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A Outra Companhia de Teatro + Al Alex Silva + Ana Carolina Marinho + Antônio Haddad Aguerre + Bando d Bololô Cia. Cênica + Candela Recio Cláucio André + Clowns de Shakes Artístico As Travestidas + Coletivo Companhia O Imaginário + Daniel Harrington + Dione Carlos + Ed Mo Ester Laccava + Evill Rebouças + Francisco Haddad + Gonzalo He Bagaceira + Grupo Harém de Teatro Grupo Magiluth + Grupo Teatro Ca Algelkorte + In Bust Teatro + Inst Irene Bolaños + Itsaso Arana + Joan Quartet + La Tristura + Laika + Lam Leandro Nunes + Luciana Paes + Lu Felipe Reis + Luiza Helena Novaes + Maria Teresa Cruz + Marisa Bentive Perrone + Massimo Uberti + Matéi V Ferreira + Nathalia Lorda + Nelso Pequena Companhia de Teatro + P Teatro + Probástica Companhia Ricardo Severo + Robert Lepage + Rubens Caribé + Samira Br + Ser Tão Teatro Máquina + Teatro Popular Rocha + Tom Monteiro + Universida Vila Velha + Villy Ribeiro + Violeta
lejandro Ahamed + André Sant’Anna de Teatro Olodum o + Celso Giménez espeare + Coletivo o Atores à Deriva l Arsham + David Moraes + Eric Lenate + Fabrício Castro errero + Grupo o + Grupo Imbuaça armin + Ham + Igor tituto Volusiano na Gajuru + Kronos mira Artes Cênicas uisa Valente + Luiz Marcela Casarin egna + Martha Kiss Visniec + Michelle son Baskerville Piollin Grupo de + Rafael Gomes + Roberta Koyama o Teatro + Siro Ouro r de Ilhéus + Thaís ade LIVRE de Teatro a Gil + Zé Vicente
agradecimentos Iris Cavalcante Adriana Monteiro Itaú Cultural André Larcher Jennifer Glass André Luiz (Pio, CCRV) João Angelini Andréa Caruso João Coutrin Antônio Martinelli Josi Monteiro Antonio Salvador Júlia Enne Berenice Haddad Juliano Casimiro Beto Mettig Karina Betencourt Canal Aberto Keiny Andrade Carolina Ferreira Kennedy (CCRV) CCBB-DF Kiki Vassimon CCBB-RJ Lenise Pinheiro Centro Cultural Rio Leonardo Aversa Verde Leonardo Brant Cláudia Hamra Letícia Sabatella Cláudia Marques Livio Tragtenber Claudia Taddei Luciano Pereira Cléo de Páris Maitê Freitas Coletivo Angú Marcelo Drummond de Teatro Matheus José Maria Conteúdo Comunicação MIS-SP Cris Lyra Miwa Yanagizawa Cunha Júnior Oi Futuro Flamengo Cybelle Oliveira Paço das Artes É Realizações Editora Pant Bó Editora Escrituras Patolino Editora Perspectiva Pedro Vilela Edson Manoel de Rafaela Oliveira Filho (Sesc Ipiranga) Estação Pinacoteca Ravel Andrade Fernando Alves Pinto Rayanne Galavotti Fernando Yamamoto Regina Duarte Festival Música Ricardo Freire Torres de Câmara Roberta Frame Boy (Sesc Ipiranga) Galeria Leme Roberta Estrela D’Alva Galeria Luisa Strina Sesc Ipiranga Galeria Tato SESC Pinheiros Galeria Vermelho Sesc Santo Amaro Gislane Tanaka Sylvie Isabelle Gleyce Noda Teatro FAAP Gordo Neto Teatro Oficina Graziela Kunsch Tempo Festival Guga Stroeter Victor Hugo Secatto Guto Muniz Zé Celso Martines Correa Haroldo Saboia
editorial
T
rês anos se passaram. Parece ontem. Parece muito. Dezenas de conversas, visitas, campanhas, ideias, pessoas, pensamentos. As mudanças atin-
gem todos os lados. Para bem e mal. Não é fácil falar sobre o cotidiano. Não no Brasil. As eleições terminaram, as coisas estão esquisitas, não há mais lado, apenas ini-
ruy filho
migos. Por isso, a campanha trazida chama sua atenção para as proteções forjadas que separam os artistas de seus públicos. Por isso, a homenagem se volta ao norte e nordeste, como meio de recusar divisões. Passeamos também pelo Canadá, Espanha, França, Estados Unidos, São Paulo e Rio de Janeiro. Pelas ideias de nossos entrevistados, o mundo se expande por cantos e culturas. Por todas as idades, do consagrado Robert Lepage aos meni-
patrícia cividanes
nos e meninas do La Tristura. Pelas mais diversas esferas, do jornalismo produzido por Luiz Felipe Reis à inovadora estratégia de sustentabilidade criada pela carioca companhia Probástica. Nesse triênio, os assuntos foram muitos, e artistas e pensadores muitas vezes apresentados pela primeira vez ao universo do espectador brasileiro. Os cadernos especiais ganharam espaço nos festivais, e a imensa produção que geram exigiu-nos tornarmos as edições quadrimestrais. Mas sem diminuir as visitas, porque não conseguiríamos mesmo. Basta ver que esta, a maior edição até agora, ultrapassa 260 páginas. Revisar nossa trajetória provocou encontrar maneiras diferentes de chegar ao leitor. São novas seções, novos espaços. E o novo site, totalmente desenhado por Patrícia, ampliando ainda mais os meios de acesso aos conteúdos. O ano termina, aproxima-se o próximo, e a revista já deslumbra voos mais altos. Calma, notícias boas têm hora certa. Tudo ao seu tempo. Por hora, fica esta nossa edição de aniversário e os ilustres participantes. A festa está bombando, o palco cheio, a plateia lotada. E ainda cabe você. Basta virar a página e entrar. Aqui há espaço para todos. Sejam bem-vindos. Que esta edição seja apenas o terceiro sinal para um espetáculo cada vez melhor.
dezembro de 2014
SP / BR
Trazer ao mundo um pouco de poesia. E esta como encontro com o outro. E sermos nós, o inteiro do mundo. Com suas partes, diferenças, valores e dilemas. Respirarmos o que preciso for. Porque a poesia é bela, profunda, doída, e também necessária agressão. Tudo o que desestabiliza não é fácil. Mas o homem só sobreviverá a ele mesmo ao se permitir ser confrontado. A campanha Deixe o Poético invadir o seu Mundo alerta pro perigo das mediações, redomas, proteções contra arte, as experiências, o sentir, formadas pelos sistemas de poder, em busca de anular o próprio existir de todos nós.
concepção
patrícia cividanes + ruy filho
colagem miniatura
zé vicente
foto
alex silva
assistente
Thais Rocha
campanha
deixe o poético invadir seu mundo ninguém deve te proteger da arte
Esta é uma campanha
Antonio Haddad Aguerre + Nelson Baskerville
expediente
editores
realização
nos encontre também no face+twitter+instagram
www.antropositivo.com.br
Ruy Filho [texto] Patrícia Cividanes [arte]
antroexposto.blogspot.com
ANTRO POSITIVO é uma publicação quadrimestral, com acesso foto de capa: villy ribeiro
virtual e livre, voltada às discussões sobre teatro e política cultural.
su má rio 10
visitando Matéi Visniec
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teatro em papel
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DIÁLOGO X2 Tragédia: uma tragédia
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visitando La Tristura
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espaço cênico impossível por Marisa Bentivegna
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Política da cultura Probástica Companhia
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café duplo Luciana Paes e Rafael Gomes
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vertical por Ruy Filho
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visitando Kronos Quartet
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DIÁLOGO X2 Osmo
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obs por Ruy Filho
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capa Robert Lepage
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todo ouvido Tom Monteiro
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pensamento sobre
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circunferências
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homenagem Cias. do Norte e Nordeste
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Por aqui Instituto Volusiano
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outros tempos
antropositivo@gmail.com
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visitando Luiz Felipe Reis
aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo
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carta aberta para 2015
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DIÁLOGO X2 Incêndios
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máquina de escrita Dione Carlos
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infinito
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matĂŠi visitando
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O construtor das palavras ausentes por
ruy filho
fotos
patrĂcia cividanes
intĂŠrprete
alexandre
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Matéi Visniec posa diante do skyline de São Paulo, em ensaio exclusivo para a revista Antro Positivo.
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lguns anos marcam certas aproximações na cena teatral. Essas coisas acontecem o tempo todo, seja em relação à uma estética, um diretor, um dramaturgo. 2014 terá como uma delas a obra do romeno Matéi Visniec. A presença de espetáculos criados a partir de suas peças foi constante nos festivais. Reunindo uma forte capacidade de gerar contextos narrativos potencialmente críticos com doses de estranhamento, Matéi oferece uma ampla abertura a leituras e estéticas diferentes. São características
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como essas, não tão facilmente encontráveis, numa época em que a escrita passa a exigir novamente também um posicionamento conceitual, que o levaram a ser montado de sul ao nordeste, por vieses literais, tradicionais, estudantis e experimentais. O autor dialoga com a corrente de artistas que encontra no teatro e fazer objetivo para determinados fins, da educação ao esclarecimento. Ainda que essa postura seja um tanto incomoda, pois parece enfraquecer o teatro em sua condição independente como arte, existem maneiras e maneiras desse mecanismo ser realizado. Nesse aspecto, Matéi supera
seu interesse e constrói uma obra de forte impacto e inventividade, comprovando não importarem os fins pessoais, mas o quanto ao teatro é fundamental estruturar-se por sua compreensão de objeto e não função. Para entender melhor como dar conta desses valores e exigências, a Antro Positivo, aproveitando a presença de Matéi em São Paulo, para mais uma estreia de um de seus textos, desta vez sob direção de Regina Duarte no Mube, foi visitá-lo no hotel. Durante a conversa inicial realizada no teatro do museu, muito ficou esclarecido sobre seu interesse pelo direcionamento
em estabelecer com o o espectador uma espécie de construção de desconfianças. No hotel, então, começamos a partir dessa escolha em fazer do teatro um discurso ideológico, e o quanto este pode ou não se tornar viciado como mensagem e poeticamente relativo. Para Matéi, a questão está em conseguir criar um discurso que sobreviva e vença a sociedade do espetáculo a qual submergimos. Nela, pouco resta da cultura tal qual gostaríamos e, sem nos apercebermos, acabamos por aceitá-la banal e desnecessária. Há nisso, muita responsabilidade da mídia ao optar pela estratégia, qual denominou por hollywoo-
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“uma boa peça tem uma boa metafísica” dização da informação. Criou-se por ela outro contexto informativo ao indivíduo, uma dimensão espetacular do cotidiano, onde não basta mais apenas revelá-lo, é preciso sustentar sua apresentação como mecanismo para ampliar a própria realidade. Aos poucos, explica, o homem se tornou aprisionado pelo imaginário do espetacular, e passou a se relacionar apenas pelo próprio espetáculo. Basta ver como as pessoas se comportam no facebook, exemplifica. Exemplo esse radicalmente atual, sobretudo, quando pensamos no brasileiro. Entender o fazer teatral como um mecanismo também educativo e inclusivo não está exatamente errado. Matéi aponta questões profundas, porém por um ponto de vista único. Podemos pensar o quanto esse argumento consegue ser ampliado apresentando as mesmas respostas não apenas pelo ângulo explicativo, também pelo entendimento de caber à arte encontrar os mesmos valores na própria exposição e convívio com o simbólico. Interessa-lhe recuperar as emoções primitivas ao homem, aquelas necessárias à independência aos sistemas de poder. Nos Brasil, a questão se torna moais complexa, na medida em que o imaginário está condicionado pelas estratégias da indústria do entretenimento, via os programas televisivos. Matéi fala que a mesma situação pode ser encontrada em outros lugares, em diversas outras estratégias.
Seu incomodo, frente ao inevitável de tais estruturas, está na ausência do pão quando ofertado o circo. Hoje, de modo mais complexo ainda, os jogos substituem as estruturas culturais mais rapidamente, todavia, não são eles que desenvolvem a personalidade, mas a totalidade das experiências culturais. O resultante é uma geração cada vez mais direcionada ao sucesso rápido, ao imediatismo das conquistas, com o problema de nem a tv e a escola ensinarem o contrário. Matéi diagnostica um outro estágio para a humanidade, no qual a imagem do indivíduo se limita a ser mais totalitária e a seu próprio interesse. Para Edgar Morin, na origem da civilização havia uma ruptura profunda com o sentido de submissão à ordem biológica, até então parâmetro maior de consciência ao homem. Esse distanciamento provocado pela adequação ao conviver e os aspectos decorrentes do entendimento de sua própria identidade, sociabilizando-o até a esfera do sujeito, e, por conseguinte, modificando também o reconhecimento e formação dos códigos simbólicos, levou o indivíduo a se relacionar com o imaginário como um espaço criativo angustiado. No instante de sua civilização, o homem passou a se submeter a interditos e hábitos duráveis, reprimindo no inconsciente as crenças que os prescreviam. Essa autocensura, como classifica Morin, atingiu também as estruturas lingüísticas e gestual. Por fim, o filósofo explica não se tratar
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“a personalidade tem uma relação direta com a palavra” de uma evolução linear. Está mais ligada ao sentimento de morte e, consequentemente, urgência de si. Ao falar em recuperar pela experiência do teatro as emoções primitivas, Matéi reencontra no indivíduo sua constituição pré-civilizatória, quando sua identidade ou personalidade ainda está disponível aos desenhos variáveis. Talvez por isso, faça-lhe tanto sentido abordar temas como guerras, estados de exceção, sociedades destruídas, que, aos seus modos, representam a falência da civilização atual, e de quais só nos resta escapar pelo uso da imaginação crítica expansiva. Como demonstra Morin, existe uma estreita ligação entre o sentimento de morte e a urgência da consciência de si. E só mostrar, não resolve. É preciso dizer. Ainda que as imagens construídas por Matéi sejam contundentes, seu maior alicerce está no uso da palavra. É preciso dizer, se quiser tornar real um conceito. Para Mattei, a palavra no teatro ainda é nobre. “É por ela que traçamos uma ligação ente o antigo e o contemporâneo”. Cabe-lhe ser literatura e teatro, poética e discurso. E nenhum outro mecanismo constrói uma relação tão forte entre o indivíduo e ele mesmo. A personalidade reverbera a presença e uso da palavra, conclui. Ao trazer a palavra como instância poética de revelação do homem ao processo civilizatório, Matéi amplia a dimensão do teatro para além de seu interesse original em educar, esclarecer, revelar. Torna-o expansão da consciência, na medida em que o homem se permitir existir espectador. Aquilo que se assiste, então, é mais, o teatro como
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Da cobertura de seu hotel, no bairro dos Jardins, MatĂŠi se distrai com a cidade abaixo.
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“vivemos a hollywoodização da informação”
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Matéi Visniec durante encontro com a revista Antro Positivo.
instância poética da política, assim como o discurso como a politização da poética. Nesse sentido, o processo revisionista da condução civilizatória dialoga com a perspectiva de desdobrar a compreensão do homem por artificialidades simbólicas não necessariamente reais, cuja presença da palavra confere certa sensação de veracidade. Pois, se tudo o que é dito sugere a presença de uma possibilidade latente, ao dito, não mais pela face do real, mas do reconhecível, dobra-se o conceito sobre si mesmo, como se o sujeito fosse a manifestação poética da história. Matéi conta não ter iniciado sua relação com a palavra no teatro, mas antes. Jovem, ainda, dedicou-se a escrever poemas, quais descreve agora como tijolos para construções. Eles o ajudaram a inspirar sua dramaturgia, oferecenram o convívio com certas especificidades da es-
crita, tais como ambiguidade, prazer no uso e subversão da linguagem, auto-ironia e insolência. Condição imposta, pois sua juventude foi também marcada pelo convívio de momentos políticos complexos na Romênia, que vão desde sua ocupação pela União Soviética, após o fim da Segunda Guerra, e sua transformação em país socialista, até a abertura no final da década de 1980 para uma sociedade capitalista. Na Romênia, explica Matéi, era preciso escrever bem para denunciar, contar belas histórias com emoção, suspense, se possíveis originais e com humor. Todos esses aspectos permeiam com maestria sua técnica dramatúrgica e tornam Matéi Visniec um dos nomes mais inquietos da atualidade. Autoral, sobretudo, é a maneira como estabelece na narrativa princípios de estranhamento à realidade. Em suas peças, nada se estabelece com
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“a palavra liga o antigo e o atual”
precisão, mas como sugestões; o homem não é tão simplesmente classificável, mas a possibilidade de um rascunho distorcido daquilo que entendemos por humano; e a fala, nunca direcionada a ser literal, mas simbólica, ainda que determinante. Uma boa peça precisa de um estado metafísico, finaliza. E, enquanto o mundo caminha cada vez mais para incompreensão de suas escolhas, nada é mais enigmaticamente realista do que exatamente isso. A tarde termina no elevador, no aperto de mão e na troca dos emails. Ele, deixado no saguão do hotel com os olhos sempre doces. Nós, inquietos, observando o entorno estranhamente diferente, não mais o mesmo.
poéticos, não apenas em seus sentidos físicos, também em suas dimensões experienciais ao espectador. É interessante perceber o quanto nisso há de tradição e de nova potência à teatralidade no exercício conceitual da cena, dialogando uma e outra, em contraposição ao aspecto defendido de serem ambas antagônicas. Tratamos no contemporâneo, quase que naturalmente, o espaço como abrigo ao teatro. Assim, tomamos os espaços como possibilidades de sustentação estética e simbólica, enquanto o palco é limitado a ser a expressão do tradicionalismo. Ouvindo Maurice e olhando o teatro abandonado, a percepção é exatamente da necessidade de se buscar outra vez o palco como espaço teatral. É nele, hoje, o maior desafio ao diretor, que agora se vê também em diálogo com o mundo exterior. Talvez as questões sejam menos paradoxais ao se colocarem nos espaços preenchidos de significados históricos reais e reconhecíveis, e o desafio seja dar instrumentos ao espectador para encontrar a
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os poemas de
matéi ao final da conversa, Matéi nos deu um presente. algumas de suas poesias traduzidas para o português de Portugal. - e a autorização para publicá-las aqui.
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SOBRE SUICÍDIO (DESPRE SINUCIDERE)
Há um dia em que a borboleta vem e se senta em meu cigarro aceso eu olho pasmado como ela vira cinzas dou-me conta de que se trata de um suicídio com substrato político só não entendo por que escolheu precisamente meu cigarro
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VIAGENS SUCINTAS (CĂLĂTORII SUMARE)
Pela cidade sem ruas passam cantando peões sem corpos a mão come sozinha a uma mesa da taberna da estação de trens a cada duas horas come uma uva no lugar onde ficou sentado o caçador se deitou agora a águia gigante na bacia de água reina a calmaria o afogado se agachou nos degraus de pedra sobre a palavra cidade flutua a palavra nevoeiro a palavra homem olha pela palavra janela
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O NADADOR (ÎNOTĂTORUL)
Existe uma cidade que ninguém construiu há ruas pelas quais nunca ninguém passou há portas que não foram tocadas janelas pelas quais não se pode olhar cem espreguiçadeiras se enfileiram inúteis ao longo da falésia nenhuma faca foi levantada no ar os telefones públicos ainda não funcionaram não se ouviu ainda som algum nenhuma porta rebolou montanha abaixo sempre que se aproxima da costa o nadador se assusta e retorna para o mar
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teatro em papel
Entre o hoje e o agora, diversas maneiras de encontrar o pensar teatral
Como o teatro lhe interessa? A seleção de livros trazidas aqui pela Antro Positivo oferece diversos meios. Seja pelas fotografias de Lenise Pinheiros sobre o Teatro Oficina, aproximando-nos, ainda mais, ao universo de uma das companhias mais importantes da nossa história, seja pela lembrança da arte e investigação de Renato Cohen, um dos maiores pensadores da nossa cena contemporânea, e que nos deixou jovem, agora retorna ao convívio pelas reflexões e lembranças da atriz e performer Samira Borovik, em KA – A sombra da alma. Para os que buscam o teatro do presente, no seu instante de urgência, a Balangan Companhia de Teatro lança um box com diversos textos, depoimentos, reflexões, estudos sobre sua trajetória; e Roberta Estrela D’Alva, o primeiro texto acadêmico a explorar a relação do teatro e das linguagens pesquisadas pela atriz junto ao Bartolomeu de Depoimentos, Teatro Hip-Hop, comprovando a importância de buscarmos novas intersecções do fazer teatral com outras manifestações culturais. E como entender o teatro de São Paulo implica em olhar também para a política cultural da cidade, uma percepção mais abrangente sobre tais desdobramentos pode ser encontrada no livro Fomento ao Teatro, 12 anos. Para os interessados em encontrar um pouco de inquietude na produção dramatúrgica internacional, aqui três livros com peças do romeno Matéi Visniec, traduzidos e editados pela É Realizações Editora. Por fim, é importante compreender, sendo o teatro também uma parte da cultura, o investigar das condições e características da ambiência cultural, portanto. O livro de Júlio César Pereira, Três Vinténs para a Cultura, oferece profundidade, como poucos. Seja pela história do teatro recente, por imagens, peças, intersecções com manifestações contemporâneas, seja pelo estudo sobre a cultura como ambiência mais ampla à cena, o teatro poderá também estar próximo aos interessados, distante apenas pela distância de um gesto em direção ao livro. Escolha um, sua poltrona, e boa leitura.
diálogo. x2
por claucio andré e luíza helena novaes
tra gé dia O contemporâneo como um estado trágico em plena latência
: uma tragédia
Claucio_André Você fez anotações? Luiza_Helena_Novaes O papel do governador ter ganhado e a peça ficou bem interligado. CA: Ficou interligado, sim. Eu não fiz anotações, vou de memória. LHN: Penso que se pode falar o que se quiser, mas na maioria das vezes as máscaras que vamos construindo nos limita a ultrapassar inclusive a banalidade, talvez por medo de compreender o que se deve ao certo fazer no sentido do trabalho. Jogo esse peixe pra vc pescar... CA: Também estava pensando nisso, nos limites e não-limites do nosso trabalho. Tanto é que dessa vez, ao ver o espetáculo, eu me atentei mais ao aspecto do que se dizia, a história, a narrativa digamos assim, e menos nos aspectos isolados. LHN: Creio que parecer ser, e ser é uma das temáticas que mais importa na narrativa, o fato de que essas pessoas que trabalham juntas nem ao menos se veem, simplesmente um joga a batata pro
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outro assar, mas a real importância de se pensar como humano é ignorada, o motivo real de todo sofrimento descrito. Vc não acha isso atual? Pense em nós... Mesmo! CA: Acho sim. As próprias manchetes na peça. Como não fiz anotações, não lembro exatamente, mas lembro a essência delas. Então era algo como se a retomada de laços afetivos fosse manchete. LHN: Ser um telejornal e a responsabilidade de transmitir a verdade ou dizer o que necessita ser veiculado é uma necessidade, mas ao mesmo tempo eles sentam em roda e pensam o que é olhar um pro outro, conviver, poder trocar as experiências, no caso cenicamente num canto distante. CA: Deixa eu ir com calma. O que você quis dizer com isso: “sentar no canto distante”? É uma constatação apenas ou é uma crítica sua? LHN: Cenicamente quando eles sentam em roda e pensam nos ancestrais eles utilizam o local mais distante da plateia. Lembra-se?
