ISSN 2357-8513
N. 4
| DEZEMBRO DE 2O17
REAPCBH [recurso eletrônico] /Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, R464
Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte / v. 4, n. 4 (2017). – Belo Horizonte, MG: PBH, Fundação Municipal de Cultura, 2017. 316 p. Anual Modo de acesso: http://www.pbh.gov.br/cultura/arquivo ISSN: 2357‐8513
1. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte 2. Periódicos 3. Patrimônio Cultura I. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. II. Fundação Municipal de Cultura. CDD 025.171
Endereço: REAPCBH - Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte Rua Itambé, 227 - Floresta Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte 30150-150 – Belo Horizonte/MG e-mail: reapcbh.fmc@pbh.gov.br Telefone: (31) 3277-4665 homepage: http://www.pbh.gov.br/cultura/arquivo e http://www.bhfazcultura.pbh.gov.br
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EXPEDIENTE
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte Fundação Municipal de Cultura Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte Conselho Editorial Demilson Malta Vigiano Gabriella Diniz Mansur Lays Silva de Souza Michelle Márcia Cobra Torre Yuri Mello Mesquita Normalização Bibliográfica Rafaela de Araújo Patente Revisão Michelle Márcia Cobra Torre Design Assessoria de Comunicação – FMC Fotos da capa: Acervo APCBH
Conselho Consultivo Drª. Andrea Casa Nova Maia (UFRJ) Drª. Beatriz Kushnir (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) Dr. Caio César Boschi (PUC Minas) Drª. Cláudia Suely Rodrigues de Carvalho (Fundação Casa de Rui Barbosa/UFRJ) Drª. Ivana Denise Parrela (Escola de Ciência da Informação – UFMG) Drª. Janice Gonçalves (UDESC) Drª. Júnia Sales (Faculdade de Educação – UFMG) Dr. Luiz Henrique Assis Garcia (UFMG) Drª. Maria do Carmo Alvarenga Andrade Gomes (Fundação João Pinheiro) Drª. Regina Horta Duarte (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG) Dr. Renato Pinto Venâncio (Escola de Ciência da Informação – UFMG) Drª. Silvana Bojanoski (UFPel) Dr. Tiago dos Reis Miranda (CHAM – Centro de História de Além-mar)
Diagramação Michelle Márcia Cobra Torre
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AGRADECIMENTOS A REAPCBH é uma publicação eletrônica que tem por objetivo divulgar trabalhos científicos que contribuam para o desenvolvimento dos debates sobre a história de Belo Horizonte, assim como o campo de estudos arquivísticos. Graças à valiosa colaboração de diversas pessoas que aceitaram dispensar seu tempo e seus conhecimentos em avaliações criteriosas, a Revista chega a sua quarta edição. Agradecemos a atenção dispensada e os trabalhos realizados com empenho e dedicação. Agradecemos também ao Conselho Consultivo pela disposição em sempre nos orientar no necessário.
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SUMÁRIO
Editorial ....................................................................................................................... 06
ARTIGOS
Relatos de Raul Tassini sobre a Pampulha: impressões que vão além do discurso da Pampulha moderna ..................................................................................................... 08 Carolina Paulino Alcântara Victor Tadeu de Oliveira Pereira “Triste horizonte”: a Serra do Curral del Rey, o marco geográfico da capital de Minas (1897-1975) ....................................................................................................... 30 Alessandro Borsagli A formação urbana de Belo Horizonte: o parque municipal e o viaduto Santa Tereza .......................................................................................................................... 53 Gabriel Esteves Campos Costa O "Projeto Lagoinha" na cidade de Belo Horizonte: memória e esquecimento nas comemorações do centenário (década de 1990) ...................................................... 72 Renata Lopes Memória documental: um importante contributo para a compreensão do processo de desorganização social no hipercentro de Belo Horizonte ...................................................................................................................................... 95 Bruna Hausemer As árvores e a cidade: temas de pesquisa no catálogo de fontes sobre arborização em Belo Horizonte .......................................................................................................... 120 Carolina Marotta Capanema Avenida Afonso Pena – Belo Horizonte/MG: análise de suas três espacialidades (baixa, média e alta) ................................................................................................ 150 Fernando Henrique da Silva Roque Jackson Junio Paulino de Morais Lana Marx de Souza Regina Gonçalves Bastos Winnie Parreira Patrocínio Reconstruindo uma memória esquecida: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem em seus primórdios e o lugar do povo negro ............................... 169 Kelly Rabello REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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A frequência e as temáticas de uso no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte pelos estudantes do curso de História da UFMG ..................................................... 192 Bruna Michels Rafaela Patente Eugenia e raça em Belo Horizonte: um discurso a partir da Revista Alterosa ...... 212 Ivana Morais Silva de Carvalho Lucimar Lacerda Machado Memória e manifestações Art Déco nas páginas de Bello Horizonte .................... 237 Carlos Eduardo de Almeida Oliveira Ensino de história, educação patrimonial e relações de gênero: uma análise da oficina desvendando o arquivo público .................................................................... 253 Tiago Vidal Medeiros Pensar as ações educativas do Museu Casa Kubitschek: abordagens e práticas experimentais para a educação em museus ............................................................. 265 Ana Karina Ribeiro Bernardes Pollyanna Lacerda Machado (Re) descobrindo a Pampulha: patrimônio, discursos e alteridade ...................................................................................................................................... 279 Ana Carolina Bernardo Guimarães Bryan Martins Gustavo Dias Gustavo Matos Marco Antônio Náthalekaren Oliveira Scarlath Ohana Tamires Celi da Silva
SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta pedagógica 1 ............................................................................................... 297 Moacir Fagundes de Freitas, Luíza Rabelo Parreira, Douglas de Freitas Proposta pedagógica 2 ............................................................................................... 303 Marcelina das Graças de Almeida
ENTREVISTA Luciana Teixeira de Andrade – professora PUC Minas ............................................ 307 REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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EDITORIAL
Abrimos a presente edição com o artigo “Relatos de Raul Tassini sobre a Pampulha: impressões que vão além do discurso da Pampulha moderna” escrito por Carolina Paulino Alcântara e Victor Tadeu de Oliveira Pereira. O artigo coloca em foco a coleção de textos do cronista belo-horizontino Raul Tassini sobre o projeto de urbanização da Pampulha. Na esteira das reflexões sobre a história da cidade em seus 120 anos, seguimos com o artigo de Alessandro Borsagli, o qual realiza uma incursão histórico-geográfica pela Serra do Curral, um dos principais referenciais quando da construção de Belo Horizonte. Já Gabriel Esteves Campos Costa propõe uma reflexão sobre as transformações urbanas de Belo Horizonte focalizando o Viaduto Santa Tereza e o Parque Municipal Américo Renné Giannetti. A pesquisa de Renata Lopes investiga o bairro Lagoinha desde o início da capital até os dias de hoje, passando pelas comemorações do centenário da cidade, momento no qual ocorreu um processo de revitalização da Lagoinha visando a ressignificação de sua história. Em seguida, o artigo de Bruna Hausemer explora as mudanças no hipercentro de Belo Horizonte, desde a inauguração da cidade até a década de 1980. O artigo de Carolina Marotta Capanema discute o tema da arborização em Belo Horizonte por meio do Catálogo de Fontes: arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte, publicação do APCBH. No artigo “Avenida Afonso Pena – Belo Horizonte/MG: análise de suas três espacialidades (baixa, média e alta)” os autores apresentam o espaço de Belo Horizonte ao longo da Avenida Afonso Pena, mostrando como ela se fragmenta e se diferencia com seus usos e fluxos. Kelly Rabello apresenta em seu artigo a história da fundação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Bruna Michels e Rafaela Patente investigam a frequência e as temáticas de uso no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte pelos estudantes do curso de História da UFMG. Nesse percurso, as autoras exploram as potencialidades dos estudos de usuários, apresentando a metodologia utilizada para essa pesquisa e contribuindo, assim, para outros trabalhos que se dediquem a essa questão. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Esta edição da REAPCBH também traz dois artigos sobre as revistas Alterosa e Bello Horizonte, que compõem o acervo do APCBH, sendo fontes valiosas de pesquisas sobre a cidade. O artigo de Ivana Morais Silva de Carvalho e Lucimar Lacerda Machado analisa a revista Alterosa, publicação que circulou em Belo Horizonte entre 1939 e 1964. As autoras investigam a relação das questões políticas do momento da Segunda Guerra Mundial com a revista, demonstrando como os discursos de eugenia e de raça perpassavam a publicação e a sociedade da época. Carlos Eduardo de Almeida Oliveira trata em seu artigo como a revista Bello Horizonte foi um referencial da cultura belohorizontina das décadas de 1930 e 1940, assim como o Art Déco apareceu na publicação e como foi sendo superado por outras estéticas. Seguindo nosso percurso, apresentamos três artigos que refletem sobre experiências de educação patrimonial. Tiago Vidal Medeiros apresenta e discute a oficina Desvendando o Arquivo Público, ação educativa desenvolvida pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Ana Karina Bernardes e Pollyanna Machado apresentam a proposta de um olhar diferenciado para o Museu Casa Kubitschek e seu entorno, buscando oferecer ao visitante experiências e vivências diferenciadas. Em “(Re) descobrindo a Pampulha: patrimônio, discursos e alteridade”, os autores relatam a experiência de um trabalho desenvolvido com alunos de Ensino Médio de uma escola nas proximidades do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, buscando entender a relação que esses estudantes estabelecem com o conjunto. Por fim, apresentamos duas propostas de trabalho, com documentos históricos, voltadas para estudantes de ensino fundamental e médio. A primeira proposta pedagógica focaliza a história do bairro Confisco e a segunda trata do cemitério mais antigo da capital, o Cemitério do Bonfim. Encerramos a edição com a entrevista da professora da PUC Minas, Luciana Teixeira de Andrade, com uma reflexão sobre Belo Horizonte e o campo de pesquisas sobre a cidade. Desejamos a todos uma boa leitura!
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RELATOS DE RAUL TASSINI SOBRE A PAMPULHA: IMPRESSÕES QUE VÃO ALÉM DO DISCURSO DA PAMPULHA MODERNA
RAUL TASSINI’S STORIES ABOUT PAMPULHA: IMPRESSIONS THAT GO BEYOND THE CONTEMPORARY PAMPULHA DISCOURSE Carolina Paulino Alcântara* Victor Tadeu de Oliveira Pereira**
Resumo Em 1897, a inauguração de Belo Horizonte concretizava o sonho das elites mineiras de fazer da nova capital um centro urbano avançado em Minas Gerais. Desde então, a busca pelo o que se considerava moderno acompanhou a vida da capital mineira, que tem sua história marcada pela constante demolição do “velho” para a construção do “novo”. Exemplo disso é a região da Pampulha, situada geograficamente ao norte de Belo Horizonte, que recebeu diversos empreendimentos nas décadas de 1930 e 1940 com o propósito de dar novos ares à capital. Com a intenção de promover análises sobre relatos de memorialistas belo-horizontinos sobre a cidade, neste artigo serão analisadas as impressões de Raul Tassini (1909-1992) sobre Belo Horizonte, dando enfoque especial para o seu olhar sobre a Pampulha. O objetivo é perceber os aspectos que evidenciam os impasses da modernidade local por meio dos textos do cronista Raul Tassini. Palavras-chave: Raul Tassini; Pampulha; Modernidade. Abstract In 1897, the inauguration of Belo Horizonte materialized the Minas Gerais elite's dream of making the new capital an advanced urban center in the state. Since then, the quest for what could be considered contemporary went along with the life of the capital, which had its history characterized by for the constant demolition of "the old" for the construction of "the new". One example is the Pampulha region, geographically located in the north of Belo Horizonte, which received several investments in the 1930s and 1940s, as an attempt to renew the capital as a whole. In order to analyze narratives of memorialists who live Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2015) com estudo sobre os debates em torno da modernidade em Diamantina, na virada do século XIX-XX. Trabalhou no setor Educativo do Museu Casa Kubitschek, mantido pela Fundação Municipal de Cultura - Prefeitura de Belo Horizonte, entre 2014 e 2015. Atualmente, é professora de história da rede estadual de Minas Gerais e pesquisadora na área de Patrimônio Cultural. Endereço eletrônico: carolinapalcantara@hotmail.com. ** Graduado em História pela Uni-BH (2017). Estagiou no museu Casa Kubitschek, mantido pela Fundação Municipal de Cultura - Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, entre 2014 e 2016. Endereço eletrônico: victorolp21@gmail.com *
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in the city, we will, in this paper, examine the impressions of Raul Tassini (1909-1992) regarding the capital, giving special emphasis to its view related to Pampulha. The objective is to understand, through the texts of the chronicler Raul Tassini, the aspects that emphasize the local novelty. Keywords: Raul Tassini; Pampulha; Modernity. Introdução Este artigo é fruto de uma pesquisa realizada, em 2015, nos arquivos do Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB) para a produção do evento “I Semana de Arte Moderna da Casa Kubitschek”. O evento, promovido por meio da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte pelo Museu Casa Kubitschek, tinha como objetivo suscitar reflexões acerca do movimento modernista Brasileiro, dando enfoque especial às suas manifestações em Minas Gerais. Para as intervenções nos espaços do museu a partir de uma ação educativa, procuramos diversos relatos de memorialistas que escreveram sobre Belo Horizonte dos anos 1940 e 1950. Nossa proposta era resgatar as impressões de antigos cronistas sobre a capital mineira. Durante a pesquisa realizada no acervo do MHAB, encontramos um conjunto de doze caixas contendo anotações diversas de Raul Tassini (1909-1992) sobre inúmeros assuntos, que vão de poemas a informações sobre Belo Horizonte (sua construção, espaço urbano, imigração italiana, cotidiano, entre outros), passando por biografias, assuntos políticos, históricos, literários e musicais. Os itens da coleção particular do autor, tanto do Museu Histórico de Belo Horizonte (MHBH)1 quanto do MHAB, são originais da década de 1941, quando Raul Tassini doou cerca de dez objetos. Em 1992, após a sua morte, seus familiares doaram ao museu trinta e quatro objetos, uma coleção de caixas de fósforo, um conjunto de fichas de ônibus e uma coleção de lápis. Quatro anos depois, em 1996, seu sobrinho, Ronaldo Boschi, entregou ao museu um acervo documental formado por um conjunto de papéis acumulados pelo autor contendo cartas, livros, folhetos, recortes e anotações sobre as cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro, além de crônicas e memórias (ALVES, 2008, Segundo Célia Regina Araújo Alves, Raul Tassini trabalhava no Arquivo Geral da Prefeitura, quando Abílio Barreto manifestou a possibilidade de criar um museu para a cidade de Belo Horizonte. Tassini doou dois antigos candelabros da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, participando da formação do núcleo inicial do acervo do Museu Histórico de Belo Horizonte, atual MHAB (ALVES, 2008, p.117). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 1
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p.118-119). Esse acervo documental é atualmente denominado por “Coleção Raul Tassini”. Os relatos do belo-horizontino, filho de imigrantes italianos, artista plástico, funcionário do MHBH, antiquário e colecionador também trazem informações sobre o cotidiano na Pampulha, desde o início da urbanização da região. O interesse pelos escritos do autor se justifica pela forma como ele abordou a Pampulha, ora colecionando informações que enalteciam as edificações modernas, alimentando o glamour que estava em volta do empreendimento de Juscelino Kubitschek, ora revelando acidentes, coisas banais do cotidiano e situações que contrastavam com a ideia de modernidade. No livro Pampulha Múltipla: uma região da cidade na leitura do Museu Histórico Abílio Barreto (2007), os autores dos artigos utilizaram os relatos de Raul Tassini para falar sobre a história da Pampulha, desde a sua inauguração, passando pelas décadas de 1960 e 1970. Esse e outros estudos sobre região2 demonstram como os escritos do autor são fontes importantes para dizer sobre a memória do bairro. Houve por parte do cronista a intenção de registrar sua vivência e impressões sobre a cidade de Belo Horizonte. Exemplo disso são os objetos e textos colecionados por ele em um acervo pessoal e o livro Verdades históricas e pré-históricas de Belo Horizonte, antes Curral D´El Rey, escrito em 1947. Nessa obra, ele deixou registradas crônicas e textos de memória feitos a partir da sua prática de atuar na cidade. Nesse sentido, Tassini entendia que a história poderia ser contada a partir de vestígios arqueológicos e alguns fragmentos locais e memórias de terceiros. A diferença entre Raul Tassini e Abílio Barreto na idealização para a construção de um museu histórico para capital consistia exatamente nessa percepção, já que Abílio Barreto procurava escrever a história dita “oficial” de Belo Horizonte a partir da análise de documentos escritos e governamentais.3 Nesse sentido, para analisarmos a coleção de textos do cronista, precisaremos levar em consideração o contexto de sua produção. Pois, ao se tratar da memória, é necessário perguntar às fontes sobre as intenções de quem as produziu, seja no desejo de lembrar algo ou no intuito de não mencionar algum fato. Afinal, lidar com a memória na Verificar os estudos: Alves (2008) e Bahia (2011). Ver a entrevista de Célia Regina Araújo Alves para o projeto “Novos Registros” do Arquivo Público da cidade de Belo Horizonte, disponível no portal da Prefeitura do município: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=33759&chPlc=33759. Para saber mais sobre o estudo da autora, ver a dissertação de mestrado Alves (2008). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 2 3
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produção da História exige identificar que sua construção se dá a partir das memórias individuais e coletivas e os conflitos provenientes.4 De certa maneira, há em torno da história da Pampulha disputas entre aquilo que se desejava exaltar e abafar no processo de transformação da região nas décadas de 1940 até 1970. Como mencionado, Raul Tassini ora fazia críticas negativas para o projeto de urbanização da Pampulha, ora demonstrava entusiasmo ou reconhecia a grandiosidade do projeto. De toda forma, ele escreveu sobre a história da Pampulha de modo que a sua memória fosse integrada à memória de Belo Horizonte, contribuindo para construção da história da cidade. Tendo em vista o que foi exposto, este artigo será dividido em duas partes. Primeiramente, faremos um apanhado histórico sobre a criação de Belo Horizonte a partir dos ideais e símbolos da modernidade, presentes no início da construção da capital mineira e que eram compartilhados pelas elites urbanas de outras cidades do país e do mundo. Para isso, analisaremos os significados atribuídos à modernidade no contexto em questão. 5 Passados um pouco mais de quarenta anos da inauguração da cidade, a busca pelo o que seria considerado moderno também determinou as ações de outros prefeitos, como Juscelino Kubitschek, que idealizou e financiou a construção do complexo arquitetônico na região norte de Belo Horizonte. Com efeito, analisaremos símbolos e discursos em torno da Pampulha dando enfoque na sua “glamourização” como um grande centro moderno de Minas Gerais. Sustentamos a ideia de que existe em torno dos projetos urbanos para Belo Horizonte uma vontade de fazer da modernidade a “vocação” da cidade. Isto é, a capital nasceria sob a égide moderna e assim deveria permanecer, sempre se atualizando e acompanhando o que aconteceria em outros centros urbanos do país e do mundo. A dicotomia “antigo x novo” para pensar a história da capital mineira ao longo de sua existência foi tema do artigo publicado por Thais Veloso Cougo Pimentel (1997). A autora destaca que Belo Horizonte carrega consigo um estigma da cidade moderna que é alimentado pelo “ímpeto renovador”, que acometeu diferentes gerações de políticos, Para uma discussão conceitual sobre a memória e sua relação com a História, ver Pollak (1989; 1992). Esta parte do artigo, que trata sobre os significados atribuídos à modernidade para contextualizar a criação da cidade de Belo Horizonte, é baseada em análises feitas na dissertação de mestrado de um dos autores deste texto. O tema do primeiro capítulo do estudo em questão é sobre os ideais que impulsionaram as elites de várias cidades da América Latina, inclusive as do interior do Brasil e, no caso, de Minas Gerais, a promover melhoramentos urbanos. Para mais informações, ver Alcântara (2015). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 4 5
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empreendedores e moradores. Essa vontade de transformar em antigo tudo que incomodava fazia com que pudesse ser “passível de ser substituído pelo moderno” (PIMENTEL, 1997, p. 61). Para a autora, a construção do complexo arquitetônico da Pampulha, na década de 1940, foi um elemento importante para alimentar a sensação de que havia em Belo Horizonte muita coisa antiga. A partir de sua construção, a tônica do desenvolvimento da capital nos anos seguintes passou a ser cada vez mais o progresso e a modernização, elementos que marcaram a administração de Juscelino Kubitschek. As impressões de uma Belo Horizonte que sempre buscava ser moderna não escaparam aos olhos de diversos cronistas, como Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos e Pedro Nava, que deixaram percepções ambivalentes em relação às transformações urbanas por qual a capital passou nas primeiras décadas.6 Raul Tassini, cujos textos serão objetos de análise deste artigo, também escreveu sobre o cotidiano da cidade por meio do qual buscou dizer sobre as transformações do espaço. Ao mesmo tempo, procurava dizer sobre aquilo que permanecia, como os traços arquitetônicos das edificações construídas no momento da inauguração da capital e que ainda estavam presentes em ruas e avenidas. Segundo Célia Regina Araújo Alves, o memorialista saía todas as manhãs à procura dos casarões condenados ao desaparecimento (ALVES, 2008, p.118). Dessa forma, as posições ambivalentes e contraditórias presentes na maioria dos escritores, que vivenciaram a passagem da sociedade tradicional para a moderna nas cidades, também podem ser percebidas em Tassini. O autor alimentava sentimentos contraditórios, pois à medida que buscava acompanhar as modificações na paisagem belohorizontina, lamentava as diferenças que percebia, situação que lhe causava certo saudosismo. Na segunda parte deste artigo, analisaremos os relatos de Raul Tassini que tem como tema a região da Pampulha. As impressões do cronista sobre o cotidiano informam sobre os problemas enfrentados pela população local, revelando uma situação que contrastava com a imagem de uma região próspera e moderna. Sendo assim, o objetivo deste estudo é dizer sobre os impasses da modernidade local a partir da análise de seus paradigmas e contradições.
O estudo de referência para pensar as diversas impressões sobre Belo Horizonte pelos modernistas é Andrade (2004). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 6
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Para isso, será apresentado um panorama histórico da região, destacando o início do processo de ocupação – momento identificado por “Pampulha Velha” - para, em seguida, abordar o seu contraste com a “Pampulha Nova”, que surgiu após o empreendimento de Juscelino Kubitschek. Tassini comentou sobre essas diferenças abordando como a população que vivia nas antigas fazendas e seus arredores fora excluída do processo de modernização de Belo Horizonte.
A vocação de Belo Horizonte para modernidade: da sua construção à inauguração de um complexo arquitetônico moderno na Pampulha É possível imaginar uma cultura urbana mundial quando falamos das transformações vividas pela sociedade ocidental, na virada do século XIX para o XX. Muitos autores, como Marshall Berman (2007), por exemplo, chegam a dizer dos processos de modernização das cidades, acompanhados naqueles séculos, como algo que se expandiu e abarcou boa parte do mundo. Berman se referia ao “turbilhão” da vida moderna que tem sido alimentado, em grande parte, pelas amplas descobertas nas ciências físicas, os processos de industrialização, o aumento demográfico, os conflitos sociais, as disputas econômicas e políticas, enfim, por todo um conjunto de transformações que sacudiram, com maior ou menor grau, a vida de milhares de pessoas. De Karl Marx, a frase “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, título da obra do filósofo Marshall Berman (2007), exemplifica o imaginário de uma época, trazendo à tona os anseios e temores do pensador e de seus contemporâneos frente a um mundo em constante mudança. Marx viveu e descreveu a moderna sociedade burguesa como um homem do século XIX, denunciando as contradições dessa classe que se firma e se sustenta sempre na novidade, seja tecnológica, na forma de viver, de se relacionar e/ou no consumo. A análise do livro passa pelas impressões de Marx e de outros autores sobre o espaço urbano. Esses sujeitos e tantos seguintes, ao andarem pelas cidades, viram surgir indústrias, carros, edifícios, um número cada vez mais crescente de transeuntes, cafés e lojas. Isso sem mencionar as constantes modificações de ruas, avenidas e calçadas implementadas pelo poder público em cada grande centro. Tudo isso deixaria mais evidente que viver a modernidade era presenciar o breve e o inconstante.
