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editorials E

sse caderno é duplamente especial. Primeiro, por trazer as observações e sensações de espetáculos e discussões que permearam o Mirada. Segundo, pois completa o exercício que o antecedeu de construir

o catálogo do festival, no qual trabalhei as apresentações dos espetáculos participantes. O convite do SESC era dar conta apenas de uma parte. Mas como não continuar? O teatro envolve o pensamento, a rotina de convívio configura novas possibilidades de ver, de encontrar o mundo e o homem, e trazer isso para todos é quase inevitável. Então, surge mais um caderno, dando conta de permanecer as experiências ao tempo, sem a preocupação de ser um produto imediato. Queremos mais. Queremos tornar possível o existir do teatro em memória, em discurso, em encontro. Durante o Mirada foram vários encontros. Aqui, alguns trazidos ao diálogo mais amplo. Sinta-se convidado a olhar, ler, conviver e viajar em tantos diferentes horizontes.

textos

ruy filho


lsumário foto: bob sousa

04 06 10 28 32 34 40

QUEM INíCIO RESENHAS MEIO Reflexão 1 Reflexão 2 Sobre o mirada


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editores

Ruy Filho (texto) Patrícia Cividanes (arte) realização

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ANTRO POSITIVO é uma publicação trimestral, com acesso virtual e livre, voltada às discussões sobre teatro e política cultural. Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio:

antropositivo@gmail.com aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo


irolan jennifer glass jorge becker jorge pizarro nora lezano roberto blenda

agradecimentos

colaboradores

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alejandra costamagna alexandre mate aline ribenboim antonio martinelli armando fernandes beatriz rizk bia junqueira cibele forjaz danilo santos de miranda equipe sesc santos fernando yamamoto grace passô heloisa pisani joão garcia miguel jorge louraço leonardo douglas nicoletti lucía de la maza luiz fernando s. silva matheus josé maria pepe bablé ramiro osório ramón griffero ricardo iniesta roberto suárez rodrigo eloi rosana paulo da cunha rosyane trotta sérgio luiz v. de oliveira sylvio novelli yara de novaes


inĂ­c especial

mirada


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especial

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O

mar se coloca instransponível. Não é fácil seguir. O que torna o tempo, em seu estado congelado, paradoxalmente correr mais que o desejado. O relógio é implacável à inércia. Mas como mover o mar se a ele depende apenas ele mesmo? Ali, os quatro olham a paisagem infinita de lanternas vermelhas dançando molhadas pelos respingos, e a soma de seus brilhos tornam tudo um tanto mais belo e ansioso. Do lado de fora de nossa proteção, o dia escorre. É como se gritasse a partida do tempo qual perdemos. O mar é a face do inevitável e o destino à embarcação parece realmente impossível. Culpa de um animal qualquer; bicho mesmo, que invadira a trajetória e dela decidira impor outro ritmo aos viajantes. Somos centenas ou milhares, não é possível saber. As lanternas escorregam como nos rios míticos. Falta o mistério, no entanto. E permanecemos paralisados entre o não ir e o não ficar. Até a primeira onda se desenrolar, fluir, e podermos navegar rumo ao objetivo. Talvez não seja mais possível. Os carros não são tão ágeis quando estradas chovem. Largas as malas no hotel e sair. Entrar no taxi e sair. Chegar ao SESC. Menos de cinco minutos do início. O tempo necessário ao café, aos abraços, aos encontros. Sentados nas poltronas da sempre interessante sala do SESC Santos e seu monumental espaço ao artista e público, a respiração retorna ao fôlego normal, os ouvidos destravam aos discursos, o corpo prepara o mergulhar outra vez no imaginário e criação de outros artistas. Começa o Mirada. É hora se aventurar à navegar rumo ao desconhecido. Evoé.

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especial

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por

ruy filho

viajou a convite do Sesc


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T

ratar a história parece simples, mas não. Como lidar com fatos conhecidos por todos? Como atribuir originalidade na observação daquilo preenchido pelo tempo com tantas leituras e interpretações? A maneira usual é aproximar um momento ou fato e dele interpor um instante ficcional. A reunião não escapa a isso. Faz do encontro entre Cristóvão Colombo e a rainha Isabel, após o descobrimento das Américas. Nada potencialmente original, não fosse a incrível dramaturgia de Trinidad González e sua atuação. A maneira como o conflito entre os dois personagens se desenha estabelece um vasto campo de subjetividade, e o embate assume a perspectiva de ser muito maior do que o acontecimento histórico. Se olhar para a história é também a maneira de constituir perspectivas ao futuro, A Reunião configura o ontem como devida atenção para o agora. Fala da urgência de traduzir o presente, encontrando nas entrelinhas dos acontecimentos aquilo que confere as características dos enigmas atuais. Cabe, portanto, ao escolher a história, traduzí-la pelos interesses de sua distorção. E Trinidad o faz incrivelmente bem. Seja na sutileza da presença de um celular nas mãos de Colombo, seja no fraseado imposto por uma prosódia contemporânea. Muda-se tudo, portanto. Desde a percepção dos personagens até suas relevâncias. E, ao fim, conclui-se ser tão possível

