O texto que se segue foi elaborado pelo amigo e associado da APAHE, Vítor Neves, que padece de ataxia espinocerebelosa tipo 3 (SCA3), mais conhecida como a Doença de Machado-Joseph.
ATAQUEMOS AS ATAXIAS! NÃO BAIXEMOS OS BRAÇOS (nem desistamos das pernas…)! Na continuação da intervenção sobre fisioterapia no último encontro da APAHE, no dia 21 de Setembro, convenci-me da utilidade de expor o que segue, sem intenção de hierarquizar importância. Padeço da ataxia de Machado-Joseph, mas creio ir enunciar factos úteis para a generalidade de nós atáxicos. Muita movimentação pode fazer-se mesmo quando se está já em cadeira de rodas: a coordenação vai-se mas a capacidade física específica de cada parte do corpo por si mesma pode manter-se muito razoável por bastante tempo!
Princípios subjacentes: Não ceder à fortíssima tentação de nos acomodarmos! Exercitar muito seriamente a paciência! Poder contar com fisiatras e fisioterapeutas sabedores no seu mister e com bom senso. 1. Há um mês, enquanto terminava a sessão anual de três semanas de termas nas Caldas da Felgueira, 5km a sul de Nelas, comecei a treinar a utilização de bastões de marcha. Com desagradabilíssima surpresa observei que andar no empedrado de Nelas sem “muletas” (quero dizer “sem auxiliares de marcha”… Assim é mais “bonito”) se tinha tornado muito mais difícil. a. Arrumei os bastões! b. Voltei a “passear” com as dificuldades do costume, mas estas não pioraram significativamente enquanto tais. 2. Ainda nas termas, agora no ginásio, verifiquei ter parte importante da – felizmente pequena – perda de capacidade física ser atribuível mais ao avanço da idade que à DMJ. Terei de ser mais sensato a despender esforço físico.
3.
Aprendamos a distinguir quem genuinamente nos estima de quem se sente pura e simplesmente incomodado pela nossa existência: muitos, comentários de Facebook (posts) e similares – convenhamos que não todos – pretensamente apreciativos ou
encorajadores dos nossos desabafos, não passam de descartes de quem não sabe estar calado.
4.
As ataxias hereditárias muito raramente serão tratáveis, mas há males bem piores, basta olhar; todos nós podemos reconhecer sem grande esforço situações muito piores que as nossas. Algo suavemente:
a.
Há quem não tenha um número razoável de verdadeiros amigos. b. O exemplo para mim mais comezinho – e cada um sente dificuldades diferentes -- foi-me dado por um colega, pouco depois de me ter sido diagnosticada a DMJ, disse-me ele: “Se a tua vida dependesse de esforço essencialmente físico, se tivesses de cavar para viver, sentir-te-ias bem pior!”. Bom… Repito que o meu avô materno, por intermédio de quem me veio a DMJ, era de facto cavador à jorna, e com a minha idade (60 anos) já a dependência o fazia andar aos seis meses por casa de cada filha. Eu cá ainda vou fazendo marchas “quilometrais”, e conduzindo o meu automóvel, sem desconforto para passageiros cuja opinião é insuspeita de condescendência. c. Só tenho a agradecer a paciência e compreensão dos alunos e alunas, e demais pessoas dispostas a ajudar quem se desequilibra com demasiada facilidade e já quase nunca pode transportar a chaveninha do café… d. Passei a estar mais atento ao que me rodeia, indubitavelmente mais do que já por si era inerente ao desempenho da profissão: fui docente universitário de Matemática mais de 35 anos. Há que encontrar o ânimo latente dentro de nós: sem ele estaríamos mortos ou quando muito vegetaríamos. 5. Não podemos deixar de valorizar o que ainda somos capazes de realizar. Como diria um anglófono: “Count your blessings!” Sejamos egoístas! Parafraseando uma grande amiga: miremos o nosso umbigo! Não apenas a tentar desfrutar do que ainda podemos gozar (quase sempre mais do que à primeira vista parece) mas também a atrasar a chegada das dificuldades que nos aguardam inexoravelmente. Ora vejamos: 1. A minha primita – tem pouco mais de 30 anos de idade e desde os 18 sabe ter DMJ – comentou um dia que eu e a mãe dela devíamos ter particular cuidado em não cair pois poderíamos não ser capazes de nos levantar; desde então as três ou quatro sessões de fisioterapia anuais terminam a praticar sentar e levantar do chão: descobri aspectos interessantíssimos. a. A sentar, utilizando da melhor maneira possível o eixo criado por uma das pernas e o braço oposto, o corpo naturalmente roda ao contrário do que esperava. b. Quer para levantar, quer para sentar, é importante conseguir assentar os calcanhares e endireitar (verticalizar) o tronco i. Quando a força não se transmite da coxa para a perna, e temos de nos levantar ou sentar dobrados, há que controlar atentamente quer todo o enrolamento quer todo o desenrolamento.