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Se essas questões suscitaram reflexões por parte das elites europeias e estadunidenses, na América Latina a situação não foi diferente. Muitos países latinoamericanos passaram por mudanças econômicas, sociais e políticas que também resultaram em transformações urbanas. Algo que pode ser verificado nas principais cidades do continente. Outro importante fato, não menos importante, é que as elites, alimentando a decisão de apagar o passado recente – associado ao período colonial, principalmente -, iniciaram tais obras e projetos de embelezamento e reordenamento de áreas públicas no desejo de fazer refletir uma imagem de prosperidade e modernidade. Adrian Gorelik (1999) e José Luis Romero (2009), que se dedicaram ao estudo sobre as transformações do espaço urbano na América Latina, destacam que essas modificações estruturais partiram de uma “vontade ideológica” das lideranças locais que desejavam acompanhar o que acontecia em outros países industrializados do globo. Ou seja, ao passo que na Europa e nos Estados Unidos a consolidação da sociedade burguesa modificou as relações sociais e de trabalho e, concomitantemente a isso, também transformou radicalmente o espaço urbano, na América Latina um projeto político adotado pelas elites, que ambicionavam conduzir seus países à modernidade, antecedeu às necessidades de adequação do espaço urbano ao crescimento demográfico, por exemplo. As cidades (re)planejadas e embelezadas tornaram-se, portanto, objetos privilegiados e foram consideradas como um instrumento para se chegar a essa “outra” sociedade, necessariamente mais moderna. Os projetos de reordenação dos espaços urbanos não se limitaram apenas em cidades da América Latina. Ao contrário, o que se viu em Viena, na virada do século XIX para o XX, por exemplo, foi o nascimento de uma cidade calcada em princípios e valores culturais de uma classe média, que assumiu o poder da cidade procurando transformá-la em seu “bastião político, sua capital econômica e o centro de irradiação de sua vida intelectual” (SCHORKE, 1988, p. 43). A Ringstrasse – uma ampla faixa de terra que separava a antiga cidade interna e os subúrbios – era o centro dessa reconstrução urbana em Viena, com edifícios públicos e residências particulares. Ainda assim, é importante reforçar que conforme também destacou Adrian Gorelik (1999), na Europa, onde a burguesia se consolidou como classe hegemônica, as transformações materiais estavam diretamente relacionadas aos conflitos de valores que, ao longo do tempo, foram gerando e se firmando na sociedade local. As cidades se firmaram como palco tanto desse conjunto de modificações estruturais como dos modos de vida REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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inaugurados e difundidos pela burguesia. Se apoiando na técnica e na ciência e tendo como doutrinas o progresso, a civilização e o uso da racionalidade, buscaram reformular seus espaços urbanos a fim de solucionar os problemas ocasionados pela concentração demográfica e industrialização. Procuraram também, através dessas mudanças, mostrar para o restante do mundo seus valores e modos de vida. É nesse sentido que as cidades latino-americanas não são apenas produto da modernidade ocidental, mas “um produto criado como uma máquina para inventar a modernidade, estendê-la e reproduzi-la” (GORELIK, 1999, p.55-56). Para o sociólogo Anthony Giddens (1991) a modernidade é um fenômeno que se tornou mundial em sua influência, com propagação das concepções culturais, econômicas, científicas e políticas no decorrer do século XIX. Para o autor, essa onda de valores da modernidade atingiu os países latino-americanos a partir da segunda metade dos oitocentos. Portanto, chamamos a atenção do leitor para o fato de que essa “vontade ideológica”, no qual se referiu Andrian Gorelik (1999), talvez tenha se sobreposto às necessidades de transformações estruturais, tendo como exemplo as cidades europeias e estadunidenses. Gorelik ainda afirma que a modernidade vivida na América do Sul foi um caminho para a modernização, isto é, um conjunto de ideias que foram utilizadas como justificativa para a modernização econômica, política e cultural. Em relação ao que ocorreu no Brasil, foi a partir de 1870, com a dinamização da economia cafeeira, que se assistiu a maiores investimentos nos maquinários, transportes e portos para produção e escoamento do café. Assim é que eram visíveis que as mudanças socioeconômicas, urbanísticas e demográficas, presenciadas em São Paulo, procuravam assegurar à capital paulista uma imagem de entreposto comercial e financeiro importante para as relações da lavoura do café com o capital internacional. Para tanto, desenvolveu-se a incipiente indústria da região, foram construídas as primeiras ferrovias e criadas infraestruturas de transporte, sanitárias, entre outros (COSTA; SCHWARCZ, 2000, p.30). O fim da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, fomentaram esses e outros projetos de modernização, como o incentivo à imigração estrangeira - cujo desejo era substituir a mão de obra negra pela do europeu e a promoção de melhoramentos no espaço urbano. Para além de São Paulo, outras capitais do país também passaram por procedimentos semelhantes e o mais emblemático foi o “bota-baixo” da capital federal. No caso do Rio de Janeiro – onde o governo literalmente pôs abaixo casarões, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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edifícios e cortiços, expulsando a população mais pobre das áreas centrais -, mais do que solucionar os problemas causados pela falta de infraestrutura, as reformas confirmam aquilo dito há pouco: um plano mais abrangente que procurava garantir o aperfeiçoamento e modernização da nação Brasileira.7 A capital da República divulgaria a imagem do Brasil no mundo, uma vez que foi eleita pelas elites nacionais como “cartão-postal” da belle époque nos trópicos.8 A ideia central era aproximar a paisagem urbana do Rio de Janeiro com a de Paris, depois da reformulação implementada pelo Barão de Haussmann.9 Esses discursos e projetos em torno do urbano só fazem sentido quando compreendermos que, no pensamento latino-americano do final do século XIX, a cidade incorporava uma ideia que colocava em oposição à noção de civilização em relação ao mundo da natureza e ao passado colonial. Isto é, o modelo de sociedade ideal que se queria implementar tinha como elemento central a associação entre a cidade e a civilização, fixando como indispensável a criação e/ou ampliação dos meios de transporte e de comunicação, privilegiando o embelezamento do espaço urbano, estabelecendo como meta a dinamização da economia, procurando modificar costumes e introduzir novos hábitos entre as populações, e, entre outros aspectos, tendo como perspectiva resolver os problemas de saúde pública.10 A criação de Belo Horizonte, projetada ainda no final dos oitocentos, insere-se nesse contexto. A nova capital surgiria para atender aos anseios das elites mineiras que desejavam garantir que Minas Gerais tivesse uma capital moderna bem aos moldes do que a República inaugurava no país. Por isso, a edificação da nova capital, que seguiu preceitos cientificistas e higienistas, é um bom exemplo do desejo de modernização do espaço urbano como forma de evidenciar o progresso e a civilização. Foram vários os embates e discussões acerca da transferência ou permanência da capital em Ouro Preto, fato levado até o legislativo mineiro. De um lado estavam os Para discussões mais aprofundadas sobre os projetos de modernização no período da Primeira República a partir das ações dos engenheiros na reforma do Rio de Janeiro, ver Kropf (1996). 8 Para saber mais sobre a reforma da antiga capital do Brasil e as imagens divulgadas sobre a cidade no exterior, conferir Carvalho (2012) e Costa; Schwarcz (2000). 9 Geroges Eugène Haussmann (1809-1891), mais conhecido como Barão de Haussmann, foi nomeado por Napoleão III prefeito do Departamento de Seise (1863-1870), para realizar reformas em Paris, transformando-a em um modelo de metrópole imitado em todo o mundo. Para saber mais sobre Haussmann em Paris e suas influências na administração de Pereira Passos no Rio de Janeiro e outras cidades, ver Jaime Larry Benchimol (1992) e Sandra Jatahy Pesavento (2002). 10 Ver Alcântara (2015). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 7
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“antimudancistas”, que queriam a permanência de Ouro Preto, do outro os “mudancistas”, que discordavam entre si acerca da escolha do local para a construção da nova capital. Após diversas discussões, o projeto arquitetônico do engenheiro Aarão Reis foi o escolhido e a cidade de Belo Horizonte seria a nova capital do estado. (ARRUDA, 2012, p. 92-99) O projeto do engenheiro Aarão Reis tem semelhanças com a concepção arquitetônica da cidade argentina La Plata. Ambas foram escolhidas após os resultados de estudos que levaram em consideração alguns pontos como disposição cartográfica da cidade, abastecimento de água e comida, rede de esgoto e transporte (ARRAIS, 2009, p.71). Dessa forma, como afirma Rogério Arruda (2012, p.112), a proposta urbanística para a nova capital se distanciava daquela encontrada nas antigas cidades coloniais. Afinal os traçados irregulares davam lugar a linearidade, geometrização e higienização. Raul Tassini é um entre outros memorialistas que divulgou a imagem de Belo Horizonte como uma capital próspera. Em suas anotações sobre a arquitetura, ele afirmava que a cidade mineira podia “se orgulhar, de ter sido, nas suas construções antigas, erguidas a partir de 1894, uma das mais ornamentadas cidades do mundo, ê quiça, dentre todas, a primeira”.11 Com a fundação da nova cidade, os setores administrativos do Estado também se transferiram e várias famílias trocaram o interior pela capital. Esse processo “gerou uma vida social incongruente com a proposta estética que a cidade representava”, pois sua população não estava acostumada aos modos de viver das grandes metrópoles, o que criou certa monotonia nos primeiros anos (JULIÃO, 1996, p.79). Os novos residentes sentiam uma espécie de incongruência entre espaço e a vida sociocultural [...]. Contraditoriamente, a vida sociocultural de Ouro Preto e Mariana, no entanto, foi transportada juntamente com seus novos habitantes, oriundos de cidades como estas, mantendo um estilo de vida interiorano (PEREIRA, 2007, p.80).
No entanto, a população de Belo Horizonte foi aos poucos se expandindo. Isso se fez acompanhado de uma transformação na vida cultural, que passou a ser mais dinâmica,
TASSINI, Raul. ARQ... [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/415. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 11
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e ao desenvolvimento das estruturas, com melhorias urbanas a partir da pavimentação de ruas e da construção de novas edificações. Ao rememorar uma Belo Horizonte da sua infância para dizer das transformações no espaço urbano, Tassini relatou que as ruas da cidade, na década de 1920, eram bastante movimentadas, contando com a presença de automóveis, hotéis, teatros, cafés que agitavam a vida na capital.12 Essas mudanças, que marcaram a vivência do autor, causaram sentimentos ambíguos em Raul Tassini ao longo de sua vida. Seus escritos transpareciam emoções que variavam entre o entusiasmo pelo novo e o saudosismo em relação ao antigo. Um exemplo disso é o texto Avenida Afonso Pena de outrora..., escrito possivelmente na década de 1980. Ao mesmo tempo em que exaltava com orgulho o fato de Belo Horizonte ter se tornado a “terceira Capital” do país, reconhecida por Tassini como “Cidade Maravilhosa” e onde era “notável progresso”, o cronista ressaltava que, frente aos acontecimentos, “do agigantamento de Belo Horizonte” que, “em todos os sentidos, exageradamente, a cidade antiga [ia] se arraza[ndo], pois não resta[va] lá grandes coisas”, “recordar” não significava mais viver, mas sim “sofrer”.13 Outras fontes também deixam transparecer como Raul Tassini enxergou as transformações da capital mineira. É o caso dos textos B.H. e Belo Horizonte...14, possivelmente da década de 1980, e de outras anotações avulsas do autor em momentos diversos. O texto intitulado ARQ... revela sua preocupação por resgatar a memória da cidade a partir do seu papel de apresentar “aos olhos da população [belo-horizontina], tudo o que mais brilhou em sua arquitetura antiga”.15 O memorialista também deixava evidente que o crescimento de Belo Horizonte, além de modificar rapidamente os lugares da sua infância, se fez acompanhando de problemas: A capital mineira era então, naqueles tempos, iluminada em moda do tempo. Com os progressos que o ramo alcançou. Crescia vertiginosamente em casas, em população, em automóveis, ou bondes, mas alguns setores, como o da água
TASSINI, Raul. Onde está a Rua da Bahia da minha infância? [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini. Notação: RT pe 2/404. 13 TASSINI, Raul. Avenida Afonso Pena de outróra..., [1980?]. 3f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 1/016. 14 TASSINI, Raul. B.H. [1980?]. 2f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 1/017; TASSINI, Raul. Belo Horizonte. [1980?]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”, RT pe 2/420. 15 TASSINI, Raul. ARQ... [19..]. 7f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tasini”. Notação: RT pe 2/415. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 12
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e exgotos, que ficavam sobre a terra, ou que ninguém via, segundo um amigo ilustre, ficaram na mesma. Santa Terêsa era o bairro mais sofisticado. Havia sêde ali. Com o tempo, o problema se ampliou de tal forma, que até a Serra, um dos bairros elegantes, cujas vivendas dormiam por entre árvores, passou a sentir esse aspécto desastroso. Generalizou-se a falta de água. Quanto a luz, estava no mesmo caso. Ineficiente, e as ruas vastas e avenidas da cidade, passaram a penumbra. O comércio e a indústria, gritavam num côro com a população. De súbito os elevadores paravam a meio caminho e os passageiros ficavam presos, mais do que esperavam.16
O caos e os transtornos causados pela falta de energia foram noticiados nos jornais e o assunto foi discutido na câmara municipal. Tassini transcreveu a fala do ex-deputado Fabrício Soares que afirmou que tal situação era insustentável: “parece que até voltamos a era colonial. Em Belo Horizonte, como num arraial, só se fala em lampião, vela e lamparina”.17 Percebemos que ele procurava descrever, a partir da análise do cotidiano, os problemas enfrentados pela população belo-horizontina, que assistia sua cidade adentrar na modernidade. De todo modo, as análises sobre a história da capital apontam que, aos poucos, em permanente expansão, Belo Horizonte da infância de Tassini passava a cumprir o papel de centro político-administrativo, econômico, comercial e industrial, abarcando para si e para seus moradores a noção de metrópole que queriam lhe atribuir, desde os anos iniciais. Juscelino Kubitschek, prefeito de Belo Horizonte entre os anos 1941-1945, foi um dos principais responsáveis pela modernização da cidade. Ele asfaltou e abriu novas avenidas, construiu relevantes edificações, como o Conjunto do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) e a Estação Rodoviária, além de apoiar a Exposição de Arte Moderna de 1944, que possibilitou a vinda de vários nomes de arte moderna para a cidade. O Museu Histórico de Belo Horizonte, idealizado por Abílio Barreto e contando com atuação presente de Raul Tassini nos primeiros meses, foi inaugurado durante a gestão de JK. Em meio aos projetos de modernização da capital, o MHBH surgia para resgatar a memória do antigo Curral Del Rei e dos primeiros anos da cidade. Esse e outros investimentos na área cultural, como a criação da Escola Guignard, em 1943, e
TASSINI, Raul. B. Hte Acropole das rosas ou cidade turbulenta?[1980?]. 2f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/520. 17 Ibidem. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 16
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a exposição de arte moderna, mencionada há pouco, propiciaram a inserção da cidade no circuito nacional das artes plásticas (FERREIRA, 2007, p. 57). A política de Juscelino pautava-se em ações que buscavam conciliar o novo com a tradição, valorizando, portanto, o passado em sintonia com o pensamento moderno. Vale ressaltar, que a busca pelo progresso e pela modernização se dava a partir da inserção de elementos arquitetônicos e urbanísticos, o que não necessariamente significa dizer que houve a substituição ou a renovação de velhas práticas políticas. A imagem do tradicional político mineiro, sempre representante da elite, se sobrepunha aos projetos inovadores, contribuindo para o paradoxo entre o moderno e a presença constante da tradição.18 Seguindo essa linha, os anos de JK na prefeitura são marcados por um contexto de industrialização e intervenções estatais no país, que estava em crescente expansão. Para além dos projetos de urbanização, o ideal da modernidade estava associado ao desenvolvimento do setor industrial e de serviços, que aqueciam o comércio a partir do aumento do consumo.19 Nessa época, Belo Horizonte teve notável crescimento nas áreas periféricas, tanto em termos populacionais quanto em áreas urbanizadas. Foi nesse ritmo que a região onde se encontra hoje a Pampulha, um local ainda pouco habitado da cidade, foi “eleita para sediar um empreendedorismo há tempos esperado e responsável por conferir ares cada vez mais modernos à capital” (FERREIRA, 2007, p.52). Ao menos essa era a expectativa de Juscelino Kubitschek ao realizar um concurso para promover a urbanização da região. É curioso o fato de que o concurso não teve vencedor, pois os projetos apresentados eram voltados para estilos arquitetônicos tradicionais. Foi então que o ministro da educação, Gustavo Capanema, apresentou à JK o jovem arquiteto Oscar Niemeyer. “Niemeyer fez da Pampulha um dos maiores exemplos da arquitetura modernista do Brasil” e, em contrapartida, a Pampulha fez com que Niemeyer logo se destacasse como um dos maiores arquitetos do Brasil (FERREIRA, 2007, p.63). O novo bairro logo adquiriu projeção nacional e internacional devido à construção do complexo arquitetônico, que foi bastante inovador para a época. Conferir Pimentel (1997). Para saber mais sobre o governo de JK na presidência, também marcado pelo ímpeto da modernização, ver Benevides (1991, p.9-23). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 18 19
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Tomamos como exemplo a Igreja de São Francisco, considerada a primeira igreja moderna do Brasil. Tido como um projeto ousado pela população da cidade e por membros da Igreja Católica, a edificação angariou reações negativas e positivas. As autoridades governamentais, reconhecendo o seu valor histórico, artístico e arquitetônico, logo tombaram a edificação por meio do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/SPHAN (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN). Essa e outras edificações e transformações colaboraram para uma alta e rápida valorização dos lotes (FERREIRA, 2007, p.69). A transformação física do espaço deveria vir acompanhada da modificação dos costumes. Por isso, os edifícios inaugurados buscavam trazer novos locais de sociabilidade para os moradores da cidade. O Cassino da Pampulha, chamado na época de Palácio da Represa, é o maior exemplo disso, pois tinha como finalidade ser um centro de vida ativa para a população e um dos pontos de atração do turismo nacional e internacional, divulgando Minas Gerais para o Brasil e para o mundo. A decoração luxuosa reproduzia um espaço elegante e sofisticado, que era frequentado pela elite econômica e política do estado (FERREIRA, 2007, p.63-64). A Casa do Baile, por sua vez, foi concebida como espaço destinado às camadas mais populares. Isso evidencia a preocupação pela função social do espaço, que deveria tanto promover a diversão como valorizar artisticamente a região (FERREIRA, 2007, p.65-66). Conforme destaca Luana Maia Ferreira (2007), o plano de “aperfeiçoamento da raça”20 com base nas práticas esportivas era a finalidade principal do Iate Golfe Clube. A sua destinação principal eram as atividades esportivas, mas também contava com espaços para a realização de festas e eventos no salão apropriado, no bar ou no restaurante (FERREIRA, 2007, p.66). Além dos espaços públicos descritos, Niemeyer construiu uma casa de residência de campo para a família de Juscelino Kubitschek, inaugurando uma nova forma de morar na capital mineira. É visível que, naquele momento, a arquitetura, entendida como expressão da contemporaneidade, conferia visibilidade à modernização implementada pelo governo. Nesse sentido, conforme destacou Denise Bahia “a Pampulha deu forma a uma nova prática política e de governo” no qual se daria continuidade na construção de Brasília, Este termo foi usado no Relatório da prefeitura dos exercícios de 1940 e 1941. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 20
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anos depois. Em comum, esses projetos tinham como objetivo constituir aquilo que se entendia por identidade nacional (BAHIA, 2011, p.111). Se de um lado a imprensa belo-horizontina vendia a imagem de uma Pampulha sofisticada, com construções luxuosas, símbolo do progresso e desenvolvimento mineiro21, do outro Tassini expunha os acidentes e crimes que ali ocorriam, deixando impressões que vão para além do discurso da Pampulha moderna. É sobre esses relatos que dedicaremos as páginas a seguir.