a ficção que só nos resta compreender o presente igualmente ficção possível. Onde está a história, então? Naquela que se recorda, refere-se, ou na manifestação de suas ressignificações? O espetáculo é de uma simplicidade impressionante, ao tempo em que sustenta um nível não comum de profundidade. Essa dimensão aparentemente contraditória expõe ainda mais a maestria de um espetáculo preciso. Sabe-se brincar com os códigos dramáticos, sem cair nas características mais óbvias do drama, mantendo dois personagens em confronto, diálogo, prontos à explosão, um a contraposição precisa do outro. Antes de ser apenas um melodrama, A Reunião configura o teatro como o encontro da palavra. E a palavra, aqui, tem o sentido máximo de verborragia do sentir. Assim, os personagens são também a manifestação dos discursos impregnados pela história, quais nos acostumamos sem nos atermos da imposição do tempo e suas manipulações. Tudo é verdadeiramente possível. Pois em A Reunião tudo é verdadeiramente teatro. E Trinidad, sem dúvida, um acontecimento ímpar da dramaturgia contemporânea, sem exageros, sem vícios de modernidade, mas com inigualável capacidade de ser original. Uma história e tanto.

foto: jorge becker

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A reuniao

Dramaturgo e Diretor

Trinidad González Elenco

Trinidad González, Jorge Becker e Tomás González Encenação

Teatro en el Blanco

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Conceito, Co-autoria, Direção Geral e de Arte

Laura Villegas Dramaturgia

Fabio Rubiano Elenco

Jairo Camargo, Marcela Agudelo, Jorge Herrera, Gilberto Ramirez, Gala Restrepo, Laura Villegas, Ana Sol Escobar, Nicolás Cancino, Ricardo Mejía, Miguel Gonzalez, Natalia Reyes, Jimmy Rangel, Daniel Calderón, Ivan Forero, Judith Segura, Maria Soledad, Marco Gómez, Jhonatan Agudelo, Monkey e Henry Ortiz


13 sonhos

E

foto: jorge pizarro

m 13 Sonhos, o espectador é convidado a participar de uma viagem onírica. Veste-se de pássaro ao lado de gaiolas ocupadas por lâmpadas, em uma espécie de bar de hotel. Tudo ali é estranho e convidativo. Tudo oferece espaço para escapar do mundo real. São 13 instantes instalações, pelas quais o desenrolar de um romance se coloca em suas mais diversas faces. Nada tem completo sentido, ou perder-se-ia a dimensão do sonhar. Assim como o amor não se explica, ou perder-se-ia a dimensão do sentir. Assim somos convidados ao percurso. Cena à cena. Ou imagem à imagem de um sonho que se repete, se acumula, se confunde e se justifica principalmente por ser o que é. Impacta a qualidade estética a cada espaço. Contudo, não se trata de uma excelente cenografia. Ela é mais. Deixa de ser ambientação para ser a dimensão de ambiência à narrativa. As instalações são a face mais visivelmente narrativas, pelas quais o espectador adentra e reconhece a perspectiva do delírio próprio do irreal. Telefones, teatros, acidentes de carro, circo... A cada tentativa de piscar os olhos, é como se o sonho se transmutasse em uma tangência narrativa paralela. Não importa traduzir e contextualizar, apenas a permissão ao improvável. Assim o sonho se confirma ao transeunte pássaro espectador. Porém, tamanha potência estética coloca ao trabalho uma questão paradoxal. Menos pelo jogo eficiente entre os intérpretes, e mais pela maneira como a palavra é trazida. Aquilo que é dito, ora se explica em demasia,

ora se coloca menos interessante ao convívio com a ambiência. É fácil abandonar os ouvidos e se entregar apenas aos olhos, o que não significa dizer que o texto é ruim. O problema é que, sendo o olhar o encontro inicial, espera-se o mesmo impacto ao ouvir, e ele não vem com igual desenvoltura. Ao ser apresentado em sua maneira coloquial, ainda que poética, tanto nos diálogos quanto monólogos, falta à palavra alcançar também como estrutura sonora sua ambiência estética. Falta-lhe um certo sabor ao seu valor sonoro. Talvez tirar-lhe a característica romanceada da literatura latino-americana, tal qual se reconhece no fantástico, para radicalizar ao dinamismo estético proposto por estruturas mais contemplativas aos seus valores de construção. O reconhecimento da informação, sua tonalidade habitual, afasta o espectador da imersão e o reinsere na realidade pela forma daquele que assiste o sonho e não de quem nele igualmente está. Ouvir, portanto, torna-se o paradoxo de recuperar ao espectador a racionalidade ao oferecer a possibilidade de construção narrativa simbólica plausível ao entendimento psicologizado dos personagens e acontecimentos; enquanto poderia ser outro meio de sustentar a experiência onírica. Por fim, o espetáculo se revela belo e instigante, mas com a certeza de que poderia ser mais ouvido por sensações do que propriamente ao ser falado.

