: Bahia Overdub, cuja direção compartilho com Felipe de Assis e Leonardo França, é um exemplo de como a relação com os públicos adquire centralidade na própria obra, constituindo uma experiência relacional de caráter estético-político. Em relação aos projetos culturais, o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (FIAC), coordenado por Felipe de Assis, tem sido um espaço privilegiado para o desenvolvimento de atividades de mediação cultural há 08 anos. No festival temos tido a oportunidade de reinventar, a cada edição, nosso modo de trabalho. Há quatro anos realizamos o Seminário de Curadoria e Mediação em Artes Cênicas no âmbito do festival, com intuito de compartilhar experiências nacionais e internacionais, compreendendo a mediação como questão fundamental na prática curatorial. A noção do festival como espaço formativo não se estabelece apenas na relação com os públicos, mas também na própria equipe. Por exemplo, vivenciamos a experiência de um grupo gestor/curador, uma espécie de colegiado que durante dois anos reuniu os coordenadores dos diferentes

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setores do FIAC (comunicação, atividades formativas, jurídico, financeiro, produção e coordenação geral) na tomada de decisões administrativas e de curadoria relativas ao evento. A experiência de mediação do FIAC desembocou na criação de um outro projeto, autônomo ao festival, denominado Mediação Cultural: Programa de Formação em Artes Cênicas. Neste projeto trabalhamos por dois anos com aproximadamente 4,5 mil pessoas de escolas públicas, organizações não-governamentais e associações comunitárias da cidade de Salvador e Região Metropolitana através de núcleos agrupados por territórios. Como professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), destaco o projeto de pesquisa Arte no Currículo, convênio entre a UFBA e a Secretaria Municipal de Educação que conta com mais de 400 professores de Artes Plásticas, Dança, Música e Teatro do Ensino Fundamental, sob coordenação da Profa. Dra. Beth Rangel. No campo da extensão, o programa Trânsitos: experiências artísticas como processos de aprendizagem tem mobilizado professores e estudantes da universidade no desenvolvimento de residências artísticas com crianças e jovens em escolas públicas, comunidades de Salvador e municípios do estado da Bahia. Não quero me estender muito, pois o mais importante é abrirmos o debate para que outras vozes sejam escutadas. Vou finalizar minha fala sugerindo justamente que a mediação implica exercícios de escuta ativa e de olhar estrábico, como ensina a escritora argentina Valeria Flores: é preciso “manter os olhos bem abertos, ou melhor, estrábicos, capazes de ver lateralidades, e contendo as tensões necessárias e ignoradas”3 (FLORES, 2013, p. 254).

Obrigada!

3 FLORES, Valeria. Interruqciones: ensayos de poética activista. Neuquén, Argentina: La Mondonga Dark, 2013.

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precisamos falar sobre censura na arte

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acesse

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e se aqui a n t ro + M I T s p

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C

rítica Dentro é um experimento de escrita crítica que ocorre simultâneo e dentro de um espetáculo, incluin-

do na abordagem reflexiva a percepção do espectador em tempo real e descrições de cenas, quando necessárias, como impulso para aprofundar as questões próprias ao teatro e ao contemporâneo. Em A Gente se vê por aqui, os atores - e apenas eles - ouvem a programação da Rede Globo e as reproduzem sem contextualizar e acrescentar falas pessoas. Ruy Filho permaneceu as 24 horas

performance de

ininterruptas do espetáculo na plateia acompanhando-o e escrevendo sobre tudo o que ali se passava dentro e fora do palco. CLIQUE AQUI PARA LER (E VER E SENTIR)

com

nuno ramos danilo grangheia luciana paes

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Pela primeira vez, a MITsp apresenta a produção cênica brasileira a programadores e curadores internacionais, através de uma mostra própria destinada a convidados de diversos países. A ação investiga quais as condições e possibilidades de nossos espetáculos existirem, de modo mais atuante, junto a importantes eventos. Além do aspecto de difusão cultural, a iniciativa abre um campo de debate sobre a eficiência da internacionalização também como atividade econômica. Todavia, muito ainda precisa ser compreendido pelos mais diversos lados envolvidos, por isso, a realização de workshop e seminário, além das apresentações dos espetáculos. A revista acompanha as atividades compondo um panorama reflexivo sobre a proposta, recepções e desdobramentos, reunidas no Encarte Especial a seguir.


inter nacio naliza workshop ção de espe tácu los


Nos anos recentes,

Iva Horvat

, croata residente

na Espanha, passou a se dedicar à divulgação de algumas companhias de teatro europeias. Antes, porém, precisou compreender o funcionamento do mercado e quais as possibilidades de elaborar estratégias às participações. Hoje, ministrando workshops e palestras, Iva convida os interessados a pensar o artista frente ao mercado a partir de uma ótica mais complementar. Em São Paulo, o workshop antecedeu a abertura oficial da MITsp, contemplando um grupo de 30 selecionados, entre participantes e ouvintes. A revista Antro Positivo esteve presente todo o tempo no Itaú Cultural. Acompanhe, aqui, a cobertura completa da atividade. por Ruy Filho


workshop

1

19 de fevereiro

O

fato de estarmos todos ali para com-

um primeiro dilema particular se anuncia

processos e meandros de internacionaliza-

tratégias de ação a curadores, programa-

preendermos mais objetivamente os

ção do teatro diz, por si só, muita coisa so-

bre a condição das artes cênicas no Brasil.

Com pouquíssima estrutura governamental de apoio efetivo que ofereça continuidades

aos projetos e festivais locais - salvos Estados e cidades com editais próprios, todavia com valores cada vezes menores -,

a presença fora do país é completamente inviável. Ao não ser incentivado, os espetáculos não circulam; por não circularem, os

nossos artistas não são conhecidos; por não serem conhecidos, os convites para participações são exceções. Um ou outro

artista brasileiro escapou dessa armadilha e se afirma no mercado internacional dentre os grandes nomes do contemporâ-

neo. Talvez não cheguem eles a uma dúzia. Portanto, encontrar Iva Horvat para esse

mergulho é, antes, conhecer a existência das possibilidades e como por elas transitar, mais do qualquer aprimoramento. Estamos, assim, na primeira fase de uma

nova formação de conhecimento. Durante a manhã, no Itaú Cultural, dezenas de interessados inscritos e ouvintes, entre atrizes,

atores, representantes de companhias e

produtores, em sua maioria jovens, investi-

gam suas dúvidas ao tempo das descober-

tas. Iva é generosa com nossa inabilidade

ou ingenuidade ou falta de experiência, e passo a passo apresenta o que é preciso

compreender nesse interesse pela inter-

nacionalização, fazendo com que muitos se coloquem entusiasmados e surpresos

sobre o quão evidentes e palpáveis são as questões e caminhos. De todo modo,

e esconde nessa estrutura: como criar es-

dores e festivais, quando esses requerem

anos de antecipação, uma vez que, por aqui, até mesmo os projetos erguidos com

apoios de instituições se fazem às pressas e atropelando o calendário? O primeiro aspecto é instituirmos outra dinâmica no fa-

zer teatral, desviciando-nos dos sistemas financiadores e produtivos que, por décadas, regulam a produção, o que exigirá

aprimoramento ao próprio contexto econômico. Há diversas outras qualidades de

interação junto a empresários, instituições e governos desenvolvidas nas abordagens contemporâneas da economia criativa. E, mesmo sendo elas muitas, quase nenhu-

ma é aplicada ou sequer conhecida pelo ambiente teatral, revelando um campo

enorme ainda a ser desbravado por todos. Ou seja, qualquer tentativa de elaborar

uma estratégia para internacionalização de pessoas ou espetáculos precisará, antes, de uma pré-estratégia para realização que

subverta as condições habituais. Sem isso, sem conseguir realizar, tampouco haverá

aos artistas brasileiros o que levar e apresentar fora daqui.