CA: Lembro, lá nas matas. LHN: Isso. Como se o tempo de agora e o passado não se conversassem... CA: Ah, sim. O que você quer dizer é que a cia. solucionou a questão do “voltar atrás, olhar pro passado, reconectar’se” no jogo do espaço cênico, afastado do público. LHN: Sim, e toda vez que havia uma sanidade que mais se assemelhava a uma insanidade de construção do eu como ego e não personagem, era nessa mata, nesse local que eles se escoravam, valendo inclusive pra segunda altura que é o aquecimento onde tudo começa! E também onde tudo termina. CA: E fazendo isso ritualisticamente (e ritual é algo que hoje está bem sem fibra). LHN: Encontrar com pessoas já é um evento, se antes era comum passar na casa de um amigo, hoje é necessário marcar, confirmar, reconfirmar... O estado de presença que é onde a cia inicia, agora a primeira palavra, fundante!
CA: E o uso do espaço externo, lá fora, superior, com transeuntes passando atrás, na composição de sentido? O que que isso ressoa? (Aliás, sobre esse estado de presença, o que vejo é cada vez mais o tema ser levantado, sob diversas abordagens. Tem cada vez mais incomodado artistas, e não só artistas; os que estão aí, olhando, vendo.) LHN: Dentro e fora, creio ser o eixo mais forte da narração, do fingir, de um modo de ser operante que parece que é compartilhado, seja pela linguagem e de pessoas que nem se olham, nem se pensam como pessoas, creio que um dos poucos comentários amigos foi ao ver que um deles estava mal, e começava a admitir aconselhava o outro a tomar um chá e descansar, o ritmo atual presume que estejamos sempre alertas e trabalhando nesses papéis onde sabemos exatamente o que estamos fazendo e somos os melhores naquilo! Imagina!? CA: Eu acrescentaria: dentro e fora + perto e longe. Eu estava de frente ao âncora no momento em
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que ele, finalmente, fica só, ao vivo. “Ao vivo.” LHN: Tudo deveria começar com um “como você está”? E sincero, de ambos os lados... Não só por falar né? CA: É um pouco essa aceleração toda. Vivemos na aceleração. Como era antes da internet, por exemplo? Conhecemos mais pessoas. Aliás, não conhecemos: adicionamos. É muita gente. Acho que o ser humano enquanto
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essência ainda não se adequou (se é que um dia vai se adequar) a esse povoamento por meio de links, telas e notificações eletrônicas. LHN: Se lembra do telespectador que clama o retorno deles, mas não compartilha da fala e é como se o sistema tivesse sido destruído... Bem no fim? CA: Sim, lembro. Não dá tempo de dizer “como você está” sinceramente para todos. Então
parece que estamos mais alucinados, graças a uma fissura por mais, mais, mais, crescimento, comunicação instantânea, e, por hábito, vamos perdendo a ternura para com os outros. Me parece um pouco a sensação de desespero que o âncora sente quando se vê a sós. Como se ele estivesse pensando: “e agora, quem são os meus?” LHN: E o pior, a ternura ou compaixão com nós mesmos... E a figura
do governador sempre falam dele, leem pronunciamentos e cartas, mas ele também nada presente! CA: Você não ficou angustiadíssima nesse momento? Puta tensão. (Uma tensão, cenicamente falando, construída). LHN: Ao ponto de sangrarmos, e a diferença é nenhuma, só é necessário que estejamos recompostos pra nos mostrarmos aos outros.
Dramaturgia: Will Eno Direção: Carolina Mendonça. Elenco: Amanda Lyra, Carolina Bianchi, Ranieri Gonzales, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Andreolli. Cenário: Theo Craveiro. Iluminação: Lucia Koch. Figurino: Daniel Lie.
CA: No caso do governador acho que é mais coisa; uma coisa inclusive que constitui o cenário disso tudo (política como carreira, política afastada da comunidade, a perda da importância da palavra etc... eu não saberia discorrer sobre esses temas num espaço curto, rs). Mas agora dê um zoom out por um minuto. Eu não vou me lembrar das peças, mas já não seria a primeira de recentemente que se utiliza da linguagem
do manchetômetro para falar das relações humanas. LHN: Política deveria ser o local onde nós como animais políticos pudéssemos conversar e trocar, onde toda e qualquer experiência mesmo a comida e outras escolhas pudessem ser analisadas, imagina se o sistema que a cia está criticando alcança esse âmbito... CA: Também penso assim.
LHN: Gostei da forma como eles trabalharam o gênero. Creio que esse buscar uma alma... Onde está o sentido dessa existência, saí com as entranhas reviradas! CA: Eu primeiro pensei: é uma peça “pós-apocalíptica”. Não, não é. É uma PRÉ-apocalíptica. Tem momentos muito próximos de nós (em termos de situação, familiaridade) e pouco a pouco o espetáculo nos revela as consequências.
E se a gente não olhar pra isso, nós hoje seremos os préapocalípticos. LHN: O método importa menos do que o sentimento, pra mim. CA: Acho que sempre se busca harmonia, mas certos temas têm a “licença poética”. Essa, por exemplo, está falando justamente disso. Eu faço uma pesquisa sobre os quatro elementos enquanto forças
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LHN: Lembrando o nome: tragédias nos remete o maior dos gêneros da história do teatro, e com isso lembrar também que é a morte, ou o que é vida, e tudo o que permeia isso que nos faz levantar e ir até um lugar assistir algo, que mexa com essas questões. Talvez por ainda não termos respostas tão concretas a respeito disso tudo, e ao sentar e pensar juntos, cheguemos a algum lugar, ínfimo que seja de uma aproximação da verdade.
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morrer. É isso mesmo, produção? CA: Quem é “produção” aí? Uma entidade no ponto eletrônico? LHN: O interessante da história é que eles citam a noite escura da alma, um livro de São João da Cruz... E o que acontece é que não tem mais sol na peça e tudo se deprime, inclusive as pessoas, os cães, as cercas... Escuro da alma tá dentro. CA: Não li o livro... (Nossa, verdade. Quase que a gente fica sem falar do MOTE INICIAL da peça!) LHN: Tô feliz de conversar com vc esse diálogo, faz tempo que não te vejo e que está longe, faz sentido ser assim, a retomada de nossas conversas. CA: Bom, acho que a gente não precisa escrever sobre o fato de que “ausência de luz” é símbolo, né. O leitor vai checar pessoalmente isso quando assistir ao espetáculo. Aliás, já tem um tempo que combinamos de tomar um café sem pressa, não?
CA: Morte (e vida) da humanidade? Severina? Vidas secas?
LHN: Satyrianas. Vários cafés. Mesmo!
LHN: E o que afinal viemos fazer aqui... Viver crescer reproduzir
CA: vc por acaso tem whatsapp?
fotos: cris lyra
arquetípicas da natureza e do ser humano, nas artes. Quando fui assistir à peça estava se discutindo muito (e ainda está) a questão da crise da água. Água é o elemento do sentimento, das emoções, das forças ligantes. Não vou me desdobrar aqui, mas acho que tem tudo a ver e a peça aconteceu num momento determinante. Não dá pra assistir sem associar ao que está acontecendo — e em diversos âmbitos. Seja crise política, seja crise econômica, hídrica, humana...
visitando
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Pela fala da crianรงa, a complexa perspectiva ao existir adulto por
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Candela Recio e Siro Ouro em cena de “Materia-Prima�, da companhia espanhola La Tristura. 38
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comum alguém contar ter feito teatro quando criança. Na escola, no quintal da avó com os primos, na sala de casa para a família, nas festas, nas férias, nos eventos. Inventando os figurinos com as roupas dos adultos, construindo os cenários com almofadas e panelas, narrando aventuras e romances de contos de fadas. Alguém sempre conhece alguém assim. Nada errado com isso. Há o teatro como meio de expressão na infância, servindo às descobertas e brincadeiras. E também um outro, menos comum, mais ousado, profissional, no qual ser criança é pressuposto simbólico para alcançar determinados resultados. Alguém conhece alguém que sabe de alguém cujo filho ou filha foram matriculados em uma escola de teatro. Então chegam as montagens de final de ano, as apresentações em teatros de verdade, com roupas elaboradas, coreografias e histórias um tanto quanto mais monótonas também. Só que a criança, em seu contexto simbólico, pode mais, pode ir além. Por que tratar a criança como alguém incapaz e limitado às historinhas infantis e peças para entretenimento com fundos morais nos finais? Para que tornar a criança mais um objeto a ser apresentado como gracioso e divertido? A companhia espanhola La Tristura, como o próprio nome já aponta, escapa radicalmente disso. Em Matéria Prima, espetáculo que percorreu diversos festivais pelo Brasil, os atores ocupam a cena tendo apenas doze, treze anos. Mas nem sempre foi assim. O espetáculo já tem sua trajetória, e na verdade, os meninos e meninas começaram antes, no auge de seus oito anos. Aproveitamos a presença da companhia no Tempo Festival e convidamos o jovem elenco para uma conversa. Dividíamos o mesmo hotel, então o melhor seria mesmo esperar pela manhã. Ali, no bair-
ro do Flamengo, Rio de Janeiro, aguardamos a chegada dos atores. A manhã não exagerava o sol, o dia se colocava perfeito ao passeio, e eles já tinham estreados. Inicialmente, a sugestão era conversarmos após o espetáculo, encontrar neles as emoções e sensações. Sugestão dos próprios diretores, que logo aceitaram nosso convite. Mudamos de ideia. Eu precisava respirar o assistido. Precisa de meu silêncio. Não conseguiria falar envolvido por meus sentimentos, pelo simples motivo de ser incapaz de os nomeá-los e suportá-los tão facilmente. Deixamos para o dia seguinte. E foi quando oficialmente nos conhecemos. Acompanhados dos diretores, Candela Recio, Gonzalo Herrero, Irene Bolaños e Siro Ouro retornam do passeio pela orla carioca. Sabem estarmos ali para conversarmos com e sobre eles. A timidez inicial não impede de seguirmos ao café. Um cappuccino para mim, sucos de laranja para eles, um e outro refrigerantes. E tentando dar conta da dificuldade dos idiomas diferentes, as perguntas se soltam aos poucos e as respostas se colocam com a razão, certeza e naturalidade próprias de quem sabe ser criança e se aceita exatamente assim. Nos instantes em que as perguntas rompiam suas proteções, ao serem colocadas mais provocativas, reflexivas e profundas, o melhor de todos surgiu de modo encantador, acompanhando por trejeitos próprios que os desenhavam particulares. Uma mordendo o canto dos lábios pensativa, outro se projetando sobre o mesa e se aproximando aos olhos, a outra buscando seduzir com seu despojamento, o outro lidando com uma respiração mais íntima e em suspense. A cada momento, algo se revelava, e não eram simplesmente respostas. Eram eles próprios. Como no espetáculo, as diferenças se colocavam evidentes. E sem o palco para protegê-los, o inevitável mesmo foi se entregarem ao encontro.
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“Apenas desejamos o futuro, mas sem decidí-lo” Em preto e branco, os atores em ensaio fotográfico de Patrícia Cividanes, após a conversa exclusiva com a revista Antro Positivo. Em cor, fotos dos atores no ano da estreia do espetáculo, com seus 8, 9 anos.
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O espetáculo Matéria Prima é forte, profundo. São crianças treinadas para dar conta de tratar temas complexos e difíceis até mesmo aos adultos. O futuro apresentado nas falas é melancólico. Fala-se de perda, morte, fracasso, solidão, amor. Mas o que podem saber sobre esses assuntos? Fala-se, e também se vive a fala como potência de representação do sentir. Em nenhum momento são construídos personagens. Nada disso. São eles mesmos em cena, em mergulho aos argumentos e devaneios. Assistir e ouvir, portanto, fazem-se processos dissonantes. É impossível não ser atingido pelo discurso. É impossível não vê-los ainda crianças. Por isso, entender o quanto a infância se coloca proposição simbólica exige investigar também as inversões provocadas no existir criança nos dias atuais. Há tempos, escrevi uma resenha sobre o quanto a infância se pilarizava sobre a tríada descoberta, destruição e criação. Nela, abordei a especificidade de serem hoje a descoberta uma escolha, a destruição um processo de construção, e a criação a superação à imagi-
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Candela Recio, Gonzalo Herrero e Siro Ouro em cena, antes da entrada de Irene Bolaños, em 2014.
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nação. Durante as descobertas, mente-se inevitavelmente as verdades apresentadas, condicionando a subjetividade ao limite do necessário para o que busca atingir. Descobrir, então, é um processo defensivo, faz-se pela manipulação de escolhas calculadas, e no uso da materialidade corporal como instrumento para gerar essas manipulações sobre os contextos e ambiências. Já a destruição, como gesto comum da criança, implica mais na tentativa de construir o irrepresentável, o vazio, aquilo que não se sabe dar forma ou se verifica específico. Assim, destrói-se tanto objetivamente algo, quanto as expectativas e emoções, como meio de provocar o novo e próprio. Por fim, a relação entre imaginar e criar está no fato de que a criança imagina aquilo que lhe falta, substituindo o ausente pelos códigos reconhecidos em si mesma. Esse movimento leva consequentemente também
a outro existir. Significa dizer que a criação supera a ação de imaginar, pois a concretiza e realiza, a partir do próprio corpo como referência de concretude. Bom, mas isso foi antes. A resenha tem já um certo tempo. E, ainda que possua seus acertos, algo não se encaixa plenamente quando levada ao La Tristura, pois nela eu falava sobre a infância e a criança, enquanto a companhia fala sobretudo de artistas. Voltando à conversa, pergunto aos meninos e meninas sobre como imaginam seus futuros. A pergunta me interessa, tanto como tema no espetáculo, quanto na dimensão que escapa à manipulação de criações objetivas. Apenas pensam, desejam o futuro, eles respondem, porém sem nenhum interesse em decidí-lo, determiná-lo. Aqui, o imaginar deixa de ser a correspondência do criar, desassocia-se da forma qual pro-
pus. Explode a condição do pensamento ao reconhecimento do amanhã como potência genuína e irrecusável. Contudo, ao se colocarem abertos, os quatro acabam por tratar o futuro como recurso histórico narrativo de si mesmos. O amanhã, o futuro está, apenas isso, e lidar com ele na instância de sua aceitação, imaginando-o concreto, basta. Provoco-lhes com dois episódios levantados durante o espetáculo: vocês permaneceriam em suas idades?, permaneceriam no instante do teatro para sempre? Eles riem. Quase surge um pequeno debate. Mas concordam. Gostam de ter a idade que têm. Gostam do teatro, mas isso não significa fazê-lo para sempre. Estão curiosos sobre outras profissões, outras possibilidades, e o palco preenche apenas o agora, o presente. Enquanto comentam um a fala do outro, descubro a falta de deslumbramento, sobretudo por
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O ator Siro Ouro, em foto de Guto Muniz.
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tornar a criança o signo de um adulto em descoberta
confirmarem a aceitação dos pais, desde o início do projeto. Não há o culto narcísico ao artista, pelo contrário. É quando um deles, o mais tímido, diz “no teatro não existe um jeito fácil de fazer as coisas, tudo é muito complicado”. E os demais concordam. Talvez seja a escolha dos temas abordados, a maneira com que são levados a lidar com assuntos e valores complexos. Pode ser, respondem, aceitando minhas colocações. Esse mergulho ao mais profundo do homem acaba por lhes provocar um desejo genuíno pelo descobrir quem são, pelo estar onde estão, viver as idades que possuem. Lidar com o amor e a dor em cena, apropriando-se da disponibilidade performativa de viver a obra, tornou esses garotos e garotas maduros o suficiente para serem crianças, com tudo o que isso pode significar, do senso comum ao mais inesperado. Nos últimos anos, cresceram. É inevitável. E o espetáculo precisou mudar também. Agora, o toque dos corpos deixam de ser jogos e apontam inevitáveis erotizações. Um olhar mais íntimo gera consequências narrativas completamente diferente. Conversando com os diretores Celso Giménez, Itsaso Arana e Violeta Gil, explicam-me aceitarem as mudanças em seus três níveis: as pedidas pelas estruturas narrativas e suas atualizações à época, as impostas pelas reconfigurações simbólicas e as propostas pelos próprios meninos, ao compreenderem diferentemente alguns aspectos,
situações e sentidos. A frase muda em seu sentido, me explicam. E tudo é outro. Constantemente novo. E é esse novo, o mais interessante a se descobrir, penso. Por outro lado, digo a Itsaso sobre o quanto os olhos dos meninos carregam certa pureza. Ela concorda. Explica que, apesar de não ser um espetáculo fácil, buscam sempre estratégias para que permaneça lúdico e divertido. Hoje, a tensão entre eles é diferente, maior, revela. Própria da idade, é certo. Mas esse outro movimento de busca de identidade, afirmações de toda sorte, levam o espetáculo a perder instantes que passam a parecer ingênuos e a ganhar tantos outros só possíveis agora, por estarem mais maduros. Ficam, assim, a sensação de um passado em pleno movimento de distanciamento e de um presente em revelação. E essa é a mesma sensação ao conversar com Candela, Gonzalo, Irene e Siro. A de estar de frente ao movimento do tempo, sem que esse se preocupe em revelar sua ação. Eles apenas são quem são. E é incrível descobrir o quanto o ser humano ainda é belo e surpreendentemente necessário. Sentado no café, ouvindo-os falar sobre teatro, futuro, viagens, expectativas, desejos, transformações, renovações, o quanto, a cada época, tudo se refaz e recoloca, recordo-me da inquietação trazida por Deleuze ao pensar a criança, e seu questionamento de como podemos recomeçar o novo. Se, como também
afirmou o filósofo, a vida intelectual permanece inseparável das determinações empíricas, oferecendo à criança a possibilidade de sua plenitude ainda que limitada ao seu repertório, então os quatro, mesmo tão jovens, tornam empírica a maneira como a história se revela impositiva à nossa identidade. Argumento esse, também do próprio espetáculo. No entanto, diferentes aos seus valores. Enquanto no espetáculo, o corpo assume a dimensão histórica como representação do que a ele é determinado e construído; ali, ao redor
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Os jovens atores em cenas de “Matéria Prima”.
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da mesa, entre um gole e outro de nossas bebidas, a história ou tempo assume um corpo de representação da humanidade. Por serem agora não tão crianças, mas impossível não imaginá-los assim no início do projeto, a relação de identificação me amplia o sentimento de recomeço apontado pelo filósofo. Há mais neles do novo do que há em mim. Mas esse novo, esse outro, esse próximo, só se valida no instante em que me provocam a me rever, e em mim encontro aquilo que espelha suas idades. Pode ser confuso tudo isso, contudo,
eles sabem. Brincam com a permanência de certo ar de suas juventudes, enquanto visivelmente se olham, provocam-se, divertem-se escondendo suas sutis e verdadeiras maturidades intelectuais. O tempo todo eles jogam. Sendo eles mesmos, assumem a face do jogo do teatro sem personagem, aprendido no próprio fazer do teatro. Por fim, uma última questão. Por estarem viajando muito, deparando-se com tantas culturas distintas, lugares, pessoas, como seria lidar com o que é para ser diversão, em forma
de responsabilidade e trabalho? A resposta esperada e óbvia seria que, mesmo assim, conseguem se divertir. Esqueça. Eles são sempre mais interessantes que o óbvio. Preferiram dizer que o trabalho é se divertir. Isso quando conseguem viajar, quando podem escapar um pouco da escola, prioridade desde sempre. O fato é que assistir e falar com esses meninos e meninas tornou tudo diferente, ainda que não saiba explicar como. Uma certa sensação de que algo está em processo e terá respostas. Deixei o café com as três lembranças que os
O olhar secreto de Camille sob as lentes de Roberto Setton.
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fotos de Mario Zamora, Guto Muniz e Patrícia Cividanes
À esquerda, a atriz Candela Recio. Nesta páginas, os diretores da companhia La Tristura, Celso Giménez, Itsaso Arana e Violeta Gil.
desenharam: a potência de suas presenças em cenas e qualidade ímpar na construção de um espetáculo único em poética e experiência; as falas e timidez durante nosso encontro no café e a generosidade em como se permitiram o diálogo; e o instante na van, a caminho ao jantar sem que soubessem quem eu era, quando, após o espetáculo, acomodei-me no primeiro banco, e eles, depois de uma noite tensa de estreia, cantavam e tocavam como crianças durante uma excursão qualquer. Eles se divertiam. E eu tentativa lidar com a mistura de minhas emoções. A cada refrão, percebia-me ainda mais com saudade e aterrorizado por ter sido criança. Saudades do que era e a importância que ti-
nha sem sabê-lo, a ingenuidade com a qual existi criança. Aterrorizado pelo que devo ter sonhado para mim e não sou capaz mais de lembrar, e as inevitáveis frustrações com o que me tornei. Diferentemente deles. Eles sabem quem são, e não estão preocupados com quem serão, apenas estão certos de que serão. Como deveria mesmo ser, desde sempre, para todos. Como o teatro lhes proporcionou entender na prática. Terminamos nossas bebidas e me despedi de Candela, Gonzalo, Irene e Siro com a felicidade de saber que, tão cedo, já são artistas e pessoas mais preparados do que eu pude ser. E melhor, sem perderem a doçura e curiosidade sobre o mundo e sobre eles mesmos.
“não nos divertimos no trabalho. nosso trabalho é nos divertirmos”
Cena de bastidores há alguns anos de “Materia Prima”.