ii. (Não apenas por isto) Devemos manter ou desenvolver flexibilidade, e evitar engordar. iii. Devemos esforçar-nos por visualizar o esqueleto para dominar adequadamente a dinâmica de qualquer movimento. iv. Porque não aprender a cair, como os judocas? v. Um outro primo, este essencialmente saudável, até propõe a prática do Aiki-do… Quem sabe terá razão? vi. Ah! Podem exercita-se os lombares pondo-nos “de gatas” e estendendo simultaneamente -- à vez, claro -- o braço direito e perna esquerda ou o braço esquerdo e a perna direita. 1. Convirá realizar o movimento sobre colchão colocado o mais baixo possível, não só pra dificultar a manutenção de equilíbrio, mas também para evitar quedas aparatosas: de certeza se cairá de lado algumas vezes. 2. A bola Suíça é um óptimo auxiliar da manutenção de ombros tonificados. 3. Acredito que alguns de nós ainda podem conseguir utilizar Tábuas de Freeman: será necessária muita, muita paciência para fazer a “caminhada” desde a pura e simples manutenção de equilíbrio em planos cada vez mais instáveis até à digamos assim vitória! 4. Esqueça-se a publicidade intrínseca à seguinte questão: quantos de nós experimentaram anti-sapatos? 2. A fisioterapia não cura, mas alivia e atrasa os sintomas, quanto mais não seja torna-os menos agressivos; leiam-se os melhores com optimismo (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1196/); talvez mais implícita que explicitamente, aí está escrito que com fisioterapia as dificuldades demoram mais tempo a instalar-se totalmente! Assim me tem acontecido. 3. Não gosto de andar aos tombos em aulas de hidroterapia em grupo. Sozinho a. Enquanto puder marcharei e correrei dentro de água, o mais em linha recta que conseguir. b. As pernas praticamente não impulsionam, mas tenho braços! Utilizáveis para “nadar” enquanto conseguir manter-me digamos assim mais horizontal. i. Quantos de nós já verificaram aumento do poder de flutuação de costas? Estou convencido que muitos estaremos mais capazes de flutuar nessa posição pura e simplesmente por a hipotonia articular implicar melhor descontracção geral. ii. Pedalarei dentro de água, com os cotovelos no bordo da piscina; não é trivial, mas mantém os músculos abdominais e dos membros inferiores tonificados. iii. Podem treinar-se bícipes e trícipes dentro de água: poderão não ficar muito mais visíveis mas mantêm-se tonificados.