2

20 de fevereiro

R

etornamos. Um dia diferente ao pri-

redes, pelas quais os integrantes se asse-

cinco em cada, Iva nos propõe algo com-

de alteridade produtiva exige diferenças

meiro. Agrupados ao redor de mesas,

plexo: encontrar estratégias aos objetivos

uns dos outros. Se pensar sobre os próprios não é nada simples, aos poucos descobrimos ser mais dinâmico olharmos aos de alguém. Essa perspectiva de provocar

encontros, rapidamente revelou a neces-

sidade de reconhecimento dessa outra realidade e maior capacidade de análise

crítica. Assim, as estratégia surgiram com tamanha naturalidade que as surpresas fo-

ram evidentes. Como não havia percebido isso?, alguns se perguntavam. Ocorre que,

durante as proposições a alguém, inverte-se o espelhamento e o indivíduo percebe a ele mesmo fora das próprias armadilhas.

A partir daí, ideias e tentativas trazem novas qualidades e dimensões aos objetivos

que pareciam tão concretos, mas estavam longe de ser realizáveis. Para além de respostas pragmáticas, o importante está no

acontecido nos trajetos percorridos pelos micro-coletivos: praticar a alteridade, ou seja, olhar e reconhecer o outro e agir a

ele. Ao reconhecer o outro, naquilo que lhe interessa e não a quem o olha, exercita-

-se, por fim, o diálogo como dispositivo de cumplicidade e convívio. A alteridade,

portanto, surgida inicialmente de maneira induzida, confirma-se pelo desejo de per-

manência em forma de elo construtivo, seja profissional, seja emocional. O que

poderia, então, ser a construção de uma rede valida-se como uma complexa teia, superando as similaridades necessárias às

melham mais do que distinguem; uma teia

para a constituição de novas dinâmicas produtivas. Todavia fica uma inquietação:

o quanto os objetivos e projetos artísti-

cos de fato revelam em suas propostas alteridades ainda mais profundas, quan-

do oferecidos à sociedade, ao outro, aos mercados? O convívio alertou também para o risco das propostas (sem qualquer intenção menor ou pejorativa), muitas ve-

zes permanecerem aprisionadas aos desejos particulares e não ao outro, ainda que seja necessário atentar não significar com

isso que deveriam ter uma função servil e didática. Para quê nossos objetivos e não

por que, perguntou Iva ao final. Talvez essa seja a descoberta de hoje. A de que devemos e podemos ir além de nós mesmos para construir pelo outro os argumentos

daquilo que fazemos primeiro por nossos

interesses. Descoberto como, algo nada simples de alcançar sozinho, os objetivos,

projetos, artes e artistas serão inquestionavelmente fundamentais. Há nisso uma revolução possível.


workshop

3

21 de fevereiro

E

ntramos no terceiro momento. Iva nos

e conflitantes. A dificuldade evidenciada

coletiva de estratégias, devemos apresen-

dilema: a quem se destina a proposta? A

convida a irmos além da construção

tar os projetos fictícios ou não a todos. Por

mais preparado que se imagine estar, são 3 minutos de fala, e só. Isso assusta. Como

falar tanto em tão pouco tempo? Surgem

dificuldades: sermos diretos, claros, não excessivos, não esquecermos de apresentar também o óbvio - pois ele assim o é apenas

para quem idealizou a proposta; aos outros,

tudo é mistério e possibilidade. Se em de-

masia, tornam-se incompreensíveis os ob-

jetivos, inviáveis os diálogos. Mas esses são aspectos técnicos que podem e precisam

ser treinados sem preconceitos, compreendendo sobretudo como equalizar as muitas faces de quem fala. No Brasil, a Cultura é

limitada ao seu entendimento imediatista

de entretenimento, impondo ao indivíduo

uma existência simultânea como produtor,

distribuidor e artista. Aqui se revela o primeiro dilema concreto: o quanto o artista brasileiro precisa olhar à produção também

como desdobramento criativo, expansão do próprio ato artístico. Dessa maneira, um

espetáculo, performance, ação, curadoria

ou festival é, ao mesmo tempo, a criação do objeto tanto quanto a invenção de seus

mecanismos produtivos. Em uma estrutura

ideal, cada função possuirá sua dimensão

e autoria no percurso. Não é esse o nosso caso, entretanto. Muitas vezes, a dificuldade em se ater a ambos os aspectos como

sendo o mesmo gesto de criação, que se

desdobra em variantes paralelas ao tempo em que se contaminam e determinam

mutuamente. Não sendo assim, ficaremos limitados a responder a dinâmicas distintas

nessas primeiras falas, trouxe o segundo pergunta inicial feita por Iva, antecedendo

os minutos de cada um dos participantes, orienta a audiência sobre quem e como de-

vemos nos comportar frente às apresenta-

ções. No entanto, a generalização inevitável

revela mais sobre a confusão entre as múl-

tiplas funções daquele que explana, do que apenas desconhecimento da audiência em

si. Ao reconhecer como se quer existir ao outro torna-se mais fácil identificar a cate-

goria de interlocução. E, inesperadamente, falar por três minutos ininterruptos pode se revelar um momento longo demais. A possi-

bilidade de continuarmos os contatos com

os ouvintes, sejam programadores, produtores, instituições, festivais, patrocinadores surgirá pelo interesse construído na intersecção entre ideia, viabilidade, originalidade e o indivíduo. A proposta, ao fim, revela

mais do que apenas sua viabilidade estrutural, mas a fusão entre indivíduo e ideia por meio de uma visão de mundo especí-

fica e singular sobre a arte, o fazer artísti-

co, o pensamento crítico e a reinvenção do

mercado entendendo-o evolutivo. Ideias, portanto, podem se tornar possibilidades e

negócios, e nem por isso deixarem de ser

profundamente pessoais aos desejos mais

sinceros dos artistas. Basta, porém, que saibamos ser nós mesmos, ainda que nos

mostrando ao outro por ângulos diferentes,

a partir de cada oportunidade. Afinal, a audiência encontrará pessoas e não apenas

números e calendários. E é por pessoas que nos apaixonamos.