As contradições da modernidade em Belo Horizonte: os relatos de Raul Tassini sobre a Pampulha A origem do nome Pampulha vem de um ribeirão e de uma fazenda de mesmo nome, que, existente desde o final do século XVIII com a imigração portuguesa e com a presença de escravos, deu origem a um dos primeiros núcleos de povoamento no local. No final do século XIX, um aglomerado de fazendas da região era responsável pelo abastecimento de produtos hortifrutigranjeiros da nova capital. Posteriormente, no início do século XX, os italianos e outras pessoas oriundas de todo o estado, que não tinham condições de comprar terreno na zona urbana de Belo Horizonte, se fixaram por ali, denominado na época por Santo Antônio da Pampulha, ou Pampulha Velha, como ficou mais conhecido.22 A Pampulha Velha teve sua formação socioespacial relacionada ao processo de exclusão da capital e pode ser caracterizada pelo seu forte sentido de comunidade e religiosidade. Ana Moraes dos Reis e Manoel dos Reis, portugueses que compraram terras no local, foram personagens importantes, que ajudaram a construir esse perfil religioso. Os dois levantaram a capela de Santo Antônio de Pádua, onde eram celebradas as festas de São João e de Santo Antônio e de onde saíam as inúmeras procissões. Com o crescimento da capital, as autoridades focaram seus investimentos para o vetor norte, fomentando a criação de um aeroporto e de uma barragem para abastecer a cidade na década de 1930. Nos anos seguintes, conforme relatado na seção anterior, houve
PAMPULHA, MARAVILHA DO CINQUENTENARIO, Estado de Minas, 12 de dezembro de 1947, p. 6. 22 Ver Lemos (2006). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 21
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de fato a ocupação efetiva da região a partir da construção do complexo arquitetônico moderno, concebido por JK, em 1940. Com efeito, Luana Ferreira (2007) enfatiza que “a história do Arraial de Santo Antônio da Pampulha, ou Pampulha Velha, pouco contada, foi sufocada pela monumentalidade da Pampulha Nova”, tida como “oficial” e que foi idealizada e projetada para “satisfazer a aspirações estéticas, políticas, arquitetônicas e econômicas” das elites políticas de Minas Gerais (FERREIRA, 2007, p. 46). Apesar de Raul Tassini ter qualificado a Igreja de São Francisco de Assis como “Coisas Exóticas” em suas anotações avulsas sobre arquitetura antiga23, a monumentalidade do conjunto moderno da Pampulha Nova também impressionou o memorialista, que destacou: Assim (em 1941), o Cassino, a Casa do Baile, a Igreja formaram naquela parte da cidade, um conjunto, numa tríade de rara imponência arquitetonicamente falando, cujos grandes e caríssimos edifícios de fachadas erguidas a margem do lago, espelharam nas águas tranquilas, preguiçosas. É claro que o conjunto desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, impressiona com suas lindas horizontais predominando.24
Na escolha do local para o empreendimento de JK, no início dos anos 1940, o urbanista francês Alfred Agache foi convidado pelo próprio prefeito para conhecer a cidade e avaliar a região que se pretendia construir o moderno projeto. Agache propôs que a Pampulha se tornasse um local a ser ocupado por camadas de baixa renda, no intuito de suprir a crescente demanda populacional que acontecia em regiões da zona suburbana (FERREIRA, 2007, p.60). Algo notado e compartilhado por Tassini, que destacou em seus relatos que a Pampulha não deveria ser um local de alto investimento para proporcionar lazer e diversão para as classes mais ricas, mas sim um bairro criado para solucionar os problemas sociais existentes na cidade, pois era uma “obra suntuária (...) inexpressiva em suas finalidades”.25 Portanto, ele discordava do empreendimento porque existia na cidade “tanta miséria rondando os lares, tanta falta de escolas”.26
TASSINI, Raul. Coisas Exóticas [19..]. Manuscrito. 1f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/445. 24 TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/599. 25 TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/599. 26 Ibidem. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 23
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Talvez por isso Tassini não compareceu à inauguração da Pampulha, apesar de reconhecer que foi “um grande acontecimento social na vida da capital”.27 Com efeito, os relatos de Raul Tassini abordam um discurso diferente daquele adotado pela imprensa em Belo Horizonte. Ele denunciou acidentes, mortes e os excessos cometidos acerca da construção do bairro da Pampulha. Luiz Garcia, em seu texto sobre a ruptura da barragem, apelidou Tassini de crítico de “primeira hora”, dado aos inúmeros registros deixados por ele sobre o que acontecia na região da Pampulha (GARCIA, 2007, p.99). Dessa forma, as anotações críticas de Tassini mostram uma disparidade entre as duas Pampulhas (a “velha” e a “nova”). O cronista relatou que muitas famílias foram desapropriadas de seus lares, não importando se eram “proprietários ou herança de seus antepassados, desde os tempos coloniais, e viram-se forçados a abandonar suas terras” para a idealização do moderno bairro.28 Era evidente que, aos olhos de Tassini, a Pampulha Nova nascia excluindo a população mais pobre, que não tinha condições de comprar terrenos no entorno da lagoa e/ou não podia frequentar os espaços de entretenimento, pois, além das atrações terem custo além do que a maioria podia pagar, o acesso ao local era ineficaz. Belo Horizonte dos anos 1940 era carente em transportes públicos e poucos bondes atendiam o novo bairro. Os moradores da Pampulha Velha sofriam com inúmeros problemas, que, muitas vezes, eram abafados pela grandeza das obras modernas. Já se reclamava da falta de escola na região e da presença de caramujos na água infestada de esquistossomose (GARCIA, 2007, p.91). Segundo Luiz Henrique Assis Garcia (2007), o rompimento da barragem, em 1954, foi o estopim, pois evidenciou a condição de vida dessa população. As águas inundaram áreas residenciais e de fazendas, desmoronando casas, alagando áreas de plantação, matando animais e causando outros transtornos, como interrupção dos serviços de luz e telefone, além de inviabilizar a pista do aeroporto. Raul Tassini comentou a respeito: No sábado tomei um ônibus que me deixou na Pampulha Velha. Entrevistei várias pessoas dali, passei pela Capela de Santo Antônio e atravessando a pista do aeroporto alcancei a Ponte quebrada [...] no entrocamento das estradas de Vespasiano e a direita a de Santa Luzia. (...) Fui ver as ruínas da Ponte quebrada. A conrrenteza [caudalosa?] da represa da Pampulha, levou metade,
TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/599. 28 TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/599. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 27
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dela. E lá estão 18 metros da ponte, com seus 4 vãos de balaustradas. É uma ruína de ponte que a represa deu causa.29
O rompimento acentuou o contraste simbólico entre as Pampulhas. Para o memorialista a tragédia também contribuía para manchar a grandeza das obras implementadas ali: Com o rompimento da barragem da Pampulha, a desgraça foi semeada no percurso seguido pelas ‘aguas’ que desvairadas rolaram, desrespeitando lares, bens, sêres, criações, tudo... Com o decorrer dos dias toda a beleza ‘paizagistica’ da Pampulha que a tornou famosa no mundo sumiu. Formou-se um lamaçal e a podridão, a (inelegível) fez dela o seu império. Os peixes apodrecendo, emanaram de tudo que la dentro morrera, um mau horrível.30 Ai fica a Pampulha em seus dados, (inelegível), pequena história da sua curta mas turbulenta existência, ‘rosario’ de lágrimas, cujas contas são feitas de ‘dôr’. Já disseram que a vida não vale pelos anos que representa, mas pela intensidade da mesma. E aí está como exemplo, a Represa da Pampulha, que aterroriza visitante como o espectro da morte. É como um leito do mar sem água, uns canteiros sem plantas, um templo sem Deus.31
Para Raul Tassini, a Pampulha perdia seu encanto. Ele buscava nos casos contados por antigos moradores da região, que foram excluídos em parte do processo de modernização, alguma explicação. Questionava, por exemplo, se Ana Moraes dos Reis, citada na seção anterior como responsável pela vida religiosa da Pampulha, poderia ter previsto o ocorrido. Conhecida como “Sá Donana da Pampulha”, ela foi rezadeira e feiticeira. Raul Tassini indagou: Donanna distribuía esperanças a todos os desenganados que a procurassem. Fazia voltar o sorriso aos tristes e da animo [...] aos que já haviam perdido. Enfim, era a mesa de sua casa um bálsamo para as chagas do alheio, na magia das cartas [inelegível]! E como acontece sempre algumas cousas davam certo, outras [inelegível] não. Mas teria previsto na vida [inelegível] da Pampulha, a sua ascensão a rainha e a sua destruição, a sua queda? Teria ela ao ler e reter as cartas coloridas, do seu baralho, vaticinando toda a glória e todas as graças que lhe cobrem? Teria ela previsto a queda do império fabuloso da Pampulha?32
TASSINI, Raul. Belo Horizonte [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/599. 30 TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/599. 31 TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/599. 32 TASSINI, Raul. [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/601. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 29
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De acordo com que foi contado por Tassini, existia entre os moradores uma explicação para a tragédia que dizia de uma maldição da época da urbanização da Pampulha: Contou-me um antigo pampulhense que quando eram acertados os terrenos para a represa, uma coruja do alto de uma árvore seca, por três noites consecutivas, no seu piar estridente e nostálgico, parecia dizer: vocês vão ver! Vocês vão ver! Vocês vão ver! ... E nesse rito foi noite a dentro, impressionante! (...) E assim entra na história da Pampulha, a coruja agourenta.33
Possivelmente o rompimento da barragem foi o marco de maior impacto na vida dos que moravam na região, pois suscitou vários embates acerca de quem eram as responsabilidades da tragédia, além de ter evidenciado o contraste simbólico entre as duas Pampulhas. De todo modo, a Pampulha é tida como a expressão maior da administração desenvolvimentista e modernizadora de JK na prefeitura, e, sem dúvida, seus equipamentos representam a concretização da arquitetura como expressão simbólica da modernidade. Isso não escapou aos olhos nem de Raul Tassini, apesar de ter discutido várias contradições que marcaram o empreendimento e a história da região.
Considerações finais O advento da modernidade determinou transformações sociais e econômicas em vários lugares do globo. Cidades como Belo Horizonte foram planejadas sob a égide do novo e edificadas para ser símbolo do que se entendia por progresso. Anos depois, o projeto desenvolvimentista, implementado por governantes como Juscelino Kubitschek, determinou ações do Estado que tinham como foco a industrialização, os bens de consumo, os automóveis, os novos modos de viver e divertir modernos. A arquitetura desse período serviria para simbolizar esses projetos e ações no campo político em prol da modernização, semelhante como vimos em relação à Pampulha (barragem e demais edificações modernas), que surgiu sob o tripé de garantir o abastecimento, o lazer e o turismo em Belo Horizonte e Minas Gerais a partir de sua função utilitária e decorativa. Contudo, como visto ao longo do texto, as contradições entre o “velho” e o “novo” estiveram presentes na história da cidade, gerando embates que tinham como origem as TASSINI, Raul. [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/584. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 33
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transformações e ocupações dos espaços. Raul Tassini procurou dizer em seus relatos sobre as várias Pampulhas existentes e os conflitos oriundos das disparidades entre as realidades e vivências dos moradores em ambos locais. Por isso, o acervo documental do memorialista revela contradições e aspectos que vão além do discurso majoritário da época, que exaltava a Pampulha como centro moderno. Dessa forma, as anotações do cronista e as transformações ocorridas nos bairros de Belo Horizonte revelam o paradoxo de uma capital que, nascida para ser moderna, tem sua história marcada pela constante desconstrução do passado e a busca pelo progresso. Por fim, que esse artigo possa colaborar com outros estudos sobre Belo Horizonte a partir da análise de fontes históricas ainda pouco investigadas, como é o caso da Coleção Raul Tassini presente no Museu Histórico Abílio Barreto. Referências Fontes documentais Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB). Notações: RT pe 1/015 a 019; RT pe 1/020 a 023; RT pe 1/030 e 031; RT pe 2/075 a 086; RT pe 2/143; RT pe 2/381 a 403; RT pe 2/404 a 426; RT pe 2/427 a 474; RT pe 2/519 a 520; RT pe 2/569 a 605; RT pe 2/692 a 693; RT pe 2/733 a 746; RT pe 3/088. Bibliografia, dissertações, artigos de revistas, páginas da internet, entre outros. ALCÂNTARA, Carolina Paulino. “PRINCEZA DO NORTE”: contradições da modernidade em Diamantina (1889-1930). (2015. 170f) Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. ALVES, Célia Regina Araujo. Preciosas memórias, belos fragmentos: Abílio Barreto e Raul Tassini – a ordenação do passado na formação do acervo do Museu Histórico de Belo Horizonte (1935-1956). (2008) Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. ANDRADE, Luciana Teixeira de. A Belo Horizonte dos modernistas: representações ambivalentes da cidade moderna. Belo Horizonte: PUC Minas; C/ Arte, 2004. ARRAIS, Cristiano Alencar. Belo Horizonte, a La Plata Brasileira: entre a política e o urbanismo moderno. Revista UFG, Goiás. v.11, n.6. jun. 2009. ARRUDA, Rogério Pereira. Belo Horizonte e La Plata: cidades-capitais da modernidade Latino-americana no final de século XIX. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro. v.6, n.1, 2012.
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“TRISTE HORIZONTE”: A SERRA DO CURRAL DEL REY, O MARCO GEOGRÁFICO DA CAPITAL DE MINAS (1897-1975)
“SAD HORIZON”: THE SERRA DO CURRAL DEL REY, THE GEOGRAPHY FRAME OF MINAS CAPITAL (1897-1975) Alessandro Borsagli*34
Resumo Nesse artigo será realizada uma abordagem histórico-geográfica da Serra do Curral del Rey, um dos principais marcos geográficos referenciais para a ocupação do território na qual se construiu a nova capital de Minas Gerais. O alinhamento montanhoso é considerado atualmente patrimônio natural de Belo Horizonte, ao mesmo tempo em que sofreu inúmeras alterações antrópicas ao longo do processo de desenvolvimento urbano da capital. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo elaborar um histórico do alinhamento montanhoso desde a inauguração da nova capital até o rebaixamento do perfil da serra, ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, assim como definir qual a posição da sociedade perante a metamorfose ocorrida na paisagem urbana de Belo Horizonte. A análise pretende ainda esclarecer os motivos pelos quais a Serra do Curral não despertava a atenção da sociedade, fato que possivelmente contribuiu para o descaso acerca dos elementos naturais no município. Palavras chave: Serra do Curral; Espaço urbano; Paisagem urbana.
Abstract This article introduces a geography and historic approach about Serra do Curral del Rey, one of the most important geography referential to territorial occupation of new Minas Gerais Capital. Nowadays, this mountain is considered a natural patrimony of Belo Horizonte, at the same time it suffered many human changes. In this sense, this article tries understanding the factors that contributed to decrease of geographic relief, which occurred between 1960 and 1970 decades. Besides that, this article pretends understand the society position in front of the metamorphosis occurred in Belo Horizonte urban space. This analysis pretends to clarify the motivations that the Serra do Curral did not
Graduado em Geografia pela PUC Minas e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia/Tratamento da Informação Espacial da PUC Minas. Autor do site curraldelrey.com e do livro Rios Invisíveis da Metrópole Mineira. Email: borsagli@gmail.com
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wake up the society attention, which probably has contributed to neglecting around to municipal natural elements. Keywords: Serra do Curral; Urban space; Urban landscape.
Introdução
Belo Horizonte possui uma identidade histórica e ignorada por muitos devido ao distanciamento das raízes ambientais, a partir da negação do convívio entre o natural e o urbano promovida pelas sociedades modernas. Essa identidade invisível é a Serra do Curral del Rey (Figura 01), parte de um importante complexo de montanhas que se estendem por cerca de 93 km na direção leste/oeste, desde a região de Carmo do Cajuru até as proximidades da cidade de Caeté, a oeste da Serra do Espinhaço.
Figura 01 – Vista parcial de Belo Horizonte, ao fundo parte da Serra do Curral. Fonte: APCBH Coleção José Góes
A Serra do Curral é o testemunho do relevo de uma região notável pelas suas diversas orogêneses ao longo da evolução do planeta. A Serra apresenta altitudes que atingem 1520 metros de altitude (Pico José Vieira) e o que se vê atualmente é o resultado
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de um processo erosivo diferencial, na qual as áreas mais suscetíveis à erosão sofreram maior rebaixamento em relação às áreas mais resistentes às intempéries35. As formações geológicas do Quadrilátero Ferrífero apresentam características interessantes no que diz respeito à composição e às suas estruturas que atestam a monumentalidade das montanhas da região e da ação dos processos erosivos desde a última orogênese ocorrida há centenas de milhões de anos atrás. Nesse contexto, o ribeirão Arrudas assumiu um papel importante no processo de rebaixamento do relevo compreendido entre o complexo e as Serras da Contagem/Onça, atuando no processo de conformação do sítio que abrigaria a capital de Minas Gerais. As serras do complexo que compõem a porção norte do quadrilátero se apresentam com diversas denominações regionais (Figura 02):
Figura 02 – Mapa do Complexo da Serra do Curral e respectivas denominações. Fonte: Brasil Visto do Espaço (elaborado por Alessandro Borsagli, 2016).
De oeste para leste, Serras de Itatiaiuçu e Igarapé, Serra Azul, Serra dos Três Irmãos, Serra da Jangada, Serra do Rola Moça, Serra do José Vieira, Serra da Mutuca, Serra da Água Quente, Serra do Curral del Rey, Serra do Taquaril e Serra da Piedade. Essas serras são transpostas por dois rios, o Rio Paraopeba, pouco abaixo da cidade de VARAJÃO, C.A.C.et al., 2009, p.1410. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 35
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Brumadinho na garganta denominada Fecho do Funil e o Rio das Velhas na altura de Sabará, onde suas águas encontram o maciço curralense. Nesse artigo será realizada uma abordagem histórico-geográfica da Serra do Curral del Rey, um dos principais marcos geográficos referenciais para a ocupação do território no qual se construiu a nova capital de Minas Gerais. A Serra do Curral, protegida pela Lei Orgânica do município desde o ano de 199036, é vista atualmente como um patrimônio natural e de identidade de uma capital diversas vezes reinventada ao longo do processo de desenvolvimento urbano. Dessa forma, busca-se ainda a compreensão dos fatores que contribuíram para o rebaixamento do perfil da serra ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, bem como qual a posição da sociedade perante a metamorfose ocorrida na paisagem urbana de Belo Horizonte. É de suma importância o conhecimento dos processos que culminaram na destruição de uma porção do perfil do maciço de ferro, no qual a cidade possivelmente assistiu à mutilação de maneira impotente e algumas vezes indiferente, visto a austeridade do período e a crença de que a exploração mineral era necessária para a cidade e para a evolução da própria sociedade.
A serra e a cidade Conhecida e explorada desde o século XVIII a Serra das Congonhas, nome primitivo da Serra do Curral, não foi alvo assíduo dos mineradores que se espalharam por toda a região das Minas durante o século do ouro, salvo algumas exceções como as concessões de lavras auríferas na Serra do Mutuca, da qual existem vários vestígios pouco estudados37 e da pequena exploração que existiu na Serra do Taquaril, em meados do século XIX, da qual deu notícia o viajante e explorador inglês Richard Burton38 no ano 21 de março de 1990: Entre outras coisas: Art. 224 - Ficam tombados para o fim de preservação e declarados monumentos naturais, paisagísticos, artísticos ou históricos, sem prejuízo de outros que venham a ser tombados pelo Município: I - o alinhamento montanhoso da Serra do Curral, compreendendo as áreas do Taquaril ao Jatobá; II - as áreas de proteção dos mananciais; 37 Tais concessões datam da primeira metade do século XVIII e juntas elas formavam um complexo minerário que se estendia desde a Serra do Mutuca até a Serra da Moeda. Muitas dessas lavras eram ilegais e foram desmanteladas pela Coroa ou mesmo abandonadas, quando do início da decadência da exploração do ouro. Ainda é possível identificá-las a olho nu em diversos pontos da serra. 38 BURTON, 1976, p.501. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 36
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de 1865 e Samuel Gomes Pereira no ano de 1893, ao estudar os aspectos do arraial de Belo Horizonte para sediar a nova capital39. O minério de ferro explorado nesse período, por ter sido realizado de forma pontual e superficial, não acarretou em alterações perceptíveis na Serra do Curral. É importante ressaltar que as serras, assim como os cursos d’água, eram batizadas de acordo com a tradição toponímica portuguesa, nas quais os elementos recebiam os nomes de acordo com a primeira impressão que se tinha ao chegar a uma determinada região, ou um evento extraordinário ocorrido no local ou mesmo alguma localidade ou propriedade importante, não se esquecendo da influência indígena nos topônimos. Um exemplo dessa influência é Congonhas40, nome de uma erva com propriedades antiinflamatórias que certamente se abundava na região, uma herança indígena quase desconhecida e preservada a partir do contato dos forasteiros com os donos do solo mineiro. A Serra das Congonhas era considerada o marco geográfico dos arraiais de Congonhas de Sabará e do Curral Del Rey, povoados que surgiram aos seus pés nos primeiros anos do século XVIII. A serra desde os tempos coloniais era utilizada como ponto de referência para quem vinha dos caminhos dos Sertões para o arraial ou para outros arraiais e vilas que foram fundadas nas suas imediações. De maneira semelhante, o Pico do Itacolomi representava para os viajantes a principal referência geográfica de Vila Rica e Mariana. E pelo fato do Curral del Rey, importante entreposto entre os Sertões e as Minas, ter se consolidado aos seus pés no início do século XVIII, o notável maciço de ferro receberia o nome do lustroso Curral del Rey. Sentinela dos caminhos que levavam às minas, o maciço permaneceu quase virgem durante os áureos anos do século XVIII e durante parte do século XIX, salvo as explorações iniciadas pela Taquaril Gold Mining Company limited, formada no ano de 1867 e pelas prospecções e transposições realizadas pela Saint John del Rey Mining Company limited (Morro Velho), proprietária de grandes porções de terra ao longo da Serra do Curral41. A Serra do Curral engloba ainda outras denominações de nível local, como a Serra do Acaba Mundo e a Serra do Taquaril, que batizavam os locais correspondentes às MINAS GERAES, 1893, p.20. Barbosa, 1971: Congonhas de Sabará foi à primeira denominação da cidade de Nova Lima, que também já se chamou Villa Nova de Lima, assim batizada quando da sua emancipação, no ano de 1891. 41 BORSAGLI, 2017, p.96. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 39 40
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extrações minerais nas cotas mais baixas da serra. O Acaba Mundo havia sido explorado pela Morro Velho e o Taquaril fornecia além do tão afamado mármore, algum ouro explorado pelos ingleses da referida Companhia, falindo poucos anos após a concessão, na década de 187042. Certamente a serra e o próprio quadrilátero já despertaram a atenção dos estrangeiros para o seu potencial ferrífero, a ser explorado em momento conveniente. A Serra do Curral forneceu ainda o minério de ferro para a fábrica construída na confluência do córrego da Serra e ribeirão Arrudas pela Companhia Progressiva Sabarense, iniciativa que durou pouco menos de dez anos, sendo a estrutura e os terrenos vendidos para a Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), que se instalou no arraial no início do ano de 1894. A CCNC logo após a sua chegada deu início aos estudos necessários para a elaboração da Planta da nova capital do Estado. Os trabalhos de topografia e geodesia apontaram que a cidade planejada deveria ser construída ao longo das cotas mais baixas da Serra do Curral, transpondo em alguns trechos a acentuada declividade para fins hierárquicos, figurando o paredão da serra como beleza cênica para a urbe planejada. Nesse contexto, quando Aarão Reis apresentou a Planta no ano de 1895 pôde se compreender que o projeto dava maior importância à perspectiva da Serra do Curral que, obrigatoriamente, seria vista de toda a cidade planejada encaixada entre a serra e o vale do ribeirão Arrudas e ainda da zona suburbana, que buscava uma relativa harmonia entre os seus arruamentos e as curvas de nível das montanhas limítrofes ao paredão43. O Morro do Cruzeiro, ponto final da Avenida Afonso Pena, figurava como a divisa entre o natural e o racional, destinado a abrigar o novo templo dedicado à Nossa Senhora da Boa Viagem, no cume da cidade e no sopé das montanhas. A cruz, que aí existiu (Figura 03), era local de peregrinação dos curralenses impossibilitados de se dirigir ao pico do Curral del Rey e marcava o início da serra, que então não se resumia ao paredão.
MINAS GERAES, 1893, p.20. BORSAGLI, 2016, p.52. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 42 43
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Figura 03 – Morro do Cruzeiro no ano de 1895. À esquerda o Pico Belo Horizonte. Fonte: APCBH acervo CCNC
Na verdade, o perímetro da nova capital fora delimitado pela CCNC entre as duas importantes serras limítrofes ao velho arraial, ou seja, ao sul pela Serra do Curral e ao norte pela Serra da Onça, uma importante serra atualmente urbanizada e quase nula na paisagem, salvo o seu perfil parcialmente preservado e completamente adensado. A Serra da Onça, com altitudes que variam entre 850 e 950 metros é o maciço divisor das bacias dos ribeirões Arrudas e Onça, motivo pelo qual se transformou no marco geográfico de divisão entre a cidade e as áreas rurais do município até a década de 1930, quando o tecido urbano extrapolou as montanhas granito-gnáissicas em direção aos povoados da Pampulha, da Onça e da Venda Nova.
Uma serra quase intocada Após a inauguração da capital, a Serra do Curral permaneceu praticamente intocada44 nas primeiras décadas do século XX, salvo as captações dos mananciais da Serra e do Cercadinho, a instalação das torres da Cia. Força e Luz nas terras atualmente pertencentes ao Parque das Mangabeiras, que conduziam à capital a energia gerada na Represa Rio de Pedras construída em Acuruí para essa finalidade, e as estradas que “Intocada” se refere a inexistência da exploração ferrífera em larga escala no período abordado pelo subcapitulo (1897-1950). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 44
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obrigatoriamente passavam pela serra, destacando-se a velha estrada para Villa Nova de Lima, abandonada alguns anos após a inauguração da capital, devido à dificuldade da sua conservação, no trecho correspondente ao entorno do Pico Belo Horizonte. Nesse período as excursões e os piqueniques faziam parte do cotidiano da cidade, cuja população aproveitava os belos finais de semana para se divertir no Alto do Cruzeiro, ao lado da caixa d’água45 ou mesmo nas partes mais altas, uma verdadeira aventura para os citadinos que buscavam paz em meio a uma capital de interior que se encontrava em iminente transformação. Belo Horizonte não apresentava muitas alternativas de lazer e a Serra do Curral, com suas águas geladas e cumes convidativos à contemplação era uma das opções mais procuradas junto com o Parque Municipal e o Prado Mineiro. A serra proporcionaria ainda a prática de caça, que acontecia nas proximidades da Lagoa Seca. Até a década de 1920, a Serra do Curral (Figura 04) proporcionou não só o lazer da população, mas também garantiu o abastecimento de água de Belo Horizonte a partir da extensão da captação dos cursos d’água que nascem em suas vertentes na direção oeste, correspondentes a região do Barreiro/Ibirité46. Apesar da abundância hídrica, as águas supririam a demanda do município até meados da década de 193047, quando a capital entrou em um déficit que só se resolveu no ano de 1973.