iv. Podem tonificar-se também os músculos abdutores das pernas abrindo-as dentro de água e soltando-as para que voltem à vertical. v. Devem procurar-se exercícios de fisioterapia que contrariem a tendência de enclavinhamento dos tarsos e carpos. vi. O mesmo se dirá sobre os processos de instalação de formas de rigidez muscular. 4. A este último propósito vale a pena elaborar mais um bocadito sobre a importância da propriocepção. O conceito foi-me apresentado pelo fisioterapeuta e em boa hora o terá feito. O corpo tenta defender-se por si só, mas sem nossa ajuda consciente quase sempre falha! Insisto em ser necessário não dar tréguas à insídia! Mais emotivamente: a. Ouçamos com muita atenção o que o corpo nos diz, e actuemos em conformidade, mas não deixemos de assumir riscos bem calculados. b. Há que suspeitar de alguma capacidade ter desaparecido quando caímos ou nos desequilibramos fortemente de surpresa; tal me aconteceu no último meio ano pelo menos três ou quatro vezes: só de duas delas caí mesmo a sério, felizmente sem consequências além de “negras” rapidamente eliminadas por massagem; conclusão: o tempo de descer escadarias com degraus de altura standard, amplas ou nem por isso, sem apoios mas com um mínimo de segurança, definitivamente passou! Usemse mais os corrimãos, as rampas, as escadas menos íngremes! c. Aliás como há muito se foi a capacidade de vestir calças de pé (até pode ser divertido vesti-las sentado). d. Não será muito agradável, mas é boa ideia tomar atenção a muitos detalhes. Algo tragicamente, temos de reconhecer ter o controlo consciente do corpo passado a ser uma tarefa praticamente constante: i. Realizar qualquer tarefa carente de concentração (como por exemplo pôr o relógio no pulso) faz-se com incomparavelmente mais segurança sentado. ii. O mesmo se pode dizer de abotoar a camisa. iii. Aumentam paulatinamente a dificuldade nos movimentos finos e a consequente necessidade de concentração para identificar cada parcela de movimento. iv. Ocorrem falhas quase imperceptíveis dos músculos ou tendões: estar consciente da sua existência minora estragos pois os acidentes deixarão de ser completamente surpreendentes. e. Mas voltemos às consequências. Ninguém conseguirá convencer-me da pouca importância que terão tido o exercício físico sistemático e cuidado para nunca ter tido tornozelos tão fortes, se bem que, sem qualquer dúvida, mais hipotónicos. É assim que consigo descrever o que se passa comigo! Será paradoxal? E eu ralado… Sei é que mais facilmente recupero o equilíbrio, as distensões ocasionais e correspondentes hematomas e edemas se recuperam incomparavelmente mais depressa.
f.
O equilíbrio quase desaparece quando a luz ambiente enfraquece ou há demasiado movimento há nossa volta. Pudera! Os referenciais falham por todos os lados! Naturalmente foram sendo criadas ajudas subconscientes para suplementar as de cuja existência os não atáxicos nem sequer suspeitam… i. Quem melhor que nós está equipado para descobrir os recônditos da consciência de si? Claro que temos de aceitar viver de modos diferentes; poderia aqui voltar às desgraças alheias: não devem consolar-nos mas sim ensinar-nos! Todos podemos inspirar-nos em maneiras de estar peculiares, algumas extraordinárias. ii. Mas, mantendo a calma, é muito agradável verificar, mesmo às escuras, que as defesas não desapareceram todas e as que ficam até podem ser suficientes! Bem… Será sem dúvida melhor não cair! Ou melhor ainda: saber cair bem; levantar é um problema a resolver depois! 5. Para terminar conversemos sobre a fala. Há mais de um ano tenho pendente com a Fátima de Oliveira a quase proposta de realização de uma peça de teatro ou constituição de um grupo de leitura. Não vou entrar em pormenores -- de facto a ideia não me surgiu para minorar a disartria – mas tão só referir ter verificado bastas vezes melhoria muitíssimo significativa na qualidade do discurso telefónico de primos e primas com DMJ, melhoria essa a meu ver resultante da pura e simples prática. Temos de encontrar formas de levar o projecto avante.
Não tenhamos medo: o que for soará!