4

22 de fevereiro

A

os poucos, torna-se evidente: falas mais

das estratégias, as escolhas dessa mesma es-

liações mais precisas. Bastaram alguns dias

daquele que a propõe. Em outras palavras,

objetivas, escolhas mais atentas, ava-

exercitando e as consequências vieram sem que Iva precisasse ser dogmática em suas

proposições. É pela qualidade em exercitar também a condução do próprio exercício que

tem alcançado o melhor de cada um, respeitando as particularidades, humores, instantes e inseguranças. O quarto dia, por sua vez, foi

mais do que exercícios, destinou-se a pensar-

mos sobre valores. Qualquer um que já precificou o próprio trabalho enfrentou os dilemas

de como defini-los. Se muito, pode sugerir

ao outro certa arrogância negativa ou oportunismo; se pouco, despreparo e desconhecimento do mercado. Mas quanto vale o ato criativo? Quanto valem ideias e riscos? A subjetividade inerente a esses cálculos, encontra

mais concretude a partir dos custos práticos - organização, desenvolvimento, manutenção do espetáculo, gastos técnicos, humanos,

estruturais, impostos. Números, dessa vez, comparáveis e reconhecíeis. É na articulação

entre o subjetivo e objetivo que se desenha a estrutura orçamentária final, que por final nunca plenamente será, exigindo maleabilidade diante aos interesses e investimentos à vida futura do projeto. Nada tão diferente, portan-

to, daquilo já realizado instintivamente. A im-

portância está principalmente na observação sobre como estabelecer sentimentos aos valores. Por que cobrar 20 se é certo que será re-

alizado plenamente com 10?, questiona Iva. O que parece uma oportunidade perdida, expõe

a complexidade da questão. Enquanto o orçamento revela a um programador, produtor e

instituição os custos condizentes à realização

tratégia traduzem ao outro a intencionalidade um orçamento revela mais sobre o artista ou

companhia do que imaginam. Não se trata apenas de números, e sim dos respeitos que se requer e oferece ao outro. Nunca é apenas

e especificamente sobre dinheiro, mas principalmente sobre ética. Algo difícil de levar em

conta, quando os recursos e possibilidades

são escassos e as possibilidades raras, como no Brasil, é verdade. Porém, subverter essa

estrutura de funcionamento exige mais do que a atualização dos mecanismos financiadores

e de apoio. É necessário instituir outra lógica ética ao gesto de criação do artista, pela qual

seus projetos são apresentados como respostas, inquietações incontroláveis frente à realidade tal como nos está dada. Cria-se, então,

como tentativa de reinventar a experiência humana e não apenas pela casual oportunidade

de um ganho mais. Não é o espetáculo, o im-

portante. Ou não deveria sê-lo. É radicalmente o artista, aquele cuja inquietação é potente o

suficiente para revelar aos demais estar neles igual sentimento de estranhamento e inquietude, ainda que não tenham percebido. A singularidade de um artista reflete sua resposta

como condição ética com a arte, mercado e

a sociedade, essa sim possui valores indiscutíveis. De outra maneira, são apenas produtos

correndo o risco de existirem na dinâmica

do mercado cultural como que expostos em prateleiras de supermercados, em busca de

consumidores circunstanciais. Certamente

Andy Warhol diria que estou completamente

equivocado. Só que os tempos são outros, e ele não tem como saber disso.


workshop

5

23 de fevereiro

P

ersiste sempre um sentimento de

ou seja, reconhecermo-nos estrangeiros,

último dia com Iva, poderia ser exata-

qualidades de mundos novos possíveis

perda nas despedidas. Hoje, nosso

mente assim, igual a tantos outros, mas foi o oposto. Ganhamos. Descobrimos

um acúmulo inesperado de informações,

possibilidades, dispositivos, estratégias,

técnicas..., não importa como queiramos chamar. O fato é Iva ter provocado uma radical vivência sobre como observarmos o

mercado, e pareceu evidente terminarmos

preenchidos com ansiedade e entusiasmo ao futuro em iguais medidas. Ganhamos mais: também a dimensão de reconhe-

cer o outro e de se reconhecer nas mesmas dificuldades, sonhos, expectativas

e ilusões. Ao final do encontro, o grupo reunido para última imagem revelou-se a

quando reconhecidos os outros em suas de serem alcançados. Por isso, a foto não é um registro, um final, ela marca o início.

Nosso primeiro gesto de transformar as

intencionalidades individuais em internacionalidades plurais, nesses 30 mundos recém descobertos. Somos agora um

cosmo em expansão e dependerá apenas de nós oferecermos outra cosmogonia ao

fazer artístico e mercado cultural. No últi-

mo dia, cercados por cadeiras e café, ao lado da janela pela qual a Avenida Paulista

insistia em recordar a vida, as conversas aconteceram com vontade de permanência, olhos se olharam por muito tempo.

No ar, entre silêncios, falas, esperas e sor-

primeira página de um álbum inesperado,

risos, o convite cúmplice para errarmos

pela MITsp, e que tanto nos faltava. Bom,

dos. Como erguer trajetórias efetivas às

nesse importante movimento provocado agora sabemos melhor isso. Não apenas sobre compreendermos os processos de internacionalização de obras, artistas, ideias, projetos. Ganhamos consciência

sobre nossos desejos. Assim, a internacionalização tornou-se intencionalização. Eu sei, o termo não existe; mas sua tra-

dução talvez seja mesmo a ação de dar concretude às intenções, essa urgência

de nos colocarmos em estado criativo.

Por isso, é especial encontrarmos nesse movimento a potência do sentido de errar: como tentativas de criações, como per-

correr caminhos. Internacionalizar-se, em

resumo, não significa somente sair rumo ao longe, é também o processo em direção àquele apartado de nós por essa con-

temporaneidade fragmentária e narcísica,

lado-a-lado, e em ambos os seus senti-

errâncias em direção ao mar ou a alguém, é o que precisaremos entender e decidir.

Seja por qual estratégia for, um aspecto já se provoca fundamental: atendermos aos nossos desejos pela construção de afetos. Iva veio nos explicar e traduzir, a

partir de suas experiências, as práxis so-

bre como nos movermos pelo mercado internacional. Perdeu o controle. Acabou por nos conduzir a uma experiência única,

pela qual pertencimento e participatividade se fundiram em um só argumento. Às vezes, cinco dias bastam para mudar até

mesmo os sentidos mais invisíveis. Bom, voo de volta, Iva. Seguiremos por aqui

construindo possibilidades de afeto e estratégias às errâncias de seus efeitos. Mandaremos notícias em breve.


tem que existir algo de imperfeito para atingir a perfeição”



antro positivo visita

iva horvat

Iva, durante conversa com a Antro Positivo, na Casa das Rosas. Foto de PatrĂ­cia Cividanes.


visitando iva horvat

A

lmoços são bons estímulos aos encontros. Compartilhar uma mesa ao ar livre, enquanto se conhece e revela a alguém, possibilita mais do que apenas as trocas entre perguntas e respostas no rígido jogo das entrevistas corretas. Dividir sabores é essencial para a con-

vivência superar as regras, por isso, logo no início, apresentadas Iva e Patrícia, explico-lhe: não vamos falar sobre algo, mas sobre qualquer coisa. E assim foi, nessas três horas juntos. Por ter acompanhado os cinco dias de seu workshop, agora é a vez de olhar mais à pessoa. Duas massas, uma salada, águas com gás. O vento empurra cabelos, páginas do bloco de anotação e alfaces, mas nenhum de nós quer deixa-lo. Antes o vento do que o vazio. E, como se as palavras voassem, diante da leveza com que surgem, Iva permite que o encontro aconteça com naturalidade.