Revista Fon Fon edição 27, p.20. BORSAGLI, 2016, p.61. 47 FJP, 1997, p.90. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 45 46
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Figura 04 - A cidade e a serra, desde o mirante do edifício Ibaté por volta de 1936. Acervo MHAB
A década de 1930 trouxe além das profundas mudanças físicas, econômicas e sociais ocorridas após a Revolução de 30 o Decreto nº 24.642 (Código de Minas) que instituiu diretrizes para a exploração mineraria no Brasil. Poucos dias após o decreto foi estabelecida pela nova Constituição que toda e qualquer exploração mineral empreendida no país, pesquisas e concessões só poderiam ser realizadas por empresas organizadas no Brasil e por seus cidadãos. Era o ponto de partida para a exploração em larga escala de um recurso explorado pontualmente desde as primeiras décadas do século XIX, extraído por pequenas companhias espalhadas pela região de Itabira e pelo Quadrilátero Ferrífero. É importante ressaltar que, anterior ao Código de Minas, durante o mandato do presidente Arthur Bernardes (1922-1926) houve um notável protecionismo relacionado a exploração do minério de ferro perante os interesses das companhias estrangeiras que chegavam a Minas, destacando-se a Companhia siderúrgica Belgo-Mineira, fundada no ano de 1921 e a Itabira Iron, sociedade inglesa formada na década de 1910 que pretendia explorar as montanhas ferríferas da região de Itabira a partir de concessões polêmicas, rechaçadas por Bernardes durante o seu governo48. Poucos meses após o sancionamento do Código de Minas, mais precisamente em outubro de 1934, foi constituída a Companhia de Mineração Novalimense visando à exploração das grandes jazidas pertencentes a St. John d’El Rey Mining Company, sócia majoritária da companhia recém-formada. As jazidas foram reclamadas pela mesma companhia no ano seguinte, incluindo ainda as terras dolomíticas das bordas da Serra do Curral já exploradas superficialmente pela companhia inglesa e as terras denominadas Fazenda Morro Velho ou Águas Claras, no limite dos municípios de Nova Lima e Belo Horizonte49. Caso resolvesse explorar as terras de sua propriedade, a companhia inglesa transferiu no ano de 1938 para a Cia Mineração Novalimense as jazidas de minério de ferro da Serra do Curral, Capão Xavier e diversas minas na região da Cata Branca, no município de Itabirito, medidas que visavam garantir a exploração futura por parte da companhia.
COELHO, 2001, p.19. MATA MACHADO, 2003, p.6. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 48 49
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Os anos seguintes se caracterizam pela flexibilização das leis que restringiam a
participação estrangeira nas explorações minerais no país. Entre trabalhos geológicos realizados em parceria com os Estados Unidos e argumentos favoráveis à participação estrangeira na exploração e exportação mineral, iniciaram-se os estudos visando à exploração mineral da Serra do Curral, a partir da concessão municipal para a perfuração de quatro túneis de pesquisa à montante da captação do córrego da Serra50, próximo das suas cabeceiras. É importante ressaltar que a própria Prefeitura, detentora de grandes porções de terras ao longo da Serra do Curral altamente cobiçadas pela qualidade dos minérios de ferro, em particular a hematita compacta que aflorava em diversos locais do maciço, já possuía planos de explorar as terras, vistas como imprescindíveis para equilibrar o déficit financeiro do município recém emancipado do Estado. Quatro anos após a emancipação da capital, mais precisamente no ano de 1951, entrou em atividade nas terras da exaurida pedreira do Acaba Mundo, a Mineração Lagoa Seca cuja extração da dolomita, mineral cárstico encontrado na base do maciço curralense, contribuiu para a alteração do regime hídrico do córrego do Acaba Mundo.
Ferrobel/Águas Claras: o horizonte perdido Visto o cenário favorável à exploração mineral no Brasil a partir das concessões dadas pelo Governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) para as empresas estrangeiras51 e a flexibilização das leis referentes às jazidas, nos primeiros meses do ano de 1958, a Hanna Mining, que obtivera autorização para atuar no país sob o título de Mineração Hannaco LTDA52, adquiriu em Londres as ações da St. John del Rey Mining Co. para ter acesso às riquíssimas minas de ferro com cerca de dois bilhões de toneladas de minério de alto teor das montanhas53. Poucos meses após a aquisição do centenário grupo inglês, foi firmado um contrato entre a Hannaco, St. John del Rey e Cia Novalimense, cuja companhia inglesa era acionista majoritária para a exploração mineral das jazidas pertencentes às duas MATA MACHADO, 2003, p.7. MATA MACHADO, 2003, p.17. 52 Durante a administração federal de JK foram 31 concessões dadas à Hannaco para exploração de jazidas no Quadrilátero, todas estritamente conectadas às pretensões da companhia norte americana. 53 Revista Time, 10 março de 1958. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 50 51
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últimas. Após o acordo firmado entre o mesmo grupo, foi criada a Mineração Curral del Rey Ltda. pertencente a St. John del Rey. Era o indício que faltava para que o Governo do Estado solicitasse ao Departamento do Patrimônio histórico e Artístico Nacional (DPHAN) o tombamento da Serra do Curral54. Nesse momento o Estado reconheceu a importância da Serra do Curral para Belo Horizonte não só pela beleza cênica e paisagística, mas também cultural, histórica e urbanística, visto que a cidade fora pensada e planejada para que se vislumbrasse o maciço de qualquer ângulo do perímetro planejado. Nesse contexto José Francisco Bias Fortes, por meio do departamento jurídico do Estado solicitou o tombamento da serra como um “bem do patrimônio artístico nacional, com sua silhueta inconfundível e bem característica, tão ligada à nossa capital” (MATA MACHADO, 2003, p.12).
Ainda assim, os estudos continuaram de modo a possibilitar a exploração mineral da serra, visto que o município de Belo Horizonte era o proprietário da superfície do maciço. Ao que tudo indica o poder público municipal não estava preocupado em manter a integridade da serra e sim em proteger as reservas de ferro de sua propriedade, mirando a exploração futura e em consequência o incremento do sofrido erário municipal. Tombado parcialmente o perfil da Serra do Curral e o Pico Belo Horizonte em 21 de setembro de 1960, supunha-se que a pérola serrana de Belo Horizonte estaria protegida da voracidade mineraria que agia ininterruptamente nos bastidores da política e da própria administração municipal que não aceitava o tombamento, apesar do perímetro de proteção federal não abranger as terras abaixo da cota 1.200, não contrariando assim os fortes interesses privados e do próprio poder público. Sabendo dos planos municipais para a exploração do minério de ferro, Rodrigo de Melo Franco, diretor do DPHAN solicitou ao chefe do 3º Distrito, Sylvio de Vasconcellos, esclarecimentos acerca da questão noticiada pelos jornais da capital. A resposta por parte da administração municipal veio dois meses mais tarde, contestando o tombamento sob a justificativa de prejudicar o patrimônio do município. O procurador geral da Prefeitura argumentou que o tombamento foi “inscrito no Livro do Tombo da Diretoria, como se nestes sítios veneráveis serpentasse a linfa arrancada à rocha pelo
MATA MACHADO, 2003, p.12. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 54
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bordão de Pedro ou se descobrisse numa das furnas da Serra a urna mirífica de algum êmulo tupiniquim de Ramsés Segundo” (MATA MACHADO, 2003, p.23). O tombamento não vedava a exploração mineral na serra e a expansão do tecido urbano para as proximidades do paredão, como observado pelo então chefe do DPHAN em Belo Horizonte Sylvio de Vasconcellos: As encostas da serra, do lado da capital, compreendem uma faixa, em projeção, de cerca de um quilometro, estando já em alguns trechos de suas fraldas e contrafortes ou ocupados por favelas ou por loteamentos e minerações (...) o uso desta região para loteamento e mineração, pelo menos em seus trechos limítrofes à área urbanizada, apresenta-se como uma natural contingencia já em curso, cujo estancamento suscitaria serias dificuldades (MATA MACHADO, 2003, p.13).
Em meio a questão, o município criou no dia 30 de outubro de 1961 a empresa Ferro de Belo Horizonte (FERROBEL) de capital misto55, através da Lei Municipal Nº 898, instalando-se nas cabeceiras do córrego da Serra. A jazida apresentava originalmente uma extensão de 2.800 metros, contendo não só a hematita e o itabirito, mas também a dolomita, já explorada na Mina do Acaba Mundo. A FERROBEL (Figura 05), de acordo com a administração municipal56 fora criada para promover a industrialização do município a partir dos resultados financeiros alcançados pela exploração mineral. Um argumento interessante, visto que Belo Horizonte já havia passado pelo surto industrial pós-1930 e se encontrava em franca metropolização proporcionada pela consolidação do polo industrial de Contagem.
A prefeitura possuía 70% das ações e o restante aos acionistas. Relatório do prefeito Amintas de Barros (1962), p.116. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 55 56
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Figura 05 - Vista da Mina das Mangabeiras desde a crista da Serra na década de 1960. Fonte: APCBH/ASCOM
Jânio Quadros, que sucedera a JK na Presidência da República, recebera meses antes da sua renúncia um relatório que expunha as irregularidades nas concessões para exploração do minério de ferro, incluindo a lavra de Águas Claras, cuja averbação foi cancelada em 1962 a mando do ministro de Minas e Energia, Gabriel Passos, que determinou a desapropriação das lavras cassadas, que passaram a integrar uma sociedade cuja União seria sócia majoritária57. É interessante observar que as investigações conduzidas pela Assembleia Legislativa acerca das irregularidades nas concessões do poder público a Hannaco fora extinta no ano de 1961 sem apresentar resultado algum. Nesse contexto, a cassação da concessão de Águas Claras deu sobrevida ao intocado perfil da Serra do Curral, ao mesmo tempo em que a Cia Novalimense e o seu presidente Lucas Lopes, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do BNDE no governo JK e um dos sócios da Consultec, empresa que prestava serviços à dita Companhia, telegrafou ao presidente João Goulart protestando contra a cassação dos direitos minerais da Companhia, da mesma forma que havia feito o embaixador estadunidense no Brasil Tribunal Federal de Recursos, processo 29.881, 1962; in: MATA MACHADO, 2003, p.30. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 57
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dias antes58 Lincoln Gordon, o embaixador que “sabe fazer amigos”59 que chegou a visitar a capital mineira, sendo recebido pelo Governador Magalhaes Pinto e por diversos segmentos que louvavam a aliança para o progresso, motivo alegado para sua visita à sentinela das jazidas ferruginosas. Em meio ao impasse Hanna/Novalimense, que culminaria com a confirmação jurídica do ato de Gabriel Passos e a busca por alternativas que viabilizassem a exploração, o município solicitou ao DPHAN, no final de 1962, a liberação para exploração da área denominada Mina das Mangabeiras não pertencente ao perímetro abrangido pelo tombamento, para a qual foi atendida positivamente, entrando a mina em funcionamento no ano de 1963 sob a gestão do prefeito Jorge Carone. O ano de 1964 representou uma reviravolta no caso Águas Claras, nacionalizada pelo Governo Federal a partir das irregularidades encontradas quando da liberação da área para exploração mineral. A Cia Novalimense entrou com um novo recurso poucos dias após a derrocada de Jango, visto as mudanças que se vislumbravam no horizonte. E entre mudanças e revogações no Código de Minas, deu-se a associação entre a Hanna e a Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração60 para a exploração das jazidas de ferro pertencentes à primeira, no mês de novembro de 1964. Da associação nasce a Minerações Brasileiras Reunidas S/A (MBR)61 que exploraria a jazida de Águas Claras (Figura 06). Entretanto, nem todas as agressões à serra vinham através da mineração. Em meio à metropolização e a congestão urbana da região central, o tecido urbano da capital começou a se expandir para as partes mais altas do município, alcançando o sopé do paredão da Serra do Curral. No ano de 1966, através do decreto 1.466 foi criado o Parque das Mangabeiras nos terrenos em que a Ferrobel havia apenas iniciado a sua exploração. Com o decreto a companhia entregaria para a iniciativa privada os terrenos de sua propriedade localizados abaixo da Mina das Mangabeiras com a finalidade da construção de um grande loteamento visando às classes mais abastadas da capital.
Ibid., p.30. Revista Três Tempos, 28 de maio de 1962, p.2. 60 MATA MACHADO, 2003, p.37. 61 Formada ainda pelas minerações pertencentes à Hannaco. Os grandes grupos de mineração foram favorecidos a partir de 1967, com a alteração no Código de Minas e a nova Constituição. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 58 59
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Figura 06 - Imagem aérea do ano de 1953 correspondente às jazidas da Ferrobel e Águas Claras. APCBH Gabinete do Prefeito
O enrijecimento da ditadura a partir de 1968 coincidiu com as liberações de exploração das minas pleiteadas há mais de dez anos, incluindo a liberação da lavra das Águas Claras a partir do decreto 62.967 de 10 de julho, cabendo a Cia Novalimense a posse da jazida no ano de 1970. Desse ano até o ano de 1973, ano do início dos trabalhos de exploração, foram realizadas pequenas mudanças no projeto inicial da Hanna, acordos entre a MBR e a Rede Ferroviária Federal para a construção de um ramal e o transporte do minério de ferro, mudanças de diretoria e a absorção oficial da Cia Novalimense pela MBR, visto que tal fato já havia ocorrido oito anos antes. O arquiteto Sergio Porto, em um parecer referente ao tombamento da serra a partir das consultas realizadas pelo 3º Distrito ao então presidente do IPHAN, Renato Soeiro, alegou que o tombamento realizado há pouco mais de dez anos era confuso em relação à área delimitada, recomendando o destombamento para permitir a exploração mineral, visto a impossibilidade de conciliar os interesses privados e a proteção do monumento natural. Nesse ínterim, a Ferrobel celebrou um contrato de venda de minérios com a MBR, comprometendo-se a pagar ao município um royalty de Cr$ 2,00 por tonelada, e o início das atividades da Águas Claras após a conclusão do ramal férreo que ligava a mina ao REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Ramal do Paraopeba na altura da estação de Ibirité foi o ponto de partida para a retomada de uma ferrenha discussão sobre a “remoção da montanha mineira”62. Hugo Werneck, um dos poucos ambientalistas do período, em um momento em que defender o meio ambiente era empreender uma guerra contra o progresso se tornou uma das vozes mais atuantes contra a destruição da serra, chegando a afirmar que o resultado da exploração mineral abriria uma garganta na serra63 desfigurando-a completamente. Em poucos dias, a moldura da capital mineira, tão afamada pelos seus fundadores e construtores e guardiã das águas e dos velhos caminhos coloniais, se desfigurou perante uma cidade indefesa, que bradava nos jornais a sua indignação, como o jornalista Xico Antunes: Dias atrás, por acaso, olhei para a Serra do Curral, a serra da minha infância, que esteve sempre presente em minha vida e levei um susto. A serra não era a mesma, o seu rendilhado, a bela linha sinuosa e escarpada que marca o seu encontro com o azul do céu, nada mais era do que uma reta dura e insensível, insossa e sem alma. Era uma reta, uma reta terrível que, sem dúvida, poluía a beleza do horizonte, mostrando que, muito em breve, Belo Horizonte terá que mudar de nome, pois não terá mais Belo Horizonte. Eram as maquinas terríveis, imensas escavadeiras, transportadoras transistorizadas, caminhões e outros veículos menos votados liquidando com a paisagem da cidade, enchendo o ar da poeira fina e venenosa do minério, poluindo, poluindo, poluindo... (ANTUNES, 1974, p.4).
A proteção oficial, em contraposição à proteção federal, permitiu o rápido desmonte dos 1.800 metros de crista da serra (Figuras 07 e 08), considerados pela MBR “inexpressiva, em face das dimensões do conjunto (...) que se tornará praticamente imperceptível para um observador situado no centro de Belo Horizonte. Assim sendo, pode-se afirmar que o perfil da serra do Curral não será substancialmente alterado” (MATA MACHADO, 2003, p.49). O início das atividades de Águas Claras no ano de 1974 e a rápida supressão da crista curralense acabou por mobilizar a opinião pública de Belo Horizonte, historicamente avessa às perdas ambientais sofridas com o cenário urbano de eterna construção e de uma rápida e desenfreada expansão viária à custa da supressão do verde e das águas de uma cidade antes afamada pela sua coexistência, verdadeira floresta urbana que encantava a todos que a visitavam. Jornal Opinião, fevereiro de 1974, p.7. Ibid., p.7. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 62 63
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Em meio ao cenário desolador, betuminoso, cinzento e agora coberto de poeira
férrea, poucas não eram as vozes que se levantavam em meio à submissão pública e de alguns meios de comunicação. Carlos Drummond de Andrade, ao receber uma matéria publicada no jornal Estado de Minas (1976)64, se despediu da cidade que o recebera em sua juventude através do poema Triste Horizonte, que serviu de alerta para quem ainda ignorava as perdas ambientais sofridas não só pelo município, mas também pelo Estado e pelo próprio país: (...) Fujo da ignóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor. Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano. De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos negócios abafando a litania dos fiéis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens de esperança nos homens pacificados - os doces mineiros que teimam em existir no caos e no tráfico. Em vão tento a escalada. Cassetetes e revólveres me barram a subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar. Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro. Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo. Jeremias me avisa: Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada (DE ANDRADE, 1976).
Figura 07 - Jornais Opinião e O Jornal de Minas (Diário de Minas) nos anos de 1973 e 1974, periódicos que denunciaram os transtornos decorrentes da exploração mineral na Serra do Curral. Fonte: Hemeroteca Histórica de Minas Gerais
Pela jornalista Maria Cristina Bahia Vidigal, impedida de subir a Serra do Curral por um funcionário da MBR no ano de 1976, sob alegação de que a mesma pertencia à companhia, e ainda retrucando à indagação da jornalista, que alegou que a serra pertencia à cidade “pois agora não sobem mais”. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 64
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Figura 08 - Rebaixamento do perfil da Serra do Curral no ano de 1974 visto desde o cruzamento da Avenida Brasil e Rua Cláudio Manoel. Fonte: Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos/ EA-UFMG
Considerações Finais
Importante e imponente, a Serra do Curral e todo o seu complexo, guardiãs das riquezas minerais do Quadrilátero Ferrífero e das melhores reservas de ferro do planeta, repousou por milhões de anos livre da ação antropogênica, que em pouco tempo alterou parcialmente a sua insistente beleza. Danos que as intempéries do ambiente, dentro do processo natural de evolução geológica do planeta, levariam alguns milhares de anos para realizar de forma menos agressiva. A sua beleza cênica e a importância ambiental e simbólica para a região e para o próprio arraial nascido, consolidado e arrasado aos seus pés, levou a Comissão Construtora a valorizar o maciço e os seus arredores, como um importante marco referencial da paisagem, figurando como o limite da cidade planejada, limitada nas cotas mais baixas pelo ribeirão Arrudas, outro importante referencial geográfico.
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O que a CCNC compreendeu e tratou de emoldurar o espaço urbano, acabou por
se perder ao longo das décadas de acentuado crescimento urbano e das mudanças políticas e econômicas no cenário nacional e mesmo mundial. Os valiosíssimos depósitos de ferro do quadrilátero passaram a ser cobiçados pelas grandes potências mundiais, e da mesma forma que o ouro mineiro foi a base do capital necessário para a Revolução Industrial na imperial Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, o ferro viria a alimentar a cobiça imperial armamentista dos Estados Unidos na segunda metade do século XX, desbancando o submisso Reino Unido no direito à exploração mineral no Quadrilátero. Inexistia uma real consciência ambiental no período, e a pressa do Estado em solicitar o tombamento diante da ameaça estrangeira é clara, visto que Juscelino Kubitscheck, então presidente, buscava interceder em todas as esferas com o intuito de desembaraçar as concessões de exploração mineral. Somente à Hanna foram cerca de trinta concessões entre os anos de 1957 e 1958. A partir de uma solicitação oficial, o perímetro do tombamento sugerido por Sylvio de Vasconcellos, ciente da necessidade da proteção de uma grande porção da serra por diversos aspectos, abrangeria uma área de 18 quilômetros de extensão, reduzida por motivos econômicos quando do tombamento, a 1.800 metros, ou seja, o tombamento se restringia a porção que emoldura a capital mineira. Os anos anteriores à instalação da mina caracterizam-se pela minuciosa preparação para a exploração, a base de propagandas, matérias pagas na imprensa e influência política para, entre outras coisas, garantir o destombamento do maciço na porção desejada. O caso Águas Claras pode ser considerado como um exemplo clássico da submissão do poder público aos interesses privados, tanto nacionais quanto estrangeiros, visto que a MBR surgiu de uma fusão entre as empresas de Augusto Trajano de Azevedo Antunes e a Hanna e suas Companhias. As dezenas de concessões do Governo JK à Hanna e a difusão da crença de que o Brasil não tinha condições de exportar e competir no mercado internacional sem a participação estrangeira na exploração, como dito por José Maria Alkmin no ano de 1957, ao justificar as alterações na política de exploração e exportação de minérios, acabou por criar um sentimento na sociedade da imprescindível necessidade da aliança do país com nações que tinham como única meta a exploração desenfreada de um bem cobiçado por todos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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(...) não possuímos posição competitiva no mercado mundial que torne nosso minério de alto forno objeto de preferência pelos grandes consumidores. Para garantir sua colocação em larga escala e por tempo indefinido é indispensável que associemos, a nossas atividades de produtores, os capitais das entidades consumidoras. Para a exportação de grandes massas de minério, são indispensáveis grandes investimentos em mineração, transporte terrestre, transporte portuário e transporte marítimo. Esses investimentos têm que ser, normalmente, vinculados a acordos de fornecimento de minério a longo prazo e à garantia de cambiais para os serviços financeiros respectivos (PEREIRA, 1967, p.55).
Tal sentimento contribuiu para a repulsa às políticas de cunho nacionalista da primeira metade da década de 1960, que acabaram por incorporar ao patrimônio da União as valiosas minas concedidas nos últimos anos da década de 1950. A questão da exploração das jazidas de ferro do Quadrilátero Ferrífero, na qual se insere a Serra do Curral é mais séria do que se imagina. Galeano (2000, p.39) por exemplo, afirma que as minas de ferro foram a causa da queda dos dois presidentes, visto as dificuldades impostas frente aos interesses norte-americanos em manter o seu poderio militar no auge da Guerra Fria. Uma observação plausível, visto que poucos meses após o golpe de 01 de abril de 1964 o então presidente Castelo Branco reintegrou ao grupo Hanna as minas tomadas três anos antes. Nesse contexto a Serra do Curral, apesar do tombamento federal, estava condenada a experimentar em suas entranhas a voracidade ferrífera do momento. A proteção integral acabou por sucumbir frente aos interesses do capital mineral e ao cunho autoritarista do período, que solicitava aos órgãos competentes as alterações necessárias para a exploração das jazidas. Ainda assim foram quase dez anos para o início da exploração das Águas Claras, que alteraria para sempre o maciço símbolo de uma capital nascida aos seus pés, mas que não dava nenhuma importância a sua existência. De fato, até o final da década de 1970 a grande maioria das administrações municipais e estaduais travaram uma guerra aos elementos naturais, nesse caso o maciço da serra do curral. A natureza era vista como um meio que deveria fornecer recursos para o desenvolvimento das sociedades humanas, cedendo espaço para a materialização das grandiosidades da civilização. A promoção do afastamento do meio no qual a humanidade faz parte contribuiu para a visão deturpada que ainda existe nas sociedades atuais, onde a expansão horizontal e vertical dos centros urbanos, sendo Belo Horizonte um exemplo clássico, acabou por gerar lucros fabulosos para poucos, e problemas decorrentes do mau planejamento para muitos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O reconhecimento da proteção federal pelo município na década de 1970 e o
posterior tombamento a nível municipal nas décadas seguintes a partir da mudança da consciência ambiental e patrimonial assegurou a preservação do perfil e das vertentes do maciço, responsáveis há mais de cem anos pelo abastecimento das cidades surgidas ao longo do complexo. No entanto, visto a fragilidade da área protegida, atingida pela especulação imobiliária, exploração mineral e degradação ambiental, a delimitação de um perímetro de entorno publicado pelo IPHAN, sob a Portaria 198 em maio de 2016, figura como uma resistência perante a expansão do tecido urbano dos municípios de Belo Horizonte e Nova Lima. Enfim, resistindo à degradação e às agressões diversas de uma cidade que, em meio à grandiosidade metropolitana, rompeu com os seus elementos naturais, e as pressões do capital privado, a guardiã do Belo Horizonte, memória viva da existência e sentinela da vida agitada dos curralenses do século XXI, a Serra do Curral del Rey é a identidade viva de uma cidade em eterna construção.
