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Crónicas de um comboio escalfado XIII - Jorge Serafim
from Edição 137
by Apat
Crónica de um comboio escalfado XIII
Se as pessoas soubessem o prazer que é andar de comboio nunca se endividariam para comprar um automóvel de marca acentuada com excesso de extras desnecessários. Aliás, existem ilustres cidadãos que não compram viatura, mas sim os extras acumulados no preço e no crédito bancário: cor metalizada, GPS moderno, Bluetooth contemporâneo, entrada USB, retrovisores que se encolhem e estendem assim que se liga ou desliga o carro, bancos aquecidos, televisão interior, jantes de biqueira larga, pneus para a chuva e para a soalheira desmesurada, vidros fumados, bagageira familiar e de acampamento selvagem, cruise control, faróis LED… enfim, tanta coisa para ir de um lado para outro sem contemplar um tom de azul no céu ou as sucessivas paisagens que se vão transmudando enquanto viajamos para um qualquer destino. Assim pensava e sentia o avô de Manelinho da Esperteza Suspensa. Rapazito de doze ou treze anos cuja única habilidade que se lhe conhecia era o facto de inventar artimanhas de toda a qualidade e feitio para se baldar à escola. Não era muito propenso a adquirir as matérias lecionadas em contexto de sala de aula. O moço assim que a professora direcionava a planificação da aula para os conteúdos estipulados pelas metas curriculares, sentia uma ausência mental que o conduzia para alguma parte que não aquela em que se encontrava. Bastava o chilrear de um pássaro ou ladrar de um cão para que a sua imaginação rumasse para o desconhecido infinito. Não era que o moço fosse geneticamente aparvalhado, mas que não era abençoado pela inteligência, lá isso não era. Embora a sua ausência mental dos assuntos pedagógicos e didáticos fosse uma constante, houve uma matéria que de sobremaneira o despertou. Foi num dia bonito de primavera que ouviu a mestra falar de comboios, dessas máquinas rolantes que atravessam planícies, serpenteiam serras e que circulam paralelas às águas dos rios. Que circulam na paisagem como se elas fossem a própria natureza em movimento. Que encurtam distâncias como quem come fatias de pão besuntadas em doce marmelada. Não, refletiu profundamente Manelinho da Esperteza Suspensa, é tempo de conhecer e fazer uma viagem de comboio. Partiremos do Alentejo e iremos à Capital do Império Periférico. Queria atravessar uma ponte e ver um rio que, ao que dizem, é do tamanho de um mar enorme. Quando chegou a casa, depois de mais um dia de aulas terminado, estava eufórico. Dirigiu-se ao seu avô para lhe perguntar quando é que o levava a inaugurar a sua expectativa ferroviária. O avô, fervoroso adepto da ferrovia, prometeu-lhe que seria num dia breve, pois teria de se deslocar a Lisboa, para uma consulta ao oftalmologista. Pois que a visão estava a perder de tal maneira as faculdades, que ainda hoje acordou e olhou para a avó, esposa há cinquenta e dois anos, e achou-a bonita. Pior! Muito bonita! A mulher, que era mais feia que um céu nublado, agora diante dos seus olhos, desdentada e enrugada, parecia-lhe um concentrado de beleza esculpido pela graça divina. Com certeza que se não seriam as cataratas a turvar-lhe a clareza da visão, alguma outra coisa maligna deveria estar a invadir-lhe os glóbulos oculares. Quando anunciou ao neto a data de partida, perguntou-lhe: E a escola? Como vais fazer? Manelinho da Esperteza Suspensa respondeu com um argumento infalível: Arranjo uma doença sem o meu pai e a minha mãe saberem. Telefono para a escola a informar da minha ausência forçada e ala que se faz tarde. Ao avô agradou-lhe a prontidão da malandrice. De certa forma agradava-lhe a apetência que o netinho revelava para a malandrice e para a vida airada. Para estas coisas da vida airada reconhecia-lhe alguma espertina. E assim, no dia combinado, já os dois dentro do comboio, estava Manelinho felicíssimo pela sua primeira vez, quando o avô lhe disse: Esconde-te, meu rico netinho, a tua professora acabou de entrar no comboio e tu disseste que estavas doente! - Avô, respondeu o neto, esconde-te tu; eu disse-lhe que tu tinhas morrido!
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Jorge Serafim Humorista