M

inhas impressões sobre as manhãs anteriores tenta dar conta sobre o quanto ainda estamos distantes de com-

preendermos o mercado e o existir nele como razoável. Para Iva, o importante está em perceber como se colocar e se modificar junto aos mercados. Esse não é um movimento tão simples, quando se instituiu o mercado como monstro maior em ataque constante sobre a cultura. Exageros à parte, a perspectiva manipulada por interesses ideológicos que só se aproximam dos artistas para validar a eles próprios, esquece-se de haver em qualquer ambiência produtiva a instauração de valores e sistemas econômicos não reducionistas, frente aos quais o monetário é apenas um de seus dispositivos. É inevitável que o artista se encontre fragilizado pelo desconhecimento das muitas faces dessa estrutura, então. Todavia, é na perspicácia em percorrê-la com suavidade que poderá abrir brechas e reconfigurar as am-


por ruy filho

“Dá medo solucionar a vida”

biências ao que de melhor lhe for conveniente. A suavidade não significa insegurança, e encontrar os lugares [de participatividade] é demasiadamente humano, explica Iva.

A

experiência de presenciar o carnaval em São Paulo, tendo a oportunidade de subir no trio-elétrico de Daniela Mercury e

assistir a Avenida da Consolação tomada por milhões de foliões, trouxe-lhes algumas sensações próximas a vivida em outros carnavais, como em Valência, aonde se mantém a prática de bonecos gigantes e fantasias. É inquietante imaginar essa experiência, uma vez que não a acessamos como novidade. De todo modo, se não pela maneira de carnavalizar-se, a apoteose - permissão em superar o comum e extrapolar a presença pela festividade de si mesmo, algo próprio aos heróis antigos -, explicita mais nossa busca por modificar os corpos e compreender a identidade a partir de outras qualidades. É também contra o corpo mercantilizado que o carnaval se propõe agir, ainda que os sistemas rapidamente consigam integrar as fugas e capitaliza-las. Mas, ainda assim, é a presença do corpo como ação simbólica coletiva nossa maneira de reagir em festa. É curioso, portanto, que tenha vivido nosso carnaval e tenha reconhecido nele algo comum sobretudo por suas diferenças. Para Iva, que viaja a muitos lugares e culturas diferentes, a importância está em se abrir à observação, ampliar as pos-


visitando iva horvat

“Não somos mais do que as coisas pequenas”

sibilidades de análises. As cidades necessitam ser distinguidas, os lugares diferenciados pois se movem como ambientes naturais, resume. Todavia, cabe aos artistas e produtores moverem-se também constantemente. Retornando várias vezes a um mesmo lugar, reconhece-lhe melhor e, só então, mapeando essas empatias e estruturas é que se construirá os meios de percepção também sobre a própria casa. Comparo cidades como pessoas, ela diz. Idade, gênero, classe, estilo, época... Olho ao entorno das Casas das Rosas, onde estamos, e São Paulo se desenha como um homem elegante, apressado, insistindo para se manter alinhado, de terno e sapatos novos. Novos e baratos, digo. E rimos, antes de nos desviarmos aos casamentos, filhos, cachorros, viagens, a vida.

O

fundo de tela de seu computador traz a imagem da sombra de alguém, provavelmente um andarilho. Ao seu lado,

um cão o segue ou espera, sem coleira, sem ordem, obediente ou dependente, por costume ou por não ter percebido a condição. Essa silenciosa convivência traduz uma volta à essência de ambos, ainda que implique certa ingenuidade. Esses homem e cão, que talvez nem mesmo estejam juntos ou se conheçam, resume-lhe as sensações que teve da América Latina. A pessoa que de certa forma lhe surge está nessa imagem. Tive receio de perguntar-lhe se seríamos humano ou animal, ainda que a resposta me pareça óbvia e constrangedora demais. Talvez o incompreensível entre os dois... Como poderão, então, artistas


por ruy filho

e espetáculos atuarem juntos aos mercados se ainda os perseguimos como sombras? Para Iva, ter consciência de seu próprio trabalho e para quê o está fazendo é o argumento mais efetivo. E conclui: nem todas as coisas são feitas para ser mostradas. Eis aí uma questão vital: internacionalizar-se exatamente por que?

O

dilema não é apenas dos criadores, é também dos programadores. Não se trata de proteger o público, este é inteligente,

afirma. Trata-se de ampliar espaço aos indivíduos e não apenas aos argumentos. Os festivais cada vez mais percebem estar na convivência a qualidade de instituir experiências ao público, e passaram a investir mais objetivamente em residências. Para ela, no entando, os curadores e programadores tendem a ser mais conservadores, algo que só será modificado quando as experiências de cada um passarem a ser negadas, visto estarem condicionadas às construções de determinados resultados. É preciso aprender a ser novamente inocente e curioso, após ver inevitavelmente perdidas essas qualidades diante do amadurecimento. Programar não pode mais ser compreendido como reunião de produtos, espetáculos, ações sob um determinado argumento. É preciso que os festivais e instituições percebam a oportunidade que possuem à criação de ambientes sensíveis. A insistência de grandes festivais, mostras e casas pelos programas perfeitos revela o quanto o pensamento deixou de existir como fisicalidade, como gesto; ultrapassar o racional é provocar que algo surja: se está muito focado em resultados, vai perder as belezas ao lado, conclui.

O

último gole de café é dado. Deixo a mesa explicando-lhe onde estamos, quem fora Haroldo de Campos, quem eram

os barões do café paulista, a própria Avenida. Todavia, meus pensamentos giram ao encontro de muitas de suas palavras, ditas entre sorrisos e conversas cotidianas por alguém que vivencia o mundo como única plataforma à vida. E viver, esse estado fluido entre descobertas e abandonos, parece mais lúcido e simples através de suas imagens. E também mais instigante e divertido. Definitivamente um almoço é pouco, um início. Despedimo-nos. E volto pra casa perguntado quantos café existem por aí para nos encontrarmos, e que ainda preciso lhe preparar um bom gole feito em coador de pano.