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A FORMAÇÃO URBANA DE BELO HORIZONTE O PARQUE MUNICIPAL E O VIADUTO SANTA TEREZA
THE URBAN FORMATION OF BELO HORIZONTE THE MUNICIPAL PARK AND THE SANTA TEREZA VIADUCT
Gabriel Esteves Campos Costa*
Resumo O artigo a seguir pretende provocar a reflexão sobre o espaço urbano, o espaço público e o fenômeno da territorialidade. Discute-se os tipos de sociabilidade e as formas de controle existentes nos espaços públicos da cidade de Belo Horizonte. O artigo pretende, também, mostrar como as prioridades da esfera pública e as políticas de gentrificação influenciaram os dinamismos que transformam a arquitetura urbana da cidade em seus 120 anos. Finalmente, este artigo traz como objeto de pesquisa o cenário da 1ª Seção Urbana, no qual elementos como o Parque Municipal, o Viaduto Santa Tereza, a Praça da Estação e seus entornos, oferecem materiais suficientes para reafirmar que são locais onde as diferenças se tornam públicas e geram confronto social e político. Palavras Chave: Espaço Urbano; Gentrificação; Territorialidade. Abstract The following article aims to provoke reflection on urban space, public space and the phenomenon of territoriality. Discuss the types of sociability and the existing control forms in the public spaces of the city of Belo Horizonte. Show how the priorities of the public sphere and gentrification policies influenced the dynamos that transform the urban architecture of the city in its 120 years. Finally, this article brings as a research object, the setting of the 1st Urban Section, in which elements such as the Municipal Park, the Santa Tereza Viaduct, Station Square and its surroundings, offers enough material to confirm that they are places where the differences became public and generate social and political confrontation. Keywords: Urban Space; Gentrification; Territoriality.
Aluno de graduação do 5º período em História pela UFMG. Estagiário no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Email: ccostagabriel@live.com. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 *
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Considerações Gerais A construção de Belo Horizonte, sendo uma das primeiras capitais planejadas do país, se dá de forma muito particular. Diferente de experiências anteriores de planejamento urbano65, a capital mineira, imaginada no final do século XIX, não falta com suas influências claras do que era o urbanismo à época. Pode-se dizer que coube à Comissão Construtora da Nova Capital, inclusive, pela proporção do projeto, idealizar o rosto da arquitetura urbana do período. Se pudéssemos situar melhor, essas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX foram o cenário propício para uma mudança drástica na concepção de cidade. Durante o século XIX o arraial se encaminhava à decadência, da qual vagaria espaço para se tornar a capital de Minas Gerais, afinal, as qualidades do seu sítio natural de paisagens quase intocadas pelo homem influenciaram muito na decisão da Comissão formada para escolher a localização da nova capital66. Assenta bem ao norte da serra do Curral (...) e um pouco a oeste do vale profundo e jovem do rio das Velhas, onde este emerge das montanhas em seu caminho para o rio São Francisco. Nesta região um nível de planalto a uma elevação de cerca de 1.000 metros encontra-se generalizadamente preservado, com vales largos, abertos, esculpidos abaixo do nível superior a um de cerca de 800 metros. Os rios principais, como o rio das Velhas, fluem através de cânions estreitos e jovens com meandros encaixados nos vales do nível de 800 metros e os tributários dos principais rios estão estendendo seus vales entalhados em V para montante planaltos adentro. A cerca de oito quilômetros a jusante de Sabará, o rio das Velhas recebe pela margem esquerda o ribeirão Arrudas, numa elevação abaixo de 700 metros. Este rio prolongou a sua jovem garganta a uns 14 quilômetros adentro nas terras montanhosas a oeste do rio das Velhas. Mas para além destas, ele corre através de um vale apenas ligeiramente abaixo do nível geral de 800 metros, tendo o característico perfil em V aberto dos jovens formadores. Acima da garganta do ribeirão Arrudas, num vale largo, aberto, imitando uma bacia, que se arqueia dos remanescentes de 1.000 metros em ambos os lados ao nível de 800 metros, no seu eixo, está situada Belo Horizonte (JAMES, 1947, p.1603).
O conceito era de uma cidade que exprimisse conforto. As ruas se cruzavam em ângulos retos e avenidas cortando-as em ângulos de 45º, facilitando o direcionamento e a arborização das vias, as ruas eram largas, as casas espaçosas, praças e rios, além do imponente parque municipal. Notavelmente, apesar de estarmos falando de um projeto grandioso para a época, deve-se admitir que, se comparado à Belo Horizonte de hoje, o projeto original da Salvador (1549), Teresina (1852) e Aracaju (1855) são as três capitais planejadas antes de Belo Horizonte. 66 JULIÃO, L. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna; 1891-1920. Belo Horizonte, 1992, p. 68 (Dissertação, Mestrado em Ciências Políticas). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 65
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Comissão Construtora da Nova Capital compreende uma região muito restrita. Estamos falando de uma organização urbana pequena e simples com um núcleo central delimitado pela Avenida do Contorno, dispondo também de fazendas periféricas responsáveis pelo abastecimento da cidade.
1. A Formação da Zona Urbana Figura 1: Planta Geral da Cidade de Minas
Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
O atual centro da cidade é formado pela 1ª, 2ª, 3ª e 4ª seções urbanas compostas respectivamente por 34, 35, 36 e 34 quadras do projeto da Comissão Construtora da Nova Capital. Especificamente, esse é o cenário no qual nessa discussão tentamos compreender o uso do espaço urbano e suas prioridades. Sendo assim, faz-se a seguir uma breve descrição desse espaço seguindo o projeto de Aarão Reis. Segundo o projeto, a 1ª seção urbana, mesmo sendo ao centro do território, é a principal entrada para a cidade. Sendo o transporte ferroviário o mais eficiente do período, o ramal férreo da 1ª seção urbana, onde hoje funciona o Museu de Artes e Ofícios, recebeu boa parte do material usado na construção da cidade e, após a inauguração da capital, funcionou como uma essencial estação ferroviária. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Logo à entrada, também havia a Praça Rui Barbosa conhecida como Praça da Estação e, ao atravessar o Ribeirão Arrudas pela ponte, tinha-se acesso ao outro lado da praça. Atualmente, ao percebermos a paisagem, notamos que a Avenida dos Andradas cobre o rio e a Praça da Estação foi transformada em uma esplanada. Boa parte das ruas e avenidas do centro da cidade de Belo Horizonte receberam os nomes dos Estados no sentido norte-sul, e os nomes de grandes grupos indígenas no sentido leste-oeste. O projeto da Comissão Construtora priorizou a estratégia que facilita bastante a orientação na região, mas, além disso, a escolha pelo padrão foi também uma tática utilizada para facilitar a arborização das vias. Belo Horizonte recebeu o título de cidade jardim em virtude de a Comissão Construtora imaginar Belo Horizonte como uma capital vergel, com vias completamente arborizadas, um número considerável de praças e jardins e o ambicioso parque municipal. Um cenário, talvez, não familiar para quem conviva com esse espaço atualmente. O Parque Municipal da capital mineira, em seu presente estado, é uma construção imponente. Depois de muitas reformas, o parque conhecido pelo belo-horizontino de hoje seria irreconhecível ao parque imaginado por Paul Villon (1841-1905), renomado paisagista francês, para o projeto da Comissão Construtora. Figura 2: Detalhes Parque Municipal
Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
Os limites do Parque Municipal, segundo o projeto, apresentavam um formato muito diferente da área atual. Um vasto quadrado entre a Avenida Afonso Pena e a REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Avenida do Tocantins (Av. Assis Chateaubriand), Araguaya (Av. Francisco Sales) e Mantiqueira (Av. Alfredo Balena) (Figura 2). Atualmente a parte da Avenida do Tocantins que ladeia o parque foi transformada no Viaduto Santa Tereza, mas muito além dos limites da Avenida dos Andradas e o soterrado rio, o projeto da Comissão Construtora imaginava um ribeirão dentro da área do parque. O formato octogonal idealizado por Paul Villon era mais ambicioso, além do ribeirão, o projeto incluía a saída do ramal férreo também através do parque. Através da Avenida do Tocantins, até onde hoje fica uma parte da Avenida Assis Chateaubriand, o parque se estendia. Na esquina da Avenida Assis Chateaubriand com a Avenida Francisco Sales, apresentada no projeto como Avenida do Araguaya, o parque ocupava uma parte hoje pertencente ao bairro Floresta. A partir da esquina com a Avenida da Mantiqueira, hoje Alfredo Balena, até retornar à Afonso Pena, o parque possuía o território que hoje é ocupado pela área hospitalar e o Campus Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais, onde foi construído o antigo campo do América (Figura 3).
Figura 3: Desmembramentos do Parque Municipal
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Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
É pertinente considerar que todas as mudanças estruturais do parque municipal oferecem materiais o suficiente para alimentarmos a proposta dessa discussão. O desmembramento do Parque Municipal é um reflexo nítido do propósito da cidade se transformando. Uma área de nove quarteirões do bairro Floresta entre a Avenida dos Andradas, Assis Chateaubriand e Francisco Sales provavelmente sequer existiu como Parque Municipal, ou melhor, o que se sabe sobre esse caso é que de fato a área em questão foi incorporada no loteamento do território durante a construção do parque, mas fora desmembrada anos depois. Cedo, o Parque perdeu a área ao norte do Arrudas, na confluência das avenidas Tocantins e Araguaia, hoje Assis Chateaubriand e Francisco Sales, respectivamente. Em 1912, o Prefeito Olinto do Reis Meireles anunciou que estava providenciando o seu fechamento, tendo como limite as margens do ribeirão.67
As áreas ladeadas pela outra margem da Andradas, entre a Avenida Francisco Sales, Alfredo Balena e a Alameda Ezequiel Dias, atual lateral do parque, foram CVRD. Parque Municipal - Crônica de um século. Belo Horizonte: 1992. 132p.: il. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 67
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desmembradas entre 1907 e 1937. Ao todo, a Prefeitura de Belo Horizonte fez 8 desmembramentos da região para o levantamento de edificações da cidade, além de 5 construções erguidas dentro da atual área do parque. Compreender todas as transformações do parque nos permite um bom parâmetro sobre as prioridades da cidade. Mesmo que nosso objeto de pesquisa compreenda uma região muito restrita, com suas particularidades, compreender o que levou a autoridade pública a transformar a cidade nos mostra muito da relação Estado/Cidadão. A partir disso, analisar quais foram as mudanças que interferiram no modo de viver do belohorizontino e a título de que essas transformações foram necessárias.
2. A Avenida, o Parque, o Ribeirão e o Ramal Férreo As intervenções ao projeto da Comissão Construtora começam antes mesmo da cidade estar pronta. Inaugurada em 12 de dezembro de 1897, a Cidade de Minas, que logo viria a se tornar Belo Horizonte em 1901, já não era a mesma apresentada por Aarão Reis no projeto da Comissão Construtora da Nova Capital. Em 1895, pouco mais de um ano após assumir o cargo, Aarão Reis foi substituído pelo engenheiro Francisco de Paula Bicalho, que permanece no cargo até a inauguração, e é responsável por algumas alterações palpáveis dentro do projeto original da Comissão, como por exemplo, atenuar o contraste entre o traçado ortogonal da cidade e o já novo formato orgânico do parque, além da não edificação da maioria das praças projetadas e a concentração dos edifícios públicos. Afinal, como compreender que tivemos uma cidade pronta? Não existe um marco que nos possa fornecer a conclusão da cidade senão sua inauguração. Ainda assim, A cidade de Minas de 1897 aparentava estar muito longe de ser concluída. Ruas de terra batida e sem calçamento, casas vazias, construções, lotes, ausência de serviços básicos e uma população muito menor que o espaço da cidade.
Figura 4: Obras na Cidade
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Fonte: Arquivo Museu Abílio Barreto [Reprodução]
Notavelmente, mesmo depois de inaugurada, logo nos primeiros anos, a cidade já viria a derrubar edifícios, alterar ruas e oferecer serviços de acordo a com necessidade de uma cidade que vinha dando seus primeiros passos para se consolidar como a nova capital do Estado. Torna-se claro que logo após o período de estabilização, a nova capital já apresentava uma série de deficiências de funcionamento. A área em questão apresenta alguns fatores interessantes de serem observados. Logo nas primeiras décadas de existência, a cidade apresentou a necessidade de vias de fluxo mais planejadas. O trajeto do centro comercial para regiões suburbanas sempre foi uma necessidade dos moradores de Belo Horizonte, e o desenvolvimento da cidade implicou diretamente na necessidade de transporte para os cidadãos. Os bondes elétricos são símbolos da memória coletiva do belo-horizontino, pois por muitas décadas foi o meio de transporte mais comum da cidade. Seu crescimento demandou ano após ano a necessidade de rotas para bondes que escoassem e alimentassem o centro indo e vindo das regiões suburbanas. A Avenida do Tocantins funcionava como uma dessas vias que saía do coração do Centro e ia diretamente para os bairros. Por inconveniência do projeto de Aarão Reis, o trajeto da avenida possuía dois obstáculos: o ribeirão Arrudas, solucionado com uma precária ponte, e a saída do Ramal Férreo.
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Figura 5: Antiga Ponte da Avenida do Tocantins
Fonte: Arquivo Museu Abílio Barreto [Reprodução]
A solução só se fez presente diante do projeto de Emílio Baumgart em 1928 quando Belo Horizonte inaugurou o Viaduto da Avenida do Tocantins, hoje conhecido como Viaduto Santa Tereza. É interessante observar que mesmo estando às margens do parque que já havia passado por desmembramentos, a construção do Viaduto não despertou o interesse do poder público em alterar o formato do parque para desobstrução da área, mesmo que tenham havido intervenções em períodos anteriores e posteriores à construção.
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Figura 6: O Viaduto Santa Tereza em 1928
Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
Mesmo assim, podemos considerar o Viaduto da Avenida do Tocantins como um genuíno símbolo do processo de intervenção do espaço urbano. Em 1928, ao fim de sua edificação, o Viaduto que havia sido planejado para desafogar a saída do Centro Comercial para os Bairros, sendo um dos principais acessos dos bondes, vivia uma realidade já diferente do período de seu planejamento. Nessa época, os bondes já dividiam espaço com os automóveis que vinham tomando conta da cidade ano após ano e acidentes não eram incomuns. No mesmo período, o Ramal Férreo funcionava a todo vapor como acesso mais prático à cidade e, além disso, o ribeirão já se apresentava como nem tão conveniente.
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Figura 7: Acidente de Bonde sobre o Viaduto Santa Tereza - 1937
Fonte: Omninbus: Uma História dos Transportes Coletivos de Belo Horizonte. 1996.
O período em questão é importante pela série de obstáculos que a cidade precisou enfrentar diante de seus prematuros problemas, devido ao crescimento populacional pouco planejado. A cidade havia acabado de se afirmar como a capital e até esse ponto o projeto da Comissão Construtora já havia se provado insuficiente. Nessa década, o poder público já havia descartado praças e levantado dezenas de novos edifícios. Inclusive, nessa década, a Praça da Liberdade já havia sido transformada para o atual formato, devido à visita da Família Real da Bélgica em 1920 “(...) os jardins românticos do começo do século foram considerados provincianos demais e tiveram de ser substituídos”.68 Algumas vias de trânsito já haviam sido alteradas, rios já haviam se tornado inconveniências e não tardaria para que canalizações fossem planejadas. A justificativa de que o poder público fazia tais intervenções com o propósito de promover o desenvolvimento da cidade começa a perder o sentido a partir do acelerado processo de urbanização desorganizado.
CVRD. Parque Municipal - Crônica de um século. Belo Horizonte: 1992. 132p.: il. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 68
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As questões mais importantes a serem colocadas nesse ponto da discussão são: a
que custo essas intervenções foram feitas? Quais foram suas consequências? A partir disso, é válido compreender essas intervenções para explicar as situações de calamidade presentes na cidade hoje. Esse texto jamais seria capaz de fazer um panorama tão amplo a ponto de concluir tal estudo. Existem trabalhos muito bem executados de outros profissionais à disposição para compreender esse processo que poderiam enriquecer tal leitura: pesquisas sobre a história da cidade, dos bairros, dos jardins, praças e parques, o processo de desocupação de favelas e edificação de conjuntos habitacionais, curso dos rios da cidade, a arquitetura urbana, a elitização do espaço público, etc.; são exemplos de trabalhos executados sobre a cidade que cooperam para compreender a relação entre a esfera social e o espaço da cidade. Pertinentemente, esse texto se contenta em apresentar o cenário da 1ª seção urbana e como esse espaço urbano interage com a esfera social e se denomina espaço público. A partir disso, tornou-se possível construir o discurso fazendo um panorama dos impactos sociais provocados, observando casos de histórias como a do Parque, da Praça da Estação e do Viaduto que narram diferentes períodos de intervenções no espaço público. O trecho a seguir foi retirado da obra: Um olhar para o século XX: arquitetura civil na área urbana da cidade planejada por Aarão Reis se tratando da 1ª seção urbana. A sua escolha deveu-se principalmente por se tratar de uma região que sofreu intensa transformação durante os mais de cem anos da cidade, portanto foi o espaço de uma enorme variedade de usos, desde os grandes equipamentos urbanos, como a estação ferroviária, o mercado inicial da cidade, em seu lado oposto, até o local das primeiras industrias a se implantarem na cidade. A região sofreu uma mutação muito expressiva, podendo em seu interior ser identificadas construções de todas as épocas da produção do espaço urbano da cidade.69
3. A relação entre o espaço urbano e a sociedade Da mesma maneira que uma reforma em casa altera definitivamente sua vivência nela, qualquer intervenção no espaço urbano gera consequências e afeta diretamente à sociedade. Fundação João Pinheiro: Um olhar para o século XX: arquitetura civil na área urbana da cidade planejada por Aarão Reis - representação dos testemunhos criação de bancos de dados georreferenciados. - Belo Horizonte, 2003. 68 p. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 69
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Mudanças palpáveis o bastante para que a sociedade reaja bem ou mal. Rogério
Proença Leite diz que o espaço urbano só se torna público quando é investido de significação. Quando as ações atribuem sentidos de lugar e pertencimento a certos espaços urbanos, e, de outro modo, essas espacialidades incidem igualmente na construção de sentidos para as ações, os espaços urbanos podem se constituir como espaços públicos: locais onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente. (LEITE, 2002).
O início da década de 40 do Século XX compreende um período de crescente industrialização interna em todo país. Belo Horizonte vivenciou sua segunda explosão populacional nessa época. Isso fez com que os parâmetros da desigualdade social revelassem um abismo entre a elite belo-horizontina e a calamitosa situação de miséria de incontáveis pessoas que chegavam à capital todos os dias a procura de trabalho. O projeto de moradia popular da prefeitura se mostraria ineficiente ao cenário de expansão da pobreza. A cidade passa então a conviver com favelas, todas afastadas do centro, em regiões de fazendas e reservas, como a do Pindura Saia, do Acaba Mundo, a favela do Leitão e mais tarde o Morro do Papagaio, a Cabana do Pai Tomaz e etc. Moradores de rua foram se tornando cada vez mais parte comum do cenário, principalmente nas regiões mais próximas do Centro. Assim, como atualmente, a partir do momento que a desigualdade social produziu esse cenário, a situação dos moradores de rua se tornou um problema para o poder público. A questão que se faz é: qual problema a situação de miséria nas ruas desperta para as forças públicas?
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Figura 8: Moradores de rua debaixo do Viaduto Santa Tereza – 1955
Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
A área que estamos tratando é o lar de incontáveis pessoas em situação de rua. Mais amplamente, deve-se entender que espaços como marquises embaixo de viadutos, pontes, praças, parques, rios são locais que oferecem o mínimo de conforto a pessoas que moram nas ruas e, consequentemente, em grandes cidades, essa situação se intensifica. Incapazes de resolver os problemas de moradia, as ações postas em prática foram a de cercear, perseguir e dispersar concentrações de moradores de rua na capital. Esse processo de gentrificação pode ser observado em diferentes intervenções do espaço urbano. O objetivo do fenômeno da gentrificação é a higienização do local, visando recuperar o valor imobiliário e revitalizar o aspecto da área, podendo até dizer que as medidas impostas através das décadas pelo poder público tem a intenção de elitizar o espaço urbano e limpar o local de suas identidades. A higienização urbana vai muito além de intervenções diretas aos moradores de ruas. Ações como a transformação da Praça da Estação em um estacionamento em meados dos anos 70 e, posteriormente, em uma esplanada em 2004, são exemplos claros do empenho do Poder Público em transformar os espaços em locais de passagem, impedindo a aglomeração. Além disso, podemos observar vários projetos de intervenção do espaço na região que muito indicam esse propósito. Como por exemplo, a construção de um depósito da prefeitura ocupando a baixada do Viaduto Santa Tereza. O projeto de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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um posto de combustível que inclui bombas, um estacionamento, lavagem e oficina, em 1948 que ocuparia toda a baixada do viaduto ao lado do parque também evidencia a verdadeira intenção do poder público. Aparentemente, este projeto não foi posto em prática. A seguir, é perceptível na imagem o posto de combustível que incluiria um estacionamento, lavagem e oficina. Figura 9: Projeto de Posto de Combustível sob o Viaduto Santa Tereza – 1948
Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
Há diversos projetos de edificações para ocupar os baixios de viadutos da cidade, como o exemplo de um restaurante que pudesse ocupar completamente o baixio de um viaduto não identificado, que poderia ser, inclusive, para o Viaduto Santa Tereza. A desocupação dos comerciantes que trabalhavam precariamente dentro do abrigo de bondes Santa Tereza, onde hoje é o Mercado das Flores, na esquina entre a Avenida Afonso Pena e a Rua da Bahia, em meados dos anos 60, é outra medida que transparece bastante certa perseguição a grupos indesejados e desassistidos da sociedade. O Prefeito Oswaldo Pieruccetti (1909-1990), a título de um projeto de revitalização da cidade, lançou o Nova BH 66, responsável por uma série de medidas e intervenções controversas. Ao mesmo ritmo que asfaltava vias e revitalizava monumentos, o projeto foi responsável pela canalização de rios e desocupações: traços de uma cidade que vinha perpetuando seus problemas com a sociedade no mesmo passo que se tornava uma metrópole.
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Figura 10: Desocupação de Comerciantes do Abrigo de Bondes Santa Tereza
Fonte: Arquivo Público da Cidade Belo Horizonte
Quanto mais nos aproximarmos do tempo presente mais intensa ficará essa repressão, e os casos se multiplicam enquanto a desigualdade aumenta. Os anos mais recentes da história do Viaduto Santa Tereza registram casos que se poderiam se comparar aos relatados aqui se não fosse pela escala muito maior e por uma repressão muito mais marcante. Atualmente, a baixada do Viaduto Santa Tereza e seu entorno ainda concentram um aglomerado volumoso de moradores de rua que vivem desse espaço, que também acabou se tornando sede principal da maior expressão do movimento Hip Hop na cidade, projetando artistas como Mc’s, Grafiteiros, skatistas, dançarinos, poetas, etc. para o mundo. Eventos como o Duelo de Mc’s e o Game of Skate são idealizados e realizados pelo coletivo Família de Rua, junto com a resistência de incontáveis artistas que persistem em deixar suas marcas no espaço, mesmo que entre as insistentes camadas de tinta cinza que o poder público acredita ser mais apropriado ao espaço. O princípio da territorialidade se dá muito mais ao caso cultural do que físico. Seja qualquer indivíduo, ou grupo, que ocupe um determinado local dando uma determinada identidade a ele, pelo modo como o indivíduo ou grupo age naquele território. Essa identidade que determinado local recebe de acordo com as pessoas que o frequentam se denomina territorialidade.