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C

omo tratar os heróis? A pergunta só faz algum sentido ao compreendermos antes que eles existam. Então, o dilema: quem os reconhece e nomeia? Há no contemporâneo uma busca por heróis concomitante à tentativa de eliminá-los. Isso ocorre sobretudo pelo movimento de uma geração já não reconhecedora de sua história. Trata-se de um distanciamento da memória histórica, portanto com consequências inicias e finais nos discursos sócio-políticos que se voltam ao passado e também acontecimentos relativamente recentes. O fato do não reconhecimento do ontem como sendo um instante específico, porém percebido por sua consequência sobre a atualidade, leva os jovens a desconfiarem daqueles figurados protagonistas. É também a partir desse distanciamento que A Imaginação do Futuro se lança para falar do presente via o passado chilena, a partir da queda de Salvador Allende e o início da ditadura de Pinochet. Alguns valores são jovialmente provocativos, propondo certa idiotização tanto da figura de liderança de Allende, quanto da tentativa em se construir uma sociedade ideologicamente mais igualitária. A conclusão de serem os revolucionários desse socialismo atabalhoado, nos dizeres do espetáculo, um grupo de burgueses

cocainômanos, refere-se menos ao criticar objetivamente, dialoga com a caricatura dos desrespeitos necessários às desconstruções do heróis. Com cenas mais interessantes e outras previsíveis, o conjunto revela a dinâmica de um discursas sobre a memória ainda superficial, porém própria dessa geração. Não que isso reflita limitações, mas, de um modo particular no lidar com os discursos urgentes, as revisões críticas e irônicas, os desapegos e desconfianças de agora. O espetáculo alcança seu propósito exatamente por tais contradições. Traz Allende como herói possível, porém aceito apenas em sua caricatura romântica. Com um pouco mais de recorte entre as diversas cenas reunidas, o espetáculo deixaria de ser crítico para chegar beneficamente ao constrangimento. Alcançado isso, seria realmente fascinante nos constrangermos com nossas certezas e valores, escolhas e principalmente heróis. Certamente, imaginar o futuro é mais interessante quando os visualizamos sem a necessidade de capas e super poderes, ou de figuras sobrevividas ao tempo sem memória, idiotizadas pelo esquecimento, caricaturas de suas verdades, contudo ainda fundamentais.

foto: compañia la ressentida

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Dramaturgia

La Resentida Elenco

Rodolfo Pulgar, Carolina Palacios, Benjamí Westfall, Corté, Pedro Muñz, Sebastián Squella, Ignacio Fuica

A imaginação do futuro

Direção

Marco Layera

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Dramaturgia e Direção

José Celso Martinez Corrêa Elenco

Sylvia Prado, Camila Mota, Marcelo Drummond, Zé Celso, Letícia Coura, Juliana Elting e atores da Cia. Oficina Uzyna Uzona e Universidade Antropófaga


foto: jennifer glass

E o teatro. Exposição maior de sua potência poética coletiva. Assistir a um espetáculo de Zé Celso exige o reconhecer da morte que impera sobre nós. Ele lhe convida a reagir. Ele exige seu viver. Em outro espetáculo recente, dentro da trajetória mítica que se tornara o projeto Cacilda, falei a Zé que sua linguagem mudara. Tudo me parecia diferente. Explicado ter sido criado o segundo ato no calor dos acontecimentos de nosso junho histórico, minha conclusão é de que a urgência se revelava seu novo estímulo. O agora, e não mais como assunto, já que sempre o hoje participa e tematiza seus espetáculos. O agora como urgência de fala, de reação. E, novamente, esse é o sentido em Walmor Y Cacilda. Necessita-se dizer. E se diz. A fala, também sempre presente, deixa de ser texto e assume de vez o operístico instintivo da tragédia de um país em eterna espera. O brilhante começo com a carta de Getúlio Vargas emociona. Como tudo aquilo, ali, exposto em cena, faz sentido ao urgente de meu próprio instante! Marcelo Drummond consegue o respiro da desistência de um homem prestes a morrer como vitória. Vargas contradiz Foucault. Morre no instante em que viver seria eliminar sua própria condição de presença política. Viver passa a ser também um atributo de permanência histórica. E, desde o tiro, ele se colocou mais vivo do que nunca em todos nós. Em outro momento, Marcelo-Walmor, amarrado à rede, feito um existir imposto de Macunaíma ao homem, dialoga com a violência necessária ao querer viver. Ambas as falas se somam