Lições de alteridade ou sobre a internacio nalização de processos criativos Por Daniele Sampaio


A

o longo dos últimos anos, a MITsp tem investido de forma cada vez mais ousada na realização de intercâmbios criativos entre artistas, produtores e pensadores interessados no diálogo e na partilha de saberes. Atenta aos retrocessos históricos que o país assiste e que, inevitavelmente atinge milhares de agentes culturais

Brasil afora, as atividades que integram o eixo de “Ações Pedagógicas” contemplam gargalos sensíveis de nossa produção e gestão cultural contemporâneas. Assim, encontros com outros fazedores de cultura podem detonar verdadeiras revoluções nos nossos modos de pensar e fazer arte. Com essa proposição, a 5a edição da MITsp promoveu 17 ações formativas, entre workshops, residências, ateliês e rodas de conversa. Dentro da programação das “Ações Pedagógicas”, curada por Maria Fernanda Vomero, tive o prazer de participar do workshop “Internacionalização de Espetáculos”, realizado entre 19 e 23 de fevereiro no Itaú Cultural, e ministrado pela artista e produtora croata radicada na Espanha, Iva Horvat. Durante a fase de inscrição para o workshop, o qual envolveu processo de seleção, foram anunciadas 20 vagas iniciais. Mas diante do expressivo e sintomático número de inscrições, a organização do festival decidiu por ampliar o número de participantes, abrindo oito vagas para ouvintes entre os inscritos-não selecionados, mas cujos materiais foram bem avaliados. Éramos, portanto, 29 participantes: 20 selecionados, 8 ouvintes e 1 crítico. Logo no primeiro dia, iniciado pontualmente às 10h da manhã, de cara, chamou-me a atenção o perfil do grupo. Dos 29 participantes, apenas 3 eram produtores. A grande maioria da turma era formada por artistas – diretores, dramaturgas e dramaturgos, atrizes e atores, performers, uma dançarina e um dançarino -, além de um curador de festival e um professor universitário que também atua como diretor. Um time bem interessante e heterogêneo, composto por jovens e experientes jogadores. O performer


que atua há poucos anos na área e a produtora experiente que reúne 21 anos junto a um dos mais importantes grupos teatrais do Brasil, ali, juntos, compactuando dos mesmos desafios frente a um desejo em comum: o de ultrapassar as fronteiras - não só geográficas, sabemos - rumo ao exterior. Não estamos bem. Não estamos nada bem. Se o encontro inter-geracional me parece extremamente enriquecedor em processos de partilha de saberes – e de fato o foi nesta experiência - me espanta perceber que estamos todos, principiantes e veteranos, no mesmo estágio de orfandade. Não há políticas culturais de internacionalização da produção cultural brasileira. Não há políticas culturais de circulação nacional. Não há políticas culturais de qualquer espécie. O Estado brasileiro está de costas para a cultura. E isso não significa, como querem faze-lo parecer, que está de costas apenas para os artistas. Quando o Estado brasileiro assume tal postura, desmontando os significativos avanços que tivemos entre 2004 e 2014, significa que, mais uma vez, cultura é tratada como um “bom negócio”. E se não fosse a própria história a nos comprovar no que isso pode dar, não seria tão desolador. Se, como nos lembra Marilena Chauí, é através da cultura que o homem se humaniza, o que temos diante de nós é a própria barbárie instaurada – mais uma vez. O desmonte das políticas culturais - para falar apenas do seu viés artístico, dado que a dimensão de cultura que nos interessa aqui é mais abrangente - não compromete apenas a produção, mas fatal e maiormente a difusão e o acesso. E aqui falamos de privação dos direitos culturais a uma parcela significativa da sociedade, formada por grupos socioeconomicamente menos assistidos e historicamente alijados de seu direito de fruição de bens artístico-simbólicos. Sim, direitos culturais, considerados como direito fundamental humano, previsto na Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e devidamente normatizados na Constituição Federal Brasileira de 1988. Ao virar as costas para a cultura, o Estado privilegia mais uma vez uma pequena elite em detrimento de milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros. Assim, sem perder de vista nosso comprometimento frente a luta pelas políticas públicas de cultura, não resta a nós, agentes culturais,


outra saída a não ser a busca de soluções por nós mesmos. Para quem vive de arte, isso é quase um decreto de sobrevivência na atualidade. Portanto, é preciso se mexer. Dale! Ao som da voz forte da ministrante, dá-se início ao primeiro dia do workshop de “Internacionalização de Espetáculos”. Sua primeira ação ao dizê-lo foi, literalmente, a de arregaçar as mangas. Simbólico. Diria até profético. Porque foi isso mesmo que Iva Horvat nos propôs ao longo de todo o workshop: que nos mexêssemos. E no sentido polivalente do termo: nos deslocando, nos misturando, nos conhecendo, nos provocando, nos desafiando, nos revendo. Muito longe de destilar sua vasta experiência à frente de projetos artísticos de repercussão mundial, ou de se colocar enquanto representante do chamado primeiro mundo, Iva estava interessada em nós, em saber como fazemos, como criamos, como produzimos e em como, na justaposição de nossas práticas, poderíamos nos melhorar. Foram muitos os deslocamentos que a oficina gerou em nós, em nossas práticas. Não pretendo, com isso, descrever todas as atividades desenvolvidas no curso, sob o risco de empobrecer a experiência. Mas houve um exercício em especial que ultrapassou em muito, ao meu ver, aquilo que objetivamente se propunha. Falo das sessões de “Speed Meetings”, conhecida como rodada de negócios que aproxima compradores e fornecedores de um determinado mercado. Dado que esse é um formato bastante corrente em festivais e feiras culturais mundo afora, Iva nos propôs a simulação dessa situação durante todo o curso e insistidas vezes. Funcionava assim: todos nós teria algum momento de se apresentar diante dos demais para falar sobre o seu projeto de internacionalização. O primeiro movimento obrigatório era informar ao grupo que assistiria a apresentação quem eles iriam representar: se programadores de festivais de teatro da América Latina ou gestores de espaços culturais da Oceania, por exemplo. Então a primeira ação de objetiva era saber a quem se dirigia, porque isso, naturalmente, determinaria o discurso adotado. Somente então a pessoa poderia começar a apresentação. Mas, o quê? Três minutos para falar do projeto? E se apresentar??


E ainda falar das necessidades técnicas??? Sim. E já tá valendo. Que adrenalina...! E que desafio. Se para os produtores a tarefa parecia menos desconfortável – embora também o fosse - para os artistas era notável o quão difícil era se colocar diante de uma plateia de supostos programadores para “vender o seu peixe”, para dizerem “olha como o meu trabalho é bacana”. De certo, não era uma situação das mais agradáveis. Mas a condução delicada e precisa de Iva nos feedbacks foi de tal maneira eficiente e acolhedora, que pudemos assistir a lindas transformações nas posturas – falo das colunas mesmo – das pessoas. No lugar do pedido de licença, íamos assumindo enquanto grupo um lugar de fala seguro, maduro e cada vez mais preciso. Pois, como nos atentava Iva, se realmente queremos entrar nesses mercados, é bom começarmos a entender como funcionam. Mas, espere, alguém aí falou em mercado? Mercado??? Sim, mas calma... por que tanta tensão? “No pasa nada”. Bendito jargão repetido por Iva inúmeras vezes ao longo do encontro. “Que é mercado, afinal?”. Esse bicho de sete cabeças que atormenta a tantos de nós... Diante da nossa incapacidade de alguma resposta realmente objetiva, Iva simplifica: “O mercado é algo que nos serve”. E, mais: “formado por pessoas. Pessoas que atuam em determinadas instituições que nos interessam”. Dito assim, sentíamo-nos quase infantis diante da pontaria e pragmatismo daquela mulher. Pois bem, então há uma mudança considerável de perspectiva, já que então estávamos a falar de pessoas. E que pessoas são essas? Ora, para sabermos, é preciso antes que nos interessemos por elas. Sim, porque muito antes das estratégias de divulgação e circulação que se propunha o curso, Iva nos falava de relações. E isso elevou o workshop a uma experiência única, pois na medida que nos abríamos a sua proposição, entendíamos melhor a nós mesmos. Por que faço o que faço? Por que esse tipo de trabalho e não outro? Como isso me afeta? Por que acredito que pode ser interessante a alguém? A quem pode realmente interessar? Onde está o meu mercado? Como acessá-lo, enfim? Não nos relacionamos com instituições. Nos relacionamos com pessoas. Esse é o caminho. As pessoas. E me parece importante não per-