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campanha
deixe o poético invadir seu mundo ninguém deve te proteger da arte
concepção
patrícia cividanes + ruy filho
colagem miniatura
zé vicente
foto
alex silva
assistente
Thais Rocha
Esta ĂŠ uma campanha
Francisco Haddad + ZĂŠ Vicente
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a egn v i t ben
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polĂtica da cultura amplificada por ruy filho
NOVA SUSTENTABILIDADE Uma nova perspectiva para efetivar a sustentabilidade de uma companhia teatral
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les chegaram, ocuparam o palco e os microfones instalados nas laterais do proscênio. Poderia ser mais uma apresentação de projeto. Não foi. Nos poucos minutos em que poderiam vender suas ideias, os celulares já acionavam as calculadores e levavam todos ao espanto. Sim, eles estavam certo. E eu, ali, na segunda fileira do teatro, acompanhando o pitching promovido pelo Tempo Festival, durante o II Encontro Artes Cênicas & Negócios. Minha única certeza, a Antro Positivo precisa urgentemente conversar com eles. Ideias se espalham, mas possuem origens. O que não é muito levado à sério no Brasil. Então, sim, a ideia original é deles, e suas consequências poderão resolver algumas questões sobre o nosso fazer teatral atual. O ponto de investigação foi construído a partir da relação de sustentabilidade e independência aos mecanismos de patrocínio e financiamento. Entende-se comumente sustentabilidade como uma única coisa. Mas, ao mergulharmos mais filosoficamente sobre, ver-se-á que existe variantes. Então, antes de trazer o pensamento de Igor Algelkort e Marcela Casarin, da Probástica Cia. de Teatro, detenho-me a decifrar as diferenças estruturais. O que pode parecer uma mera semelhança semântica, não é. Há que se diferenciar a Sustentabilidade da Cultura e a Sustentabilidade Cultural. É fato encontrarmos ambas as expressões utilizadas quase que aleatoriamente, mas cada uma configura uma perspectiva muito específica ao projeto. Se entendida a sustentabilidade cultural, refere-se então à capacidade em fortalecer continuidade às qualidades culturais de um determinado produto ou serviço, seja ele artístico ou não. Portanto, toda e qualquer ação que se dobre sobre o viver, configu-
política da cultura
amplificada
O artista não pode se sabotar como produto Marcela Casarin e Igor Algelkorte nos bastidores da Probástica Companhia de Teatro, fundada em 2011.
ram mecanismos de fortalecimento cultural, especificamente em seu aspecto mais antropológico. O sustentar cultural, por conseguinte, destina-se ao interesse do como relacionar o sujeito e comunidade, fortalecendo suas estruturas de participatividade e pertencimento. Já a sustentabilidade da cultura se organiza para gerar mecanismos de independência dos instrumentais culturais em suas mais variadas expressões. Assim, a produção cultural passa a ser o foco central do problema, e o como lhe atribuir maior valor ao aspecto intangível, em contraposição à produtificação da cultura, cuja importância se coloca equivocadamente, e sobretudo, na capacidade de capitalização monetária. Voltando a Igor e Marcela... Os dois investigaram como solucionar a sustentabilidade da cultura, ou seja, como sustentar a arte, o espetáculo, sem permanecer acorrentado aos recursos constantes. A proposta é tão complexa quanto simples. Explico. Simples no argumento, complexa na realização. E foi exatamente a intersecção entre essas duas sensações que surpreendeu a todos os ouvintes. Não é a toa que terminaram a tarde como um dos vencedores do pitching, com apoio do SESI carioca para realizarem o projeto em 2015. Verdadeiramente, é preciso dizer terem sido os únicos a apresentarem um modelo de negócio alternativo, e não meramente um produto. A partir de um investimento do patrocinador, no caso do pitching do Tempo Festival, o SESI, eles propõem retornar o valor em dois anos. A novidade não está na devolução do patrocínio, como se este fosse um empréstimo, mas na condição de surgirem como patrocinadores. Ou seja, utilizam os recursos para a realização do espetáculo, recuperam a quantia junto ao público, e reinvestem em outro espetáculo. Parece nada demais. Todavia, assim como foram os primeiros a apresentarem um modelo de negócio, serão também os primeiros a estarem no evento objetivamente identificados como patrocinadores. Essa já é uma mudança gigante no paradigma artista x produto. Agora façamos um cálculos simples para oito anos, ou cinco espetáculos, sendo cada retorno
concepção do projeto de espetáculo
investimento
lucro
visão ger al circulação
bienal. O SESI oferece, para 2015, 50 mil para a produção do espetáculo. A segunda, acrescido um novo investimento apenas com a atualização da inflação (imaginemos 7% ao ano), significa que em 2017 acrescerão 3,5 mil, tornando o custo por espetáculo cerca de 26.750 cada. Em 2019, o terceiro projeto, mais 3.745, e 19.080 cada espetáculo. Em 2021, quarto trabalho patrocinado com o recurso inicial, e com outro repasse, agora de 4.007 reais, a média de financiamento dos espetáculos diminui para 15.313. Por fim, no quinto espetáculo desse exemplo, em 2023, investindo mais 4.287,65 para compensar a inflação, cada um dos cinco trabalhos terá custado ao SESI, após um investimento total de 65.540,00,
preparação do espetáculo
lançamento do espetáculo
pouco mais de 13,1 mil reais. Quando uma instituição pode patrocinar cinco trabalhos, ao custo atual de 50 mil cada, oferecendo-lhe efetivamente apenas 13 mil? Esse é o modelo inovador trazido por Igor e Marcela. Um modelo onde o custo abaixa ao patrocinador, enquanto o dinheiro investido não desaparece, ao contrário, permanece disponível aos artistas e à sustentabilidade da cultura. Confesso acompanhar muitos encontros sobre patrocínio cultural e economia criativa por aí. Contudo, está foi a proposição mais concreta e consistente com a qual me deparei nos últimos anos. E, como dito antes, ela tem pai e mãe. E jovens, o que é melhor ainda! Imagine o quanto revolucionário será se os po-
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premissas
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R$ 50 mil
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investimento inicial
apresentações semanais
média de público
R$ 30
média de valor pago
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tempo de circulação do espetáculo
tenciais patrocinadores entenderem que seus recursos permanecerão em atividade para sempre? Que, a cada projeto novo patrocinado, este se acumulará aos demais? A cada ano, ele patrocina um que seja, por leis de incentivo ou não, não importa, e daqui a dez anos ele terá sua marca presente em dez projetos simultaneamente, apesar de estar diretamente custeando a apenas um? Igor e Marcela deram o pulo que faltava para fugirmos desse labirinto chamado patrocínio. Tornaram o jogo mais saboroso aos dois lados envolvidos. Por isso, conversar com ambos se revelou interessante. Ouví-los, entendê-los. Encontramo-nos numa praça de alimentação de um shopping no Rio de Janeiro, onde, poucas horas depois, Igor estrearia sua participação em um espetáculo. Ele começa explicando que, quando se deparam com o processo de preparo para o pitching, a questão que os inquietou foi a de como falar de política, no sentido de construções de ações e desdobramentos possíveis, tornando a ação um acontecimento provocador, a promoção de experiências. Ainda que pareça abstrato, a proposta está condicionada a sua condição
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ética, e se faz necessário entender qual a relação a ser construída com a cultura. A resposta, então, iniciou com a provocação a eles mesmos. Como poderíamos ser inovadores?, o que não faríamos?, como independer? Questões estruturais ao fazer teatral e determinantes à estratégia de ação e valor. Na maneira como o artista age normalmente, pouco se dispõe à inovação, pois lhe cabe lidar com o cotidiano massacrante e impositivo, pleno de burocracias e dificuldades sem sentidos. Todavia, quantos se indagam sobre o que não fariam e oferecem caminhos diferentes como reação ao incômodo? Para Igor e Marcela, o maior problema estava na imposição estrutural do mercado que lhes obrigava a permanecer dependentes dos editais, sem possibilidade de continuísmo. Encontrar formas de autossustentabilidade, portanto, foi o que os levou a criar saídas inovadoras. Era preciso convencer da originalidade proposta. A característica de ser inviável aos interesses dos editais, tornou o argumento mais saboroso à organização do evento. Afinal, ali se buscava modelos de negócios diferentes, e não apenas a replicação dos utilizados
À esquerda, o elenco da Probástica Companhia de Teatro: Chandelly Braz, Samuel Toledo, Lívia Paiva e Igor Angelkorte. Abaixo, cena de “Elefante”de 2013.
em outros mecanismos de financiamento. O desenho de sustentabilidade da cultura serviu também para agregar valor de inovação ao pitching, tanto quanto aos artistas propositores. Aspecto interessante, o de provocar no outro a presença de utilidade. Ao oferecer ao Tempo Festival cumplicidade ao embrião da ação, tornou-lhe imediatamente coparticipante pelo início do que poderá vir a ser a terceira via ao financiamento direto ao artista. Em outras palavras, se Igor e Marcela são pai e mãe, o Tempo Festival e o SESI passam a ser a residência. E nada poderia ser mais sedutor do que isso. Durante a conversa, Marcela e Igor falam sobre o incômodo na maneira como os editais construíram ao fazer teatral descompromisso com o público. Tudo já está pago pelo edital, por isso, pouco importa se o espetáculo atingirá o interesse do espectador em consumí-lo, no melhor sentido do termo. Esse comodismo, como diagnosticam, surge em um primeiro instante como única possibilidade ao artista. Restava-lhe o Estado como provedor, enquanto a iniciativa privada se limitava aos interesses de marketing. Todavia, o
paternalismo trouxe dois vícios nefastos: o de que não cabe ao público pagar os ingressos, sempre entendendo-os como caros, mesmo quando incapazes de cobrir minimamente a estrutura de produção; e a percepção equivocada do empresariado de que os governos já dão conta de responder ao teatro. Somados, os dilemas trouxeram uma espécie de dependência do artista ao Estado e independência ao público e mercado. Tal procedimento já se generalizou nas gerações mais recentes, e discutir mecanismos para invertê-lo parece sempre ser um enorme absurdo. Mas não é. Para os dois, a lei de incentivo não deve ser descartada, mas servir como complemento a tantas outras possibilidades, não mais como base única de validação. O artista não precisa ser radicalmente um administrador, mas não precisa se sabotar como produtor, diz Igor. Ao prepararem a proposta para o pitching, perceberam estar o dilema não no convencimento, mas na dicotomia do que levariam à venda, ideia ou produto? Ao ser oferecido um espetáculo, isso limitar-se-ia à produtificação do artista. Resolveram encontrar outros ângulos, algo mais
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democratização culural
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próprio do nosso tempo, e a relação por colaboração se mostrou eficiente. É uma ideia simples, afirmam. É claro haver nela um risco, mas não há na arte uma variável segura. Não se provoca a colaboração por pudor, resumem, uma vez que a ideia já é testada na clandestinidade há muito tempo. O problema está também na quantidade de intermediários. Existe muita gente entre o artista e o público, lamentam-se. E, para o surgir de novos modelos, é preciso aproximar os extremos, sem tanta interferência. Optar em assumir as rédeas se colocando propositivo compromete positivamente o artista. O retorno é imediato e mais objetivo. Ainda sim, é preciso revisar o vocabulário. Dinheiro não sobra, explicam, isso chama-se lucro. O que parece ser silenciosamente proibitivo ao artista. Como próximo passo, a Probástica, Igor e Marcela, investigam as estratégias para que as pessoas se sintam à vontade para colaborarem. Isso, porque o espetáculo a ser realizado com o apoio do SESI será na rua, na expectativa do pague o quanto puder. A primeira solução desenhada está na equação gastos x quantidade de apresentações. Eles apontam como 68
redes sociais e internet
segmento de clientes
fontes de receita
bilheteria espontânea
grande dificuldade a duração das temporadas, cada vez menores. Propõem o oposto. Muitas apresentações, utilizando-se de espaços públicos como praças e ruas, afim de não gerar gastos estruturais ainda maiores, como alugueis de salas, e possibilitando maior circulação e duração do espetáculo. Por isso, retornar ao Tempo Festival após dois anos. Por isso as nossas calculadoras nos assustaram com a eficiência do resultado possível. Igor e Marcela admitem, esse processo pode ser sim eficiente matematicamente também em salas tradicionais e circulações restritas, desde que revisados os valores e a metodologia de acesso ao público. Se a sustentabilidade, então, é um dos grandes atributos a ser desenvolvido para a permanência de companhias e artistas, Igor e Marcela resolvem agora uma enorme parte. A cultura, como presença e disponibilidade da experiência, pode sim atingir seu continuísmo de modo seguro, a partir de relacionamento com o patrocinador de maneira inovadora. Resta encontrar como lidaremos com a sustentabilidade cultural. Um passo de cada vez. A Probástica já deu o primeiro. E é grande.
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Ester Laccava + Ed Moraes
café duplo
luciana paes& rafael gomes _ Parece que o ator fez alguma coisa errada só porque fez uma peça. _ E no final ainda vai receber o aplauso com um ‘desculpa qualquer coisa’.
por
ruy filho patrícia cividanes
fotos
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uando decidimos na edição anterior receber convidados e abrir espaço para conversas não planejadas, imaginávamos que seria divertido. E foi. Tanto que, manteremos em todas. Então, precisávamos decidir o mais complicado, quem seriam? Quem junto a quem? Juntar é sempre um dilema, e o que pode ser uma intenção, pode terminar como provocação. Para a edição 12, decidimos abrir o apartamento para também nos aproximarmos de artistas que admiramos: Luciana Paes e Rafael Gomes. O encontro nos parecia interessante: ela vem de uma excelente trajetória no teatro, integrante de um dos mais interessantes grupos da atualidade, Cia. Hiato, e agora com uma participação explosiva também na teledramaturgia. Ele, por sua vez, escrevendo com sucesso para séries televisivas, revelou-se um dos melhores nomes para a linguagem, agora, e cada vez mais, também criando um sólido trabalho como diretor de teatro. Arrumada a casa, comida pronta, bebidas prontas, café à espera, havia certa ansiedade nossa. Até o interfone tocar. Rafael chega primeiro, marcando o segundo ponto para os meninos. Justamente com quem menos temos intimidade, pensei! Nenhum problema. A conversa se desenrola fácil e quando Luciana surge, estamos bem adaptados. Com Luciana não existia essa timidez. É impossível não se entregar à sua eletricidade. Sentamo-nos à mesa, servimo-nos com a cerveja gourmet especialmente selecionada, e começamos a conversa. Claro que não tão fácil assim. Afinal, quem segura Luciana? Risadas, piadas, trocadilhos, e a noite se enche de diversão e devaneios. Ela nos fala sobre como foi interessante trabalhar na televisão e a dupla dificuldade. A primeira, a de não se limitar a ser um produto dentro do próprio mecanismo, impondo, de maneira natural, sua identidade distanciada à da personagem. E exemplifica contando quando precisou explicar a um determinado programa da emissora que, como personagem toparia qualquer brincadeira, mas como Luciana, não. É curioso que essa diferenciação precise ocorrer também internamente, já que nas ruas, shoppings, espaços públicos, as pessoas não a compreendam. A perspectiva de convidar o ator, como se falasse ao personagem, evidencia o quanto é fundamental esclarecer e distanciar as coisas. Esse é, em certo aspecto, um espelho de como as pessoas se confundem em uma companhia, explica. No caso de um grupo, o convívio
O ensaio fotográfico exclusivo para a revista Antro Positivo teve como especial locação o Casarão do Sesc Ipiranga, do Projeto É logo Ali, um pouco antes de ser desocupado por completo.
acaba por tornar cada um a extensão do conjunto e não simplesmente uma unidade no interior do coletivo. Portanto, é possível desenhar o indivíduo no coletivo de uma companhia de teatro como um personagem, como aquele que sempre deverá ser a pluralidade e nunca a si mesmo. Para Rafael, as relações se colocam diferentes. Ele não possui uma companhia exatamente, busca parceiros constantes, com quem possa desenvolver trabalhos específicos, sejam co-roteiristas ou atores. Essa estrutura lhe permite maior liberdade, certamente, ainda que lhe exija certezas nas mesmas proporções, enquanto em uma companhia a responsabilidade se divide sobre
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as escolhas. Há prós e contras, portanto, tanto na coletivação, quanto na independência do artista. Saber qual usar depende menos das características de quem decide. Deve estabelecer os princípios norteadores da arte que se quer investigar. Trata-se, então, do querer construir uma linguagem ou do querer verticalizar um trabalho específico. Não há maior ou melhor valor nisso. E Rafael e Luciana são provas da eficiência de ambas as maneiras.
Posso servir o vinho, enquanto preparamos a comida?, pergunto. Taças preenchidas, mais risadas e histórias de Luciana, comentários, lembranças e a descoberta de que ambos já se esbarraram muitas vezes por aí. Hora, tentamos provocar um encontro e acabamos por possibilitar um reencontro! Melhor ainda, mais a comemorar. Logo a conversa envereda sobre a dificuldade em se fazer um espetáculo. Rafael diz buscar sempre textos e argumentos que lhe provoquem vontade de criar e apresentar. Mas nem sempre parte dessa realidade, confessa. Já aceitou trabalhos trazidos e provocados por outras pessoas,
“Todo personagem é uma forma de perdão” com a preocupação de nunca radicalmente se distanciarem de seus próprios momentos. Quando assisti a um de seus trabalhos recentemente, conto-lhe, encantei-me com a diversidade da plateia. Eram rostos nitidamente não tão acostumados às salas menos comerciais, tudo parecia lhes surpreender. Rafael diz estudar o dialogo com públicos específicos para cada trabalho, tornando as questões específicas os valores diferenciais. Confirma minha impressão de seus trabalhos gerarem uma plateia específica, cuja permanência se confirma a cada nova produção. Esse é o movimento mais complexo ao artista, construir seu próprio espectador. E ele realiza esse encontro com precisão. Luciana, por sua vez, aceita a condição de raramente o artista conseguir estar no trabalho perfeito. Não se trata apenas de condições, mas do quanto pode ser essencial ao artista fazê-lo. E explica ter, verdadeiramente, duas peças, dentre as tantas que já participou, que pode nomear como fundamentais. Essa percepção não se trata de desvalorização, implica na capacidade de como se perceber. Hoje, tudo está muito mais determinado pelos recursos, sobretudo financeiros, e não mais pelas vontades. A televisão lhe mostrou uma série de outras realidades, inclusive a imposição ao artista de se fazer consumível. Para tanto, é preciso entrar para a fofoesfera, brinca. Sim, o reconhecimento público implica em uma soma estranha entre talento, adequação, empatia e também sorte, por que não? O interessante em ouvir os dois é exatamente sobre o a intersecção entre isso. De alguma maneira, ambos batalham o existir do artista dentro de condições de mercado que não lhes são possívies. Esse é, talvez, o ponto central da contemporaneidade. Sem ter controle sobre como pertencer, resta ao artista desenhar possibilidades próprias de participação. O dialogismo entre pertencimento e participatividade comum ao artista moderno, agora se coloca conflituoso. É preciso escolher um ou outro. Luciana parte da busca por pertencer a uma estrutura alternativa ao mercado, para gerar sua participação na indústria cultural; enquanto Rafael executa o caminho inverso. Conclui-se, não haver certo e errado. O artista hoje passa a ser a configuração
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o teatro depende da capacidade de se autoperceber
Lucana e Rafael ocupam os quartos do Casarão do Sesc Ipiranga, ainda com parte das instalações expostas ali.
“Desculpa qualquer coisa” de qual aspecto será o ponto de apoio, origem, estrutural, e qual será o ponto provocado, resultante, possibilitando o surgimento de uma linha entre os dois pontos e pela qual será exposta sua narrativa como personalidade cultural. A conversa continua, enquanto a salada e o quiche são servidos, acompanhando o renovar das taças. Quando se volta mais ao palco, às relações do artista com o teatro, Luciana resume brilhantemente dizendo estranhar a relação com qual lidamos com o fazer. Reaparecemos ao final do espetáculo como quem oferece um “desculpa qualquer coisa”. Depois de nos recompormos do ataque de riso inesperado, aceitando termos as mesmas sensações, Rafael argumenta sobre a necessidade de estimular a espontaneidade do ator em cena. Tal aspecto interessa discutir, sobretudo se levamos em conta o quanto o não espontâneo implica em uma exposição do ator, a partir dos estereótipos de sua suposta genialidade. O dilema se revelará, por fim, no construir tal proposição em trabalhos mais herméticos e menos realistas. Como ser tão próximo ao outro, quando aquilo que se necessita construir for radicalmente diferente do que se conhece? Um caminho possível é tratar o espontâneo diferente de algo natural, mais mimética do homem. Ou seja, determinar-lhe consistência de presença cênica, cujo contexto é o instrumento para oferecer ao espectador o reconhecimento. Deste modo, não se faz necessário construir o tipo como representação. O personagem, e não o ator, é quem precisa estar em consonância ao espectador. Todo personagem é uma forma de perdão, afirma Rafael. E ele está certo, principalmente se entendermos o personagem como um desdobramento inevitável, cuja subjetividade de sua construção se alimenta do inconsciente do próprio criador. Podemos, ainda, entender por perdão a capacidade do ator justificar as escolhas. Nesse sentido, qual o valor das justificas, se estas surgem como prerrogativa para dimensionar as escolhas ao imponderável? Substituir a resposta psicana-
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Tudo é cenário. Lucana e Rafael se apropriaram dos ambientes do Casarão do Sesc Ipiranga, em SP.
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Luciana Paes e Rafael Gomes vestem acervo pessoal e objetos de produção da revista Antro Positivo.
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lítica a essa indagação confere ao criar uma dinâmica menos casuística. O ator faz-se falsamente o elemento de apoio ao personagem, enquanto, verdadeiramente, utiliza-se para fingir ser personagem. É nesse instante que tudo vale, tudo se aceita e é permitido pelo espectador. É nele que o perdão se consolidará estratégia e não resposta. Enquanto o vinho de porto, café e chá são distribuídos, falamos sobre a recente pesquisa sobre hábitos culturais e a resposta desinteressada das pessoas pelo teatro. Não há o que entender objetivamente sobre isso, são muitas as variáveis, desde condições históricas, culturais, vocabulário simbólico etc. Ainda assim, tentando compreender de alguma maneira, Luciana fala sobre o quanto o teatro pode ser também chato, e revela a vontade de preparar um espetáculo apenas com os argumentos do que deixa o teatro desinteressante. Então, o melhor de sua explicação, o nome: Porque as pessoas não gostam de teatro ou os benefícios do inhame.
“O importante é entrar para a fofosfera” O encontro termina assim, entre risos, últimos goles, fotos frente ao espelho e agradecimentos. Luciana e Rafael ofereceram, para além de uma noite extremamente agradável, argumentos e reflexões fundamentais à ambivalência do existir artista atual. Muitas dessas ideias, pensamentos surgidos sem maiores comprometimentos, provocados pela disponibilidade à conversa, reverberarão cada vez que estiver na plateia assistindo aos seus trabalhos. Dois artistas, dois caminhos, duas possibilidades, dois olhares, e o teatro como epicentro, como única certeza, único resultante. É esperar o tempo oferecer a cada um outras respostas e experiências. E torcer para que Luciana nos ofereça a oportunidade de conhecer, enfim, os benefícios do inhame. Fica a porta aberta, e nosso eterno agradecimento por uma noite tão inquietante, estimulante e divertida. Acho que dá pra imaginar frente o inacreditável fotográfico feito por Patrícia no casarão ocupado pelo SESC Ipiranga recentemente, não?
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“o teatro precisa ser como uma música de cazuza”
vertical
O ARTISTA FRENTE AO PARADOXO ENTRE O
DESEJO E A NECESSIDADE DA
ARTE por ruy filho
início
um começo.
Diferenciam-se por perspectivas próprias Diferenciam-se do como são diferenciados na realidade do sujeito social Diferenciam o artista do sujeito social
É preciso compreender o começo
Todo desejar se revela
Começa de alguma maneira, algo objetivo que se revela precisar ser feito Ou uma tentativa de querer chegar a algo que ainda não se sabe exatamente explicar O teatro se dá assim,
para além do instante.
no instante de sua nomeação
Estabelecer a ordem de como chegar ao espetáculo.
Todo desejo busca ser realizado
Entendendo o espetáculo como consequente.
Almeja ser necessário aos outros
E não como fim. Portanto, existe um trajeto.