Walmor y cacilda

N

ão é simples assistir a um espetáculo de Zé Celso. Ele exige uma espécie de intervenção profunda naquele que o olha. Pois não se enxerga apenas pelos olhos, mas também pelos ouvidos, corpo, pele e devaneio. Então é preciso estar disponível ao mais experiencial sobre si mesmo. Nasce no assistir, o teatro. Agora ele é você, tanto quanto a cena. E a orquestração máxima entre os dois polos realiza a comunhão de ser o todo um universo uníssono. Então, exige. E quer mais. Quer sua vida. Não como espécie a ser consumida. Quer o seu viver, na verdade. Sua audiência e escuta, seu olhar e seu íntimo, sua realidade e sua imaginação. O homem tem se esquecido disso. O cotidiano de um capitalismo que agora fortalece a crueldade sobre o outro, policia a imagem de si mesmo pela estética e pela presença, este poder cotidiano já se desenha há algum tempo. Foucault diagnosticou a passagem do poder pela manutenção da vida do indivíduo, enquanto lhe fosse útil. Cabe ao poder, portanto, definir sua utilidade e, ao reconhecer sua desnecessidade ao sistema, atribuir sua morte. O homem passou a ser apenas o instrumento de sustentação do poder. O espetáculo grita a isso, aos desafios. Danem-se os sistemas e estruturas vigentes. É preciso recuperar a importância do homem no seu sentido mais próprio, sua possibilidade em viver. Então cometa o crime de viver, diz Zé Celso, em determinado momento. E nada é mais contrário aos desvios e dogmas do sistema capital que o existir poético. O corpo. Ele mesmo como sua condição maior de poesia.

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e reapresentam-no um ator maduro, inteligente e disposto ao risco. Cala-se ao ouvi-lo em seus dois solilóquios. Cala-se à confirmação de um talento que parece realmente começar a desbancar o eterno Dionísio de Bacantes. É outro, quem hoje vive no Oficina. E é melhor! Walmor Y Cacilda traz uma escrita extremamente generosa aos atores. Há mais precisão no uso das palavras e mais desdobramentos poéticos. A escrita de Zé Celso igualmente amadurece ao exercício da palavra, gerando momentos impressionantes e singulares, mesmo para a trajetória do diretor. Se a generosidade oferece além do texto o tempo para sua exposição, é preciso que atores e atrizes mergulhem na profundidade, ora dolorida, ora cínica. E coube a Sylvia Prado e Juliane Elting compor um dos momentos magistrais de escrita e interpretação. O jogo entre o dizer e olhar entre as atrizes, enquanto existem Cacilda e Maria Della Costa em cena, conduz o assistir a um estado de cumplicidade. E poucos são os espetáculos hoje que permitem tamanha possibilidade de exibição aos intérpretes. É assistindo ao encontro delas no DOPS que se percebe o quanto o teatro ainda pode encontrar caminhos para o seu próprio viver. Por fim, Zé Celso se levanta. Surge. Reafirma a condição de busca de sua poesia. Diz. Canta. Encanta. E nos leva ao mais profundo oceano das urgências, um

tanto ele mesmo, outro tanto Próspero. A fala clama por nosso crime. É preciso afundar e ressurgir vivo. O público reage. Mudo. Porque talvez o primeiro movimento ao renascimento seja a escuta e observação. O monólogo final é das falas mais lindas e necessárias já ditas no Oficina. Recupera o encontro, a teimosia, a paixão, o tesão. Ali, de terno branco e gravata vermelha, saudando exu, o Zé deixa de ser apenas Celso e rebatiza sua presença, feito outro, feito Pilintra, feito o mensageiro de uma brasilidade cuja história se perde dia a dia por substituição de prioridades. De mãos dadas, não somos conduzidos em multidão apenas ao exterior do teatro, como muitas vezes, enquanto cantamos tupi or not tupi para além da afirmação óbvia. Estamos em dúvida, agora. Pois viver é efetivamente um estado de desconfiança e dúvida sobre tudo, todos e si mesmo. De mãos dadas, saímos, ocupamos os destroços do terreno ao entorno, avançamos sobre a rua, e retornamos aos nossos lugares. Pois se trata disso, o viver. O eterno retorno ao centro de sua existência. Só que, às vezes, é preciso ser conduzido de volta a você mesmo. Entrar e ser a cena. E descobrir o quanto de si próprio ainda pode desafiar a morte dos dias comuns. Obrigado, José Celso Martinez Corrêa, Juliane Elting, Sylvia Prado, Camila Mota, Marcelo Drummond e a todos ali. Hoje, encontro meu agora e saio do teatro disposto a viver um pouco mais.

foto: jennifer glass

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Walmor y cacilda

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Direção Geral

Nelda Castillo Performer

Mariela Brito A ssistência Técnica e Artística

Arnaldo Galbán

A ssitência Artística

Jaime Gomez Triana


foto: irolan

o corpo amarrado e pelas cordas deformados ao desenho de um não-corpo de mulher. Assim, a figura pode ser reconhecida mais em sua animalidade do que humanidade. O cabresto que lhe mantém aberta a boca e deixa escorrer a saliva incontrolável, marca violentamente a figura desse animal. Nada ali é incomum, nem mesmo a máscara criada como dobra de face. Mas, ao mesmo tempo, tudo é. É nesse convívio que encontramos a potência de um discurso vivo em cena, no qual nossa animalidade é confrontada, como que espelhada dos esconderijos mais perversos de cada um. Subjugados, somos conduzidos à própria destruição daquilo que nos tornaria únicos e humanos. Resta-nos pouco, limitados que ficamos aos instintos. E é praticamente impossível não se perder aos seus valores destrutivos. A mulher ou espécie que sobrevive ao final do gesto cênico é a exposição deformada da integridade humana. E assistir a isso, lembrando estarem do lado de fora do teatro, jovens e adultos viciados em cracks, uma vez que a sala fica em um ponto crítico da cidade, aumenta exponencialmente a percepção da aniquilação de nossas características. Um trabalho que silencia e exige coragem de observação. Desses, transformadores e absolutamente permanentes.