dermos isso de vista, sob o risco de nos reduzirmos a “vendedores” de “produtos” a meros “compradores”. Certa de que este não era o caso daquele grupo, Iva procurava nos fazer olhar para nós mesmos para entendermos que são os nossos outros. Visto a partir dessa perspectiva, o temeroso “Speed Meeting” não é nada além de um encontro entre profissionais. Profissionais que se precisam - vale lembrar. Um proponente e possíveis contratantes. Mas antes de tudo, pessoas. Se o encontro desdobrará em resultados concretos, não é possível prever. Mas a relação, esta sim, pode estar apenas começando. E, sabendo cultivar, uma relação pode nos render muito, bem mais do que uma ou duas apresentações neste ou naquele festival. Vale a aposta. Bem como o convite para sairmos do imediatismo e da relação utilitária com os programadores – a qual igualmente nos agride quando dirigida a nós. Nessa concepção, entendíamos que, seja no encontro particular com um programador, seja nas sessões de “Speed Meetings”, não estamos ali a pedir nada, mas a propor. E isso muda tudo. A começar, como mencionei, a coluna de quem fala. Mas também a voz, o olhar, a qualidade da relação, o entendimento do próprio fazer, a dimensão de negociação intrínseca à circulação de bens simbólicos. Não acho isso pouco. Iva fazia-nos sentir comandantes de nossas próprias naus . Nos dizia o tempo todo para sermos apenas nós mesmos – ainda que a tarefa, saibamos, não seja fácil. Mas o fato é que não existiam truques ou táticas para uma super performance. Técnicas de como parecer isso ou aquilo. O trabalho era, antes, o de não sair de si e simplesmente falar sobre o próprio trabalho. E, claro, além de objetivar em três minutos a parte essencial daquilo que deve ser encarado como uma primeira conversa. Não há tempo para dizer tudo em três minutos. Portanto, não nos exijamos tal maluquice. Tentemos apenas nos concentrarmos naquilo que é essencial. E sempre levando em conta para quem estamos nos dirigindo. Pois, como problematizava Iva, estamos sempre a falar com representantes de mercados locais - dado que não existe um mercado universal. Mas, como acessar tais mercados? Não há fórmulas. Mas Iva é generosa na partilha de experiência e, à luz do seu percurso pessoal, aposta que um bom começo pode ser o de re-


conhecer as singularidades de nossos projetos. Como reiterava a croata, conhecer bem o próprio projeto é meio caminho andado na identificação dos mercados em que se pode inseri-lo, já que neste exercício podemos nos responder perguntas de fundamentação conceitual, estética, filosófica que, em si, já nos dará pistas preciosas quanto aos circuitos que o trabalho pode se inserir. Depois, claro, é importante conhecer o festival. Diante da impossibilidade de ir pessoalmente, por motivos óbvios, uma pesquisa sobre o seu histórico, edições anteriores, seus propósitos artísticos, pode diminuir consideravelmente a distância entre “nós” e “eles”. E então estamos novamente falando de relação, de interesse pelo outro, pelo o que ele faz, pelo que programa. Um outro caminho possível seria o de reconhecer o percurso empreendido por artistas que temos como referência. Em quais circuitos estão inseridos? Por quais festivais circulam? Se há, de fato, alguma correspondência artística entre as respectivas práticas, então podemos dizer que conseguimos um primeiro recorte de possíveis iniciativas que se interessem pelo trabalho. “Ok, mas não conheço ninguém nestas cidades” - Iva estava sempre a simular as condições mais adversas, como a nos provar que há sempre uma saída. De que maneira, então, começar um contato efetivo com essa primeira relação de festivais? Diante da pergunta, foi inevitável não lembrar de Romulo Avelar, gestor brasileiro de Belo Horizonte. Durante um curso em 2016, o gestor provocava o grupo de alunos advindos de vários estados brasileiros propondo um exercício que constituía basicamente em “olhar para o lado”. Na concepção de Avelar, muito comumente ignoramos o capital – social, cultural, político - dos nossos pares, inclusive dos integrantes de nossas próprias companhias. E nisso reside, ainda segundo o gestor, um vasto potencial de relacionamentos e desdobramentos de ordem prática, muitos dos quais se configuram como impeditivos para o desenvolvimento da produção dessas companhias. Em sintonia com esse pressuposto, Iva nos fazia conscientizar nosso lugar de partida. O que tenho? O que preciso? O que quero? O que posso? E, aos poucos, assumíamos novamente a direção da embarcação,


entrevendo possíveis soluções. Com efeito, ao cabo de alguns exercícios entendíamos que era inevitável que muitos festivais e mostras antes desejados saíssem de nossas miras. Mas dado que os recursos são escassos, essa deve ser uma boa notícia. Porque então arriscamos somente onde temos alguma chance. E isso significa lidar, nas palavras de Iva, ecologicamente com a própria energia. O que, complemento, também significa uma gestão orçamentária mais responsável e previdente. E se estamos falando de planos, estratégias e orçamento, o assunto é planejamento. Essa palavrinha que soa como música aos meus ouvidos, mas que é muito negligenciada pelos meus pares, sob o pretexto de “não haver tempo para planejar”. E então nos lançamos todos a trabalhar loucamente sem sequer saber aonde queremos chegar. E estarmos o tempo todo ocupados, bem sabemos, pode parecer que estamos de fato fazendo alguma coisa relevante. Mas se estivermos realmente comprometidos com nossos propósitos, é preciso respondermos com honestidade onde queremos chegar. Falamos, portanto, de objetivos. Porque circular pela América Latina ou Europa, nos atentava Iva, é desejo. Objetivo, é outra coisa. Então é hora de se mexer novamente... Seis grupos de cinco pessoas divididos em grandes mesas com papel craft cobrindo toda a sua dimensão. Cada integrante do grupo tem vinte minutos para expor, enquanto escreve – necessariamente – quais os seus objetivos de internacionalização enquanto os demais apontam, também escrevendo, possíveis estratégias para viabilização da proposta. E 7, 8 e vai! E foi. E que surpreendente perceber como o exercício de objetivação dos planos – ora vagas ideias - foi tornando-se cada vez mais claro conforme alternava-se o integrante a liderar a apresentação. Se nos primeiros imperava ainda um discurso pautado nos desejos (quero apresentar na Ásia e na Europa), nas últimas apresentações era possível visualizar estratégias claras de ação (quero realizar 2 apresentações do espetáculo “x” no Chile em 2020). Não é pouca coisa. É um primeiro traço de ação objetiva, o qual, quando melhor detalhado e devidamente colocado em