Nele não cabe ser aleatório. Nele não cabe ser apenas aleatório. Nele não cabe aleatoriamente querer Nele não cabe apenas querer O começo surge pela potência da vontade. E toda vontade é a forma consciente de algo inconsciente. E tudo aquilo construído no inconsciente é uma forma de desejo O começo surge com a percepção de um desejo. Deseja-se dizer, negar, perguntar, sentir, vivenciar, expor, encontrar, duvidar, oferecer. Para Roland Barthes, o homem vivencia a compreensão de seu existir como sujeito nas ambivalências dialógicas entre necessidades e desejos
Necessidade não é o mesmo que desejo Mas no artista ambos se confundem Mas não são exatamente princípios iguais
Todo necessitar se revela no instante de sua ausência Toda necessidade busca ser suprida Almeja ser desejada por compartilhamento
Deseja-se aquilo que não existe Desejar é expandir o existir como presença a alguém
O sujeito do desejo é o próprio indivíduo
Necessita-se aquilo que não se possui mas existe Necessitar é expandir a posse sobre algo ou alguém
O sujeito na necessidade é o outro
Só que existe mais para além do artista
Existe a época Existe o instante Existe a urgência Existe a dúvida Existe o medo
O desejo do artista também está no induzir a necessidade do outro como sendo seu próprio desejo
Tornar-se sujeito contemplativo é cuidar ele mesmo da satisfação
É preciso entender como lidar com
de suas necessidades e das
a ideia de sujeito em seu estado de ambivalência
importâncias de seus desejos
e deslocamento constante É preciso entender que cada sujeito tem seu próprio ritmo Sua idiorritimia (Barthes)
Ao teatro cabe pensar como a cena se oferece experiência Esta se faz pela manipulação narrativa dos ritmos estruturais dos signos envolvidos
Cabe à subjetividade do artista estabelecer os ritmos de cada signo O teatro é a exposição idiorrítimica da subjetividade do artista
Por isso o artista se reduz ao mínimo Se reduz a ele E na finitude de sua ação Sua criação Se limita ao instante como potência de tornar desejo e necessidade iguais
O artista se revela o paradoxo de ser sua ação a expansão de sua presença ao outro O artista é seu próprio objeto e não mais a arte A arte é a consequência de sua constatação A arte é a resposta de sua existência Existe nisso um risco social Pois o contemporâneo exige ao homem sua integração social como se fosse uma lei natural Então ele confronta a sociabilidade Ele configura um ruído social Ele se faz incontrolável
O artista se vale por não ser natural
Ao criar, o artista se coloca inevitavelmente só
O artista se vale por não ser
A individualidade no contemporâneo confunde no
integrado à sociedade
mesmo sujeito necessidades e desejos Então o artista fundamentalmente é incapaz de escapar da confusão entre sua
O artista se vale por não ser afeito à exigências
necessidade e seu desejar
O artista se vale por não caber às
Só lhe resta voltar o interesse a si próprio
leis morais comuns
como forma de equilíbrio Encontrar o meio de contemplar a si mesmo como sendo também outro 94
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Os dois principais riscos sociais ao artistas são falta de comunicação e excentricidade
A consequência imediata é a
condenação do artista ao seu individualismo
O artista está fadado à condenação social Seja na tentativa de aprofundar seus desejos Tornando menos comum seu discurso
Por isso criar como reconhecimento da pertinência dos medos Por ignorar a totalidade Impotente frente ao real Humilhado pela inutilidade A arte como sedimento da tentativa de tornar suportável a vida com a consciência de seus limites A arte como exposição subjetiva de um sentimento de horror frente à morte do sujeito
Seja na tentativa de se fazer necessário
Cabe ao artista provocar
Tornando exagerado seu discurso
o desejo de impaciência
Se imediatamente reconhecido e aceito Se não se revelar um incômodo É porque está comunicando apenas o que a sociedade quer ouvir É porque está se apresentando dentro dos limites que a sociedade lhe permite
ao recomeço Negar a própria época Tornar o discurso o não querer p ertencer e ser uma época histórica
O artista se valida a partir de sua não aceitação social
Dane-se o passado
Combater a isso é querer ser aceito
Dane-se principalmente o presente
Querer ser aceito leva à insegurança A insegurança leva ao medo Zygmunt Bauman identifica três medos
Ignorância, não saber o que irá acontecer Impotência, suspeitar não haver nada a fazer Humilhação, sentir ameaçada sua autoestima É preciso aceitar a condição da derrota É preciso aceitar a falência em ser artista É preciso aceitar a inutilidade de seus desejos É preciso aceitar a sua desnecessidade É preciso reconhecer sua finitude
Dane-se o futuro
Ao artista o tempo é o inimigo de sua liberdade à história Contrário à mensagem Antônimo ao gesto de tomar para si a palavra Pois no querer a palavra A razão da linguagem se perde Se limita ao discurso, ao servir ao instante E deixa de ser arte
O que menos importa ao fazer contemporâneo é o estilo Pois todo estilo reflete a pertinência de um sujeito O artista contemporâneo deixa de ser o sujeito de um objeto arte Ele provoca a instabilidade ao objeto arte Torna-se ele o próprio objeto
Então, o começo do teatro não é o espetáculo O espetáculo é a consequência O começo está no objeto artista Na maneira como desdobra a si mesmo como objeto E como ao sê-lo desestabiliza o discurso social Impondo-se ao tempo e às necessidades
O desejo gera o percurso que gera a ideia que gera o conceito que GERA o espetáculo que gera o reconhecimento do artista A necessidade gera o espetáculo que necessita do conceito que necessita da ideia que necessita do percurso que necessita do desejo que necessita do artista Criar pelo desejo torna o artista o real objeto, interferência, ruído, deslocamento, instabilidade
Pra isso é preciso se entender como acúmulo de suas percepções E suas percepções como desejos necessários Para desdobrar o desejo ao seu reconhecimento comum Provoca ao desejo representações sígnicas Construindo um percurso rítmico de acúmulo dos signos Gerando um percurso capaz de responder em ideias Para delas surgirem conceitos sem pré-julgamentos Pelos quais se configurarão perspectivas narrativa e estética singulares 96
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Criar pela necessidade torna o artista resposta, possibilidade, reflexo, localização, posicionamento, equilíbrio
Ambos possuem a arte como interlocutora com a sociedade Mas são radicalmente diferentes em suas proposições Sem entender isso A arte, e por conseguinte o teatro, se tornam apenas o subproduto de sua própria incapacidade em se Valer independente.
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s o n kro et t r a u q visitando
A genialidade de um dos mais importantes quartetos desde Beethoven por
ruy filho
intĂŠrprete
claucio andrĂŠ
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David Harrington durante a entrevista exclusiva a revista Antro Positivo, em foto de PatrĂcia Cividanes. Na pĂĄgina anterior, Kronos Quartet ao vivo em Las Vegas, em foto de Erik Kabik.
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ra o ano de 1973. Muitas coisas aconteceram no mundo naquele instante, e também no Brasil. Os Estados Unidos assinava em Paris o acordo de cessar-fogo e a guerra do Vietnã caminhava ao fim, enquanto Nixon assumia Watergate. E tudo mudou, depois disso. Por aqui, Médici dava as cartas e as porradas; a telenovela se tornava colorida, e tudo mudou, ou mais ou menos isso. Em março, nasci; em agosto, exatamente uma semana depois de David Harrington ouvir Black Angel no rádio, o Kronos Quartet nascia. Temos a mesma idade, portanto. E precisamos de quarenta anos para nos encontrarmos em um hotel em São Paulo. O Kronos, dentre tantas outras importâncias, fez parte do como aprendi a ouvir música erudita. Ousados, inquietos, divertidos; a maneira como interpretam encontra o ouvinte de modo peculiar e extremamente refinado. Em seus 57 álbuns, compositores clássicos, eruditos contemporâneos e astros do universo pop são apresentados de modo singular com uma assinatura precisa. Agora, chegara o dia de nos conhecermos. Conversar com David foi emocionante. Carismático, gentil e disponível às reflexões, o encontro, com pouco mais de uma hora, trouxe suas inquietações e, principalmente, paixões. Após lhe agradecer e dizer o quanto me influenciam, peço-lhe licença para começarmos colocando fogo na conversa. David ri, arregala os olhos por detrás dos óculos,
enquanto acena positivamente com a cabeça, como que dizendo, tudo bem, vamos lá. Inicio falando em política, afinal, mesmo sendo um quarteto clássico de cordas, o grupo produziu músicas também para vídeos sobre a Primavera Árabe e o movimento Occupy Wall Street. Após um longo período pensativo em silêncio, conclui ser a música inveitavelmente uma manifestação política. Não se refere ao uso político, mas ao próprio sentido de ser ela a escolhida como arte. Isso, porque, desde cedo, o artista se vê envolvido por sua decisão por todos os lados. “É preciso determinar um caminho que supere o fato de haver tantas pessoas contrárias”. Encontrar um jeito, e isso é muito difícil, explica. A instância política, a condição de ser a escolha também um posicionamento, portanto, coloca-se inerente desde ao desejo, por trazer nele um certo sentido de enfrentamento. É claro que David discorre sobre à música instrumental erudita, seu território. Não é preciso confirmar tal percepção. No universo pop, tal negativa deixou de ser contundente nas últimas décadas, levando ao exagero da distorção pela busca da auto-celebrização do indivíduo. Mas, música erudita instrumental, por que alguém deveria escolher mesmo isso?, talvez seja a pergunta mais recorrente por aí. Em um segundo instante, lidar com a realidade. Guerras, meio-ambiente, destruição, racismo, violência infantil, dentre outros exemplos, se confrontam ao movimento falsamente abstrato do criar com-
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posições. Qual a importância, quando essas questões se colocam radicalmente urgentes? Para David, a música tem a propriedade de torná-las sem sentido, ao envolver o homem. Então, é possível utilizarmos a música como meio de distanciamento e respiro, e para provocar percepções mais radicais e profundas sobre os dilemas. Já tocamos músicas palestinas para judeus, exemplifica. Por fim, bom contador de história que é, narra sobre a noite anterior ao nosso encontro, no quarto do hotel, quando ouviu a execução de 1942, a primeira, da música Ain’t no grave can hold my bold down por Bozie Sturdivant, A composição original é de 1934, de Claude Ely, aos doze anos, tuberculoso. Para ele, a
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possibilidade da música sobreviver e resistir à modernidade, apresentando-se ainda contundente, expõe a dimensão política e incontrolável da música. E resume, Ain’t no grave é tão espiritual quanto política, também por isso. Para David, interessa pensar as diversas maneiras que se escutou música na história, as influências desse ouvir no próprio fazer. É assim que responde à questão sobre consequências e influências das mudanças na indústria fonográfica, os ecos provocados pelas novas possibilidades tecnológicas e estéticas. Conta ter mudada sim, a relação comercial do Kronos. Antes, faziam mais dinheiro com direitos autorais e os álbuns; hoje, com as apresentações. Mas isso não
Hank Dutt, David Harrington, Sunny Jungin Yang e John Sherba, integrantes do Kronos Quartet, em foto de Jay Blakesberg .
o torna pessimista, ao contrário. A performance ao vivo está mais viva, diverte-se. E essa perspectiva do presencial amplia o interesse pelo ouvir. É o que denomina por “diferencial vivo”. Essa não se trata de uma fala solta. David, por diversas vezes, revela interesse no outro, na maneira como podemos encontrar o outro, a especificidade do que nos identifica humano. Pensar a relação entre música e humanidade é construi aspectos sobre nosso próprio reconhecimento. Afinal, a música,
como entendemos, revela-se também criação do homem. Para o filósofo Renato Lessa, a presença humana no mundo se revela pela maneira como manifesta uma inscrição na busca e afirmação de sentidos, revelando no desejo de inscrição as proposições para a fabricação de uma visão de mundo. Perceber e construir estabelecem os caminhos e condições necessárias para a dimensão da ação, ou seja, do existir em presença. Por conseguinte, o que Renato traz é a perspectiva do homem emprestar ao mundo um
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O quarteto durante um concerto, em foto de Lenny Gonzalez.
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“EM CADA NOTA EXISTE UMA POSSIBILIDADE” sentido de mudança e familiaridade à sua presença. Uma soma entre o esforço por sentido e a vontade de inscrição. Podemos entender a música como estrutura de ação criativa, proposição para sugestões de visões de mundo, através da experiência estética sonora. Portanto, trata-se do esforço de interpretá-lo, atribuir-lhe sentido, pela vontade de oferecer originalidade e presença. Ao potencializarmos essa relação no universo da música erudita, aonde o convívio é menos comum, amplifica-se ambos, sentido e inscrição, ainda mais. Interpretar a história ou o clássico faz-se igualmente necessário ao movimento de gerar outras possibilidades conceituais e estéticas. É nesse falso pardigma que o Kronos Quartet se encontra. O grupo determina uma ação também sobre o reconhecimento do humano, ao oferecer ao outro a experiência sonora de sua própria identidade. Perguntado sobre os interesses futuros, David diz fazer mais sentido o relacionamento com a música se não tentar controlá-la. Não busca um objeto específico, deixar vir o que interessar ao momento. Assim, o Kronos não trabalha em direção a um resultado prévio, prefere o sentido de abraçar as influências disponíveis, aproximando-as ao universo do quarteto. Isso os torna mais aberto às experiências. Recentemente, o Kronos foi ao Thomas Edson Museum, onde foi construído o primeiro estúdio de gravação, e registraram algumas músicas. O diferencial está nos 108
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suportes utilizados. Escolheram meios diferentes, do cilindro de cera com gravação manual, disco de 78 rpm, LP, fita-cassete, estéreo, cd, ipod e filmagem, oferecendo ao ouvinte a possibilidade de experienciar modos resultantes diversos. Processos como esse, as apresentações com efeitos luminosos em consonância às melodias executadas, levaram o público do Kronos a se tornar mais jovem com o passar do tempo. Diz encorajarem as presenças de crianças nas apresentações, e confessa preferir que estas venham sem qualquer preparação. Sobre a relação com a juventude, explica ainda haver um muro em relação à música erudita. É preciso tirar esse muro, a música não deve estar à parte da sociedade, lamenta. Muito disso ocorre pela dificuldade individual em lidar com as experiências para além da estética, ou seja, do som. Reaproximando a questão ao pensamento de Renato Lessa, é, cada vez mais, perceptível a dificuldade das pessoas na construção de sentidos inscritíveis, por conseguinte, por manifestações objetivas e individuais de visões de mundo. Por isso é possível entender a dificuldade de determinadas ações se limitarem ao imediatismo, tornando o convívio com a música mais propício ao superficial do que ao erudito. Este, não é fácil, afirma David. Sempre se busca o belo, tanto o artista quanto o público, mas é preciso também abraçar aquilo que nem sempre é o belo, quando se quer ir além na linguagem. E, obviamente, o desconforto está longe de
David Harrington durante entrevista exclusiva, durante sua estada em São Paulo, para o Sesc Festival de Música de Camara - foto de Patrícia Cividanes. antro+
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Concerto de Kronos Quartet, em foto divulgação.
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“O QUE SE DIZ SOBRE MÚSICA PROVAVELMENTE ESTÁ ERRADO”
ser o mecanismo mais facilitador. Reconhecer o contemporâneo é, quase sempre, uma tarefa posterior à sua manifestação. Então, quais compositores serão a face de hoje, quando estivermos criticamente nos revendo? David acha difícil identificar. O que não é um problema. O importante é percebermos estar o tronco da árvore está mais grosso, conclui. Em outras palavras, as ramificações e desdobramentos são mais diversas e sólidas. Mas aponta, por fim, o oxagenário minimalista Terry Riley como um compositor que lhe inquieta mais profundamente. O encontro poderia continuar por muitas outras horas. No entanto, era preciso fazer as fotos e deixá-lo seguir aos demais compromissos. Antes de nos despedirmos, interrompe tímido e pergunta se esperaríamos que fosse ao seu quarto e retornasse. Esperamos. E ele retorna com o novo cd do Kronos Quartet, enquanto explica que esse, especificamente, ainda não está à venda por aqui. Novamente me flagrei apenas como fã. Cumprimentamo-nos, sorrimos, agradecemos um ao outro pela conversa e presente. E deixamos para continuar, então, dias depois, quando nos encontraríamos no Sesc Pinheiros, durante sua apresentação. Com a promessa de lhe apresentar uma certa pessoa, um certo músico brasileiro a quem gostaria de conhecer e falar sobre possibilidades. Esse texto é escrito na madrugada anterior ao dia desse encontro. Um abraço que poderá ser histórico aos dois lados. E que um dia espero poder contar a todos, orgulhoso por ter sido a Antro Positivo a provocá-lo. Por enquanto, é esperar o dia correr e a noite chegar. Por hora, só nos resta esperar ansiosamente, tanto quanto aguardo sempre o gesto perfeito de um acorde de David.
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Kronos Quartet durante concerto ao ar livre, em foto de Jay Blakesberg.
PS.: Madrugada seguinte. O concerto foi incrível. É emocionante como os grandes artistas conseguem ser melhores ao vivo. E eles foram. O encontro ocorreu. Após a apresentação, no corredor dos camarins do Sesc Pinheiros, David e Tom Zé se conheceram, conversaram, riram, fizeram planos e trocaram contatos. E eu, ao lado, respirando fundo, torcendo pelo futuro. Tom prometeu compor. David anunciou que serão duas. Por mim, poderia ser o disco inteiro.
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eles n達 o aca ba m
q ua nd o termin a m
Acompanhe a cobertura crĂtica e reflexiva dos principais festivais de teatro do Brasil. E visite o blog do coletivo de crĂtica DiĂĄlogos para acessar a maratona de resenhas das Satyrianas antropositivodialogos.blogspot.com.br
especiais
www.antropositivo.com.br
diĂĄlogo. x2
por leandro nunes e luĂsa valente
osmo
A sedução nua da violência ou o poder poético do narrar a morte provocada
Direção: Suzan Damasceno. Concepção: Donizeti Mazonas. Adaptação (baseada no conto “Osmo” de Hilda Hist):
Suzan Damasceno e Donizeti Mazonas. Interpretação: Donizeti Mazonas. Participação especial: Érica Knapp.
Leandro nunes: Pronto, vamos lá? Luísa valente: Vamos. O primeiro ponto que me chamou a atenção em Osmo foi a simplicidade do espetáculo. O trabalho do ator parece ser o principal elemento da encenação. LN: A proximidade do diálogo e o olho no olho com a plateia tornam o contato bem especial, é preciso coragem
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pra conceber o que aconteceu naquele palco. E coragem dos dois lados. LV: Entramos na sala do espetáculo e vemos o ator do monólogo nu numa banheira que é bem menor que seu corpo. O estranhamento, no entanto, é logo redimensionado por essa proximidade do diálogo que você aponta. Nos sentimos interlocutores do agora personagem que
rapidamente conquista nossa cumplicidade. Para ser sincera, não precisei ter coragem para estar ali, me senti, estranhamente, a vontade. LN: Quando eu disse coragem, vem em concordância com o que você acabou de falar sobre ser interlocutor. Eu imaginava que por trás de toda a aparente simpatia da personagem, algo de sombrio viria dali, e eu me senti
cúmplice, um ouvinte que percebe a grandeza do que está sendo dito. LV: É verdade, eu cheguei a ficar ansiosa me perguntando em qual momento o homem nu se desprenderia da maciez de sua voz e gesto para irromper num surto de violência de uma confissão sombria. O surpreendente é que esse momento de ruptura nunca acontece: aquele ser frágil que me faz rir é também o
serial killer que relata coisas pavorosas. Ele é humano, eu posso acompanhar seu raciocínio, eu... o entendo? LN: E o ato dele compartilhar seu “grande ato” pede de igual maneira uma atitude nossa, não é apenas ouvir uma história passivamente, mas se engajar com o que ela traz, e isso de uma maneira prática. Esse “grande ato”
é jogado para nós como se agora fosse responsabilidade nossa, o que torna um privilégio pra quem ouve. LV: Porque o ‘’grande ato’’ se torna uma responsabilidade nossa, da plateia? LN: Eu acho que toda história pede um retorno nosso, mais que atenção ou apreço. Talvez um encontro de cumplicidades, ou fraquezas. O que
faz vc compreendêlo, ainda que seja o que é. E isso tbm se mostra na escolha pelo tanque transparente. O ator vai entregando as pistas aos poucos, e entre as vírgulas de suas falas, suas opiniões, ele se torna narrador e narrador de si mesmo. Nu e no tanque transparente me pareceu como se ele estivesse em infusão, e de que o aroma, o “Osmo”, fosse extraído para nós. O que você
achou do “modus operandi” de como ele matava? LV: Achei extremamente refinado, e a narração dele traz uma construção lógica saborosa. De fato, nesse momento é preciso ter coragem para admitir: estou me deleitando com os pormenores de um assassinato! E logo em seguida: tudo bem, tudo bem, esse personagem está acima do
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bem e do mal. Quase uma tentativa de fugir da culpa por me sentir, ao final da peça, tão próxima daquilo que eu deveria repudiar. LN: Sim, vc acabou de concluir seu “seu grande” ato. Ele lança essa deliciosa descrição e nos reivindica posicionamento, uma elaboração, ainda aparentemente “inofensiva” por se tratar de uma peça, mas igualmente moral. É uma brincadeira muito séria RS. Eu mirei muito na relação dele com sua mãe. E o fato dela estar lá durante toda montagem... Ela está morta? Pra quem? Pra nós? Pra ele? Seriam mortes simbólicas. Onde está o pai dele? rs LV: Sim. Que bom que você tocou no assunto da atriz convidada, me parece ser um elemento um elemento fundamental à encenação. Mas eu não li como “a mãe”, mas sim como uma representação das três mulheres que marcam a trajetória da personagem. Mulheres erotizadas, caladas, embalsamadas na memória. LN: Ela ou elas, não tinha pensado nisso, não disse nada, mas falou tanto...
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LV: É um elemento de violência extremamente potente da peça: uma atriz sentada numa cadeira, absolutamente em silêncio o tempo todo. Imóvel. No único momento em que se levanta, vai até a boca de cena e nos olha como quem quer dizer algo mas saímos do teatro sem nem mesmo saber qual o timbre de sua voz. Aquilo me agonizou tanto! LN: Agora a existência dela depende do que Osmo contou, ela só existe pra ele, pra nós. Ainda assim ela não é o que ele nos conta, nem o que entendemos. Um memória amordaçada, forçada a existir... uma agonia LV: Independente disso, foi uma escolha da direção colocar em cena uma mulher sentada o tempo todo, olhando para nós. Claro que, na economia do texto de Hist, as mulheres presentes podem ser reais quanto invenções do narrador-serial killer. Mas na peça essas mulheres, ou uma delas se quisermos ser realistas, ganha concretude real. Ela existe para além do que Osmo contou. LN: Sim, ela teve condição de se fazer
presente, pelo olhar, pelos passos. Por isso assumo dúvidas na fala de Osmo. Ele conseguiu conquistar nossa confiança, mas tbm poderia ter simulado mtas coisas. Acho que por me conectar a personagem, consigo desconfiar de tudo o que ele disse LV: Sim, a direção e o ator estabelecem um jogo de mão dupla com o espectador. Há a identificação (quando você diz que se conecta à personagem, quando rimos, quando nos sentimos cúmplices) mas há também o estranhamento presente o tempo todo na encenação com o elemento da nudez na banheira/retângulo transparente e na figura imóvel e emudecida ao fundo do palco. LN: Isso, o descompasso entre o depoimento cheio de detalhes de Osmo, nu como figura de não ter o nada a esconder, e a mudez da mulher. E no geral, uma misoginia não é? LV: Do personagem, sim. Absolutamente. LN: Por isso até que perguntei sobre o fato dele não citar o pai.
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o conjunto voz e corpo, espremidos no tanque. Pois é, demonstrou minha simpatia por Osmo, se ele existisse eu não temeria assumir rs
LV: Embora só saibamos mesmo do presente, que testemunhamos com nossos olhos enquanto o personagem faz um esforço homérico para tecer uma narrativa de sua própria história.
LV: A perfomance dele é, realmente, de tirar o chapéu. A integração do corpo com a voz e a água é tão coerente que eu tive a sensação de estar diante de um ser que passou a vida toda dentro de um minúsculo aquário. Um homemanfíbio com quem eu dançaria! Rs
LN: O ator apresenta esse perfil de maneira intrigante, utilizando ironia, dominando a consciência e manipulando muito bem
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LN: Sim, ele consegue seduzir, ele domina o
ambiente e a atenção de todos. E eu estarei aplaudindo vcs dois rsrs
LV: Vou seguir seu conselho. Agora até mais, Osmo me espera.
LV: Haha! Eu esperava um pouco mais de proteção da sua parte, mas quando a sereia canta... Todos os homens se jogam ao mar. É isso, nos apaixonamos por Osmo.
LN: HAHA Ok, vá com cuidado! Quer falar mais alguma coisa? Já falei bastante, e você? Algo que não pode ficar de fora? Hmmm, Osmo, quer dançar comigo? Pronto, pra não dizer que não fiz o convite haha.