Rapsódia para uma mula

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mulher exposta deixa de ser ela mesma. Assume a imagem de uma mula, o animal em seu estado mais ordinário de instrumento, e nua carrega pelo palco objetos e carroça. A imagem é apenas essa mesma, por uma hora. Caminhando entre os cantos das coxias, profundidade do palco, subindo e descendo as rampas que desestabilizam a linearidade do percurso, a mulher deixa de ser atriz. A performatividade da ação pode parecer ilustrativa no começo. Dê-lhe tempo e a imagem conquista sua permanência, enquanto corrói por tamanha exposição, transgressão e intimidade. Trata-se não mais de uma narrativa, esqueça os propósitos consequentes e determinantes a um desfecho. Ela já se livrou disso também. Tampouco é possível atribuir o movimento pela perspectiva de uma ação. O que se assiste é a expansão de um gesto sobre o tempo, enquanto a insistência aniquila a ação simbólica. Aos poucos, as metáforas possíveis são esquecidas. Resta apenas a mula em seu contínuo gesto de caminhar e juntar objetos diversos. A mulher nua tem

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A

proposta de Rodrigo Garcia é simples (e assumo o risco que sugere o uso desse termo): a partir da obra de William Shakespeare, construir um discursos revisado de seus arquétipos centrais, gerando certa tradução ao contemporâneo. Não se trata de montar a peça ou adaptá-la, mas de apropriar-se do texto para por ele adentrar à urgência dos discursos sobre o presente. Tanto texto, quanto o espetáculo, dirigido por Emilio Garcia Wehbi, valem-se de dois artifícios: agressividade e acusação. Durante o espetáculo, as falas expõem o espectador, apontam-lhe a face sem recuo, sem possibilidade de reação, como se cada um fosse de fato o responsável pelas falhas, erros, escolhas etc. Que a humanidade é autodestrutiva já sabemos, então não é grande novidade o discurso ir por tal caminho. Restava, por fim, sustentar pelo segundo pilar: a agressividade. O problema é que vivemos uma sociedade inundada pelo agressivo, e atingir pelo mesmo mecanismo acaba se revelando pouco. A saída do público em centena de pessoas ocorrera mais pelo tédio da redundância do conviver com o agressivo, igual

ao já aceito à rotina normal, do que por ser atingido e desestabilizado. Restam duas avaliações, então: a de que o proposto em cena não atingira o espectador, tal qual se esperava, e a perspectiva do homem não ser mais abalado pelo violento, pelo acusativo, pela responsabilidade e culpa. No outro extremo da plateia restante, os gritos e urros ao final revelam a impossibilidade dos dois artifícios funcionarem. Aos se colocar entusiasmados e em êxtases, torna-se evidente que o público que restara igualmente não se viu atingido pela agressão e acusações. Ele assume o discurso como próprio, mas não como direcionado a ele. Portanto, os últimos nada ou muito pouco de fato atingiu seu propósito. Rei Lear, nessa montagem argentina, pode não conquistar seus objetivos imediatos, mas, ao não fazê-lo revela exatamente nessa falência aquilo que denuncia. A destruição do homem está mais no seu assumir inerte à violência do que na explosão catártica de sua ação. O espetáculo erra o cálculo, e exatamente por isso se torna original.


Rei lear

Texto

Rodrigo García Direção, Encenação e Textos Adicionais

Emilio García Wehbi Elenco

foto: nora lezano

Pablo Seijo, Maricel Alvarez, Cecilia Blanco, Juliana Muras, Federico Figueroa, Emilio García Wehbi, Ana Balduini, Camila Carreira, Mateo de Urquiza, Amalia Tercelan e Paula Triñanes

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Concepção

Eduardo Bernal, Jorge A. Vargas Direção

Jorge A. Vargas Elenco e Criação

Teatro Línea de Sombra, Zuadd Atala, Alejandra Antígona, Jorge León, Alicia Laguna e Malcom Vargas Textos

Gabriel Contreras, Eduardo Bernal, Jorge Vargas, trechos de “Prometeo” de Rodrigo García


Banhos Roma

U

foto: roberto blenda

ma história é possível a partir das informações presentes na memória. Ocorre que a memória é um mecanismo um tanto quanto incontrolável, inventivo; e, certo mesmo, nada nela está. Então a história é, verdadeiramente, a coleção de informações talvez reais e muito de quem a conta. A frase inicial do espetáculo afirma que, ao contarmos algo , o recriamos. E o espetáculo nos leva a enveredar por uma narrativa pela qual o narrar é o único preceito experienciado como certeza. Trata-se do entrecruzamento de 3 instâncias: um homem, um lugar, uma cidade. Ao não esclarecer por completo e propositadamente nenhuma, resta ao espectador encontrar em cada instância as respostas ou significados esclarecedores às outras. Se feito isso precisamente, o espetáculo limitar-se-ia a um intrincado jogo de encaixes, e, portanto, menos interessante. O Teatro Línea de Sombra escapa dessa facilidade reducionista e complica o espetáculo tornando-o a sensação cênica de uma história, não apenas o relato. Ganha assim em teatro, e isso é ótimo. Ao entrarmos na sala, o primeiro código se coloca imediatamente. Possivelmente, ali é ou foi um clube de box. A certeza se valerá somente no momento em que homem e lugar coabitarem a narrativa. Também assim, o deslocamento do personagem ao insere ambos ao con-