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Figura 11: Duelo de Mc’S
Fonte: Acervo Pessoal
O Viaduto Santa Tereza possui uma história de resistência que vai além de seu valor como simples edificação. Ao ultrapassar das décadas, a cidade teve diferentes propósitos e consequentemente o cenário se alterou com o tempo. O Viaduto Santa Tereza é um espaço resultado da intervenção do espaço da cidade e as pessoas que por ali convivem, construíram, a partir disso, a identidade do local. Identidade essa fundamentada por uma história de descaso social e de resistência, formando ali um genuíno espaço de ocupação. Incomparavelmente às intervenções do poder público que aconteceram ali, o que impressiona é que esse espaço foi ocupado pela sociedade, que dirige suas próprias intervenções no local e define o propósito daquele espaço. A territorialidade atribuída a certos locais como o Viaduto Santa Tereza devido às ocupações dos espaços públicos por grupos marginais da sociedade não é bem vista pela comunidade local e, por consequência, torna-se um problema para o poder público. Os processos de gentrificação que pretendem “higienizar” esses locais, privando determinadas territorialidades, podem ser observadas no caso do Viaduto. Os grupos que ocupam o local e dão identidade a ele enfrentam barreiras que dificultam o mantimento de suas manifestações artísticas, como a tentativa da prefeitura de cobrar 33 mil por ano para a execução do Duelo de Mc’s e, principalmente, o fechamento do Viaduto às vésperas da Copa do Mundo tentando dissolver esses grupos.
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Considerações finais Em uma pesquisa realizada anteriormente, intitulada Viaduto Santa Tereza: De quem e para quem, a equipe da pesquisa procurou observar o Viaduto Santa Tereza como espaço público, identificar os grupos que frequentam o espaço e apontar as possibilidades de uma construção dos grupos na identidade com o lugar. Analisar a avaliação do impacto sobre as ações para com o viaduto e também com o bairro, também, analisar os sentidos e significados do lugar para o viaduto e para os grupos que o frequentam. Através deste trabalho, do qual tive o prazer de construir com um grupo dedicado de alunos da graduação do curso de História e Letras da PUC Minas, em parceria com alunos da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas, também resultou na produção de um documentário sobre as histórias conhecidas nos movimentos debaixo do Viaduto, também intitulado Viaduto Santa Tereza: De quem e para quem. O documentário se encontra no YouTube e na página oficial do projeto no Facebook. Com o acesso ao Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, enquanto estudante do curso de História, esse trabalho pode tomar novas perspectivas. O acervo cartográfico, textual e audiovisual do arquivo permitiu novas leituras sobre a história dos espaços da cidade. Sendo assim, tornou-se possível essa produção na qual procurei explicitar os aspectos do processo de ocupação e uso destes espaços ao longo do desenvolvimento da cidade e, a partir disso, discorrer sobre as problemáticas apresentadas no texto sobre espaço urbano, público, territorialidade e gentrificação. Referências Acervos Documentais ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital. Disponível em: <www.acervoarquivopublico.pbh.gov.br> Acesso em: 31 ago. 2017. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Acervo Iconográfico. <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 31 ago. 2017.
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Livros, teses, fontes digitais e impressas AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Conhecer o arraial de Belo Horizonte para projetar a cidade de Minas: a Planta Topográfica e Cadastral da área destinada à Cidade de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O "PROJETO LAGOINHA" NA CIDADE DE BELO HORIZONTE: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NAS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO (DÉCADA DE 1990)
EL “PROYECTO LAGUNA" EN LA CIUDAD DE BELO HORIZONTE: MEMORIA Y OLVIDO EN LAS CONMEMORACIONES DEL CENTENARIO (DÉCADA DE 1990)
Renata Lopes*
Resumo Esse artigo procura analisar a construção da memória e o esquecimento do bairro Lagoinha no contexto das comemorações do centenário de Belo Horizonte. Para realizar essa proposta tomou-se como objeto o Projeto Lagoinha, idealizado em 1994 pelo prefeito da cidade, Patrus Ananias. O projeto tinha como objetivo realizar a requalificação do bairro em seus aspectos físicos, econômicos, ressignificar os aspectos culturais e a própria memória do lugar. Como fontes foram utilizadas as matérias dos jornais Estado de Minas e Hoje em Dia, que repercutiram a proposta, a implementação e o fechamento do projeto. Pôde-se verificar que o Projeto Lagoinha não foi executado da forma proposta, sendo finalizado sem que suas ações fossem completamente concluídas. Palavras-chave: Projeto Lagoinha; Memória; Centenário de Belo Horizonte.
Resumen Este artículo busca analizar la construcción de la memoria y el olvido del barrio Lagoinha en el contexto de las conmemoraciones del centenario de Belo Horizonte. Para realizar esa propuesta se tomó como objeto el Proyecto Lagoinha, idealizado en 1994 por el *
Licenciada em História. Professora renatalopespinto01@gmail.com. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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alcalde de la ciudad, Patrus Ananias. El proyecto tenía como objetivo realizar la recalificación del barrio en sus aspectos físicos, económicos, resignificar los aspectos culturales y la propia memoria del lugar. Como fuentes se utilizaron las materias de los periódicos Estado de Minas y Hoy en día, que repercutieron la propuesta, la implementación y el cierre del proyecto. Se pudo comprobar que el Proyecto Lagoinha no fue ejecutado de la forma propuesta, siendo finalizado sin que sus acciones fueran completamente concluidas Palabras clave: Proyecto Lagoinha; Memoria; Centenario de Belo Horizonte.
1. Introdução O bairro Lagoinha, situado na região noroeste da cidade de Belo Horizonte, tem um significado diferente para a história da cidade no que se refere à sua importância no contexto de construção e nos anos que se seguiram à inauguração da nova capital de Minas Gerais. Diferentemente dos bairros que ficaram circunscritos à Avenida do Contorno e que se destinaram às residências dos funcionários públicos e de governantes, o bairro abrigou empregados, empreiteiros, migrantes, imigrantes, uma diversidade de pessoas com seus ofícios que vieram trabalhar na construção de Belo Horizonte. Muitas modificações urbanas ocorridas desde a década de 1970, como construção de viadutos, a abertura de avenidas e a demolição de praças, fizeram com que a Lagoinha se transformasse. A região acabou perdendo espaços de sociabilidade, o que resultou em certo esquecimento da sociedade e do poder público ao longo do tempo. Berman (1982) sintetiza em seu texto, a chegada da modernidade no Bronx, Estados Unidos, entre 1950/1960, com demolições e construções de vias expressas chefiadas pelo prefeito Robert Moses. De modo semelhante, as transformações ocorridas na Lagoinha, podem ser entendidas como mecanismos de implantação da modernidade. No contexto de comemoração do centenário de Belo Horizonte, o Projeto Lagoinha foi criado com o objetivo de realizar a requalificação integrada do bairro. Esse programa foi proposto e implementado durante a gestão do prefeito Patrus Ananias (1993-1996) e suas propostas iam promover o bem-estar dos moradores, melhorar as condições de moradia, impulsionar a economia local, valorizar as identidades culturais, promover a recuperação dos espaços públicos e dos imóveis do bairro, estabelecendo, para tanto, uma intrínseca relação com a memória coletiva do lugar. Para Patrus [...] Essa
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obra vai resgatar a história deste bairro e propiciar o crescimento das atividades econômicas na região”, declarou. (ESTADO DE MINAS, 1995).
Nesse ínterim, a imprensa escrita registrou o que ocorria, desde o seu lançamento pela prefeitura até o seu encerramento, abordando as diferentes propostas encampadas pelo projeto. Nesses registros, foi possível verificar que a municipalidade buscou a repercussão das comemorações na grande mídia (jornais, rádio, programas de televisão, entre outros) por meio de propagandas, notícias e entrevistas sobre o Projeto. Por sua vez, jornais de circulação na época, também cobriram a comemoração do centenário, mostrando o andamento do projeto, seus avanços e suas contradições. Dessa maneira, será analisado o impacto do Projeto Lagoinha no bairro e sua recepção por diferentes públicos locais, por meio dos debates presentes nos jornais Estado de Minas e Hoje em Dia, buscando verificar a efetividade das ações propostas pela Prefeitura de Belo Horizonte, dentro das comemorações do Centenário da cidade, bem como identificar as reminiscências sobre o bairro até o final da década de 1990.
2. Da construção de Belo Horizonte aos dias atuais: um panorama sobre o bairro Lagoinha
Há cento e vinte anos, a capital de Minas Gerais deixava de ser a antiga Ouro Preto e era transferida para uma cidade nova. Belo Horizonte foi planejada em um contexto republicano, no qual se desejava romper com as tradições monárquicas. A nova Capital de Minas foi projetada e construída na transição entre Império e República, buscando romper com o tradicionalismo herdado da monarquia. A cidade foi edificada nos moldes de Paris, La Plata e Washington para ser moderna, arrojada e inovadora. Cabe ainda ressaltar o higienismo, organização das ruas, avenidas e setorização da cidade como marcas do projeto da Comissão Construtora70. A construção de uma nova capital, localizada no centro geográfico do estado facilitaria o governo, na medida em que possibilitava a comunicação entre as distintas regiões do estado. A proposta republicana desejava promover o progresso de Minas 70
A comissão Construtora foi instituída pelo decreto nº 680 pelo governo do Estado de Minas Geras, em 1894, onde a comissão seria dirigida pelo Engenheiro Aarão Reis. Fonte: <https://goo.gl/qeTVnz > acesso em 10 out 2016. às 15:10. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Gerais, tornando o estado industrializado e desenvolvido economicamente, o que seria inviável sendo Ouro Preto a capital, uma vez que não apresentava as condições necessárias, seja do ponto de vista estrutural/espaço físico, seja do ponto de vista ideológico. Podemos verificar na Planta Cadastral de Belo Horizonte a disposição das ruas do centro de Belo Horizonte e a Avenida do Contorno separando a região central da cidade das Colônias Agrícolas e também o bairro Lagoinha. A região suburbana, na época do plano urbanístico de Aarão Reis, ainda não havia sido planejada nas mesmas proporções que a região central. A proposta era de que esse espaço fosse ocupado posteriormente, sendo necessário um planejamento urbano no futuro. Por sua vez, as áreas rurais eram compostas por cinco colônias agrícolas, com diversas chácaras e tinham como
função
principal
o
abastecimento
da
cidade
com
gêneros
hortifrutigranjeiros. A dimensão do delineamento da nova capital mineira foi muito importante, além de se tratar de uma cidade-capital, sede do poder político, ela deveria também expressar o novo Brasil que se pretendia construir com a República. No entanto, os bairros atualmente chamados de pericentrais, foram emergindo de acordo com a necessidade de ocupação e moradia da população, que chegava para trabalhar ou mesmo por aqueles que foram desapropriados no início das obras. O bairro Lagoinha, objeto deste estudo, é um exemplo dessa situação. A ocupação da Lagoinha se deu em conjunto à execução do projeto da nova capital. O bairro foi construído com características tipicamente de periferia e seu entorno era formado pelas fazendas do Pastinho e dos Menezes. Sabe-se ainda, que havia uma área pantanosa próxima onde hoje está situado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI, na Av. Presidente Antônio Carlos, sendo esse o motivo pelo qual o bairro recebeu esse apelido “Lagoinha” conforme pontua Abílio Barreto:
O nome deste bairro é mais antigo do que o próprio arraial de Curral Del Rei, conforme tivemos ensejo de ver pela carta de sesmaria de João Leite da Silva Ortiz, pois na designação da divisa das terras concedidas àquele bandeirante, no cercado, já o local figurava com o nome de Lagoinha, que assim se chamou pelo fato de ter existido ali, outrora, uma lagoa mais ou menos no local em que hoje ficam as ruas Diamantina, Itapecerica, Adalberto Ferraz e Formiga (BARRETO, 1995, p. 270). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Nos bairros periféricos as ocupações ocorreram de maneira desordenada, sendo
constituídos de ruas estreitas e tortuosas, distintas do centro, que eram geometricamente traçadas, apresentando definições sociais e administrativas delimitadas. A Lagoinha seria local de moradia de pessoas desempregadas e pertencentes às classes de nível econômico baixo, bem como de empregados da construção da capital, pequenos comerciantes e prestadores de serviços de ofícios diversos. A Lagoinha passou por transformações físicas, estruturais e sociais71 ao longo do processo de crescimento urbano de Belo Horizonte. O bairro inicialmente participou do abastecimento da cidade, estando entre o centro e a colônia agrícola Carlos Prates. Nele foi construído o primeiro Mercado Municipal da capital, montado nos anos de 1899 e 1900. A iluminação e o transporte foram instalados na Lagoinha por volta do ano de 1909 deixando a população um pouco mais confortável. Entretanto, o serviço de fornecimento de água foi instalado somente em 1930 em substituição aos chafarizes públicos existentes. Diante disso, a população da região se viu com uma melhor qualidade de vida, devido à disponibilidade de recursos básicos inseridos na área, onde a situação de marginalização e excluídos na dinâmica da cidade foram amenizadas. Ainda nesse contexto, em 1929 houve a implantação do serviço de auto-ônibus com oito linhas, sendo que uma delas atendia a região da Lagoinha. Pode-se perceber que problemas de transporte coletivo persistiram ao longo da década de 1990, conforme as seguintes passagens:
Mesmo vendo com bons olhos a possibilidade de reforma na região, Caetano argumenta que depois que acabaram com a praça Vaz de Melo para a construção do Complexo Viário da Lagoinha, o bairro nunca piorou tanto. Ele reclama da falta de ônibus nas ruas próximas a sua casa, mas se mostra feliz com a constante movimentação de pessoas na região (ESTADO DE MINAS, 1994).
Para Cláudia o fato de haver apenas três linhas de ônibus que atendem a Lagoinha é uma prova do descaso com a região. Não há conexão entre elas, o que provoca desarticulação interna. E o pior, ressalta a arquiteta somente a
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Para verificar mais informações sobre os impactos sofridos e a recuperação do bairro Lagoinha, consultar Machado, 1997, p. 40 – 46. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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partir de 1950, telefone, esgoto, coleta de lixo e as linhas de ônibus. “Nada foi feito diretamente para a região”, finaliza (HOJE EM DIA,1997).
Como se pode observar, a existência de uma modernidade paradoxal, implementada apenas em um plano discursivo, abrangendo o que estava dentro dos limites da Avenida do Contorno. Essa modernidade não estaria “disponível” a qualquer morador da cidade, e sim a alguns que poderiam pagar por ela. Sendo assim, as regiões periféricas receberam poucos investimentos de infraestrutura, tais como saneamento e transporte. Na década de 1930, a capital passava por um período de desenvolvimento, com a implantação de indústrias ligadas à metalurgia, siderurgia e bens de consumo, com expressivo crescimento econômico. Nesse momento, a região da Pampulha recebeu um dos primeiros investimentos para o estabelecimento do primeiro aeroporto da metrópole. O Aeroporto Carlos Drummond de Andrade, mais conhecido como Aeroporto da Pampulha, foi inaugurado em 1933, com acesso pela “Estrada Velha da Pampulha”. Essa via cortava a Lagoinha e recebeu calçamento em 1937, tornando o acesso à região norte e ao aeroporto ainda mais fácil. (FREIRE, 2009). As intervenções realizadas para fluidez do tráfego foram realizadas na medida em que a população adensava. Em 1948, foi iniciada a construção do túnel LagoinhaConcórdia (Túnel Souza Lima) concluído apenas em 1971, ligando o centro de Belo Horizonte à região Noroeste, como medida para desafogar os viadutos da Floresta e Santa Tereza (FREIRE, 2009). Todas essas interferências viárias deixaram o bairro muito descaracterizado de sua formação original, logicamente que, ao longo do tempo, as mudanças ocorrem naturalmente, neste caso, houve um aceleramento deste processo, além de ter sido realizada não pelos moradores e sim pelo poder público. Assim, as “melhorias” para a cidade acabaram por deteriorar a rotina dos moradores do bairro Lagoinha.
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Figura 1: Multilações na Lagoinha. 1973/1994/1999/2008. Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte. Lagoinha em estudo: análise diagnóstico-propositiva do Bairro Lagoinha em Belo Horizonte, 2011.
Tais modificações acabaram por alterar a paisagem do bairro. A Praça Vaz de Melo que constituía um quarteirão entre a Ferrovia e a Av. Pres. Antônio Carlos também passou por transformações, como a construção de viadutos, alargamento e fechamento de vias, construção do metrô de superfície, entre outros. Conhecida por ser reduto do baixo meretrício e dos boêmios de segunda classe, a praça teria sido batizada em homenagem a um dos principais comerciantes do local, Guilherme Vaz de Melo. A Lagoinha foi considerada um dos berços do samba em Belo Horizonte, sendo que dessa época é que vem a designação do popular “copo lagoinha”, atribuído a um modelo comum de copo de vidro muito usado nos botequins e rodas de samba tradicionais da região.
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Figura 2: Praça Vaz de Melo. Fonte: Revista Cruzeiro, 1960.
Figura 3: Local onde estava localizada a Praça Vaz de Melo. Fonte: Google.
Na década de 1950 o bairro Lagoinha era ponto de encontro de seresteiros, dançarinos e amantes da noite de Belo Horizonte. Conviviam com o comércio, botequins sempre abertos e cheios, pensões, com ribeirão Arrudas, o mercado, o barulho do trem do subúrbio, os cinemas Paisandu, Mauá e São Geraldo. O bairro tipicamente suburbano tinha as suas mazelas, mas a população encontrava espaços de sociabilidade para compartilharem a vida, não apenas moradores, mas frequentadores, que por motivos diversos encontravam na Lagoinha um ambiente acolhedor. Os contrastes chamavam atenção, as mulheres e moças iam à missa e preparavam quermesses na Igreja de Nossa Senhora da Conceição e faziam compras no Mercado da Lagoinha. Os homens e rapazes se encontravam para jogos no antigo campo do Pitangui para jogos entre Fluminense e Terrestre. Enquanto isso aconteciam os preparativos para o desfile de carnaval do bloco “O leão da Lagoinha”. Ainda, na mesma região as casas de prostituição ofereciam os seus serviços. Podemos observar que a região era viva, com diversas manifestações culturais e apropriações, onde a comunidade procurava conviver, talvez não de maneira totalmente harmônica, mas havia aceitação entre eles.
[...] A Lagoinha é familiar, conservadora e religiosa. Mas também reduto do baixo meretrício, região onde trabalham prostitutas e travestis, um gueto dos marginalizados. [...] “Você falava em praça Vaz de Melo e pensava logo em mulher e prostituição. Tudo quanto era marginal frequentava a Lagoinha”. [...] As declarações do pároco da igreja Nossa Senhoras das Graças, Padre Cândido Santiago [...] “Quando cheguei á Lagoinha, em 1950, a prostituição estava em toda a parte e o bairro era mal falado. Verifiquei que não havia razão para tanto. Havia a prostituição, mas tirando isso era uma bairro completamente normal. [...] O que ocorre ali e a convivência, no mesmo espaço geográfico, entre segmentos sociais conservadores, religiosos, com marcante espírito familiar e elementos contraventores, como a boemia e a prostituição. E essa coexistência, é “pacifica e harmoniosa”. (ESTADO DE MINAS, 1997) REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Figura 4: Desfile do bloco de carnaval “O Leão da Lagoinha” (1950/1960). Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto
Figura 5: Mercado da Lagoinha (Mar/1960). Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto
A partir da década de 1960 a boemia começava a perder espaço. As tradicionais rodas de samba e os redutos de baixo meretrício deram lugar a casas de família. O convívio entre as duas realidades delineava a trajetória do bairro, sendo construída de uma imagem harmônica em meio à diversidade. Ainda podemos citar os personagens lendários que fizeram parte da história da Lagoinha como Maria Tomba Homem, uma prostituta que não perdia uma briga entre policiais e valentões, Cintura Fina, uma travesti que fazia “ponto” na região e andava sempre com sua navalha. O declínio da Lagoinha como zona boêmia teve início na década de 1970, principalmente, após a construção do túnel Lagoinha – Concórdia duplicado em 1984. Esse declínio aprofundou-se com a chegada do trem metropolitano e as plataformas de embarque e desembarque posicionadas atrás da rodoviária. Após a demolição da Praça Vaz de Melo, a boemia acabou se dispersando, a intensidade comercial diminuiu e a vida social também foi diluída permanecendo a saudade dos frequentadores e as memórias dos acontecimentos. A Lagoinha recebeu diversas homenagens como os versos do músico e poeta Gervásio Horta: “Adeus Lagoinha, adeus; estão levando o que resta de mim; dizem que é à força do progresso; um minuto eu peço, para ver seu fim”.
“A turma ficava tomando sempre tragos ali, porque os dancings só funcionavam às dez da noite. Ficavam nas ruas Guaicurus, São Paulo e Curitiba, disse. Horta tem lembrança de que ali era região da Hilda Furacão, do Cintura Fina e da Maria Tomba Homem [...] Sobre o copo Lagoinha, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Gervásio acha que ele surgiu naquela reigião, mas não tem dados para comprovar. “É um copo de vidro com ranhuras”, disse. (HOJE EM DIA, 1997)
Em 1997, Belo Horizonte completaria seu centenário, o que trouxe ao poder público municipal a oportunidade de (re)avaliar “os acontecimentos passados, a avaliação dos feitos presentes e a perspectiva de realizações futuras” (MOTTA, 1992), ou seja, aproveitar o momento de comemoração para lançar propagandas positivas sobre a cidade remetendo ao passado de planejamento, o desenvolvimento e novas propostas de aprimoramento da capital. Para a comemoração do centenário da cidade, o poder público municipal produziu uma série de atividades, ações, organização e divulgação dessa efeméride. A data foi muito esperada e promovida por prefeitos de três mandatos: iniciou-se com Eduardo Azeredo (1990–1992), que focou as comemorações na Praça da Liberdade, constituindo-a como espaço de representação de memória. Naquele momento foi criado o Conselho de Municipal do Patrimônio. Patrus Ananias (1993–1996) buscou realizar levantamento junto à população de demandas a serem cumpridas pelo poder público municipal com o “Orçamento Participativo”. Em seu mandato, foi elaborada a comissão “BH cem anos”, além de terem sido criados projetos a serem concluídos após o seu mandado; e no governo de Célio de Castro (1997–2000 e 2001 – 2002) foi elaborado o calendário de eventos para a comemoração do centenário. 3. O centenário da capital e o Projeto Lagoinha O que significa comemorar? Trazer à memória, fazer recordar, festejar com comemoração. No intuito de festejar o aniversário da cidade sobressai a ideia de monumentalizar. Na comemoração do centenário da capital mineira, o bairro Lagoinha foi um dos espaços tomados como monumento da cidade. Nesse sentido, ao colocar o centenário em voga, a Lagoinha emerge como símbolo de identificação coletiva. A prefeitura publicizou o aniversário buscando “organizar o espaço público em um processo de constituição de identidade que implica tanto no acentuar dos traços de semelhança e homogeneidade” (MOTTA, 1992). Assim, definindo o que é comum ao grupo, a memória coletiva “reforça as fronteiras socioculturais e se torna, pois, um ingrediente básico da identidade nacional” (MOTTA, 1992). Nesse caso, podemos REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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dizer que se reforça a identidade regional, pois ao valorizar a região, o poder público
municipal (re)construiria a imagem moderna da construção da cidade e traria identificação dos belorizontinos com aquele espaço. O Programa de Reabilitação Integrada iniciou-se três anos antes das comemorações do centenário, no intuito de revitalizar o bairro, por meio da construção de uma memória afetiva de seus moradores e da cidade como um todo. A Lagoinha requalificada seria harmônica como a cidade que fora planejada de acordo com os pressupostos modernos de sua construção ou a Lagoinha seria um “não lugar” que mesmo contra a vontade de setores da sociedade existia. Nesse sentido, ao longo desse texto compreendemos que o Projeto Lagoinha buscou fundar a memória da Lagoinha e nela instaurar seus lugares de memória. De acordo com Pierre Nora:
O lugar de memória supõe, para início de jogo, a justaposição de duas ordens de realidades: uma realidade tangível e apreensível, às vezes material, às vezes menos, inscrita no espaço, no tempo, na linguagem, na tradição, e uma realidade puramente simbólica, portadora de uma história. A noção é feita para englobar ao mesmo tempo os objetos físicos e os objetos simbólicos, com base em que eles tenham ‘qualquer coisa’ em comum (NORA, 1997, p. 226).