LN: HAHA Eu me rendi tbm, mas de longe eu posso ficar de olho em vc. Só não caia na história do Cruzeiro do Sul hahaha. Sinto ninguém que nunca acreditou muito nessa parte, mas é assim que ele começa rs
LV: Marque outra noite, essa Osmo já tem compromisso! LN: Oh, droga.
fotos: Keiny Andrade
E seus ataques de fúria que misturam cuspe, fezes e urina. Isso dá algumas pistas do que ele foi e do que se tornou.
obs
por ruy filho
A cultura do
S
e um traço sobrevive ao tempo no Brasil, este é o da corrupção. Não importa o tamanho e origem, fato é, que se tem a corrupção como algo intrínseco à máquina pública e ao jeito de construir a política. Mas, limitar a isso, é se abster de uma discussão menos saborosa, e as implicações no reconhecimento de ser o brasileiro essencialmente corruptível. Trata-se menos de uma questão moral, e mais de uma condição inerente, portanto. Sempre terão os que irão gritar contra tal argumento, enchendo os espaços disponíveis aos comentários com centenas de milhares de exemplos, para comprovarem o contrário. Então, pergunte-se, antes de defender simplesmente, se aquele que nunca roubou dinheiro público, que se coloca enojado com esse gesto, que se identifica como honesto, esse mesmo, jamais se permitiu corromper? Nem mesmo na fila do banco, ou naquele estacionar errado o carro, deixando o pisca-alerta aceso porque só ia demorar um minuto ou dois? Ou quando negociou qualquer coisa, tendo por resposta unicamente a concretização de algo apenas de seu interesse, mesmo sabendo que sua única possibilidade exigirá passar alguém para trás? Quem nunca? Não tenho como afirmar serem todos os seres humanos assim, nem mesmo todos os brasileiros,
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mas, olhando pela janela, na rua, nos convívios, observando as pessoas em suas rotinas, lamento, somos essencialmente corruptíveis sim. Alguns se desenvolvem mais rapidamente, pois enxergam cedo as facilidades em assim ser. Outros, no entanto, talvez nunca se transformem, todavia, lá no fundo, encondem pronta a disponibilidade. Para mudarmos isso, primeiro precisaríamos acreditar na ética. E está, em seu estado mais reconhecível, é destruída a cada dia por aqueles que deveriam ser nossos maiores exemplos. O problema é que são sim nossos exemplos, do que somos e não do que gostaríamos de ser. Políticos mentem, todos sabemos disso. E não são as siglas dos partidos que os impedirão. Políticos negociam, faz parte da estrutura como é colocada. E não serão as reformas promovidas por eles mesmos que levarão ao impedimento dos exageros. Todavia, as eleições de 2014 foram marcadas por um nível extremamente baixo eticamente, valendo-se de tudo para iludir e conquistar. Quem, em sã consciência, é capaz e dizer que alguém alí não mentiu? Quem dirá não estar surpreso com os acordos recentes entre os governantes? Mente-se, chantageia-se, suborna-se sem qualquer pudor. E não se trata de um lado, são todos, os governistas, os dissidentes, os oposicionistas e os calados. Porque a política é assim
mesmo? Essa seria a resposta mais irônica aos acontecimentos. E, definitivamente, não se trata de ironia. É assim pela condição de disponibilidade à corrupção. Sem ela, não teríamos tamanha constância nas denúncias. Haveríamos de assistir exceções e surpreendermo-nos-íamos ao ponto do intraduzível. Só que o nosso imaginário dá conta de entender prontamente o próximo escândalo, a próxima roubalheira, as próximas falcatruas. Surpreendemo-nos sim, mas com a dimensão grandiloqüente das ações e o quanto se tornaram despudoradas. O que nos atinge não é mais o gesto, mas seu alcance, sua cara-de-pau e certeza de impunidade. Ora, também aqueles que julgarão pertencem ao universo dos corruptíveis. Tudo bem, então, em algum momento, alguém voltará a empilhar as cartas e o castelo permanecerá falsamente seguro aos olhares leigos. Se nossos políticos são capazes de quaisquer manobras, das mais absurdas e inconstitucionais, para validar seus interesses, mesmo os aparentemente positivos, por que as pessoas deveriam agir diferentes? Abre-se o tempo da disponibilidade total à corrupção, seja ela financeira, estruturalmente moral. Afinal, quando se cala àquele explicitado corrupto, igualmente se revela ao ser condescendente ao absurdo. Portanto, somo todos. Somos corruptíveis e corruptores uns aos outros, em ple-
no estado de anarquia ética e sem o mínimo valor moral para alertar ou mesmo negar a corrupção. Identificada essa condição, ser corruptível deixa de ser uma questão social e ética e assume valores mais profundos, culturais. Esse é o aspecto que nos interessa problemáticas aqui. Sendo cultural, não haverá de ser solucionado apenas na educação ou aprimoramento das estruturas políticas. Ambas, aos seus limites, são conduzidas pelo homem, que corrompido pela máquina que o sustenta, sucumbe aos ditames do meio. Não se modifica culturalmente uma sociedade dizendo-lhe o que está certo ou errado, pois, quem é aquele capaz de dizer algo sem que lhe caiam dezenas de acusações? É fundamental modificarmos o sujeito naquilo que lhe confere identidade. Isso quer dizer, provocar-lhe experiências de afastamento de suas seguranças, suas certezas, seus reconhecimentos, como meio de libertá-lo do desenho que faz de si mesmo. Apenas a experiência estética é capaz de provocar tamanha instabilidade. Todos os demais mecanismos, por serem retóricos em suas abordagens, oferecerão modelos específicos, trocando um por outro. E isso não significa esvaziar as certezas de alguém, apenas reapresentá-la por outras maquiagens. Ocorre ser o artista também esse homem essencialmente corruptível. E
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O quanto você consegue assumir de sua própria corruptibilidade? O quanto você é corruptor?
o dilema se volta, por fim, ao como desfigurar o artista de sua identidade, ao ponto de libertá-lo de sua própria realidade. Não há uma resposta fácil a isso. No entanto, inicia-se no radical afastamento do artista das estruturas políticas, das negociações, das corrupções provocadas pelo dia-a-dia. Como não é possível abrigá-lo em uma espécie de câmara de vácuo, onde a história e a realidade não adentrassem, resta ao artista um único movimento: desistir. É preciso desistir da política, para querer construir algo diferente, e não apenas aceitar melhorias como caminhos a um futuro que talvez nunca chegue. É preciso desistir do outro e se entregar à solidão, como meio de se proteger das influências e negociações. É preciso desistir de si mesmo, e assim construir um inimaginável outro destituído dos vícios de proteção e respostas. Apenas desta maneira, poderá o artista se tornar um ruído indescritível ao seu tempo e promover reais experiências intraduzíveis aos viver. Isso não quer dizer, tornar-se a voz dissonante. Tudo requer antagonismo, e ocupar o lado oposto significa também validar a pertinência do lado qual se combate. Pois apenas se combate aquilo que se confirma real. Portanto, todo combate e oposição se limitam a ser as faces de espelhamentos daquilo que negam. E, corruptíveis como somos, haveremos sempre de escolher como inimigo, não exatamente aquele que precisa ser derro-
tado, mas os que nos validam como forças, soluções e verdades. Ora, este é o maior enigma, portanto. Se combater é principalmente uma estratégia narcisista, se permanecer é aceitar sua própria corrupção, onde encaixar o artista? A resposta talvez seja: não encaixar. É preciso que a sociedade desista do artista e não da arte, invertendo assim a relação atual onde o valor está na celebridade, cultural ou intelectual, tanto faz, enquanto a arte morre como descartável. Conquistada essa inversão, a arte, portanto experiência, poderá modificar o outro inerentemente das vontades e desejos de seus criadores. Quem sabe assim, transformando o outro em um indivíduo em estado constante de inquietação, ou seja por sua transformação cultural, não cheguemos a recriar a sociedade. Sociedade essa, onde as relacoes se proponham diferentes, onde os interesses não coexistam e a política se limite a ser a administração das variáveis, tamanha a pluralidade e incapacidade de articulação de interesses comuns. Em outras palavras, desistir pode significar também ignorar qualquer vantagem frente ao coletivo, por conseguinte da naturalidade em sermos corruptíveis. Se isso é radicalmente perigoso? Claro que sim. Mas, então, pergunte-se: o que parece mais deliciosamente perigoso, artistas incontroláveis ou políticos com os controles? Cada um que escolha o futuro que melhor lhe convier.
capa
l entrevista exclusiva
O teatro, a 贸pera, o cinema e o querer contar hist贸rias por int茅rprete
ruy filho
martha kiss perrone retratos
villy ribeiro
robert lepage
Kathryn Hunter, em foto de Érick Labbé, no espetáculo “Jogos de Cartas: Copas”.
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“me interessa o lado
escultural
do teatro”
C
omeça um tanto engraçado. Os ingressos eram caros, para um casal de estudantes ainda estagiários. Mas ele estava em São Paulo, e não havia com saber se um dia voltaria. Nos poucos minutos que restavam para encerrar o concurso de um site, Patrícia escreveu uma frase e enviou. Era óbvio que o tom um tanto ridículo dos argumentos não seria levado à serio. Desligamos o computador, já preparados para não assistir ao espetáculo. Na manhã seguinte, a notícia: a Patrícia venceu e recebemos o par de convites. E foi ali, no espaço do Carlton Art, evento produzido por Monique Gardenberg, que assistimos pela primeira vez Robert Lepage. Continua engraçado. Muitos anos depois, já não estudantes e nem estagiários, compramos as entradas. A noite em Paris estava linda, o teatro mantinha a tonalidade da meia-luz, permitindo que o interior da área de convivência não ofuscasse a visão por detrás das imensas janelas envidraçadas. Acomodamo-nos. Emocionamo-
-nos, outra vez. E, ao sair, um bilhete improvisado deixado com a recepcionista do teatro, para que entregasse aos produtores do espetáculo, para que levassem a um dos atores, para que carregassem em sua bagagem até o Canadá e lá o entregasse a Lepage. Nossos contatos estavam nele. E ele nunca nos escreveu. Por fim, enfim, eis que ele retorna a São Paulo. Agora não somos apenas ex-estudantes e empregados. Temos uma revista. Esta. E ele aceita nos receber sozinhos para uma conversa. A vontade é lhe contar tudo isso e convidar para jantar e rirmos a noite toda. Só que as perguntas são inevitáveis. Na noite anterior, ele conversara com o público no teatro do SESC Santo Amaro. Agora era hora de provocá-lo a responder o que ficara na esfera do indizível. Mantendo a nossa tradição, Lepage reage imediatamente ao me ouvir explicar que muito já havia sido respondido no encontro aberto. Ele se levanta, agradece, pega seu copo de refrigerante e se diverte em me ver ali, provavelmente com a boca entreaberta e os olhos congelados. A tradição se cumpriu. E logo nos primeiros segundos do encontro, tudo se fez outra vez divertido e engraçado. O suficiente para lhe devolver a provocação. E é por isso que gostaria de lhe fazer perguntas muito mais complexas agora. Sua boca entreaberta, seus olhos congelados. Nós dois sérios nos observando. Os segundos de silêncio até o tudo bem, vamos lá. Com a sempre doce Martha Kiss traduzindo meu português, que ele um pouco entendia, para o francês dele, que eu um pouco arriscava entender, a conversa se aprofundou generosamente, enquanto seus assis-
À direita, Lepage fotografado por Villy Ribeiro, durante entrevista exclusiva para a revista Antro Positivo, no Sesc Santo Amaro. Nesta página, Lepage em cena de “Le Project Andresen”, em foto de Erick Labbé.
tentes e atores se aproximavam pouco a pouco curiosos. Afinal, que perguntas eram aquelas? Não sei dizer. Eram as perguntas necessárias, e ele as entendeu também assim. Nos minutos em que trocamos falas, concordâncias e discordâncias, uma única certeza se mantinha em meus pensamentos: ele era exatamente o que esperava; grande, comum, disponível e interessado. E nada poderia ser mais apropriado para encaparmos nosso terceiro aniversário. É difícil trazer a amplitude de suas respostas nos dois instantes, com todos e conosco. Cada frase solta é cortante e poética num cálculo preciso e pode gerar pensamentos e reflexões por longos tempos. Uma questão, porém, colocava-se fundamental ao seus argumentos: o contar histórias. Lepage mora em Quebec, cidade qual descreve como pequena e com poucas possibilidades de encontrar o teatro contemporâneo. Tal especificidade nada incomum, por outro lado se coloca conflitua ao circuito das principais metrópoles, pelo qual seus trabalhos circulam há décadas, onde existe público para tudo. Então, decidiu: contar histórias de modo a ser compreendido. Como dar conta, então, de uma abordagem eficiente aos menos e mais acostumados ao teatro contemporâneo? Para Lepage, está na maneira de
Cena de “Zulu Time”, em foto de arquivo de Ex Machina.
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Lepage em cena de “The far side of the moon”, em foto de Sophie Grenier. O espetáculo foi apresentado no Brasil em 2001, durante o Carlton Arts.
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construir as narrativas o meio para satisfazer ambos. Se a história é cotidiana, diz, mas é feita das mesmas coisas que a História, ambos os públicos entram. Seja o espectador que for, conclui, é preciso dar-lhe a sensação de ser inteligente, e a percepção pelo mínimo detalhe, com fácil reconhecimento no cotidiano, pode espelhar a percepção de argumentos extremamente mais complexos e profundos. Seu interesse é contar histórias verticalmente, o que lhe exige mudar a maneira de ver e narrar. Trabalhando no teatro, ópera e cinema, é preciso encontrar como identificar tais maneiras e suas propriedades. A partir da figura humana, o diretor configura as potências de cada uma das linguagens. Define o cinema como um processo de comunicação horizontal, pelo qual apresenta a realidade a partir do homem e sua percepção do entorno. Já teatro e ópera, verticais, estando o homem no centro e apresentado pelo contexto de sua realidade, compreendendo esta como o interstício entre as aspirações em cima e os demônios em baixo, determinando a linha vertical de sua narrativa. O humano, por conseguinte, é o que ficar ao centro. Entre o teatro e a ópera, entretanto, existem diferenças. Pela ópera aprende mais sobre o teatro e vice-e-versa. Na ópera, um cantor é sempre um grito, afirma, e se diverte ao exemplificar não ser poder cantar “me passe a manteiga”. Porque os temas são maiores que os naturalistas. A ópera está diante da razão do teatro, explica. Nela, todo o subtexto plausível a ser explorado na textualidade cênica se coloca pela
música. Não existe debate sobre o subtexto, portanto. E o maestro é quem se ocupa do tempo. Lepage opta por se ocupar em uma ópera de tudo o que implica em uma construção espacial. Assim, soma-se ao maestro sem maiores conflitos e dificuldades, estabelecendo limites a ambos de ações e presenças. O resultado, se eficiente ou não, confessa reconhecer no cantor, pois é somente nele que se encontrará tanto o tempo quanto o espaço, as criações do maestro e suas.
convencepúblico o
“um bom ator pega a palavra de outro e
mas o bom mesmo é quando o ator escreve
suas palavras “ antro+
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Sobre o teatro, Lepage argumenta ser o problema essa espera de funcionalidade, feito uma tela bidimensional. O público modificou seu vocabulário narrativo nos últimos 25, 30 anos; está mais complexo e rico. É preciso aceitar e também mudar a forma de contar histórias. Um dos instrumentos em que se apoia é a percepção de que a emoção não está em cena, não é preciso traduzí-la ao espectador, ao contrário, deve-se ofertar ao outro a possibilidade de sentí-la por si só. Então, as histórias necessitam ser mais orgânicas, diz. O interessante aqui é nos voltarmos ao próprio sentido da história, do contar. Para Marcelo Gantus Jasmin, a história é, além do reconhecido, a linguagem do dizer sobre o acontecido. Ocorre em seu esforço de narrar também o silenciar o vivido. O historiador continua argumentando que, ao recriar poeticamente o vivido, ao atribuir-lhe formas, a linguagem lhe confere certa dignidade que antes não possuía. Aproximando Lepage e Marcelo, percebemos a subversão dos argumentos um do outro. As histórias de Lepage transferem à
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Dois trechos do espetáculo “Répétitions Techniques”, de 2012, em cliques de David Leclerc e Nicola-Frank Vachon, respectivamente.
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“as pessoas
traem
acessíveis ”
quem são querendo ser
“Der ring des Nibelungen�, em foto de Ken Howard/MET.
sustentação central, portanto o sujeito, e passa a ser signo ao todo. É nessa inversão que a liberdade existe como potência de presença, não mais como exposição do ator. E a grandeza pela qual se apropria desse procedimento o revela em cena imprevisível e original. Dafoe tornou-se mundialmente conhecido principalmente pelo cinema. No entanto, não construiu uma relação específica com tal público. Afirma não se relacionar com ele diretamente. No teatro, porém, a plateia pode ser muito sedutora, então é preciso atentar-se para não se deixar influenciar, diz. Lida com o espectador como parte do espaço do teatro, algo físico, que às vezes se torna audível e se revela novamente vivo. Porque Dafoe alcançou cedo o reconhecimento das telas, talvez não perceba o quanto ao espectador ele é o ator de cinema. Essa relação muda a aproximação com o outro, no momento em que é esperado dele a persona reconhecida dos filmes. E ele sabe fazer disso sua qualidade, principalmente ao escolher espetáculos e diretores teatrais que nada se aproximam aos seus trabalhos no cinema. Sobre o público, ainda, conta que Bob Wilson sempre corrige os atores para que não interpretem o que a plateia irá sentir, pois é a plateia que irá sentir, comenta Dafoe rindo. Não sabe dizer, no entanto, se existiria algum tipo de teatro que preferiria ver à fazer. Para
“La damnation de Faust”, em foto de Ken Howard/MET.
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manifestação reconhecida e presentificada da cena o silêncio em si, então formalizado discurso narrativo, portanto linguagem, e destitui o mesmo de quaisquer dignificações ao tempo, acomodando-o no acontecimento comum. Isso não aponta, de modo algum, à desvalorização do conceito de Marcelo, pelo contrário. Revela o alto teor de elaboração por Lepage na construção de suas histórias. Ao não sustentar o subtexto nos princípios previsíveis, o diretor atribui à narrativa o valor de poesia e não mais de discurso. Distancia-se da palavra para com ela provocar o reconhecimento não do indizível, como afirma o historiador, mas do estabelecido no imaginário do discurso banal. É nessa aparente simplicidade que os espetáculos constroem as camadas de acesso à história e à História. Lepage afirma se interessar mais hoje pelo aspecto cultural do teatro, ou seja, por sua capacidade em dialogar como linguagem de discurso poético na revelação da história. Para ele, um dos problemas da cena atual está no certo esnobismo ao tentar evitar a cultura popular, como se o teatro fosse maior e estivesse exposto com a função de ensinar. A perspectiva narcisista potencializa esse posicionamento. Ele lamenta o fato de estarmos em um momento do mundo em que se quer ser sempre o melhor, o número um, enquanto ninguém ver-
dadeiramente nos ensina ou prepara para sermos únicos, para encontrarmos nossa unidade. O importante não é ser internacional, mas universal, afirma. De algum modo, o incômodo de Lepage está no silêncio escolhido pelo homem de agora. Se, como apontou Hegel, toda fala impõe a percepção daquilo que não é dito, então esse falar constante sobre si mesmo, apontado por Lepage, refere-se a uma qualidade específica ou tentativa de silenciar o próprio presente. Marcelo Jasmin define o silêncio em quatro categorias: os ausentes, lacunas construídas ao tempo pela falta de fontes; os intencionais, focados em suprimir histórias específicas; os ausentes de testemunhos, produzidos pelo horror provocado à fala da própria história vivida; e o não dito, quando a própria escolha na forma de dizer provoca o silenciar daquilo que se diz. 144
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Acima, outra cena de “La damnation de Faust”, em foto de Ken Howard/MET. À esquerda, “Lipsynch”, em foto de Erick Labbé. É nesta última que o incômodo de Lepage encontra ressonância. No trair a si próprio como exposição de história e narrativa do cotidiano em estado de acontecimento. Em outras palavras, como bem resumiu o diretor, as pessoas traem muito quem são querendo ser acessíveis. Ele, por sua vez, afirma preferir um estado de desconfiança das garantias que é capaz de oferecer aos outros. Toda certeza é uma questão a ser superada. E Lepage provoca
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garantias
“desconfio sempre das que posso dar”
À esquerda, Lepage durante a entrevista. Nesta página, “Éonnagata”, foto de Erick Labbé.
Acima, cena de “Elsinore”, em foto de Emmanuel Valette. À direita, nesta página, “Les alguilles et l’opium”, em foto de arquivo. Na outra página, trecho de “La Géométrie des miracles”, em foto de Claudel Huot.
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seus processo criativos ao encontro constante do incerto. Cria sem tema, partindo de pretextos para atuar, cujos desdobramentos narrativos terminarão na construção casual do tema. Portanto, não se trata de um processo intelectual, a teorização vem depois. E ri, ao confessar se aproveitar da suposta inteligência atribuída por terceiros, como se tudo fosse milimetricamente planejado e construído. Para chegar a essa liberdade, contudo, inverte a lógica da tradição na qual o texto inicia o processo que levará à produção do espetáculo. Lepage inicia com a produção, em branco, com apontamentos de desejos aparentemente aleatórios, para dele deixar surgir o texto. E conta para isso com o trabalho coletivo, com os atores, as presenças dos técnicos e a interatividade tecnológica desenvolvida a partir de uma marca visual específica. Esse teatro de boneco, como enxerga, no qual os técnicos são operadores de marionetes, cujos bonecos são estruturas tecnológicas de cenografia, vídeo, luz e som, é sua influência direta ao teatro japonês Kabuki. Lepage diz necessitar, a cada oito ou dez anos, de um espetáculo solo. Ele, também
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Várias cenas de “Needles and Opium”, em fotos de Nicola-Frank Vachon.
naturalismo” “na ópera, os temas são maiores que o
Vários trechos do espetáculo “Éonnagata”, em fotos de Erick Labbé.
excelente ator, vê nessa solidão o meio para alcançar um equilíbrio às óperas monumentais e grandes produções teatrais. Há coisas que só posso dizer em um trabalho solo, são coisas muito pessoais, explica. De fato, seus trabalhos sozinhos no palco trazem uma forte carga de melancolia sobre o homem e o mundo. Mas ele não concorda. Corrige-me. Diz-se humanista e acreditar no poder do homem mudar os dois. Esses trabalhos possuem sempre uma porta de saída ao homem e ao mundo, às vezes um pouco escura, pondera sorrindo, mas não se tratam de histórias e narrativas aprisionadas no desespero, e sim na perspectiva de ser, de algum modo, necessário e possível ser diferente. Em A Ideia do Silêncio, Giorgio Agamben diz que a filosofia tem a ver com a experiência do silêncio, e que o silêncio não é sua palavra secreta, pelo contrário, a sua palavra cala perfeitamente o próprio silêncio. Depois de encontrar Lepage, imaginando nosso
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“há coisas que
só posso dizer em um trabalho
solo”
próximo momento, sei lá em qual cidade e teatro, talvez o provoque com o argumento de sua busca por uma história ter a ver com a presença de seu próprio silêncio, mas o silêncio em si não é o seu espetáculo, ao contrário, seu espetáculo cala perfeitamente a fala da história, e, exatamente por isso, é complexo e mágico. Mas, seguindo nossa tradição, Provavelmente ele me olhará, fará uma piada, discordará educadamente só pra me provocar, o momento será novamente ridículo e engraçado, e pediremos nossas xícaras de café para uma tarde longa de conversa sobre um pouco de tudo que está por aí. Fico aqui, por hora, ansioso por esse próximo dia.
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“o importante não é ser
internacional,
universal ” mas
Nesta página, cena de “Le dragon bleu”, em foto de Erick Labbé. Na outra página, retrato de Robert Lepage por Villy Ribeiro.
concepção
patrícia cividanes + ruy filho
colagem miniatura
zé vicente
foto
alex silva
assistente
Thais Rocha
campanha
deixe o poético invadir seu mundo ninguém deve te proteger da arte
Esta é uma campanha
Michelle Ferreira + Rubens Caribé
todo ouvido
Tom monteiro
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om Monteiro, faz do som uma possibilidade de imagem, uma extensão de movimento do corpo, para o corpo, no tempo. Não é por acaso seu interesse, e constante verticalização em produções de trilhas para dança. A maneira como compõe e se disponibiliza a ativar os dispositivos que utiliza para acionar ao vivo sua música, atravessam e criam espaço para o corpo, situando o tempo como materia do seu mover. Movimento, tempo, e espaço, são ouvidos e acolhidos pelo corpo como uma resposta ao existir. Produz música como presença. E é na performatividade destes acionamentos sonoros, ao alimentar-se do feedback de seus sintetizadores analógicos e do toque fantasma do theremin que Tom Monteiro faz do som, movimento. Um ato relacional sinestésico entre mover e ouvir. Uma presença de dança.