texto da cidade em que estão. À violência de um dos territórios mexicanos mais agressivos e destrutivos é somada a informação de ser ali a subhistória de artistas, políticos e intelectuais de todos os níveis. Banhos Roma forja o depoimento real de um instante, de um homem, de um lugar, de seus costumes, dos valores. Cria excelentes momentos, cujas literalidades tornam as conclusões desconfiáveis. E surgem cenas antológicas, como quando os homens discutem exaustivamente sobre cerveja, enquanto ambos assistem a dificuldade da atriz em pendurar um saco de boxe. Saco este que lhe servirá posteriormente à dança sensual, feito pole dance de boate vagabunda de strip-tease. A estratégia do espetáculo nos leva a desconfiar de nossas lembranças, leituras, escolhas. Falta um tanto de ritmo, que as legendas inevitavelmente provocam perder. Fora isso, os instantes mais comuns são mais invasivos, enquanto os devaneios mais duros. De todo modo, a história é distante e paradoxalmente íntima, incômoda e convivível. E é difícil escolher entre tantas idas e vindas de sensações, emoções e racionalizações. Assim como enfrentamos nossas próprias lembranças. A história como impossibilidade de certeza, frente à incapacidade de nos mantermos estáveis. E vice-e-versa. Como sempre, o Línea de Sombra incomoda e encanta sem impor suas próprias decisões.

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ntre uma porta e outra das salas de teatro, o som distante do mar, dentre os trajetos, convida à paisagem. Existe nisso certa tentativa de fuga, é verdade. Percorrendo as janelas das vans e cantos de olhares em espaços de calçadas, a tentativa não é correr e sumir. Escapar, ainda que por minutos, enquanto o inconsciente se reorganiza aos espetáculos assistidos, preparando-se para os próximos. Deixar as sensações e reflexões serem levadas ao mar, para nele, depois, encontrar o conjunto que formará o inteiro do festival. Sair de cada

teatro implica, assim, uma espécie de aventura às avessas, na qual o retorno à realidade se confirma tão ficcional quanto as fábulas expostas nos palcos emoldurados por paredes. Mas o mar, ao seu jeito, na ousadia de uma sedução desleal também nos afasta do real. Insere-me, ao admirá-lo, no onírico escondido das poesias reversas do cotidiano. E me faz igualmente fugir para dentro de mim. Por isso retorno, recupero-me, exijo-me, encontro-me. E volto ao teatro, aos espetáculos construídos, aos mundos inventados. Porque o mar, esse sim, distração poética de um viver perdido, encena e mente minha fuga, enquanto o teatro expõe minha impotência ao viver por modos imprevisíveis, sublimes, cruéis e inimagináveis. Diante da quantidade de experiências provocadas pelos espetáculos assistidos e pelos que ainda virão, o oceano parece fácil de atravessar.

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Reflexão 1

O teatro documental e a perspectiva de um criar narcisista Sentado à mesa imaginária com Beatriz Rizk, Roberto Suáres e Jorge Lourenço

S

ão incontáveis as peças teatrais atuais cujos artifícios narrativos se apoiam na exposição do ator/artista feito ele mesmo material de depoimento poético. Também muitas, as peças referentes ao próprio fazer teatral. Há mais nessa exposição do particular, seja do artista ou processo. Há a consequência de outro existir ao contemporâneo que necessita desdobrar-se em novos argumentos. E isso muda tudo. Portanto, investigar a isso é, sem dúvida, ação das mais relevantes. Tais indagações permearam direta e indiretamente abordagens sobre as cenas latino-americana e ibérica, nas mesas realizadas com artistas, estudiosos e críticos, por vezes aproximando-se, em outras se revelando para além das idiossincrasias culturais. Beatriz Rizk trouxe a inquietação do documental não ser necessariamente uma novidade ao teatro, mas diferencia-se pela maneira de rever a história a partir da particularidade íntima do criador. Esse outro movimento na constituição dos discursos, mais contraditórios aparentemente, necessita compreender diferentemente a identidade daquele qual se expõe. Agora, agimos mais por interações entre do que pelo agrupamento de identidades semelhantes. Citando o filósofo Gilles Lipovetsky, Beatriz apresenta a compreensão de ser o arquétipo atual o narcisismo. O que não necessariamente é bom ou ruim, apenas a percepção de outro reconhecimento ao Homem. É do filosófico também a conceituação de habitarmos o presente como hipermodernidade.