prática – porque sem monitoração não há planejamento que adiante pode gerar resultados bem concretos. É animador. Mas não nos iludamos que nada é para amanhã. É preciso paciência e disciplina no processo de construção das relações. Daí a importância, dizia Iva, de aprendermos com os fracassos, com os “nãos”. E de insistirmos. Sempre, sempre. Bem, mas então temos uma estratégia de ação, uma primeira relação de potenciais festivais e feiras internacionais e alguns caminhos para estabelecer o primeiro contato. Com isso minimamente organizado, lançamo-nos então à operacionalização da coisa. Mas, espere... há otras cositas más. E bem elementares. Sim, porque se queremos internacionalizar nossos espetáculos é impreterível que tenhamos traduzidos nossos sites, releases, portifólios, riders e etc. Certo? Certo. É elementar. Mas igualmente caro, o sabemos. E esta é mais uma barreira a se ultrapassar para a efetiva internacionalização. No entanto, é um dever de casa obrigatório do qual não conseguimos escapar. Assim, diante dos poucos recursos e da inviabilidade de se traduzir nossos materiais para cada língua local, a dica – e também opção – de Iva é apostar tudo no inglês. E se ainda assim isso parecer inviável economicamente, invoco mais uma vez Romulo Avelar. Será mesmo que não conhecemos ninguém que possa realizar esse trabalho em troca de outro serviço que podemos oferecer? Quais habilidades posso colocar à disposição desse parceiro como permuta? Falamos de compartilhamento e cooperação como mote para a resolução de problemas de ordem prática, que se não resolvidos, podem colocar todo o trabalho e planejamento por água abaixo. E, aí sim, tudo o que foi feito até agora seria mesmo pura perda de tempo. A ênfase de Iva quanto à tradução me fez lembrar de uma consultoria que dei anos atrás a um grupo parceiro que, então, completava 10 anos. A proposta para uma consultoria residia no desejo – aí era desejo mesmo – de circular para fora da capital paulista – o que incluía as cidades do interior de São Paulo e demais estados brasileiros – e pela América Latina. Como praxe, meu primeiro movimento foi visitar o site do grupo.


Mas, pasmem, no site não era informado um email para contato e o único telefone anunciado sequer tinha o DDD da cidade! Como é que eu, sendo uma programadora de fora do estado ou do país interessada no grupo consigo falar com a companhia? Iva tem razão. É preciso nos colocarmos no lugar do outro. Ou, no mínimo, não nos atrapalharmos. Neste sentido, a croata foi categórica no que tange às legendas. Seja nos nossos registros videográficos de nossas obras, seja na projeção durante as apresentações fora do país, as legendas são, sim, importantes. Porque nisso também reside uma relação de alteridade. A de querer se fazer entender. A de querer, verdadeiramente, estabelecer contato com o outro. De volta aos “Speed Meetings”. Estamos no final do curso e falar em 3 minutos sobre nosso projeto não é mais aquele momento assustador que outrora nos acelerava as batidas cardíacas e nos molhava as mãos. Não que a situação tivesse se tornado confortável para alguém. Ao menos não me pareceu. Mas claramente, estávamos todas e todos mais seguros. Enxergávamo-nos como parceiros em uma rede cuidadosamente tecida ao longo dos cinco dias de workshop. Estávamos ali não para provar alguma coisa a alguém, mas para falarmos sobre algo que realmente nos importa, nos mobiliza e que julgamos interessar a alguém. Neste sentido, foi bonito perceber a transformação do grupo, mas sobretudo de alguns artistas, em especial. No lugar do “pedido de licença”, viam-se redimensionadas as auto-imagens, onde era possível reconhecer um eixo, uma voz segura, um olhar tranquilo, uma dignidade que não tem preço. E isso, creio, é bastante significativo. De modo que, sim, o workshop de “Internacionalização de Espetáculos” cumpriu seu objetivo primeiro. Aprendemos a reconhecer as barreiras e oportunidades para a internacionalização de nossos projetos e a apresentar nossas obras a produtores e programadores estrangeiros de modo estratégico. Mas é certo também que aprendemos bem mais do que isso com Iva Horvat. Daniele Sampaio é produtora e gestora cultural, fundadora da SIM! Cultura e responsável pela produção da trajetória artística do ator Eduardo Okamoto.


Internacio nalização do teatro brasileiro: Por Vinícios Piedade

Uma realidade


T

alvez não haja melhor lugar para escrever sobre o título deste texto do que em um avião fazendo o trecho Frankfurt – Nova Deli, justamente para apresentar um espetáculo criado no Brasil em um Festival na Índia. Farei o espetáculo solo CÁRCERE no maior Festival de Artes Cênicas do segundo país mais populoso do mundo. E o fato disso não ser

uma incursão esporádica fortalece a ideia de que é possível pensar que apesar da barreira linguística, o teatro brasileiro não tem limites. Após as apresentações na Índia, que acontecerão em Manipur e Guawhati, sigo para Portugal e Espanha onde farei apresentações em diversas cidades. Mas antes de aportar na Índia, voltemos ao começo dessa trajetória, nesta auto-investigação de um percurso que começou com apresentações na periferia de São Paulo para em seguida acontecer em vinte e dois dos vinte e quatro estados brasileiros e no exterior já passou por dez países (Suíça, Alemanha, Portugal, Espanha, França, Armênia, EUA, Cabo Verde, Bolívia e China - neste ano de 2018, outros sete países entram nesta conta finalizando com dezessete países carimbados com a “bandeira pirata”). No ano de 2003, quando estreei meu primeiro espetáculo solo, chamado CARTA DE UM PIRATA, eu tentava vender a apresentação para diversos lugares, mas com o pouco espaço que os jovens criadores tem (na época eu tinha 23 anos), o máximo que eu conseguia eram apresentações em escolas públicas na periferia de sampa cobrando R$2,00 por aluno. O teatro na época já era meu trabalho (e estudo e lazer = sangue, suor e gozo) e eu tinha que fazer minha peça acontecer a qualquer custo. Isso, essas apresentações em escolas, foi na verdade uma verdadeira universidade pra mim. Eu apresentava toda semana para pequenas multidões em auditórios precários ou em pátios abarrotados. Ganhar a atenção deles para aquilo que eu fazia, me foi fundamental e na prática me prepa-