Alejandro Ahmed
diretor e coreógrafo Grupo Cena 11 Cia. de Dança
Para conhecer uma das composições de Tom, clique no botão acima
foto de haroldo saboia
A capacidade em tornar o som em material visual
pensamentos sobre
trรกgica .3 O instante em que o ar se esvai por Ruy Filho
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foto: victor hugo cecatto
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nicio pensando. Porque preciso disso. Inicio com o reconhecimento de ser este, tanto quanto qualquer outro momento, o contemporâneo. Cada qual ao seu tempo. O contemporâneo como sendo o presente do instante realizado por seu reconhecimento, ao manifestar a presença do próprio observador. Só que reconhecer a própria presença exige a consciência de sua existência. Existência essa, apenas compreensível por seu percurso, pelo viver. Então, o indivíduo se reconhece como um instante único e parte de um momento. É, portanto, contemporâneo de seu presente, pois se percebe vivo. E o que é estar vivo senão um estado desejante em latência? Percebe-se o viver na medida em que se deseja, e aquilo que deseja determina a vontade de permanência. Deseja-se o próprio viver, a realidade em existir e ser alguém. O que exige ao indivíduo a presença do outro, aquele que igualmente lhe reconhece e espelha. É, por fim, o desejar pleno pelo viver ao outro, tanto quanto se deseja o outro como parte de si. Todavia, na esfera do desejo pela vida, segundo Lacan, quanto mais se aproximar ou fugir do viver, mais o existir ao presente se distancia do indivíduo. Assim somos todos. Enquanto a forma de vida passa a ser agora a forma de morte. Não como a pulsão de morte, tal qual Freud demonstrou, mas lacaniamente a morte da pulsão da vida como ápice do desejo de controlar ao máximo o presente, o seu instante. O que é impossível, por ser apenas a ilusão de haver qualquer controle, já que o sujeito, destituído que está da condição de centralidade de sua realidade, implica na submissão ao outro como exposição de sua limitação, em resumo, de seu fracasso. Por isso, inevitavelmente, o outro passa a ser a face mais evidente da tragédia, expondo a fragilidade e os limites de quem se mostra. E é preciso reagir, quase que pelo efeito institivo natural de sobrevivência, atacar-lhe em sua realidade, seu presente, seu momento, como se pela destruição do agora, nada mais lhe restasse, se não a possibilidade de existir pelo passado de culpa e pelo futuro esvaziado pela falta. Deste modo, nada é mais contemporâneo ao homem que a percepção de seu fracasso como sujeito, quando o trágico faz-se fundante àquele que descobre em sua condição o mero existir como acúmulo de desejos irreais. Como se não pudesse estar em pleno presente. Como se não estivesse realmente vivo. Alguns sucumbem, outros aceitam. Alguns reagem. Por isso criam. Tentativa de reconstruir fugas ao real imposto. Cria-se outro. Inventa-se. Constrói-se, destrói-se, algo ou alguém. Encena-se. E, assim, o teatro, face mais precisa ao trágico, é tanto a imagem mais disforme de um sujeito inventado, quanto a mais bela encenação de sua falência. Ah, os artistas... Abrem-se as cortinas, e Tragédia.3 começa complexo e profundo assim. Inicia-se com o contemporâneo, sem querer voltar no tempo, recuperar a Grécia ou reencontrar certo tom melancólico do teatro ancestral. Nada disso. Quer-se o agora. E, com isso, muda-se tudo. Aqueles sobre o palco são, em certa medida, o outro do espectador. Por um instante, que seja. E assim, muda-lhe tudo. As tragédias, via de regra, são talhadas a partir das pulsões de mortes de seus personagens. Partem do sujeito que recorre à ação como consequência ao ocorrido. Contudo, e quando não mais há o sujeito? Torço para que as personagens não venham. Interessa-me a morte da pulsão, o existir em presente igual ao outro, em estado de desejo sufocado pelo desespero trágico do limiar da aceitação da vida.
Não cabe à tragédia mais desejar a morte, e sim à morte desejar o instante certo de sua manifestação. Mudar, então, a centralidade de sujeito para ação, do movimento à inação. Ação intuída como estado de acontecimento narrativo. É preciso compreender ser pouco o não mover. Efeitos nem sempre valem a pena como recursos, salvos em suas estratégias estéticas, mas que passam e exageram. Melhor é o estado de ausência de desejo pelo gesto. Não o querer. E é exatamente esse o ponto que se coloca em cena, a desnecessidade do gesto, mas que se congela feito esforço de não corrupção do tempo. Como se o movimento reafirmasse a vida. Então se fixam o gesto, o olhar, a pele. Permanecem, até que seja de fato preciso agir. Até que o morrer se aproxime mais. E se configura, deste modo, a presença de morte que sufoca o pulso da vida, feito mãos nos retirando a possibilidade de respirar. Letícia Sabatella, Miwa Yanagizawa e Denise Del Vecchio desenham a presença desse outro estado trágico no limite máximo de sua proximidade física e poética. O espectador permanece ali, esvaziado, aprisionado a um instante congelado que nem é seu, e sim do outro. Mas que, por ser do outro, revela-lhe o quanto escapa do reconhecimento de seu estado trágico, nega sua realidade de morte. Antígona, Electra e Medéia não estão representadas ao que se poderia imaginar. São atrizes no palco e não personagens. E nelas, presentificam o que há em cada uma das figuras sem estereótipo. São apenas mulheres sendo apenas mulheres. Enquanto a morte - seja praticada, ordenada ou sofrida -, é revelada no instante mais inicial de cada uma, logo no primeiro suspiro, no primeiro passo, no mínimo recorte de luz. A morte é, antes, desejo, portanto. O que se assiste é a explosão de uma necessidade que já não cabe na fala, no corpo, na cor, no som, em alguém. Está na soma de cada partícula e partitura. É preciso deixar sentir o morrer. É preciso levar o espectador a sentir a morte. A cada instante. A cada verso. A cada melodia que se firma música e confirma o canto como oferta de silenciar a dor. O espetáculo escapa ao teatro e atinge o mais importante momento, aquele no qual nos esquecemos de estarmos ali. E é incrível como bastam poucos segundos no espetáculo para isso ocorrer. Tudo se inverte. As teorias iniciais nomeadas no início do texto dançam desconexas aos efeitos do que se assiste. O espectador deixa de ser observador. Perde a consciência de seu existir, anulando-se ao tempo em que se entrega. Vive, agora, naquilo que lhe conduz ao trágico dele mesmo. Não basta mais estar vivo para reconhecer o instante. O estado poético reinventa o sentir e o faz reconhecer estar vivo, apenas pela suspensão do tempo. Percebe, por conseguinte, o próprio instante em que passa a ser o momento de uma parte. É a latência de um desejo que se funde em estado de encontro. Vive o desejo de que as cenas, as atrizes, as luzes, a música, o vídeo permaneçam ao eterno, pois tais mecanismos podem lhe salvar da experiência trágica real. Como o terrível e o morrer podem ser tão belo, tão elegantemente dolorido? O outro, invertendo a lógica, na verdade é o espectador e não o ator. Espelha o teatro que lhe olha. E, por um instante, apaixona-se e deseja uma realidade, qual disfarça não saber ser inventada. Talvez seja esse o poder da arte. Ou da vida. Talvez seja isso apenas o mais trágico a esse homem de agora. A impossibilidade de manter para sempre os encontros que silenciam a alma e permanecer liberto em vida. Ao menos, em seu sentido mais sublime. De todo modo, confortável em casa e seguro, horas depois de assistir ao espetáculo, seja o que for que me atingiu, ainda me leva a faltar o ar.
Concepção e Direção: Guilherme Leme; Elenco: Denise Del Vecchio, Letícia Sabatella, Miwa Yanagizawa, Fernando Alves Pinto e Marcello H; Textos: Medeia, de Heiner Müller; Antígona, de Caio de Andrade; Electra, de Francisco Carlos
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pensamentos sobre
Walmor y Cacilda 64 Robogolpe
Cometa o crime de viver – ou razþes para assistir por Ruy Filho
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foto: Jennifer Glass
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ão é simples assistir a um espetáculo de Zé Celso. Ele exige uma espécie de intervenção profunda naquele que o olha. Pois não se enxerga apenas pelos olhos, mas também pelos ouvidos, corpo, pele e devaneio. Então é preciso estar disponível ao mais experiencial sobre si mesmo. Nasce no assistir, o teatro. Agora ele é você, tanto quanto a cena. E a orquestração máxima entre os dois polos realiza a comunhão de ser o todo um universo uníssono. Então, exige. E quer mais. Quer sua vida. Não como espécie a ser consumida. Quer o seu viver, na verdade. Sua audiência e escuta, seu olhar e seu íntimo, sua realidade e sua imaginação. O homem tem se esquecido disso. O cotidiano de um capitalismo que agora fortalece a crueldade sobre o outro, policia a imagem de si mesmo pela estética e pela presença, este poder cotidiano já se desenha há algum tempo. Foucault diagnosticou a passagem do poder pela manutenção da vida do indivíduo, enquanto lhe fosse útil. Cabe ao poder, portanto, definir sua utilidade e, ao reconhecer sua desnecessidade ao sistema, atribuir sua morte. O homem passou a ser apenas o instrumento de sustentação do poder. O espetáculo grita a isso, aos desafios. Danem-se os sistemas e estruturas vigentes. É preciso recuperar a importância do homem no seu sentido mais próprio, sua possibilidade em viver. Então cometa o crime de viver, diz Zé Celso, em determinado momento. E nada é mais contrário aos desvios e dogmas do sistema capital que o existir poético. O corpo. Ele mesmo como sua condição maior de poesia. E o teatro. Exposição maior de sua potência poética coletiva. Assistir a um espetáculo de Zé Celso exige o reconhecer da morte que impera sobre nós. Ele lhe convida a reagir. Ele exige seu viver. Em outro espetáculo recente, dentro da trajetória mítica que se tornara o projeto Cacilda, falei a Zé que sua linguagem mudara. Tudo me parecia diferente. Explicado ter sido criado o segundo ato no calor dos acontecimentos de nosso junho histórico, minha conclusão é de que a urgência se revelava seu novo estímulo. O agora, e não mais como assunto, já que sempre o hoje participa e tematiza seus espetáculos. O agora como urgência de fala, de reação. E, novamente, esse é o sentido em Walmor Y Cacilda. Necessita-se dizer. E se diz. A fala, também sempre presente, deixa de ser texto e assume de vez o operístico instintivo da tragédia de um país em eterna espera. O brilhante começo com a carta de Getúlio Vargas emociona. Como tudo aquilo, ali, exposto em cena, faz sentido ao urgente de meu próprio instante! Marcelo Drummond consegue o respiro da desistência de um homem prestes a morrer como vitória. Vargas contradiz Foucault. Morre no instante em que viver seria eliminar sua própria condição de presença política. Viver passa a ser também um atributo de permanência histórica. E, desde o tiro, ele se colocou mais vivo do que nunca em todos nós.
Em outro momento, Marcelo-Walmor, amarrado à rede, feito um existir imposto de Macunaíma ao homem, dialoga com a violência necessária ao querer viver. Ambas as falas se somam e reapresentam-no um ator maduro, inteligente e disposto ao risco. Cala-se ao ouvi-lo em seus dois solilóquios. Cala-se à confirmação de um talento que parece realmente começar a desbancar o eterno Dionísio de Bacantes. É outro, quem hoje vive no Oficina. E é melhor! Walmor Y Cacilda traz uma escrita extremamente generosa aos atores. Há mais precisão no uso das palavras e mais desdobramentos poéticos. A escrita de Zé Celso igualmente amadurece ao exercício da palavra, gerando momentos impressionantes e singulares, mesmo para a trajetória do diretor. Se a generosidade oferece além do texto o tempo para sua exposição, é preciso que atores e atrizes mergulhem na profundidade, ora dolorida, ora cínica. E coube a Sylvia Prado e Juliane Elting compor um dos momentos magistrais de escrita e interpretação. O jogo entre o dizer e olhar entre as atrizes, enquanto existem Cacilda e Maria Della Costa em cena, conduz o assistir a um estado de cumplicidade. E poucos são os espetáculos hoje que permitem tamanha possibilidade de exibição aos intérpretes. É assistindo ao encontro delas no DOPS que se percebe o quanto o teatro ainda pode encontrar caminhos para o seu próprio viver. Por fim, Zé Celso se levanta. Surge. Reafirma a condição de busca de sua poesia. Diz. Canta. Encanta. E nos leva ao mais profundo oceano das urgências, um tanto ele mesmo, outro tanto Próspero. A fala clama por nosso crime. É preciso afundar e ressurgir vivo. O público reage. Mudo. Porque talvez o primeiro movimento ao renascimento seja a escuta e observação. O monólogo final é das falas mais lindas e necessárias já ditas no Oficina. Recupera o encontro, a teimosia, a paixão, o tesão. Ali, de terno branco e gravata vermelha, saudando exu, o Zé deixa de ser apenas Celso e rebatiza sua presença, feito outro, feito Pilintra, feito o mensageiro de uma brasilidade cuja história se perde dia a dia por substituição de prioridades. De mãos dadas, não somos conduzidos em multidão apenas ao exterior do teatro, como muitas vezes, enquanto cantamos tupi or not tupi para além da afirmação óbvia. Estamos em dúvida, agora. Pois viver é efetivamente um estado de desconfiança e dúvida sobre tudo, todos e si mesmo. De mãos dadas, saímos, ocupamos os destroços do terreno ao entorno, avançamos sobre a rua, e retornamos aos nossos lugares. Pois se trata disso, o viver. O eterno retorno ao centro de sua existência. Só que, às vezes, é preciso ser conduzido de volta a você mesmo. Entrar e ser a cena. E descobrir o quanto de si próprio ainda pode desafiar a morte dos dias comuns. Obrigado, José Celso Martinez Corrêa, Juliane Elting, Sylvia Prado, Camila Mota, Marcelo Drummond e a todos ali. Hoje, encontro meu agora e saio do teatro disposto a viver um pouco mais.
Dramaturgia e Direção: José Celso Martinez Corrêa Elenco: Sylvia Prado, Camila Mota, Marcelo Drummond, Zé Celso, Letícia Coura, Juliana Elting e atores da Cia. Oficina Uzyna Uzona e Universidade Antropófaga.
antro+
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circunferĂŞncias
DESLOCAMENTOS O cotidiano fora da normalidade banal pela 贸tica da est茅tica
A
relação com o cotidiano se confunde com o próprio movimento de vivê-lo. Por isso, sempre é surpreendente quando a arte se aproxima de suas iconografias, pois nos desloca para que
percebamos o quanto estamos inseridos em uma espécie de automatismo e como o provocamos a ser exatamente como é. Pensar o cotidiano implica ao artista escolher como deslocará a percepção do observador, portanto. Política, economia, sistemas e estruturas se acumulam nas diversas maneiras. Se o cotidiano é também a inscrição do presente na história, pensar o ontem traduz o percurso de acontecimentos tornados simbólicos. A Galeria Vermelho traz para São Paulo a exposição já vista no Rio, Dias & Riedweg: Histórias frias e chapa quente. Maurício e Walter exploram a violência recorrente do cotidiano, em imagens e sugestões subjetivas, que exigem o deslocamento crítico e informativo do observador, através de instalações, vídeos e objetos referem-se a fatos ocorridos nas oito décadas passadas. A relação com o presente se faz também pela percepção de localidade ou inscrição ao indivíduo, é o que nos mostra Cidade Gráfica, no Itaú Cultural, onde a relação entre vida e cultura urbana serve de mote para oo mapeamento da produção do design gráfico brasileiro. Sendo o viver um estado de acúmulo de sugestões e possibilidades, interessa experimentar a relação entre memória e imagem, e a videoarte é o principal canal na atualidade para isso. Memórias da obsolescência, une o Paço das Artes e o MIS-SP para abrigar a coleçãoo Elia Fontanais-Císnero, uma das maiores da linguagem. Cabe ao cotidiano, então, identificar e classificar a maneira como o homem faz de si mesmo o gesto de construção de possibilidades, manutenção da ordem ou sobrevivência ao sistema. É o que Esforço Repetitivo, de João Angeline, na Galeria Leme, cípios de animação, da relação dialética com o trabalho e o gesto em movimento. Pensar a importância do gesto, também reflete a relação do fazer com a materialidade. Ouro, exposição no
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antro+
fotos divulgação
convida o observador a discutir, partindo de prin-
CCBB Rio de Janeiro, com cerca de 50 obras de
moderna; e Mona Hatoum, na Pinacoteca, em São
artistas variados, tem como matéria o ouro tra-
Paulo, pela primeira vez na América do Sul, com
balhado por nomes como Cildo Meireles, Tunga,
trabalhos a partir de objetos cotidianos. A artista
Nuno Ramos e muitos outros. O deslocamento
libanesa é uma das grandes referencias das artes
cotidiano também se faz pelo próprio transitar
contemporâneas. Aos que quiserem uma experi-
para fora das estruturas convencionais. Esse é
ência mais radical de deslocamento, a Galeria
um dos principais aspectos das galerias de arte.
Tato apresenta De Velazquez a Bacon: o PA.TO.
Em Eu Represento os Artistas, Revisited, Fernan-
LÓ.GI.CO de Domenico Salas, na qual o artista
da Arruda volta-se aos 40 anos da Luisa Strina,
trabalha o cotidiano através de ícones do univer-
aproximando o público da história da galeria, com
so pop ocidental, protagonizando obras clássicas
obras de diversas gerações, de Nelson Leirner a
pelas figuras de patos. De uma a outra, as expo-
Leonilson. Pensar o cotidiano pela perspectiva do
sições provocarão deslocamentos imprevisíveis.
deslocamento exige, ainda, sairdos valores locais.
Tudo, menos o tédio do cotidiano comum.
Duas são as exposições que se destacam a isso:
mona hatoum estação pinacoteca São Paulo http://www.pinacoteca.org.br De 6 dezembro/2014 a 1 de março/2015
Kandinsky: Tudo começa num ponto, no CCBB de Brasília e depois Rio, trazendo obras do pintor russo considerado um dos maiores nomes da pintura
foto joana frança
circunferĂŞncias
Eu represento os artistas, revisited GALERIA LUISA STRINA S達o Paulo http://www.galerialuisastrina.com.br 26 de novembro/2014 a 14 de fevereiro/2015 OURO CCBB-RJ Rio de Janeiro http://culturabancodobrasil.com.br De 12 de outurbo/2014 a 05 de janeiro/2015
circunferências
esforço repetitivo GALERIA LEME São Paulo http://galerialeme.com Até 24 de janeiro de 2015
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antro+
DIAS & RIEDWEG: HISTÓRIAS FRIAS E CHAPA QUENTE GALERIA VERMELHO São Paulo http://www.galeriavermelho.com.br De 16 de dezembro/2014 a 14 de fevereiro/2015
circunferĂŞncias
cidade gráfica ITAÚ CULTURAL São Paulo http://novo.itaucultural.org.br Até 04 de janeiro de 2015
kandinsky: Tudo começa num ponto CCBB - DF (Brasília) Até 12 de janeiro de 2015 CCBB - RJ (Rio de Janeiro) 28 de janeiro a 30 de março de 2015 http://culturabancodobrasil.com.br Até 30 de agosto
circunferências
memórias DA OBSOLESCÊNCIA PAÇO DAS ARTES + MIS SP São Paulo http://www.pacodasartes.org.br http://www.mis-sp.org.br Até 22 março de 2015
De Velazquez a Bacon: o PA.TO.LÓ.GI.CO GALERIA TATO São Paulo www.galeriatato.com.br Até 10 de janeiro de 2015
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homenagem
RN clowns de shakespeare cidade: Natal, RN ano de fundação: 1993 nesta foto: “Sua
Incelença, Ricardo III”, imagem de Rafael Telles 180
antro+
nosso
Um paĂs se desenha pelas esferas de suas estruturas. Um povo, pelos seus esconderijos. O teatro, pela potĂŞncia em desafiar ambos. antro+
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O
Brasil é um só. Se dizê-lo fosse o suficiente, já seria positivo. Mas, os acontecimentos recentes comprovaram o contrário. E o amplificaram. Dizê-lo não basta. E, de repente, diz-se o inimaginável. Como se o Brasil fosse de fato vários. Como se isso fosse possível. Mas não é essa a mensagem política destilada nas últimas décadas, a que dentro do país existem diversos países? De repente, as diferenças econômicas e sociais determinaram uma maneira de olhar o todo, onde este é a soma de partes distintas. Sim, elas existem e precisamos vencê-las. Mas aquilo que existe não pode ser tratado por partes, por lados, como tem sido. Ao contrário. Só aprenderemos a lidar com isso ao assumirmos o todo como amplitude de uma unidade com pluralidades e ângulos quase infinitas, para o bem e mal. Nada fácil, portanto. E o primeiro gesto nessa direção significa mudar os discursos, aceitar e nomear. Não se é diferente, se está. Então, não se trata de partes, mas de estados possíveis de revisão. Isso seria o mais urgente. Mas ainda estamos longe de aceitar o outro, o diferente como igual. As eleições recentes oficializaram a repartição do país. Em todos os níveis, os lados se revelaram partes independentes e opositoras. E não mais apenas na sociedade e economia. Agora, a Cultura também revela seu julgamento, sua partição, seu rompimento ao diferente, seu preconceito. Sim, todo julgamento sobre o diferente, seja ele apenas momentâneo, é a oficialização de um preconceito. As regiões norte e Nordeste do Brasil sempre as sofreram. E, nesse instante, também os artistas. Deixou de ser uma disputa ideológica política, e partiu para os artistas com igual violência e descriminação. Essa homenagem serve para alertar sobre isso também. Não queremos pedir desculpas. Não vamos, pois não há como se desculpar pelo inaceitável. A homenagem aos grupos de teatro nortistas e nordestinos se faz como um aviso aos distraídos: o Brasil é um só, porra! Então deixemos de idiotice. O teatro brasileiro deve muito ao produzido por esses artistas. Eles moldam, configuram, sustentam muito do imaginário popular de um país que se perdeu no sul. E não existe verdadeiramente uma cultura sem esse valor. Aqui homenageamos todos os grupos do Norte e Nordeste. Obrigado por tudo o que nos oferecem, por tudo que constroem, por tudo o que significam desde sempre. Vocês são realmente foda. E, para os que insistem nessa divisão, por favor entrem em contato, podemos lhes indicar alguns bons terapeutas. ruy filho
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antro+
Agradecimentos especiais aos queridos Pedro Vilela e Fernando Yamamoto pelas sugestões e conexões com as companhias.
Grupo Magiluth cidade: Recife, PE ano de fundação: 2004 nesta foto: “Viúva,
porém honesta”, imagem de divulgação.
PE
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a outra companhia de teatro cidade: Salvador, BA ano de fundação: 2004 nesta foto: “O que
de você ficou em mim”, imagem de Guiseppe Roca.
BA
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companhia o imaginário cidade: Porto Velho, RO ano de fundação: 2005 nesta foto: “Mulheres
do Alua”, imagem de divulgação.
RO
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SE grupo imbuaça cidade: Aracaju, SE ano de fundação: 1977 nesta foto: “A farsa dos
opostos”, imagem de Everton Aragão.
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grupo bagaceira cidade: Fortaleza, CE ano de fundação: 2000 nesta foto: “Interior”,
imagem de Diego Souza
CE
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RN coletivo atores à deriva cidade: Natal, RN ano de fundação: 2008 nesta foto: “Mar aberto”,
imagem de divulgação.
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coletivo artístico as travestidas cidade: Fortaleza, CE ano de fundação: 2002 nesta foto: “Uma flor
de dama”, imagem de Cristiano Costa.