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Ora, o Moderno, tal qual como acesso ao presente e movimento constituído nas artes, colocou-se pela busca ao novo, substituição, afirmação via originalidade e assinatura. O hipermoderno, então, revela a centralidade atribuída á tais valores, porém não apenas pela ação, mas no próprio indivíduo, ele mesmo passível de se revelar outro, diferente, singular e original. Exigindo-nos igualmente outro entendimento de identidade, surge a compreensão de sua presentificação, seu estado de urgência, afirmação do agora como realidade única. Sem isso, a identidade se colocaria novamente subjetiva às possibilidades de um real inacessível, e o indivíduo transitório entre seu reconhecimento circunstancial e o desconhecido irreversível. Seguindo a lógica do filósofo, então, tal desenho de indivíduo necessita da perspectiva de ser o agora mais do que a manifestação da realidade, está na qualidade de hiperrealidade. Em outras palavras, a realidade contemporânea não basta em si mesma, faz-se potência pela presença do indivíduo feito centralidade. Cabe ao artista, por conseguinte, construir por sua imagem uma espécie de superexposição da própria identidade, e esse é o aspecto que sugere o tom narcisista de sua presença. O artista amplificado nele mesmo como recurso narrativo, torna-se o espetacular da hiperrealidade, subverte a perspectiva Debordiana da espetacularização da sociedade, revelando o homem espetáculo de uma sociedade na qual a realidade é paradoxalmente impossível de ser acessada e impositivamente concreta. O narcisismo apontado por Lipovetsky explode a teatralidade contemporânea ao amplificar


o indivíduo à face maior de síntese e originalidade. Dá-se também por isso a quantidade de teatro-documental (ou biodrama, como denominam alguns países). Tamanha individualização narcisista do artista confere ao fazer novos paradigmas. Ao trazer ao Eu o centro revela conjuntamente a perda de credibilidade no outro também como potência de representação juntos aos sistemas de comando, levando a processos artísticos mais horizontais principalmente em suas hierarquias. É o que identifica o diretor uruguaio Roberto Suárez. De certo modo, a busca por si mesmo atribuiu outros parâmetros e formalização estética e gerenciar, levando o grupo a se colocar como voz, por não caber mais atribuir hierarquias individuais. Modifica-se também aquele que ocupa a cena em sua qualidade simbólica. Antes, o ator revelava a face do espectador a ele mesmo; agora, expõe-se como se, ao ser identificado por sua singularidade, bastasse para espelhar a pluralidade reconhecível de todas as pessoas. Perde força a representação da realidade do outro, e o teatro volta a si mesmo como hiperrealidade estetizada. Então fala cada vez mais de si, de suas entranhas, bastidores, estruturas, processos, crises. O metateatro se assume linguagem ideal ao documental e biodrama ao atuar na confirmação do presente possível apenas no reconhecimento do indivíduo. Utilizar-se do teatro feito principio narrativo, dobrar o teatro sobre ele mesmo para extrair a ficção, exigem, ainda, mergulhar no processo como historização, ou seja, acúmulo de acontecimentos e escolhas possíveis de revelação somente como fala de memória. O fazer é base narrativa, ficcionalizado em

criação de memória, e a história sua hiperrealidade poética. É preciso lidar com o passado e o ocorrido descaracterizando-o de veracidade, afirmando-os como leituras possíveis dentro de perspectivas absolutamente particulares e subjetivas de quem nem mesmo os vivenciou. A pós memória, ou a construção da memória da memória, ao tempo em que oferece ao artista a liberdade de intervir sobre a história ao entender sua experienciação imaginativa igualmente material e criação, gera a dificuldade de olhar ao devir e construir outras utopias, acrescenta Jorge Louraço na mesa sobre a cena ibérica. A complexidade se dá na inerência do artista ao se colocar presente em ação e signo para a construção de conceitos, portanto sempre apresentando-se como construtor de utopias. Como lidar com a dificuldade em elaborar paralelamente à construção inevitável? Novamente o artista precisará voltar a ele mesmo, encontrar o entremeio de sua presença-signo, compreendendo serem a revelação do Eu e a exposição desvelada da individualidade autoral as maiores das utopias ao futuro, em um momento em que o Homem se desconhece outra vez, confuso que está em tantas máscaras possíveis e narcisistas. O Homem como utopia, a humanidade como utopia, a imaginação como utopia. E o teatro, desde sempre, fundamentou-se nesses mesmos pilares. Configurar outro desenho ao indivíduo, ao artista, ao existir utópico de um contemporâneo distanciado do futuro e aprisionado narcisiticamente numa suposta realidade revela-se curiosamente a construção do homem e do presente em aspectos de sua encenação. Novos tempos virão.