Como forma de materialidade da memória, a rememoração de eventos, lugares e cultura do bairro, evidencia o resgate da reminiscência. Devido às diversas intervenções que modificaram não só o espaço físico do bairro Lagoinha, mas também os espaços de sociabilidade como a Praça Vaz de Melo, que foi demolida, o Mercado da Lagoinha, a Feira de Amostras, o ginásio do Paissandu, o Mercado Mauá, o Cine São Geraldo, entre outros, além de interferir em seu cotidiano, interferiu diretamente no acesso e convívio de seus moradores. Ao trazer novas perspectivas sobre a revitalização do espaço, as memórias afetivas emergem ao monumentalizar momentos vividos na história da região.
(...) discurso que comemora um fato caro a determinado grupo social ou comunidade. O monumento, assim, busca tornar viva a memória de algo importante e identitário socialmente. Nesse caso, ele tem, necessariamente, como mediadores a memória construída e a história (MENESES, 2006, p.31).
Pode-se dizer que o espaço físico material estava sendo utilizado como suporte para a consolidação de uma memória coletiva imaterial, em que a monumentalização REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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do bairro Lagoinha traria um lugar de memória como suporte da comemoração do centenário. Então, o ritual de comemorar o aniversário traz lembranças não apenas do bairro, mas da cidade como um todo. A sociedade, ao se identificar com o lugar de memória, está reafirmando suas lembranças que ora foram deixadas de lado. Esses lugares de memória, segundo Nora (1993), seriam locais físicos, institucionais e simbólicos, a partir dos quais, a sociedade contemporânea experimentaria um efeito de unificação diante de um mundo cada vez mais fragmentado, fruto da crise dos paradigmas modernos. A partir da experiência de uso desses "lugares" e das interpretações difundidas por eles, os membros de uma comunidade se reconheceriam como agentes de seu tempo. A sua requalificação está ligada ao discurso modernizador do Centenário da cidade que precisa de uma “vitrine” para demonstrar que consegue melhorar/dinamizar facilmente áreas degradadas, fazendo sua projeção no cenário nacional. O mesmo discurso da fundação da cidade prossegue, atravessa o século e é usado como alicerce para renovar o bairro Lagoinha e transformá-lo em um local de visitação agradável. Diante o exposto, entendemos que a noção de "lugares de memória" e sua associação com o sentido político e simbólico do ato de comemorar podem ser úteis para analisarmos o processo de revitalização da Lagoinha, proposto durante as comemorações do Centenário de Belo Horizonte. De acordo com Halbwachs (2004) “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos”. Dessa forma, a memória individual não deixa de existir, mas acaba se convertendo em conjunto de fatos compartilhados, passando de individual para coletiva, assim como “na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver lugares de apoio da memória, que são os lugares de comemoração” (POLLACK,1992).
A "construção" de uma nova identidade para a Lagoinha, promovida pela requalificação e apagamento de algumas lembranças "incômodas" integrou, naquele momento, um projeto que visou afirmar uma modernidade da cidade que não coadunava com a antiga boemia do bairro periférico. Dessa maneira, o poder público buscou elementos para ressignificar sua história, seu passado e sua memória, procurando refletir sobre a necessidade de proteger as características que lhe são próprias. Pode-se destacar
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que no período da década de 1990, existe uma circulação de ideias e discussões sobre políticas de preservação de bens materiais e imateriais em todo o país. A notoriedade da comemoração deveria estar presente nos moradores da cidade, refletida na memória coletiva, assim o significado de ser integrante da efeméride, faria sentido a todos, deixando o esquecimento de lado nesse momento. O centenário trouxe à tona olhares diversificados sobre a cidade, sobre aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais, em que não só os moradores, mas os cidadãos de modo geral voltam suas expectativas para algo monumental. Nesse caso, a memória oficial da
sociedade mais ampla foi permeada de expressões consolidadas em um passado coletivo, no qual a comemoração do centenário tem importância significativa para a memória coletiva do lugar: O aniversário ganha corpo na medida em que ele é pronunciado por alguém e se torna construção intersubjetiva. Podemos dizer que ele é fruto de um duplo contar: um “contar” o tempo, a partir do estabelecimento de marcações, mas também um “contar” aos outros, anunciar, partilhar um sentido e uma informação (SILVA; FRANÇA, 1997, p.1).
Percebe-se que houve grande movimentação da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) em realizar festas, propagandas e outros eventos envolvendo as festividades do centenário. Durante governo de Célio de Castro, foram disponibilizados recursos significativos72 para a mobilização da cidade em torno das comemorações do Centenário, mantendo o foco dos aparelhos da administração nas festividades. Como se observa as três administrações municipais buscavam celebrar o centenário de Belo Horizonte, no entanto, não houve prosseguimento aos projetos desenvolvidos ao longo dos mandatos. Fica evidente a gradativa construção de uma discussão em torno da (re)valorização da história, da memória e do reconhecimento do patrimônio cultural da cidade. Os eventos buscavam trazer notoriedade e enaltecimento para a “Capital do Século”. A primeira parte do Projeto Lagoinha foi redigida pelo escritor e jornalista José Maria Cançado73. O autor disserta sobre ambiguidades do local, como o contraste da 72
Dados retirados Relatório de Atividades da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte de 1997. Disponíveis em: https://goo.gl/1nuCX8. Acesso: 5 set 2016 às 14:20. 73 José Maria Cançado, mineiro de Belo Horizonte, era jornalista e foi secretário-adjunto de Cultura de Belo Horizonte em 1993, no governo de Patrus Ananias. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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boêmia e da religiosidade, do tradicionalismo familiar e dos bares. Cançado (1994),
apesar de seu lugar de escrita, traz consigo certo sentimento pela região transparecida em suas palavras como neste trecho do projeto “...é em grande medida pela Lagoinha que essa cidade respira”. José Maria (1994) ressaltou a necessidade de preservação do patrimônio material e imaterial contidos no bairro, os quais estavam ameaçados devido esquecimento do poder público e da cidade como um todo com a região, segundo ele, o Projeto do Centenário seria a forma de se “redimir com a Lagoinha”. Pretendia-se unir o arcaico e o moderno, fazendo-os coexistir em um espaço que não congregava todos os aspectos progressistas esperados da época. Objetivava aprimorar os setores produtivos da região, tornando-a base para promoção do centenário: “O que é formidável, pois nada melhor do que começar a realizar os paradigmas de desenvolvimento econômico desta cidade no próximo século pela porta de algo tão imbatível e simpaticamente popular e democrático como a Lagoinha.” (CANÇADO, 1994). O coordenador do projeto “BH 100” afirma que:
Belo Horizonte está condenada a ser moderna”, afirma José Maria Cançado, coordenador do projeto BH 100. “A historia da cidade coincide com a historia do século”, acrescenta e diz: “ O que houve de bom e de ruim”. [...] Celebrar os cem anos da capital significa celebrar o reencontro da cidade com sua história (ESTADO DE MINAS, 1995)
O governo de Patrus Ananias, no projeto, questionava todas as modificações e o isolamento da Lagoinha dentro dela mesma, sem a participação da população nesse processo. O Projeto Lagoinha (1994) propunha: “o ponto de partida deve ser a realidade do bairro da Lagoinha tal como é vivida hoje pelos seus habitantes”. Apresentavam uma nova metodologia de trabalho, em que o morador teria voz durante as etapas de concepção, elaboração e execução do projeto.
Para Patrus [...] “a obra propiciará o desbloqueamento da Lagoinha e bairros adjacentes. “A Lagoinha é uma região simbólica, do ponto de vista cultural, e foi penalizada durante muitos anos com o isolamento. Essa obra vai resgatar a história deste bairro e propiciar o crescimento das atividades econômicas na região”, declarou. (ESTADO DE MINAS, 1995)
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O projeto propunha a reabilitação integrada que, segundo os argumentos de seus
idealizadores, resolveria todos os problemas da região de forma articulada e simultânea. Assim, melhoraria as condições de vida da população, a preservação e o incentivo das identidades culturais lá presentes. O projeto ainda previa a requalificação ambiental e econômica, que por meio de um programa de desenvolvimento urbano e social todas estas bases agiriam em conjunto. O projeto trazia uma nova identidade para a Lagoinha, no entanto, moradores, passantes e frequentadores, que tinham um cotidiano no local, poderiam vê-lo apenas como mais uma tentativa de revitalização do espaço. Ao abrir o leque de questionamentos, algo salta aos olhos dentro do programa: estavam previstas diversas obras de revitalização, a construção da alça do Viaduto A, alargamento da Avenida Antônio Carlos, a proteção dos casarões e do patrimônio cultural. No entanto, em 1997, ao fim do mandato de Patrus Ananias e a posse do prefeito Célio de Castro o projeto foi interrompido, não sendo finalizado conforme descrito inicialmente. Cumpre ressaltar que as obras de cunho material foram realizadas, como a reforma do Mercado da Lagoinha – não com os usos previstos. Mas por que somente esta parte foi concretizada? Aos olhos da população o que é palpável é significativo? Pois, toda a requalificação prevista entre 1994 e 1997, vinte anos depois do centenário em 2017, ainda não pode ser vista pela região que continua com os mesmos problemas descritos no Projeto Lagoinha. Ainda pode-se pensar que o projeto de requalificação patrimonial é um projeto secundário em detrimento do projeto viário implementado na região, em que a Lagoinha perderia por um lado e ganharia por outro.
4. O Projeto Lagoinha nas páginas dos Jornais Estado de Minas e Hoje em Dia Ao observar os projetos ligados ao centenário de Belo Horizonte, percebe-se que, além da comemoração, existe, em paralelo, uma retórica discursiva em torno de assuntos públicos, ligados diretamente a problemas e qualidades da cidade, ao cotidiano dos moradores, à melhoria de condições de vida, de tráfego, temas que recorrentemente estão ligados a poder público municipal. A instituição do centenário iniciou em 1989 e ao longo dos anos que se seguiram foi cada vez mais enfatizado. A publicização e a divulgação desse evento foram calcadas na reconstrução de imagens de Belo Horizonte por parte da prefeitura por meio de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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slogans e marcas. Entretanto, a imprensa, o rádio e a TV tomaram o assunto como objeto
para publicação de matérias, reportagens, entrevistas, entre outros. Nas páginas dos jornais, o Projeto Lagoinha teve grande repercussão emergindo diversas abordagens sobre o bairro. A partir de um número significativo de matérias de jornais, optou-se por trabalhar com os jornais Estado de Minas e Hoje em Dia, que estavam em circulação na época (e ainda estão). Esses jornais tiveram quantidade significativa de reportagens sobre o andamento do projeto, apresentando pontos convergentes e divergentes a seu respeito. Dessas reportagens, foram recolhidas para a pesquisa cerca de trinta, sendo essas publicadas entre os anos 1990 a 2000. Dessas, optou-se por trabalhar com vinte para um panorama geral, sendo referenciadas nove ao longo deste trabalho. Ao trabalhar com jornais como fontes históricas devemos entendê-los como meios transmissores de acontecimentos, não sendo imparciais ou neutros, mas permeados de subjetividade. A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e intervenção da vida social, cabendo ao pesquisador identificar o movimento das ideias e personagens que circulam pelas páginas dos jornais (CAPELATO, 1988, p. 21), além de considerar que os periódicos não trazem verdades e sim versões sobre os fatos. Dessa maneira é necessário compreender a escolha e o histórico dos periódicos Estado de Minas e Hoje em Dia. O jornal Estado de Minas é um periódico editado pelos Diários Associados desde 7 de março de 1928, com circulação diária. Segundo dados fornecidos pelo jornal, o maior número de seus leitores ocupam cargos de nível superior em sua atividade profissional; são pós-graduados ou que pretendem fazer cursos de pósgraduação; possuem renda familiar a partir de 10 salários mínimos e costumam frequentar exposições, museus e peças de teatro74, ou seja, os leitores são de uma classe social alta. Segundo a historiadora Marieta de Morais Ferreira (N.D)75, ao longo do tempo, desde a sua fundação, o periódico passou por diversos proprietários, editores e constantemente mudava seu posicionamento diante do poder público. 74 Informações sobre o jornal disponíveis no site: <http://www.diariosassociados.com.br/home/veiculos.php?co_veiculo=29> Acesso: 08/10/16 às 19:58. 75 Informações disponíveis em artigo escrito por FERREIRA, em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete‐tematico/estado‐de‐minas‐o> 08/10/16 às 10:12 REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O jornal Hoje em Dia foi fundado em 1988 pelo então governador de Minas
Gerais, Newton Cardoso para rebater as denúncias feitas pelo jornal Estado de Minas, as quais, considerava perseguição. O controle do diário ficou com o mesmo até 1991, quando deixou o governo e o vendeu ao grupo Record. Conforme explicitado acima, os dois jornais apresentam divergências a respeito de seus posicionamentos políticos. Tal característica permitiu verificar, através da análise da periodicidade da reportagem, tamanho da manchete, forma de escrever, editor, data de publicação, entre outros, os posicionamentos em torno do Projeto Lagoinha. Durante a análise dos jornais, várias Lagoinhas emergem de suas páginas. São trazidas à tona memórias individuais e coletivas, o cotidiano dos moradores e frequentadores do bairro, as transformações do lugar bem como elementos do Projeto Lagoinha. Uma das imagens que apareceu foi a da Lagoinha como a “Lapa mineira”, uma vez que o lugar pode ser considerado um reduto boêmio da capital, pelo menos até meados da década de 1970. “Antigo reduto boêmio, o bairro da Lagoinha tornou-se conhecido como a “Lapa Mineira”, envolto sempre em imagens de prostituição, marginalidade, vício e transgressão, que se fixaram na memória da cidade76”. Entretanto, ao mesmo tempo em que a região é apresentada como espaço “idílico-etilico-transgressor”, também permanece uma Lagoinha habitada por famílias e por pessoas trabalhadoras, que ali residiram desde o início das obras de construção da capital”. Assim, a construção de uma memória coletiva do lugar passa por disputas, na tentativa de afirmar qual “Lagoinha” seria conhecida pelas futuras gerações. A reforma do Mercadinho da Lagoinha pode ser vista como um mecanismo para reter na lembrança dos moradores o lugar, a Lagoinha do tempo da construção de Belo Horizonte: O tradicional Super Mercado Popular da Lagoinha, localizado na avenida Antônio Carlos, zona Noroeste de Belo Horizonte, será reformado e continuará com a mesma função que teve durante os 40 anos em que abasteceu de alimentos a população da região. (ESTADO DE MINAS, 1995)
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Conf. JANUZZI, 13/06/1990, n.p). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Em outras reportagens publicadas pelo jornal Estado de Minas fica evidente o
papel do Mercadinho como lugar de memória. A Lagoinha, um dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte, pode renascer das cinzas depois de anos de esquecimento. Com a proposta de restaurar o antigo Mercadinho Popular Municipal, conhecido popularmente como “Mercadinho”, a prefeitura deu o primeiro passa para um processo maior de revitalização dessa região (ESTADO DE MINAS, 1996)
Após a reforma feita, reafirma-se a função do Mercadinho como o marco da história da região: A revitalização do Mercado da Lagoinha, realizada pela Prefeitura de Belo Horizonte, através da Secretaria Municipal de Abastecimento (Smab), representa um marco no campo da história do bairro e da capital mineira. (ESTADO DE MINAS, 1996)
Contraditoriamente à abordagem em torno da importância da recuperação da memória do lugar é frequente, nos periódicos analisados, sobretudo no jornal Hoje em Dia, o trato dos problemas desencadeados na região pelo projeto. As denúncias diziam respeito, principalmente, às perdas devido às desapropriações de imóveis que seriam demolidos para a execução das obras. Há uma preocupação com a preservação de um “patrimônio cultural” que diluiu com a demolição da Praça Vaz de Melo, além das desapropriações realizadas. Esse patrimônio cultural transcende o material, no entanto, há a necessidade de reestruturar, pois, pelo que se percebe nas reportagens, o Mercadinho é o foco desse patrimônio. Durante o processo de desapropriação dos cerca de quinze imóveis que margeavam a Av. Antônio Carlos – decreto 7.857 de 14 de abril de 1994 -, o jornal Hoje em Dia realiza reportagens sucessivas trazendo os desafios encontrados pelos moradores em sair de suas residências e estabelecimentos comerciais. Descreve, pois, o receio dos moradores em relação às desapropriações, visto a necessidade de realizar uma manifestação. [...] Moradores, comerciantes e donos de motéis e pensões do antigo bairro Lagoinha fazem manifestação hoje, às 10 horas, pedindo mais prazo para "abandonarem" os imóveis, onde será construído o Complexo Viário. (HOJE EM DIA, 1994)
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Aparentemente o jornal acompanhou mês a mês as movimentações do projeto
viário, em que escreveu em outra matéria com pouco mais de trinta dias as condições do local oferecido pela prefeitura aos desapropriados.
Moradores e comerciantes do bairro Lagoinha continuam em movimento por melhores condições de desapropriação do primeiro quarteirão da Rua Itapecerica, para a construção de uma "alça" de viaduto do Complexo da Lagoinha. Ontem pela manhã, eles visitaram o local oferecido pela prefeitura para deixaram seus endereços atuais até o dia 8 de agosto. [...] Pedimos um conjunto habitacional onde os desalojados pudessem continuar morando e tendo seus negócios, sem prejuízos. Não temos nada contra a obra, mas não podemos aceitar a desapropriação nestas bases” (HOJE EM DIA, 1994).
Pode-se analisar a fala do jornal em relação aos moradores não terem problemas com as obras, no entanto, existem embates relacionados aos acordos feitos entre moradores e prefeitura. Os locais “selecionados” para demolição pertenciam a pessoas que faziam parte da história do bairro e de certa maneira iriam deixar suas lembranças para reconstruir a sua vida em outro lugar determinado pelo poder público. Se de um lado é possível mostrar a intenção do projeto no que diz respeito à preservação da memória por meio da preservação de suas construções, por outro reside a contradição com a destruição de outras. Alguns imóveis foram escolhidos para serem preservados, como exemplo, o Mercadinho, acima mencionado. A outros, porém, restou a demolição e a consequente perda da identidade do lugar. Diferentemente da Lagoinha que existiu, hoje existe uma outra - a do complexo - com as alças dos viadutos dando passagem aos automotores. A boemia ficou na lembrança ou no esquecimento, depende de quem hoje a olha. Para o governo de Patrus Ananias, as obras desenvolvidas na Lagoinha eram de imensa importância, visto a ressonância do projeto de ampliação da Avenida Antônio Carlos amplamente divulgado. Segundo o prefeito, desejava-se finalizar o que outras administrações não alcançaram, ainda fazendo menção à requalificação integrada.
Para Patrus, além de representar grande impacto no transito da cidade, é um compromisso ético do seu governo “terminar mais uma obra inacabada”. Ele ressaltou que a obra propiciará o desbloqueamento da Lagoinha e bairros adjacentes. “A Lagoinha é uma região simbólica, do ponto de vista cultural, e foi penalizada durante muitos anos com o isolamento. Essa obra vai resgatar a história deste bairro e propiciar o crescimento das atividades econômicas na região”, declarou (ESTADO DE MINAS, 1995). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Em meados de 1997 o projeto foi paralisado, no entanto, para a sua continuidade seria necessário para a renovação da parceria entre a Secretaria Municipal de Indústria e Comercio e a UFMG o que não foi realizado, visto a alteração de gestão neste ano. Após a finalização desse projeto, outros foram criados com o mesmo intuito, requalificar a região, mas para os moradores, frequentadores e passantes pouca coisa foi alterada nessa década que se ateve o programa inicial. E mesmo com as comemorações do centenário e toda a sua memorialização, o sentimento de pertencimento dos belorizontinos em detrimento do bairro pouco mudou, a relação de esquecimento e silêncio do poder público com a Lagoinha continua da mesma maneira. 5. Considerações Finais O Projeto Lagoinha pretendeu requalificar o bairro Lagoinha com intuito de internacionalizar Belo Horizonte para o cenário nacional, quem sabe mundial trazendo turismo e investimentos econômicos. Cabe lembrar que o poder público municipal utilizou a história do bairro para a sua projeção em detrimento da comemoração do centenário da cidade. No entanto, ao realizar a análise da trajetória dos anos entre 1989 (início dos projetos) a 1997 (comemoração em si) podemos observar que mesmo com todo o foco sobre a cidade e o bairro, o progresso prometido ficou apenas no projeto. Podemos questionar qual era realmente o foco da requalificação, a viária para melhor fluidez do tráfego adensado e/ou a requalificação integrada já que esta pode ter vindo para amenizar os impactos de reivindicação da comunidade. A tentativa de envolver a sociedade como um todo, fazendo emergir sentimentos regionais em relação à Lagoinha pouco deu resultado, pois, caso os belorizontinos tivessem aderido à comemoração, o processo de memorialização seria realmente efetivado? Não percebemos maior envolvimento da cidade na celebração de seu aniversário, o acontecimento era mais para a promoção econômica do que para a integração social da urbe. Mesmo com toda a visibilidade reproduzida pela mídia, a Lagoinha durante a implementação do projeto se manteve apagada, no mesmo lugar de esquecimento em que esteve. O programa de maneira otimista e “revitalizador” não cumpriu totalmente o papel a que se propôs, visto que a requalificação integrada não transcorreu de acordo com seus moldes descritos. As memórias múltiplas que REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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emergiram nesse período parecem não terem sido capazes de servir como possibilidade
de deixar o silêncio e o esquecimento para manter a memória que parece impossível ser resgatada. A Lagoinha faz parte do imaginário dos moradores de Belo Horizonte, indiferentemente se já viveu, morou, passou ou frequentou a região. Ao falar “Lagoinha” vem à mente de cada indivíduo um sentimento ou uma lembrança que foi contada ou presenciada. Entre essas retóricas observam-se as diversas Lagoinhas existentes no sentido figurado ou de maneira palpável. A Lagoinha boêmia, a Lagoinha religiosa, a Lagoinha familiar, a Lagoinha berço do samba, a Lagoinha abrigo entre outras representações existentes. Cada um tem a sua Lagoinha para falar. Fontes: A Lagoinha não será a mesma, diz Patrus, Estado de Minas, 26 set. 1995, Caderno Cidades. Demolição - Moradores da Lagoinha fazem protesto hoje. Hoje em Dia, 04 mai. 1994. LIRA, Aparecida. Estudo mostra a tradição e a boemia na antiga Lagoinha. Estado de Minas, 18 ago.1997. JANUZZI, Déa. Lagoinha agora é só uma doce lembrança no coração dos boêmios. Estado de Minas, 13 jun. 1990. Mercadinho, primeira etapa para revitalização da Lagoinha. Estado de Minas, 18 abr. 1994. Mercadinho, revitaliza a história, Estado de Minas, 25 dez.1996, Caderno Gerais. MAAKAROUN, Bertha. Quase nada em BH lembra o antigo arraial. Estado de Minas, 19 fev. 1995. Nova moradia gera protesto na Lagoinha. Hoje em Dia, 26 out. 1994. Obras vão resgatar função original do antigo Mercadinho da Lagoinha, Estado de Minas, 03 mar. 1995.