CE
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PB PiolLin grupo de teatro cidade: João Pessoa, PB ano de fundação: 1977 nesta foto: “A gaivota
(alguns rascunhos)”, imagem de divulgação. 192
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pequena companhia de teatro cidade: São Luiz, MA ano de fundação: 2005 nesta foto: “Velhos
caem do céu como canivetes”, imagem de Ayrton Valle.
MA
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RN grupo teatro carmin cidade: Natal, RN ano de fundação: 2007 nesta foto: imagem
de divulgação.
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BA bando de teatro olodum cidade: Salvados, BA ano de fundação: 1990 nesta foto: “Cabaré da
RRRRRaça”, imagem de Marcio Lima.
BA Universidade livre de teatro vila velha cidade: Salvados, BA ano de fundação: 2013 nesta foto: “Jango: Uma
Tragedya”, imagem de João Milet Meirelles. antro+
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associação teatral Joana Gajuru cidade: Maceió, AL ano de fundação: 1995 nesta foto: “Baldroca”,
imagem de Vlademir Alexandre.
AL
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PI grupo harém de teatro cidade: Teresina, PI ano de fundação: 1985 nesta foto: “Macacos me
mordam”, imagem de Margareth Leite.
PA In Bust Teatro cidade: Belém, PA ano de fundação: 1996 nesta foto: “Fio de
Pão”, imagem de André Mardock.
lamira artes cênicas cidade: Palmas, TO. ano de fundação: 2009. nesta foto: “Adorno da
realidade”, imagem de divulgação.
TO
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teatro máquina cidade: Fortaleza, CE ano de fundação: 2003 nesta foto: “Máquina
Fatzer”, imagem de Deivyson Teixeira.
CE
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teatro popular de ilhéus cidade: Ilhéus, BA ano de fundação: 1995 nesta foto: “Teodorico
Majestade - as últimas horas de um prefeito”, imagem de Karoline Vital.
BA
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PB Ser tão teatro cidade: João Pessoa, PB ano de fundação: 2007 nesta foto: “Flor de
Macambira”, imagem de Rafael Passos.
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Bololô Cia. cênica cidade: Natal, RN ano de fundação: 2011 nesta foto: “Retrato do
artista quando coisa”, imagem de Tiago Lima.
RN
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onde INSTITUTO VOLUSIANO são paulo/sp
ENTRE, ESTA
À esquerda, jardim pertencente ao instituto. Ao centro, detalhes do loft central. À direita, espaço expositivo.
TAR, EXISTIR
ABRIGAR A EXPERIÊNCIA E O ARTISTA COMO UM MOVIMENTO SÓ
Acima, espaço expositivo. Ao lado e abaixo, detlhes das acomodações, cozinha e suíte.
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q
uanto é realmente oferecido ao artista, no instante em que o criar ainda é um desejo e se coloca inviável a qualquer estrutura tradicional? Como lidar com a condição de não haver um produto a ser negociado, mas a necessidade do respeito à criação dos resultados? Essa não é uma equação simples de ser resolvida, para nenhum dos envolvidos. Aos espaços, como ambientes projetados para abrir a produção artística, torna-se insustentável manter o artista e não o produto. Aos artistas, por sua vez, tudo se complica na necessidade básica de precisar de um abrigo durante a criação. A questão está no quanto os espaços culturais alternativos ainda se valem dos exemplos dos tradicionais, como galerias, museus e casas de espetáculos. É preciso primeiro, portanto,
subverter a lógica mercadológica gerando, a partir de outras possibilidades, ambientes tanto quanto originais. É ousada a iniciativa do Instituto Volusiano. Abrigar artistas de diversas áreas, oferecendo-lhes espaço para residências artísticas. O foco é propiciar um ambiente criativo, imersivo e de intercâmbio, durante todo o ano. Próximo à estação Vila Madalena do metrô, o Volusiano, abre caminho para que o artista possa encontrar ou provocar contextos criativos. O espaço conta com um loft multiuso, cozinha, quartos, rede wifi, equipamentos, para os residentes, e também aos frequentadores dos cursos e exposições realizados. Idealizado pelo artista visual Rogério Borovik, a performer Samira Br e a historiadora e produtora cultural Cybelle Oliveira, o Volusiano se coloca em consonância às necessidades do contemporâneo ao se voltar ao criar,
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ao possibilitar desdobramentos. Circunstâncias raras de encontrarmos, sobretudo em uma cidade como São Paulo, cuja produção incessante se soma ao incontável número de artistas que perpassam os espaços culturais, quase sempre sem qualquer compromisso com a investigação de sua arte. Portanto, diferencia-se da sala destinada ao produto, estabelecendo outra dimensão e valor à sua ocupação. Também por isso, o instituto se propõe dialogar diferentemente inclusive com os custos, validando possibilidades de trocas e compartilhamentos junto aos artistas. Se você precisa de um canto em São Paulo, que tal se aventurar a iniciar sua próxima criação ao lado de outros artistas? Topa?
Instituto Volusiano de Artes Avançadas >> Rua São Gall 110, Vila Ipojuca, SP. Tel.: (11) 3862-8590 http://institutovolusiano.blogspot.com.br 212
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fotos cybelle oliveira
Acima, detalhe do espaço em noite de evento e performance. Ao lado e abaixo, sacada e vista.
campanha
deixe o poético invadir seu mundo ninguém deve te proteger da arte
concepção
patrícia cividanes + ruy filho
colagem miniatura
zé vicente
foto
alex silva
assistente
Thais Rocha
Esta ĂŠ uma campanha
Ricardo Severo + Roberta Koyama
outros tempos por ruy filho
FUGA AO SILÊNCIO Dois astronautas. A ausência entre dois amigos separados pelo tempo e pelo espaço. As estrelas como mediação das lembrancas. E a passagem de um cometa pela Terra oferecendo sonho
Q
uando era menina, olhando o branco ao redor, tudo tomado em neve e frio, decidiu. Era noite, e as estrelas, tantas, que era impossível não querer ir até o céu. Mas era longe, era complicado para quem não sabia voar. Ela invejava os pássaros por isso. Passou muito tempo acordada durante as madrugadas, sem encontrar uma maneira de alcançar as nuvens. Ficava ali, e parecia ser o chão o seu destino. Já ele, moleque, cercado de terra e verde, nunca havia pensado em sair dali. E daí que existia o céu? A água gelada do rio, da chuva, o vento quente, as madrugadas e o orvalho. Para ele, a Lua era linda onde estava, e se mudasse o ângulo, poderia perdê-la. Talvez para sempre, quem sabe. E adorava dormir assistindo a Lua escorrer de um lado ao outro pelo céu. Ela, na União Soviética. Ele, em Camarões. Meio planeta de distância. Até o improvável acontecer. Alguns foram escolhidos, mas não havia acaso nisso. Precisavam ser pequenos o suficiente para caber na nave. Precisavam ser calmos e aceitar as condições. Era uma tarde como tantas outras, quando os homens chegaram, conversaram com seu pai, e ela foi entregue para servir o país. Seus dias de passeios pelas ruas de Moscou terminaram. Agora, as horas eram preenchidas por um imenso treinamento físico e emocional. Não era fácil assumir o risco de ser uma astronauta. A solidão tornava tudo mais difícil. Entretanto, ela poderia tocar as estrelas, e isso é muito maior do que qualquer coisa que já sonhara. Ali, aos cuidados de dezenas de homens, ela completou o processo, até ser levada para o cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão. A próxima etapa seria conhecer a espaçonave. Mas, antes, a festa surpresa dos camaradas e adoção de um novo nome. Enquanto corria distraído e sem preocupação alguma, ele não notou a presença dos oficiais. Estavam
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Na página anterior, imagem idealizada do robô Philae, lançada pela sonda espacial Rosetta, para pousar no cometa 67P. Nesta, fotografia histórica da cadela Laika, no final da década de 1950.
ali para reunir um grupo possível de candidatos a astronautas. Ele relutou, tentou fugir, mas as crianças são ainda mais frágeis, e, sem defesa, foi conduzido junto a dezenas de outros ao centro médico. Primeiros os testes físicos, e isso não foi problema para ele. Depois, já mais acostumado com a nova casa e realidade, viriam os treinamentos mais específicos à permanência no espaço. A solidão o assustava. Perder a Lua o entristecia. Então, um dia, acomodado mais ao canto, pouco disponível à conversas vazias, sozinho em uma das dezenas de mesas do refeitório, ela passou. Olharam-se. Sorriram. Ele a convidou para um lanche. Ela aceitou. Passavam horas ouvindo músicas, de todos os tipos. Era o passatempo preferido. E nasceu uma das amizades mais lindas da história. O nome dele passou a ser Ham, o dela Laika. Ele, o escolhido, era um jovem educado e gentil chimpanzé. Ela, uma moscovita cachorra descendente do cruzamento de raças com hunkys siberianos. A década de 1950 terminava com uma incessante disputa espacial entre os Estados Unidos e a URSS. Também eles representavam o antagonismo. Mas Laika estava mais pronta, era hora de ir ao espaço, permanecer algumas horas e voltar para contar como foi o passeio. Ham, teria de esperar alguns anos ainda, e só no início dos 60 poderia fazer o mesmo. Ele assistiu pela janela quando Sputnik 2 foi lançado. Laika acenava e escrevia no vidro da nave as setas ^v. Era um código. Uma brincadeira apenas entre eles. Subir e descer. Enquanto o fogo empurrava a nave ao infinito, Ham sabia que a chance dela retornar era pouca. E lhe respondeu com o simples ! Em seus alfabetos de segredos, era como lhe dissess: e e eu estarei exatamente aqui. Laika não voltou. Ham permaneceu obstinado em encontrar algum resquício, por anos, guardando apenas para si a saudade e lembranças. Até que chegou seu momento de subir. Tinha certeza de que,
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Acima, registro fotográfico do chimpanzé Ham, antes de ser enviado ao espaço, na década de 1960. No centro, simulação do pouso do robô Philae no cometa 67P.
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uma vez no espaço, a localizaria. No Novo México, foi acomodado na nave instalada na Base Aérea de Holloman. O desconforto, a sede, a vontade sair e correr saltando pelas árvores, tudo era suportado pela esperança de rever Laika. Contagem regressiva. Canais televisivos e fotógrafos. Ham se tornara uma celebridade. E, enquanto sorria para os presentes, na verdade escondia uma saudade incalculável. Após furar o espaço terrestre, Ham passou horas olhando a Lua. Chorava percebendo cada novo detalhe, cada cratera. Chorava pela ausência de Laika perdida no escuro eterno. E só acordou da mistura de sonho e pesadelo ao ser avisado pelo rádio, você já pode voltar. Horas, dias, anos? Ham não saberia dizer. Lá não havia o tempo. E o sentir se tornava a potência de plenitude mais profunda ao viver. Foi recebido na Terra, em terra, como um herói. A Guerra Fria continuo por décadas, os países se dividiram, reagruparam, surgiram novas guerras. Ham permanecia alheio, trancafiado em seu imenso apartamento na área mais bem guardada pela
ONU em Nova Iorque. Na imensa janela, molhada pela chuva e vapor, Ham se perdia admirando o skyline pela fresta de seu traço, um mero e delicado desenho sobre o vidro de um único V. Havia algumas milhares de cartas, bilhetes, telegramas e e-mails, mas Ham nunca se preocupou em lê-las. Sabia que dentro estariam ou congratulações de toda sorte ou pedidos de ajuda dos mais variados e inusitados. Naquela manhã, entretanto, uma a uma, na pilha de décadas, ele foi abrindo, desdobrando, recolhendo e catalogando. Uma lhe chamou atenção. Vinha com o endereço de Kiev, especificamente do Instituto de Astrofísica de Alma-Ata. Perguntava-lhe se, durante sua estadia no espaço, avistara o novo cometa, pois gostariam de dar a ele seu nome. Ham não respondeu, e a carta de 1969 não atingiu seu objetivo. O cometa terminou nomeado como 67P. Algo lhe dizia ser esta a saída. Ele sabia que em breve tentariam pousar um robô na estrutura do cometa, e que este estaria para passar próximo à Terra nos próximos dias. Recomeçou as partes
lembradas do treinamento que fizera menino, criou outras, e seguiu rumo ao desafio. A Nasa não era mais a mesma, estava longe de seu auge, frágil e vulnerável. Havia acabado de assumir a necessidade de compartilhar tecnologia com seus concorrentes, e dividir com eles os custos dos voos comerciais. Nada era simples. O sistema longe de ser eficiente. Afinal, a primeira tentativa terminou em uma enorme explosão queimando o ar. Contagem regressiva e o novo satélite de comunicações seguiu como o esperado. Minutos depois, perdeu-se o contato visual com aquele que se imaginava ser um veículo não tripulado, e, por algum mistério, também o acesso computacional. Ele desviava de seu objetivo e seguia aparentemente aleatório. Longe disso. Disfarçado como apenas mais um animal de laboratório, Ham entrara nos aposentos da Nasa. Subiu no foguete carregando uma série de instrumentos musicais, uma quantidade sem sentido, mesmo para montar a maior orquestra do mundo lá fora. Roubou também as lâmpadas dos principais labo-
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Na foto maior, instalação do artista plástico Massimo Uberti. Ao lado, instalação do artista plástico Daniel Arsham.
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ratórios e seguiu. Ninguém o viu. Sabia como as coisas funcionavam, os horários, os intervalos. E não pretendia voltar para se desculpar. No escuro absoluto do espaço, Ham soltou-se da nave e se lançou em direção a Philae, o robozinho instalado na sonda Rosetta, cujo objetivo seria atingir o cometa 67P. A ideia de Ham era se acomodar por lá. Com ele, daria a volta por mais de seis anos, período para completar a trajetória elíptica no espaço. Se, mesmo assim, não encontrasse Laika, então também não haveria motivos para voltar. Apenas se permitir morrer. No minuto certo, Philae é solto em um cálculo perfeito para atingir o cometa. Ham, amarrado a ele e carregando seus apetrechos, voou. E, poucas horas de-
pois, conseguia imaginar os gritos de satisfação dos homens, enquanto se divertia imaginando serem novamente para ele. Assim que pousaram, Philae foi cumprir sua missão. Ham forrou o chão com os instrumentos, criando um universo único e especial para quando e se Laika surgisse. E foi exatamente assim. Dormindo, aconchegado entre a poeira cósmica e os violinos, ouviu explodir no silêncio absoluto uma primeira nota. Laika se aproximou como se tocasse a melodia mais bela já ouvida. Seus passos esbarrando as cordas dos instrumentos geravam o som do despertador. Ham a olhou. Ela o olhou. Por muitas horas ou dias permaneceram apenas assim, sem dizer nada, sem querer nada, apenas relembrando pelo olhar um e outro. O cometa possuía uma camada de gelo compactado e moléculas orgânicas. Philae avisara a Terra e também aos dois. Eles construíram estruturas para se gerar água e alimento, e seguiram viagem. Ham sabia que o 67P passaria pelo planeta em 2015, e poderiam utilizar o robô para avisá-los e retornarem. Mas foi Laika quem não quis. Fazia décadas que vivia pelo espaço. Aprendera a conviver com o vazio e o tudo, o silêncio e a ausência do tempo. Explicou-lhe sobre a beleza da Lua, o quão divertido é a falta de gravidade por lá. Falou sobre assistir a Terra e não apenas viver com ela. E disse que, desde sempre, seu único desejo não era voltar pra casa, mas o de poder ouvir novamente Ham alegrá-la com uma de seus histórias. Eles não precisavam de nada mais, Ham pensou. Para ele não era tão simples ficar longe para sempre. E seguiu para um lado mais escuro do cometa, distante de Laika e Philae. Passou muito tempo ali. Laika, sem entender, imaginara ter perdido o amigo. Até ser a vez dele lhe acordar, conduzir para o outro extremo e apontar sua resposta: uma imensa casa feita de luzes brancas. Para os dois. Para sempre. Enquanto na Terra, imensamente longe, um jovem cientista descobrira o brilho. E, sem saber de nada, como homenagem ao seu álbum de figurinhas de infância, decidira nomear a suposta estrela exatamente com o nome dos dois.
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visitando
Luiz Felipe Reis
o respiro de uma escrita inovadora no interior da grande mĂdia por fotos
ruy filho
patrĂcia cividanes
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ste deve ser um dos momentos mais complicados para a imprensa no Brasil, após a redemocratização. Economicamente, os mercados migram da imprensa formal para a informalidade dos blogs e sites, determinando um mercado paralelo de notícias e impressões de toda sorte; conceitualmente, é notório o isolamento dos meios, enquanto deslizam de um lado a outro, sem saberem como proceder aos acontecimentos e sua pluralidade imediatista; por fim, o brasileiro se distancia da imprensa, sem validar essa ou aquela, condicionando a qualquer meio como um mal a ser combalido. Aos poucos, perde-se a percepção da importância da imprensa, assim como se distorce o sentido de informação. Na esfera da cultura, não é diferente. Muitos blogs e sites sobre arte e programações culturais, a ausência de norte aos conteúdos e descrença por parte dos artistas. As consequências são evidentes, ao menos nos cadernos culturais: diminuição de resenhas, a crítica em extinção e um jornalismo focado na banalidade mais imediata aos interesses superficiais. Encontrar, portanto, no meio impresso, um bom jornalista de teatro, tem se tornado uma aventura.
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Dentre os muitos que entram e saem a todo instante, um tem chamando atenção. Luiz Felipe Reis escreve no O Globo, o que não é fácil, se nos atentarmos à história do diário que teve Bárbara Heliodora como detentora da fala sobre teatro por muitas décadas. No entanto, suas matérias recuperam aspectos perdidos. Luiz Felipe se mostra realmente interessado pelo assunto, busca construir boas reflexões e apresentar valores novos à cena contemporânea. Também por isso, sentamos em um café no Rio de Janeiro para conversarmos. E é um pouco desse encontro que trazemos nas reflexões à seguir. Ele começou na música. O teatro apareceu e se revelou interessante aos poucos. Hoje, entende o teatro com uma das artes mais amplas para possibilitar ao outro uma experiência estética. E sua curiosidade se volta principalmente ao reconhecimento dos modos de cons-
Luiz Felipe Reis, em ensaio fotográfico exclusivo para Antro Positivo, no Oi Futuro Flamaengo, no Rio de Janeiro.
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trução da arte. O teatro é o melhor e mais instigante espaço de liberdade à criação na atualidade, conclui o jornalista que terá montado em breve uma peça de sua autoria. Trabalhar em um jornal não é simples. Sem o reconhecimento da importância daquilo para o qual trabalha, complica ainda mais. É preciso entender um processo de euforia e desgaste da imprensa, para chegarmos a essa situação. Eugênio Bucci, hoje professor do Instituto de Estudos Avançados da USP, referência como ensaísta e editor de diversas re-
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vistas nacionais, explica ocorrer o apogeu dos jornais durante as décadas de 1900 até 1940, quando os diários tinham por todo o mundo a função de levar notícias e produzir debates públicos. A palavra impressa ocupava mais do que o informativo, ordenava a realidade. Com o tempo, a produção de conteúdos levou às relações de produção e os meios de comunicação a se interpelarem e se mesclarem em um organismo único. Hoje, conclui Eugênio, vivemos em uma era qual batizou por escritura total: todos escrevem e reescrevem simultanea-
mente, e a escritura se insere no imaginário pela instância da imagem ao vivo. A análise revela o tamanho da dificuldade da imprensa formal se colocar como meio e linguagem nesse novo instante da comunicação. E é com esse panorama que Luiz Felipe precisa lidar ao escrever, exigindo-lhe outra postura na escrita e no diálogo com o leitor. Para ele, não interessa ser crítico nos moldes como o jornal coloca tradicionalmente. E, ao ser indagado sobre o que é então importante, Luiz Felipe é enfático: desestabilizar o outro. O problema está em como reali-
“as artes cênicas são contracultuRais em si” Acima, montagem fotográfica de Luiz Felipe, brincando em frente a pausa de uma projeção de vídeo arte. antro+
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“o que me anima é quando alguém inventa outra maneira de ampliar e colocar a arte”
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“o espectador precisa ser estimulado a responder sobre sua experiência” zar esse movimento, enfim. Não é papel de uma reportagem solucionar as coisas, mas é preciso atentar-se ao fato de ser parte do jornal mostrar pedagogicamente as questões aos leitores. No caso do teatro, especificamente, sua amplitude sobre o próprio contemporâneo e o homem. A resposta, todavia, não está apenas na comunicação, mas na estratégia em como oferecer ao leitor/espectador sua própria emancipação aos conhecimentos formalistas e historicistas. Em outras palavras, na capacidade de seduzir pelo “como”, e não pela exibição erudita; pela potência da escrita ao ser lida, e não meramente pela utilidade de seu conteúdo. A tarefa não é simples, se é que possa ter dado essa impressão ao ser descrita. Exige estilo, olhar e perspicácia na escolha das matérias e abordagens. E Luiz Felipe se mostra singular nas três instâncias necessárias. Na era do excesso, diz, é preciso buscar o essencial para provocar o leitor a se interessar. Citando Giorgio Agamben, diz que o texto deve aflorar o gênio, ou seja, sair da consciência e deixar surgir um estado de inconsciência que transborda.