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especial

mirada

Reflexão 2

A dramaturgia brasileira e as categorias impositivas Sentado à mesa imaginária com Antônio Toscano e Grace Passo

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screver para teatro, desde sempre, coloca-se como um movimento regrado e sistematizado. O problema, todavia, não está na metodologia ou técnica, mas na maneira como absorver a dramaturgia em sua naturalidade de ação. Definir a criação por estruturas dicotômicas facilita, em certo sentido, e submerge a pluralidade em interesses predeterminados por aqueles que nomeiam as classificações. Tal processo é inerente à construção de conceitos, tanto quanto das análises. Portanto, o inquietante é quando artistas e pesquisadores optam por limitar ao mínimo as quantidades de itens pertencentes às classificações. Durante o encontro realizado na Mirada sobre a cena brasileira, tendo por subtema a dramaturgia, muitas vezes esta foi abordada como pertencente a dois grupos de possibilidades criativas: a feita em gabinete e a em processo colaborativo. Não há, evidentemente, ou espera-se, a tentativa de conduzir nisso uma outra perspectiva que não e somente a de identificar diferenças. No entanto, ainda assim, tal divisão conduz a um olhar limitador dos diversos procedimentos em uso na atualidade. O dilema da divisão binária se formalizou no imaginário crítico brasileiro erroneamente a partir da relação teórica com o conceito pós-dramático. Desviando-se da proposição inicial alemã, vê-se hoje uma confusão em dividir entre dramático e pós, esquecendo-se de todas as nuances da criação. Assim, expressões como teatro físico, expressionista, teatro-dança,

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performatividade, por exemplo, passaram a ser nomeadas erroneamente por pós-dramáticas. Esse é o risco ao promover reduções. No caso da dramaturgia, foco dessa reflexão, esse paradoxo também se instaura perigosamente. A escrita é principalmente o posicionamento de uma maneira de compreender e reconstruir o mundo e o homem, seja pela percepção de uma pessoa, seja pela de soma de percepções de um grupo disponível ao coexistir de individualidades. No primeiro, é evidente a posição de pessoalidade. No segundo, a dramaturgia torna-se a estratégia de apresentar essa leitura e construção em tempo de presença ao outro. Ocorre que, no Brasil, por diversos outros motivos, as estratégias são determinadas anteriores ou posteriores ao movimento da escrita, ou seja, ao objetivo de tal consequência ou na apropriação para validação de objetivos, exigindo ou não o assumir a escrita como posicionamento primeiramente poético e relacional ao viver. O que comprova ser a redução menos um aspecto conceitual e mais a busca por afirmar previamente à dramaturgia uma ideologia específica. Complica ainda mais, quando essa ideologia subverte a horizontalidade das técnicas e coloca hierarquias a partir de seus interesses. É possível, dentre tantas outras, identificar, porém, outras proposições ao escrever: 1. A escrita comercial, encomendada e mais próxima ao movimento de migração para séries televisivas


2. A escrita jornalística, de observação da realidade, a partir da percepção pessoal, em escrita individual e opinativa 3. A escrita inclusiva, autorreferente ao artista 4. A escrita propositiva, propositiva, construída a partir do anseio do autor e direcionada a artistas específicos 5. A escrita de experimentação formalista, na qual a palavra serve como meio estético ao desdobramento da obra Essas proposições podem ser realizadas solitariamente ou em coletivo, ainda que algumas apontem melhores resultados para uma maneira específica. Mas isso, evidentemente, é de cada processo, e demandas outras tantas interferências, que cada caso é único. Sendo assim, definir por gabinete ou colaborativo é dizer pouco sobre como a atual dramaturgia brasileira se apresenta. A partir desses reconhecimentos, alguns aspectos da dramaturgia se evidenciam. São eles: o deslocamento do posicionamento interno, portanto no ambiente de criação; o deslocamento do posicionamento externo, portanto junto ao entorno, através do coletivo como interface de contaminação; e o deslocamento do posicionamento formal, pelo qual se busca uma afirmação singular de linguagem. Para cada maneira listada anteriormente, cada um desses posicionamentos podem ser empregados, em uma espécie de acúmulo de recursos. E é essa a complexidade da escrita contemporânea. Paralelamente a esses aspectos da ação, do escrever em

si, está a ampliação ao acesso ao escrito. Vivemos um momento peculiar frente as últimas décadas, e nunca se teve tanto acesso aos textos, em sua materialidade, seja por leituras públicas, seja por publicações. Tal redimensionamento ao convívio com a dramaturgia como literatura conduziu a diversos movimentos de discussão e ensino. Todavia, o quando cabe ensinar a escrever? O quanto cada escola, grupo, oficina não volta a impor a dicotomia de certo e errado? Talvez o mais instigante não seja dizer o que a dramaturgia é e como deve ser, mas fortalecer no outro a potência de prazer estético da palavra. Apenas assim, a dramaturgia poderá alcançar valores propositivos realmente novos e pessoais, a partir da dimensão de como cada um compreende e atinge o viver comum. Se a dramaturgia é a face de uma expressão do homem, então é urgente que paremos de dividir em melhor e pior, urgente e desnecessário, isso ou aqui, para dar-lhe a paixão fundante ao querer exercê-la. Quase sempre o que se tem é a dramaturgia como possibilidade de efetivar um teatro pré-determinado por outros interesses. E nenhum grande dramaturgo moderno se consolidou por isso, e sim pelo oposto. Pelo não buscar encaixar-se a modelos, pelo não querer ser reconhecido, pelo não esperar nada além do que meramente uma experiência de escrita estética em direção ao futuro. E isso, inquieta, repito, quando é curiosamente ignorado ou não estimulado por pesquisadores, professores e artistas.

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