rou para qualquer tipo de público. Corpo e voz ganharam uma potência impensável sem esse tipo de experiência que a necessidade viabilizou. Na época, quando eu ia tentar convencer as diretoras e coordenadoras das escolas de que podiam confiar em meu trabalho, eu dizia que estava em turnê nacional com a obra. E a verdade é que eu me sentia assim. Via aquilo como parte do meu trabalho: descentralizar minha arte. Claro que, olhando com certo distanciamento, é possível entender que eu mentia, já que nunca havia saído de São Paulo com a peça, até então. Mas no fundo eu sabia que aquilo era um pedaço de verdade. Em breve eu acreditava que estaria de fato com meu trabalho pelo Brasil. E isso não demorou a se efetuar. Em pouco tempo e em parceria com SESCs, prefeituras e Festivais, eu já estava rodando o Brasil inteiro, e mais que isso, percorrendo o Brasil profundo – para além das capitais. Do Acre ao Rio Grande do Sul, através dos anos e já com novos espetáculos solo em repertório (como CÁRCERE e IDENTIDADE(...)), eu apenas estreava as obras na minha cidade, sampa, e logo já ia para as estradas. E ir a esse Brasil profundo passou a ser uma grande meta. Citando apenas quatro estados, como Rondônia, Espírito Santo, Paraná e Rio de Janeiro, percorri dezenas de cidades desses estados. E nessa época, espelhando a época em que apresentava em escolas e dizia que estava pelo Brasil, eu dizia nas entrevistas que estava em circulação mundial. Seria novamente uma mentira sincera ou um lado da verdade? O tempo respondeu, quando em 2010 levei minhas peças para uma circulação na Suíça (Berna e Zurique) e na Alemanha (Sttutgart, Munique e Berlim). E vale destacar que essas primeiras empreitadas foram produções minhas em parcerias com produtores locais, do mesmo modo que eu tanto fazia no Brasil. O horizonte se tornou infindável. A partir daí, passei a pensar minhas construções artísticas de maneira mais abrangente, e não apenas para a classe artística da minha cidade (o que pra mim parecia – e parece - um exercício de uma mediocridade acachapante). E essa vocação que parece megalômana (dizer ao estrear uma peça que trata-se de “estreia mundial”), realiza justamente o contrário. Efetuando a música cantada por Milton “todo artista tem que ir onde o


povo está” - e o povo está em todo o Globo, concluí que minha busca deveria ampliar cada vez mais os territórios percorridos pelos meus trabalhos, investindo com isso na manutenção de um repertório que transcenderia a necessidade de estrear uma obra a cada ano, ou mesmo a cada semestre (ou a cada edital). Cada obra ao estrear, deveria percorrer mais do que minha cidade, mas o máximo de países possíveis e imagináveis. Com o tempo aprendi que mais importante do que ir a um lugar a primeira vez, seria voltar pra esse lugar com nova obra. A percepção das portas que deixamos abertas passou a ser mais emocionante do que a primeira vez em um novo território. Sinal concreto da força que a obra apresentada teve em sua primeira passagem. A partir de 2013, os festivais de teatro que existem em todos os cantos do mundo se mostraram o melhor modo de multiplicar minha caminhada global. E foi assim que conheci o efeito dominó que tais festivais proporcionam: a medida que diretores de grupos e programadores de Festivais e Espaços Culturais conhecem seu trabalho, as portas se ampliam e a coisa começa a fluir naturalmente. Mas as conjunturas são muito diversas e para conseguir de fato fazer as obras acontecerem nos mais variados contextos é preciso entender isso e se adaptar. Dois exemplos concretos: um programador de um Festival na China me viu em uma apresentação em Portugal e me convidou para seu Festival com toda estrutura possível (cachê, alimentação, passagem, estadia); ao ser selecionado para um Festival na Armênia, descobri que nem passagem eles pagavam, apenas estrutura local (hospedagem e alimentação). No primeiro caso a decisão de ir foi imediata. No segundo caso, a pergunta que me tomou foi “quando terei novamente a oportunidade de conhecer a Armênia?”. Aí decidi fazer o investimento. Porque para além de realizar minha obra, conhecer as cidades e as pessoas das cidades é algo tão precioso quanto. E nesse sentido é preciso também investir. É como se uma mão lavasse a outra, ou seja, ganho bem em alguma conjuntura e invisto em outra. E assim a coisa vai se tornando como precisa ser: autossustentável.


É evidente que se eu tivesse apoios efetivos, a coisa seria mais fácil e fluída. Mas nenhuma instância governamental tem hoje em dia nenhuma forma de apoio aos artistas de teatro em circulação em festivais internacionais. Existiu por um tempo um edital de intercâmbios culturais que incluíam festivais, mas ele foi interrompido “para uma melhora” e nunca mais voltou. O Ministério das Relações Exteriores, que poderia facilitar essa ponte, sempre indica que falemos com as embaixadas e os adidos culturais, mas esses nunca conseguem apoio em tempo hábil (solicitam que os pedidos de passagens aconteçam com um ano de antecedência para uma hipotética aprovação – lembrando que a seleção de muitos festivais se dá em seu próprio ano de realização). De modo que, pra viabilizar tal empreitada cultural, é preciso tirar parte do dinheiro ganho em temporadas e vendas de espetáculos, seja no Brasil, seja no exterior. Lembro de já ter ouvido de alguns artistas da velha guarda que antigamente eles vendiam o fusca para bancar uma temporada de seus espetáculos. Eu posso dizer que invisto um fusca por ano pra manter essa circulação intensa. Mas como tenho percebido, a vida premia ousadia e sempre o retorno é absolutamente recompensador. E sigo acreditando que com o tempo haverá um reconhecimento para os artistas brasileiros que circulam com suas obras pelo mundo. Há uma representação do país que é sim pertinente. Posso citar cinco festivais em que vou este ano como marca disso. Neste Festival da Índia, terão grupos de trinta países representando vinte e cinco idiomas (contando dialetos da própria Índia). A única peça em língua portuguesa (e português do Brasil) será CÁRCERE. E o mesmo se dará no Festival em Orel na Rússia, em junho (mês de Copa do Mundo na própria Rússia), no MonoFest’18 Tiyatro Medresesi na Turquia, no Festival de Teatro da Lituânia e em um dos principais Festivais de Monólogos do mundo que acontece em Kiel, na Alemanha, em novembro. É evidente que não chego nas cidades vestindo a camisa amarela da CBF afirmando ser um representante oficial do Brasil. Até porque isso não existe. Mas sem nenhuma dúvida o meu fazer artístico com esse


modus operandi a um só tempo anarquista e empreendedor, diz muito sobre o país de onde venho e o modo que temos que fazer acontecer. A obra em circulação este ano, CÁRCERE, que coloca em pauta o sistema carcerário nacional, também é emblema de uma busca incessante e inconformada, genuinamente brasileira, uma autocrítica com humor e fúria. E isso, aliado a uma busca infindável por um refinamento técnico e dramatúrgico, viabiliza uma continuidade entusiasmante da pesquisa, culminando com uma circulação dos trabalhos, primeiramente dentro do Brasil, país continental, para em seguida transcender as fronteiras nacionais com nossa desenvoltura tão característica. Sigamos abrindo caminhos artísticos e construindo pontes culturais.

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esta edição em breve. a próxima


ição continua . aguarde a mutação

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A caminh

bete coelho + ricardo bittencourt + emĂ­lio kalil + carlos august enrique diaz + jaram lee + luiz melo + romeo castellucci + thomas willem dafoe + mikhail baryshnikov + robert le page + felipe

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ho do ano 7 +

to calil + danilo santos de miranda + jô soares + marília pêra s ostermeier + win vandekeybus + denise fraga + antonio araújo hirsch + brett bailey + peter pál pelbart + rodrigo garcia

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@antrop


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positivo conteĂşdos exclusivos


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