Voltando a Eugênio Bucci, e partindo deste à Roland Barthes, a cultura se articula à sociedade como língua. Para o filósofo francês, uma língua é sempre perfeita, ela se basta, ainda que não esteja comunicando nada para ninguém, muito menos para quem não possui maior convivência. Existe, em sua definição, dois aspectos de encontro do sujeito à informação: o balbucio, aquilo ouvido quando algo vai mal, e que se coloca como ruído sem tanta precisão, e o rumor, quando um organismo comunicacional funciona com eficiência. Seguindo tais princípios, Barthes explicará que toda língua rumoreja, e sendo a mídia uma língua, pode-se compreendê-la como uma língua ferida. Para Eugênio Bucci, seja por rumores perfeitos, seja por zunidos irritantes, o fato é que o balbucio e rumor da mídia vêm sendo escutado há muito tempo, independentemente de nossa escolha em ouví-los. Sendo, portanto, a cultura uma língua e a mídia sua expressão ferida, como dar conta de trazer ao outro os aspectos fundamentais à criação de rumores, de contextos, de sentidos? Luiz Felipe encontra a
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“Ao escrever, a sedução se dá pelo ‘como’ comunicar” resposta subvertendo o entendimento de quem é hoje o espectador e leitor interessados pelos rumores culturais. As pessoas são diferentes, interpretam, sentem, entendem a vida às suas maneiras, e não como antes, conscientes pelo inevitável espelhamento provocado pela exposição constante. O papel do jornalista deixa de ser meramente informativo, para ser o responsável a estimular o espectador a responder sobre sua experiência. Então, o teatro precisa ser compreendido para além de um mero entretenimento, de uma casualidade disponível. O teatro torna-se uma experiência estética, e a reportagem pode dissolver no espectador a dicotomia banal do “entendi” ou “não entendi”, ainda tão presente nas resenhas jornalísticas. Luiz Felipe aponta a dificuldade de aproximar tais reflexões ao teatro local. Não por conta dos artistas, mas principalmente pela maneira como o mercado se configura. Enquanto em muitos países as pesquisas de linguagem são entendidas como as mais interessantes ao mercado, colocando-se como investimentos e negócios, por aqui, são definidas por não-comerciais. É preciso diferenciar o hermético do não-mercadológico, e trazer ao plano do interesse as investigações e singularidades, afirma. Apenas dessa maneira, poder-se-á construir outras camadas ao próprio mercado e financiamento. Existe nisso uma imensa oportunidade e possibilidade de construir um lugar mais
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profundo do teatro na cultura, na verborragia da nossa língua-cultura. Todavia, identifica ainda outro paradigma, a própria especificidade da linguagem em relação ao público. Há muito desconhecimento sobre teatro no Brasil, e não se adquire informação verdadeiramente à distância. Diferente do cinema e da música, no teatro o interessado precisa ir, já que, apenas em seu instante de acontecimento, poderá acessá-lo. Por isso, Luiz Felipe entende ser o teatro das artes a que mais se distancia da posse, em seu sentido de mercadoria. Você não o compra isolado da experiência, ou o conquista indiretamente. O sentido de produto, enquanto objeto de posse e transferência não existe a ele. A mania de controlar a experiência para tê-la novamente, que o mercado das artes-objetos propiciaram ao indivíduo, precisa ser revista. E isso é possível na medida em que o teatro chega ao outro indiretamente pela qualidade de uma reflexão mais aberta aos pensamentos, do que às categorias acadêmicas, cuja serventia se limitam aos iniciados. Há como ser profundo, curioso e simples. Luiz Felipe tem sistematicamente provado isso em sua coluna no jornal, seja tratando de espetáculos, seja em entrevistas e reflexões. Se você gosta de teatro, se você não o conhece muito bem, e se você é um editor de caderno cultural, leia-o. Algo de diferente e necessário acontece por ali. E isso é um alívio e tanto. antro+
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bete coelho + ricardo bittencourt + emĂlio kalil + carlos augusto calil jaram lee + luiz melo + romeo castellucci + thomas ostermeier + win vandek
www. a ntropo
+ danilo santos de miranda + jô soares + marília pêra + enrique diaz keybus + denise fraga + antonio araújo + willem dafoe + mikhail baryshnikov
osi ti vo. com. br
ca r t a a b e r t a remetente destinatário
Ruy Filho 2015
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i, Doismilequinze, tudo bem? Você está prestes a chegar e esse catorze que não larga o osso? Não sei se vocês se dão muito bem, nem o que é possível fazer agora, mas bem mesmo não tá nada não. Desculpe te dizer isso assim, sem tanta firula. O que não entendo é por que o catorze lhe prepara tantas armadilhas? Afinal, você não é também um pouco ele? E te abandonando não estará abandonando também a própria história? Eu sei, existirão milhares de quinze, existem milhões de catorze. Só que, e o nosso? Aqui, nessa terra louca? Veja, o que te espera. A onde absurdamente ultraconservadora agora está no parlamento. Terrível, não? Sim, mas tem mais. Está também no Governo. Isso quer dizer que você não terá como escapar. Os malucos se tornaram situação e oposição! Fala, é ou não é um país de outro mundo? Como sair disso? Então, você ainda tem uns dias pra tentar resolver ou fazer o catorze mudar de estratégia. Se é que há alguma. Tem dívida pra todo lado. Dívida pública, dívida das pessoas, dívida moral, dívida emocional, dívida da dívida parcelada em muitas novas dívidas. E a roubalheira? Passa de um bilhão o rom-
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bo no petróleo. Quer dizer, esse partido formado por quem se denomina por trabalhadores, deixou um buraco maior que qualquer perfuração. Foda. Só que aí, quando você acha que a oposição vem pra cima, surge o quase um bilhão do rombo do metrô. Aí ferrou. Porque esse outro partido, que tanto se diz democrático, deixou um buraco maior que a malha ferroviária inteira. Então, pensa comigo, quinze. Juros alto, população endividada, os governos perdidos e aprisionados uns aos outros. O imbecil, no meio do congresso, dizendo que só não estupra a outra porque ela não merece. Quer dizer que, para ele, tem sim quem mereça, então? Táquipariu, viu. Acabou tudo, quinze. Eu sei que você está pra chegar, e não tem nada com a ver com isso, mas fodeu geral. E sem as soluções, como é que você vai fazer pra não ficar como um ano marcado na nossa memória de modo tão triste? Pensa aí. Quinze, tem outras coisas. Queria lhe falar sobre a parte que mais me interessa. Sem grana, ok. Sem estrutura, ok. Sem consistência política, ok. Ok, numas, você sabe, mas ok então o ok, só pra continuarmos a conversa. Aí tem a Cultura, e sem
nada disso. E aí? Foda também, não é? A tia não decide quem será o novo ministro. Ou está difícil demais alguém querer, ou sei lá. Vai ver, como nunca deu muita trela pra Cultura mesmo, não sabe o que precisa fazer. Por mim, quinze, você seria a radicalidade cultural em pessoa. Heim? Vai dizer que teu ego não sentiu umas cosquinhas agora? É sério, pensa comigo. Você como o momento em que o país desistiu de ser como é, olhou pra frente, respirou fundo e gritou feliz, foda-se, caralho, vamos fazer essa merda direito, porra, bora aproveitar essa natureza incrível, essa criatividade toda, esse espaço imenso, vamos entupir o mundo de arte, de valores, de pensamentos, vamos ser diferentes de todos eles, vamos ser gigantes... Mas aí tem o dia, tem a noite, reuniões, começam os acordos, as trocas, os conchavos, as propinas, as oportunidades e... no fim, a Cultura também se tornará um lugar complexo e manipulado, estruturado para servir de suporte aos mesmos que se colocam como imperadores do país. Vai se tornar, na verdade, é um eufemismo, você sabe bem. Pois é, difícil de acreditar, não é? Mas até agora, quinze, nenhum dos seus antecessores se preocuparam com isso.
Fica tudo no mais ou menos, no fazendo o mínimo e tudo mais. Essa hipocrisia de deixar sempre pra ser terminado depois, essa estupidez misturada com arrogância que implode todas as oportunidades, porque a única coisa importante mesmo é encher o rabo de dinheiro e entupir o esgoto de brasileiro. Esgoto que continua à céu aberto. Você vai encontrar um povo prestes a sair na porrada no meio da rua, provocados por uma multidão boçal incrível gritando por militarização e ditadura de volta. Aí é pra acabar com você de vez. Você chegando e recebendo logo essa. Ditadura! Quem diria. Tá certo que nunca lutamos verdadeiramente por nossa independência, mas lutamos pra ter minimamente o que achávamos ser liberdade. Porra, de um lado esses fanáticos, do outro acontecendo a histórica Comissão da Verdade. Se bem que... Nem sei se devia lhe contar isso, mas... Eu fico me perguntando sobre o por quê tiveram aspectos que a comissão decidiu não serem tratados publicamente e nem publicados no relatório? Que verdade é essa que deixa em dúvida se não havia outros interesses ou descobertas esquisitas? Que eles descobriram coisa
pra caramba e que isso foi incrível, foi, fato. Trabalho de responsa para a história. Mas, de porta-aberta todo o tempo seria muito mais foda de bom, não? Falando sério, acho que queria te encontrar em outro lugar. É horrível pensar assim, eu sei, mas tem como impedir o sentimento de derrota e fracasso com o futuro daqui? O que poderia ser um processo civilizatório fenomenal está se tornando uma lavagem mental irrecuperável. O que poderia ser um processo humanista, agora se coloca como a base da destruição social. O que poderia ser um processo ético, se faz instrumento ainda maior de corrupção. Caramba, quinze, como lidar com tudo isso? Parece que nos acostumamos tanto ao mediano das coisas, que não nos atentamos que, pouco a pouco, foram baixando a linha média. Hoje, e você terá de lidar com essas paradas todas, tá fodido, somos profundamente anti-éticos, desumanos e primitivos. A violência se revelou intrínseca ao brasileiro. Somos a personificação da agressividade em pessoa em si mesmo de nós mesmos contra nós, cara. Aí não tem valores e morais que resistam, sacou? Ou aceitamos isso, ou vamos sempre no argumento de que não está tão ruim assim,
pra quê mudar, em time que ganha não se mexe, essas coisas. Eu não. Sou dos pessimistas que acreditam que de tão ruim só dá pra melhorar. Mas tem que querer mudar e melhorar. Quinzão, isso é mais um desabafo mesmo, afinal a bola nem é sua, vai ser passada pra você. Relaxe. Só venha esperto. Venha com força, disponível ao improvável e impossível. Aceite que terá que colocar os dois pés na merda. Aí te ajudo a limpá-los, de coração. Só assim, cara. Entende? Não há outra saída. Você não tem escolha, eu não tenho escolha, então que seja, quinze. Vamos com tudo. Vamos pro que der e vir. Gritando, reclamando, xingando, rindo, surtando. E daí que a inflação pra você já está oficialmente colocada como maior ainda? E também o crescimento anotado como quase zero? E essas são as oficiais, imagina, então. A realidade é essa. E, já que não consigo te encontrar em outro lugar, já que tem de ser aqui mesmo, então é o que é. Eu te ajudo, doizmilequinze, mas você me ajuda de volta. Nada de cada um cuidar de si. Porque isso, o catorze fez e, sinceramente, o que a experiência mostrou foi um puta aninho filha da puta de fingido e manipulador. Tô de olho. Chega aí.
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diĂĄlogo. x2
por ana carolina marinho e maria teresa cruz
in cĂŞn di os A humanidade em estado de descontrole
Maria Teresa Cruz: Os temas abordados são densos, a tensão da narrativa é evidente, mas talvez começaria comentando as escolhas na montagem. A personagem da marieta severo protagoniza muito mais por ela – atriz – que pela personagem. Já vale como início ou tu quer começar? (Risos) Ana Carolina Marinho: Já vale! E concordo contigo. Mas
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como não ser assim? Acho que esse é o desafio de todos esses atores extremamente conhecidos. MTC: Sem dúvida, encontrar um equilíbrio entre personagem e persona é o ideal para que um não suplante o outro. Mas o caminho é buscar não ser. Na peça, penso que a personagem da Marieta (a mulher que canta) é uma das pontas da linha narrativa,
mas enfraquece na minha visão pelas escolhas cênicas. Por que ela aparece ora como existência ora como lembrança? Fortaleceria uma onipresença maior dela. Até no processo de afinal desnudar a história tão terrível a que foi submetida... Como você acha que pode existir esse equilíbrio? Ou ainda, ele é necessário? ACM: Realmente não
tinha pensado ele do ponto de vista da encenação, mas da interpretação. Tinha a sensação de que o espetáculo se desconectava pelo excesso de força empenhada nos diálogos. Pensava sobre o que se diz no cinema, sobre colocar a voz no coração, sem excessos. Talvez por ter visto Incêndios logo depois de estar mergulhada num festival de cinema
MTC: A voz no coração. Bonito isso. Um bom ponto de análise. Acho que existe uma coisa um pouco tacanha dos excessos no teatro. Aquela escola das antigas... O mesmo ocorreu comigo com relação a estar absorvida pelo cinema, no meu caso pela mostra de cinema. A percepção é outra. No cinema, assim como na edição em jornalismo, dizemos que menos é mais. Concordo com você.
ACM: Mas acho que essa dramaturgia é muito cinematográfica, se é que se pode dizer isso (risos). Você chegou a ver o filme “Incêndios”?
o que diz. Talvez pelo formato, pela linguagem, o texto não prenda. Fica arrastado em alguns momentos, o que é uma pena.
MTC: Para o teatro? Acha que algum eventual equívoco de interpretação pode ter acontecido pelo formato? Não vi. Dá pra sentir essa diferença?
ACM: Eu acho, Tetê. Acho que o texto é tão denso e dramático, que talvez o “menos” fosse uma solução. Mas aí também me questiono se a gente não está acostumado a esse tipo de interpretação que se abundou com as obras autobiográficas, sabe?
ACM: Eu também não vi. MTC: Mas entendo
Essas em que o ator parece estar apenas conversando com a gente. MTC: Um ótimo ponto levantado. Um modelo que tem dado certo (ou ao menos para o gosto de parte do público) mas que de fato não prioriza o trabalho do ator. Algo como o ator estar a serviço do texto. ACM: Não sei exatamente se não prioriza o ator, mas
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Texto: Wajdi Mouawad Direção: Aderbal Freire-Filho Elenco: Marieta Severo, Felipe de Carolis, Keli Freitas, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Flávio Tolezani, Isaac Bernat e Fabianna de Mello e Souza.
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parte dessa busca em equalizar as forças que compõe a cena. MTC: E crê que consegue equalizar? Eu penso que em alguns momentos sim. O inicio da peça, por exemplo, é bastante acertado. O cenário funcional se mostra como importante coadjuvante. Mas no desenvolvimento do personagem violador, acho que não houve sucesso em equalizar as forças. Só pra citar dois exemplos... ACM: Lembro de dois momentos em que eu realmente me conectei, como o relato do fuzilamento, pela primeira mulher que canta e o depoimento final de Marieta Severo, a segunda mulher que canta. Mas realmente fiquei arrebatada pela dramaturgia, ela dá uma reviravolta surpreendente, lembro de poucos textos no teatro assim. MTC: O depoimento da Marieta Severo no final é forte mesmo. ACM: Lembro mais de roteiros de cinema com essa força. MTC: sem dúvida. Por isso que talvez ele realmente tenha o brilhantismo na dramaturgia, como você apontou. A construção da história é forte
ACM: realmente, fiquei curiosa para ler a peça e o ver o filme também. Tava aqui pensando... MTC: fiquei pensando na relação de tempo. ah diga... ACM: Talvez a gente espere essa “fala próxima ao coração” por algumas intervenções que se tem na peça com o teatro e os espectadores. Maria Teresa Cruz De sentir empatia? Uma possibilidade mesmo. Inclusive tem a ver um pouco com o que eu ia dizer, sobre a relação de tempos na peça... passado/presente/ futuro. Fiquei um pouco sem saber o que mais me prendia. Mas acho que saber o que aconteceu é mais interessante do que a condição dos personagens no presente. ACM: Concordo contigo. Tete, cheguei até a lembrar das estruturas das antigas tragédias. (Risos) com o reconhecimento da ação falha, a reviravolta e a catarse. MTC: E aí essa quase necessidade de empatia, por vezes exposta na peça com a quebra da parede ator/público. Nossa, incrível! Bem lembrado ACM: Não que isso seja
relevante, mas não lembro de reconhecer uma estrutura tão complexa assim em textos contemporâneos
números e estatísticas (risos) Mas vejo muito isso, uma certa dose de reducionismo. ACM: Como assim?
MTC: Não me recordo também. O contemporâneo por definição – não que tenha que ser, mas tem sido, ou está – é fragmentado. “Incêndios” contempla linha narrativa completa e quando digo “mas é” insinuo que é assim que todos têm feito... enfim, penso que por tudo isso “Incêndios” é corajoso. ACM: Muito! Porque se funda numa estrutura muito complexa e um pouco abandonada. MTC: E ousa na medida em que não transige com essa lógica do que a gente, quando estudava teatro, conhecia como “teatrão”. ACM: Risos MTC: Inevitavel lembrar ACM: Verdade MTC: Nos tempos atuais, aproveitando sua linha de raciocínio, você já reparou que muitos monólogos emergem, justamente porque a necessidade de compromisso com qualquer estrutura narrativa talvez seja menor. É uma impressão minha... não sei em
MTC: Penso que existe uma cultura de que montar um monólogo (enquanto estrutura cênica e até narrativa) é mais simples. E no sentido prático é, de fato, por razões muito evidentes. Mas digo tudo isso para corroborar a afirmação de que vejo “Incêndios” como escolha corajosa. Minha fala é nesse sentido. Não estou menosprezando um monólogo, um solilóquio, pelo contrário. Aliás, nesses, a interpretação é quase que o fiel da balança. ACM: sim. Muito corajoso! Lembro que também havia anotado que aquele silêncio da marieta me lembrava Persona, de Bergman MTC: Você acredita que a ordem dos fatos é ideal para o espectador? ou seja, uma provocação: se fosse dirigir a peça, utilizaria a mesma linha narrativa que o diretor optou? Eu adoro esse filme. ACM: Com as devidas diferenças, existia uma mulher muda diante de uma enfermeira que tentava de todas as formas,
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MTC: Sem dúvida. Aquela que se calou, porque as palavras - ou o que elas representavam - deixaram de fazer sentido. ACM: Exato! E acho isso muito precioso. Inclusive, poderia conduzir a interpretação, sabe? A própria dramaturgia aponta para esse esvaziamento da palavra. MTC: Mas você sugere ela ficar calada o tempo todo? ACM: Para a necessidade de emudecer. De
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silenciar diante da verdade MTC: Total! E nesse sentido, o algoz deveria silenciar também... e não o faz, né? ACM: Não, digo que talvez o “menos” que a gente falou lá atrás pudesse caminhar nesse sentido da “fala perto do coração” e desse esvaziamento da palavra, nesse lugar em que ela dá espaço para a necessidade do silêncio. MTC: Entendi. Dessa forma se encontraria talvez um ponto de equalização. Talvez. Mas então, a certa feita, podemos admitir que, também voltando lá pra cima, a linha
de interpretação não caminhou para o significado do macro. ACM: Porque a impressão que tinha era que a interpretação caminhava para o excesso disso, para o não reconhecimento dessa verdade. A sensação que tinha, era quase como se tudo que a mulher que canta falava, talvez ela nem quisesse dizer. Como se tudo que é dito por ela, só é dito para que sigamos com ela para descobrir a verdade e não para “sentir”, se compadecer. É, acho que sim, Tete. MTC: Falamos juntas! (risos) e mesmo a figura do algoz tão para cima, com o beat
lá no alto... entendo que no contexto de arrogância, maldade e violência em que ele se inseria até justifique, mas ficava muito “para cima”, desconectado com todo o engendramento da história como se ele fosse um turning point - pelo exagero, pelo desmedido - mas não é porque o turning point é ela. Ou melhor, ele: o silêncio. ACM: O texto realmente me inquietou bastante, achei incrível! MTC: A mim também, especialmente o fato de lidar com desumanidades tão comuns a nós no dia a dia.
fotos: Leonardo Aversa
estimular a fala e descobrir o motivo desse emudecimento.
Fabricio Castro concepção
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assistente
Thais Rocha
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deixe o poético invadir seu mundo ninguém deve te proteger da arte
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máquina de escrita A escrita no teatro tem se fortalecido pela perspectiva de olhares cada vez mais originais, pelos quais a afirmação de poéticas sustentam contextos novos e essenciais ao desenvolvimento da arte. por isso convidamos Dione Carlos para publicar um seus escritos. A experiência é única. Tanto quanto sua poesia.
mรกquina de escrita
daL escrito por
Dione Carlos
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alar sobre um ícone, escrever so-
do material simbólico sem torná-lo previ-
bre, criar a partir dele. Isso não
sível, literal ou hermético. No texto que
é simples. Corre-se o risco de ser
temos o prazer o publicar, texto-poema-
reducionista demais, explicativo demais,
-imagem, Dione se apropria de Salvador
redundante demais. Demais em tudo. Os
Dalí, e nos devolve o artista, a partir dela
ícones possuem o acúmulo de serem eles
mesma e não dele. Reconhecemos o pin-
mesmos seus porta-vozes e as compreen-
tor surrealista e seu universo por dentro
sões múltiplas idealizadas por cada um de
de Dione, nunca a escrita como verniz
nós. Porque é impossível não carregarmos
de proteção. O texto se revela, portan-
uma imagem, uma definição, explicação.
to, um meio especial de encontro nosso
Afinal, o ícone, assim o é, principalmen-
com a escritora, e isso é radicalmente
te por pertencer ao imaginário comum,
especial. Como suas palavras convidam
sobrevivendo ao tempo e às interpreta-
o leitor à fala, e a sonoridade completa
ções. Então, falar, escrever, criar seriam
a dimensão poética do universo descri-
quase impedimentos ao artista, mecanis-
to, iniciamos em Dalí um novo espaço na
mos de construções do seu próprio fra-
Antro Positivo, desta vez voltado ao som,
casso. Nem sempre. Depende do quanto
ao dizer. Máquina de Ouvir é um desdo-
o artista é capaz de encontrar no ícone
bramento à Máquina de Escrita. Agora,
os meios de sua expressão. O ícone passe
além da relação direta e íntima com o
a ser matéria real ao artista, estruturas
texto em sua materialidade impressa, as
para investigações de linguagens e técni-
pessoas são apresentadas às respostas de
cas, tanto quanto as tintas e palavras. Isso
nossos convidados. E inauguramos esse
é raro. Exige atenção ao presente, capa-
movimento com os incríveis Eric Lenate
cidade em ir além da obviedade, superar
e Nathalia Lorda, que emprestam suas
o previsível. Como bem faz Dione Carlos,
vozes e leituras ao texto de Dione. Ler,
uma das mais interessantes dramaturgas
falar, ouvir a si mesmo, ouvir ao outro e
da atualidade. Sua escrita consiste em
encontrar a experiência do texto em di-
tornar o texto imagem a ser ouvida, não
mensões variadas por recursos múltiplos.
apenas a descrição de ações ou tentati-
A escrita em seu estado máximo de expe-
vas de desenhar o sujeito. Dione trabalha
riência poética. Aventure-se. Entregue-
no leitor e espectador o reconhecimento
-se às surpresas.
ruy filho
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máquina de escrita
A arena fica pequena quando o touro é grande. O vermelho antevê o sangue. Vênus se multiplica diante do animal. Sêmen incontido em lágrima amarga. Vênus se rebela, move o tronco sem os braços. Fileiras de moscas na direção de um menino. A mulher traz rosas e carne fresca da feira. O cheiro e o perfume se distinguem pelo sumo. Vênus é uma cabeça com o corpo todo dentro dela. Boca, olhos, língua, nariz e dentes. Os relógios derretem sobre a mesa enquanto um exército de formigas se organiza sobre ela. Meu braço pode ser afinado. As cordas movem meus dedos. Cada montanha é um corpo eternizado. Gala, Galateia, Gaia minha. Um homem afogado em si mesmo. A mão segura um ovo como quem apoia a própria cabeça. No lugar do cabelo, uma flor solitária, carnívora. Nossas pegadas afundam na areia. Elas não desaparecem. Sobre nossas cabeças, uma flor vermelha brota, adubada pelos nossos pensamentos. A cidade se afasta quando estamos juntos. Nós nos encolhemos até cabermos um no outro. Baioneta e tigres se lançam sobre o teu corpo. Um exército de moscas se organiza em minha boca. A nudez é como uma roupa perfeita sobre o espírito. Um pingo de orvalho faz desabar uma flor. No lugar do cálice de vinho degusto um par de asas. Nossas pegadas são profundas, esconderijos de escorpiões. Uma manada de elefantes e cavalos alinhados diante da cruz. Desfile de castelos suspensos e seios à mostra. Uma perna resiste, a outra quer se curvar. O pão e o vinho acompanham a angústia dos discípulos. 258
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dalí
Sob um teto de vidro, braços abertos sem um rosto. Todo homem no centro da mesa guarda a mão no coração. Antes da minha chegada Ele havia sido beijado no rosto. A mão engatilha o dedo para o céu, bem próximo à cabeça. A cabeça sem apoio como se a mão tivesse abandonado um ovo. Lênin se multiplica nas teclas do piano. Meu braço desafinado. Os dedos reagem em preto e branco. Formigas dançam sobre minha partitura. Caminham pelos meus braços, ombros e boca. A mulher do lado de fora segura o ouvido para que não derreta com o som. A mulher de dentro nasce de uma poça de sêmen dourado. Ela sente o meu perfume amargo. Um gafanhoto dentro dela é devorado pelas formigas que carrego. Entre os seios uma enorme tulipa recebe o meu líquido. Um anzol em suas nádegas prende o meu dedo aos seus gemidos. O homem na cruz também aguarda a chegada dos barqueiros. A travessia é longa quando as mãos demoram a desprender da madeira. A cabeça e o peito dizem sim ao mesmo tempo. Tão raro. Um ovo em construção. Entre as cascas divididas um sol liberto. O barqueiro atravessa um pequeno trecho com água. A areia venceu o mar. Nossas pegadas impressas.
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Esconderijo de siris. De costas para a multidão vejo um único rosto. Quanto mais longe mais nítido.
por eric lenate
Na poça d’água o rosto deles. O meu rosto. Nunca foi um delírio.
por nathalia lorda
Marcelo Braga 1961 260
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