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Sem boemia a Lagoinha vai se acabando. Hoje em Dia, 27 jul. 1999. Últimos sobreviventes da Lagoinha. Hoje em Dia, 16 jul. 1997. PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Projeto Lagoinha - O ProjetoSíntese do Centenário. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte: Belo Horizonte,1994.
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MEMÓRIA DOCUMENTAL: UM IMPORTANTE CONTRIBUTO PARA A COMPREENSÃO DO PROCESSO DE DESORGANIZAÇÃO SOCIAL NO HIPERCENTRO DE BELO HORIZONTE
DOCUMENTARY MEMORY: AN IMPORTANT CONTRIBUTION TO THE UNDERSTANDING OF THE PROCESS OF SOCIAL DISORGANIZATION IN THE HYPERCENTRO OF BELO HORIZONTE Bruna Hausemer *
Resumo O presente trabalho propõe reflexões acerca do processo de desorganização social da região hipercentral de Belo Horizonte até a década de 1980 através da análise de sua memória documental, que inclui literatura, revistas, mapas, plantas, registros oficiais e outros tipos de documentos textuais sobre a capital, à luz das principais teorias sociológicas que interpretam a desorganização social a partir de seus componentes ambientais. O que nos permite examinar a problemática da evolução deste fenômeno sob uma ótica diferenciada quanto à consideração do papel que a memória documental possui para a compreensão das transformações sociais neste complexo espaço urbano de grande importância social, econômica e simbólica para a capital mineira. Palavras-chaves: Memória Documental; Desorganização Social; Belo Horizonte. Abstract This work proposes reflections about the process of social disorganization of the hypercentral region of Belo Horizonte until the 1980s through the analysis of its documentary memory, in the light of the main sociological theories that interpret the development of social disorganization from its environmental components, that allows us to examine the problematic of the evolution of this phenomenon under a different perspective regarding the role of documentary memory in understanding the social transformations of this complex urban space that has great social, economic and symbolic importance for the capital of Minas Gerais. Keywords: Documentary Memory; Social Disorganization; Belo Horizonte.
Bacharel em Ciências do Estado com ênfase em Estado Democrático e Contemporaneidade pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. bruna.hausemer@gmail.com. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 *
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Introdução Como surge uma cidade? É possível planejar sua estrutura viária, residencial e comercial a partir de um “lugar” vazio? Quais os limites e desafios do planejamento no que diz respeito à organização e controle da cidade? A capital federal do Brasil, assim como Belo Horizonte, são exemplos de tentativas de se construir uma cidade a partir do “nada”. Mas junto com a questão estrutural, vem toda uma organização social que deve se adequar: interferindo, moldando, afetando e “desviando” todo o planejamento inicialmente pré-concebido. No início do século XX, surgiu entre os pesquisadores norte-americanos um grande interesse em investigar a relação entre as cidades e o comportamento humano. Esses estudos, denominados de ecologia humana (PARK, 1915; BURGESS, 1925, MCKENZIE, 1924), estabeleceram relações entre a organização dos espaços urbanos com a organização social. Nas décadas seguintes, Shaw e McKay (1942) conduziram um grande corpo de pesquisas sobre a desorganização social e as características socioespaciais dos grandes centros urbanos, conhecido atualmente como teoria da desorganização social. A partir dos anos 60, com o aumento da criminalidade, as diferentes formas como o planejamento urbano poderia interferir na organização da sociedade e na ocorrência de crimes foram intensamente exploradas, se tornando referencias para os trabalhos de Jacobs (1961), Newman (1972) e Jeffery (1977). Essa tradição da Sociologia de investigar a relação entre a transformação do ambiente urbano e o comportamento hurmano, principalmente o criminal, atravessou o século e perdura até os dias atuais. Devido a estes estudos, sabemos que o crescimento acelerado, comum nas cidades modernas, afeta profundamente a sua dinâmica organizacional. Esse fenômeno é ainda mais acentuado quando se analisa as áreas centrais. Frequentemente, esses espaços acabam sendo ocupados por um grande volume de estabelecimentos e atividades ligadas ao comércio e ao entretenimento (PARK, 1984). Como consequência, esse processo provoca a migração dos residentes com renda mais elevada para lugares mais calmos e afastados (BURGESS, 1925), sendo acompanhados pelos estabelecimentos que oferecem produtos e serviços refinados, formando os chamados “subcentros” (GIDDENS, 1997).
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Esses movimentos marcam o início do processo de sucessão na região central e,
no geral, desencadeiam a sua deterioração (MCKENZIE, 1924). Aos poucos, o centro da cidade passa a ser composto por um quadro ambíguo em que a prosperidade comercial e o intenso fluxo de pessoas, produtos e serviços ocorrem lado a lado com o descaso em relação ao mobiliário urbano, decadência dos imóveis e a intensificação de atividades criminais (GIDDENS, 1997). O desenvolvimento dos grandes centros urbanos torna-se, pois, sinônimo do aumento da criminalidade (BEATO, 2002). Belo Horizonte foi a primeira cidade moderna planejada em território Brasileiro. Cada parte de seu território havia sido projetada para uma função e eram claras as delimitações e distinções entre os bairros. O Centro da cidade, principalmente, fora uma área planejada e construída para ser um lugar bonito e tranquilo onde residiriam apenas os funcionários do governo e a elite econômica da capital, e cujos poucos estabelecimentos não residenciais se restringiriam às atividades administrativas, culturais e serviços refinados (BOSI, 1983). Todavia, com o passar dos anos, ela foi perdendo essas características e assumindo outras que são comuns nos centros das grandes cidades que não são planejados: como a deterioração ambiental e a criminalidade (BARRETO, 1996; GALDINO, 2013). Mas como isso ocorrera? O presente trabalho pretende propor reflexões acerca do processo de desorganização social da região hipercentral de Belo Horizonte através da análise de sua memória documental, que inclui a literatura, registros históricos e documentos, à luz das principais teorias sociológicas que interpretam a desorganização social a partir de seus componentes ambientais, o que nos permite examinar a problemática da evolução deste fenômeno sob uma ótica diferenciada quanto à consideração do papel que a memória documental possui para a compreensão das transformações históricas deste complexo espaço urbano de grande importância social, econômica e simbólica para a capital mineira.
Da idealização à década de 30 Para compreendermos a intricada dinâmica que se desenvolveu na região hipercentral da capital mineira ao longo das décadas, precisamos voltar aos primórdios deste território. A história da região que hoje constitui o Hipercentro se inicia com a concepção da cidade de Belo Horizonte que começa com a desapropriação do antigo Arraial de Nossa Senhora do Curral Del Rey através da Lei nº 3 da Constituição Estadual REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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de Minas Gerais. Para a construção daquela que viria a ser a primeira cidade planejada em território Brasileiro, foi contratado o engenheiro Aarão Reis, encarregado do desenho da planta da nova capital que centralizaria as atividades políticas, administrativas e culturais de Estado. Para formar a comissão de projeto e implantação, ele convidou os engenheiros José de Magalhães, formado na École des Beaux-Arts de Paris, o francês Paul Villon e o suíço João Morandi, também formado na França e envolvido na construção da cidade argentina de La Plata (BARRETO, 1996). A planta original de Belo Horizonte é marcada por malhas superpostas, delimitadas por uma avenida circular, e faz distinção entre três zonas de ocupação concêntricas: zona urbana, zona suburbana e zona rural. Mapa 1 - Planta original da cidade de Belo Horizonte (1895)
Fonte: Acervo Comissão Construtora da Nova Capital Ao analisar esse projeto de cidade moderna podemos identificar algumas semelhanças da zona urbana com as famosas obras de Barão Haussmann e L’Enfant, conhecidos pelo zelo entre a relação estética, a fluidez no meio urbano e a adoção das ideias higienistas, que separam os grupos privilegiados dos demais. Esse modelo de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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planejamento conduziria a um processo de segregação sócio-espacial que não se restringe apenas à capital mineira, criando o que alguns autores chamam de “espacialização social elitista” (LEMOS, 1988; LEFEBVRE, 2008). Além da função primária de viabilizar os deslocamentos urbanos, as avenidas foram dispostas de forma que facilitassem a observação da população. Devido à configuração perpendicular entre elas, os encarregados da manutenção da ordem pública podiam se posicionar nos cruzamentos e ter um amplo campo de visão. Com exceção da Praça da Liberdade, as praças também desempenhavam o papel de proporcionar perspectiva ao serem alinhadas estrategicamente ao longo do tecido urbano. Os prédios públicos mais importantes ficavam no centro da zona urbana, o Palácio do Governo, as Secretarias, a Prefeitura e o Palácio da Justiça foram erguidos ao redor da Praça da Liberdade. Nas imediações, foram construídas as residências dos funcionários e de outros membros da classe alta, formando o bairro Funcionários, a Igreja da Matriz e estabelecimentos refinados – teatros, cinemas, bons restaurantes, clubes particulares e hotéis de luxo. O desenvolvimento do que hoje constitui o Hipercentro de Belo Horizonte está diretamente relacionado a estas disposições urbanísticas estabelecidas pelo plano de Aarão Reis e sua equipe, sobretudo à localização escolhida para implantar os principais edifícios da capital, entre os quais seriam formados eixos estruturadores, e à alta densidade de vias de acesso e artérias viárias que cortam e se cruzam na área, o que fizeram da porção norte da zona urbana o núcleo77 da nova capital (BELO HORIZONTE, 1989; SANT’ANNA, 2008). Distanciando-se do centro, além do Mercado Municipal, tinha início o Bairro Comercial, erguido sobre a atual esplanada da Lagoinha. Nesta região, como o nome sugere, foram estabelecidos o comércio, os armazéns, as pequenas fábricas e residências de tipo misto onde residia a classe média. Às margens do rio Arrudas foi construída a Estação Ferroviária Central e as instalações de apoio – galpões, depósitos e armazéns –, formando a “porta de entrada” da cidade para pessoas e mercadorias, que chegavam principalmente do Rio de Janeiro (SANT’ANNA, 2008). Esta configuração deu a esta região uma vocação espacial não
O núcleo corresponde à região da Rodoviária, Av. Santos Dumont e Praça da Estação. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 77
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intencional que privilegiaria a construção de hotéis, bares e pequenas lojas (VILLAÇA, 2001). Em contraste com a elegante e funcional zona urbana, a zona suburbana era caracterizada pela ausência do planejamento em padrão geométrico, revelando um traçado assimétrico, e distribuição irregular de serviços. Nela, foram morar os trabalhadores usados para a construção da cidade e os antigos moradores locais (COSTA, 1994). Devido ao crescente número de imigrantes, operários e trabalhadores da construção civil que chegavam ano após ano em Belo Horizonte para ajudar na sua construção e em busca de outras oportunidades de emprego, em 1912, a zona suburbana já abrigava 68% da população da capital, que era formada por 38.000 habitantes. Alguns historiadores afirmam que ela fora construída exclusivamente para abrigar a classe baixa, o que facilitaria a manutenção do higienismo na zona urbana (SEVCENKO, 1983). Já neste período, pode-se notar o descaso do Poder Público em relação aos cidadãos de baixa renda, que seriam obrigados a residir nesta região que carecia de infraestrutura por ser a única na capital com valores imobiliários acessíveis a eles. A forma como Belo Horizonte foi planejada agrava o fenômeno da segregação social adicionando a ele um elemento físico. A segregação socioespacial resultante faz parte do processo de diferenciação em agrupamentos econômicos e culturais que dá forma e caracteriza a cidade. Segundo Burgess (1925), essa segregação ofereceria ao grupo um lugar e um papel na organização geral da vida urbana e formaria áreas naturais, cuja tendência seria atrair determinados tipos de indivíduos, tornando-as cada vez mais diferenciadas. A concepção elitista e excludente de gestão do espaço público durante este período da história Brasileira foi muito estudada por Nicolau Sevcenko (1983), que a sintetizou em quatro princípios básicos: condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória aos populares; negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense; e políticas de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, destinada para o desfrute exclusivo das camadas superiores. O planejamento urbano resultante da adoção desses princípios gerava cidades onde se verificavam configurações socioespaciais distintas das cidades americanas dos REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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anos de 1910 e 1920 estudadas pela Escola de Chicago, as quais frequentemente apresentavam o modelo The Loop (BURGESS, 1925), segundo o qual, o desenvolvimento urbano ocorre através de zonas concêntricas, formando cinco áreas com características distintas: a primeira era constituída pelo centro comercial; ao seu redor, a zona de transição, marcada pela visível deterioração, intensa rotatividade de moradores e que sofre com a eminente invasão por parte do comércio e pequenas manufaturas; a terceira área era habitada por trabalhadores que fugiam da degradação, mas ainda queriam permanecer próximos aos seus trabalhos; e, na periferia, havia a área residencial onde residiam as classes altas. Todavia, representando uma exceção na morfologia social da capital (LEMOS, 1988, p.99), na região situada entre o Mercado Municipal e a Praça da Estação, havia áreas cujo planejamento se diferenciava do restante da área urbana, deixando espaços no tecido urbano que desde o início apresentaram sinais de degradação em relação ao seu entorno e possibilitaram a instalação de habitações de cidadãos oriundos das classes mais baixas (LEMOS, 1989). O entorno da Praça da Estação também apresentou aspectos indesejados do ponto de vista dos planejadores: hotéis e pensões baratas. Estes estabelecimentos haviam se desenvolvido frente à demanda das centenas de recémchegados que desembarcavam diariamente na Estação. Ao seu redor, desenvolveram-se o comércio dos turcos e judeus, os botequins, salões de dança e os bordeis – formando um ambiente de catarse para os moradores da capital. Um espaço para a extravagância e onde a fuga dos padrões morais não seria condenada, uma zona moral78. Apesar do minucioso planejamento para que o centro de Belo Horizonte pudesse ser mantido como um espaço requintado, recepcionando apenas os hábitos e a cultura da classe alta, a região foi progressivamente assumindo moldes distintos dos esperados. Mas por que isso ocorreu? A resposta a essa questão pode ser encontrada na teoria proposta por Robert E. Park (1915) na qual ele afirma que a cidade teria suas raízes nos hábitos e costumes daqueles que a povoam, consequentemente, ela teria não apenas uma organização física, como uma organização moral que seria impossível de ser controlada através de meros planejamentos institucionais. Essas duas formas de organização, por sua vez, interagiriam Termo utilizado por Park (1979) para se referir a zona de perdição e vício das grandes cidades, cujos frequentadores não necessariamente residem ali, mas se reúnem e compartilham seus gostos e temperamentos desviantes. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 78
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e se modificariam mutuamente. O anonimato e, consequentemente, o enfraquecimento dos laços sociais, fenômenos comuns nas grandes cidades, reduziriam as inibições individuais e propiciaria, em alguns lugares específicos, o aumento do vício e do desvio. A permissividade aliada à multiculturalidade encontrada no meio urbano criaria uma via para que as excentricidades, normalmente recalcadas ou controladas no ambiente das pequenas comunidades, escapassem e se desenvolvessem ao fornecerem oportunidades para que os indivíduos, que compartilham idiossincrasias se reunissem, formando essas “zonas morais”. Estabelecimentos como bordeis, cassinos e bares, por sua vez, surgiriam justamente da oportunidade de explorar os impulsos humanos que naquele turbulento meio urbano aflorariam com menor dificuldade (PARK, 1915). Esses fatores começam a se agravar durante a década de 1920 com o crescimento da indústria de bens de consumo e a implantação de empresas siderúrgicas pelo Estado. Nesse período, a capital passa por um grande desenvolvimento impulsionado pela aceleração econômica e a crescente oferta de empregos atrai um enorme número de migrantes (FIEMG, 2009). Nestes anos, o setor terciário também se expande e passa a se concentrar cada vez mais na área central, ocupando espaços que antes eram exclusivamente residenciais (BELO HORIZONTE, 2015). Segundo McKenzie (1924), essas grandes migrações populacionais para a cidade causam expansão no desenvolvimento da comunidade que, excedendo a sua capacidade natural, resultam em uma situação de crise ou desorganização. A região central de Belo Horizonte não escapou desse processo. No núcleo e no entorno da Praça Sete, em particular, aparecem as primeiras sedes bancárias mineiras – o Banco do Comércio e Indústria em 1923, Banco da Lavoura em 1927 e Banco Mineiro em 1928 – o que ocorrera juntamente com um aumento expressivo do comércio (BELO HORIZONTE, 1989). Ainda, segundo a literatura utilizada nessa análise, devido ao rápido aumento do uso comercial em uma região tradicionalmente residencial, acelera-se o processo de junking, caracterizado pelo aumento da degradação ambiental e sua desvalorização imobiliária (BURGESS, 1925). Desmotivados pela progressiva deterioração do entorno, a manutenção do corpo edificado passa a ser negligenciada e os proprietários dos imóveis são colocados sob o impulso econômico de alugar suas propriedades para serviços parasitários e transitórios – que podem ser economicamente rentáveis e lucrativos, mas são socialmente indesejados e frequentemente considerados vergonhosos para a comunidade tradicional (MCKENZIE, 1924). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Fazendo um paralelo com o Centro, pode-se dizer que a região passou exatamente
por esse processo já na década de 1920, período em que quarteirões residenciais foram permeados pelo comércio e alguns imóveis passaram a exibir uso misto e a alugar espaços juntos aos andares inferiores para uso comercial, comprometendo a estética de suas fachadas. Em 1930, a capital já possuía 120.000 habitantes e não apresentava sinal de inflexão da tendência de crescimento (BELO HORIZONTE, 2015). Localizada entre as principais vias da cidade e serviços públicos, a Praça Sete era a principal referência simbólica e econômica da capital e passa a abrigar o principal ponto de bondes do centro – um serviço público que atua como forte centralizador e indutor de atividades (BELO HORIZONTE, 1989; SANT’ANNA, 2008). Ao longo desta década também foram construídas na região central as Faculdades Federais de Direito, Arquitetura, Odontologia, Filosofia e Engenharia, o que atraiu os estudantes e desencadeou a construção de pensionatos para mulheres e repúblicas estudantis (BELO HORIZONTE, 2015). O ingresso abrupto de uma enorme população em uma determinada área urbana tem o efeito semelhante ao de uma onda, inundando as áreas em que há menos resistência por parte dos moradores, que normalmente se deslocam para a zona seguinte e assim por diante, até que a força da onda se exaure (BURGESS, 1925). No meio biótico, diria que esse processo é caracterizado por etapas de invasão, conflito, dominação e sucessão (BURGESS, 1925; MCKENZIE, 1924). A expansão em ritmo acelerado pela qual a capital passava impedia que fosse feito um controle estrito de como o seu solo era ocupado, o que vinha ocorrendo de forma desordenada aos olhos dos gestores (PLAMBEL, 1979). Na tentativa de fazer com que a cidade não saísse mais dos moldes do planejamento original, o governo municipal elaborou um plano que objetivava ordenar o uso do solo. Segundo ele, a região central estava permeada por vazios e passou a ser adotada a ferramenta urbanística de valorização virtual do solo para estimular a ocupação e o adensamento da região, o que acabou impulsionando o seu processo de verticalização (PLAMBEL, 1979). Para Jacobs (1961), a cidade é um território de relações no qual cada cidadão busca satisfazer suas necessidades e realizar seus quereres, uma realidade viva e pulsante que compõe uma complexa rede de fluxos de pessoas, mercadorias, matérias e energias em constante movimento que seguem uma lógica natural própria. Logo a imposição de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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planejamentos rígidos pautados em normas urbanísticas que surgem “de cima para baixo”, como a valorização virtual do solo adotada pela Prefeitura de BH para estimular o adensamento populacional no centro, configuraria uma doutrinação da dinâmica urbana, sendo nociva para a população e para a organização da própria cidade. As primeiras décadas da história de Belo Horizonte acabaram provando que a cidade tende a assumir uma organização que não segue moldes de planejamento e dificilmente pode ser controlada. Sua organização, assim como a da maioria das grandes cidades modernas é, pois, determinada pelas predileções dos indivíduos, pela conveniência, pelas vocações e pelos interesses econômicos que, inevitavelmente, vão segregando e classificando as populações (PARK, 1915; BURGESS, 1925, MCKENZIE,1924; PARK., 1984). Isto é, por uma dinâmica socioestrutural que ultrapassa os limites arquitetados e previstos em sua concepção original. 1.
Da década de 40 à década de 60: Um período de modernização e grandes transformações No início da década de 1940, a cidade ultrapassava os 200.000 habitantes. Esse
número tendia a aumentar com a conclusão da Cidade Industrial, que ocorreu em 1942 e implantou um complexo parque industrial nas mediações da capital. O processo de verticalização da região central, que já havia sido iniciado, foi acelerado pelo aumento populacional decorrente da industrialização e pelo consequente crescimento econômico (IGLÉSIAS E DE PAULA, 1988). Casarões, casas antigas e outras formas de edificações tradicionais foram paulatinamente cedendo lugar para a construção de prédios de apartamentos com capacidades para abrigar dezenas de famílias e enormes edifícios de escritórios, como o Acaiaca - que foi construído sobre o espaço antes ocupado pela igreja Metodista (LEMOS, 1988). Essas transformações fizeram com que o Centro passasse por um grande aumento em sua densidade residencial na década (BELO HORIZONTE, 2015). Acompanhando o movimento de verticalização e os demais aspectos de metrópole moderna que a capital mineira assumia, as vias foram sendo remodeladas para facilitar a articulação entre a região central e a periferia, as ruas de paralelepípedos foram substituídas pelo asfalto e o transporte público reforçado pela implantação de novas linhas de bondes (VELOSO, 1947). O principal acesso para a Cidade Industrial se dava pela Av. Amazonas, que fora prolongada durante a gestão de Juscelino Kubitschek para atender REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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melhor a região (BELO HORIZONTE, 2015). Essas modificações fizeram com que o centro de Belo Horizonte se tornasse mais conectado, portanto, mais ocupado por pessoas de diversos lugares, caracterizando essa área como um lugar de fluxo de desconhecidos e de anonimato (TAYLOR, 1995). Durante os anos 50, a população atingiu os 700.000 habitantes (BELO HORIZONTE, 2015). A região central da capital era caracterizada majoritariamente pela moradia verticalizada que abrigava as classes alta e média, e pelas notáveis taxas de concentração de atividades terciárias (LEMOS, 1988). As antigas imagens e representações do centro tradicional não eram mais tão nítidas. A demolição de muitos dos espaços aos quais as memórias dos antigos moradores se prendiam levou consigo parte da identidade coletiva que existira (BOSI, 1983). A maioria dos empreendimentos que antes caracterizavam a Rua da Bahia como um importante ponto de socialização fecharam suas portas. Foi o fim de muitos hotéis, restaurantes, teatros e bares tradicionais que serviram de cenários para o encontro e o convívio de milhares de belo-horizontinos durante as primeiras décadas da cidade (BELO HORIZONTE, 2015). Para os historiadores, os anos 50 foram marcados pelo desaparecimento de parte da vida tradicional que fora característica do Centro de Belo Horizonte (BOSI, 1983; LEMOS, 1988). Essas transformações enfraquecem os laços sociais e a capacidade local de controle informal, elementos que são cruciais para a manutenção da organização social79 em uma região (SHAW E MCKAY, 1942; BURSICK E GRASMICK, 1993; SAMPSON E GROVES, 1989; SAMPSON ET AL, 1997). Também nos anos 50, o bonde foi substituído pelo trólebus e a criação da rodovia BR-3 acarretou uma relevante diminuição no contingente humano que antes movimentava a Estação (BELO HORIZONTE, 2015). Em consequência dessa mudança, muitos dos hotéis ao redor da Praça da Estação foram ficando menos procurados e se deteriorando, passando a serem usados como repúblicas ou convertidos em bordéis e motéis – aumentando a aglomeração desses tipos de estabelecimentos na região (LEMOS, 1988). Essas mudanças confirmam a separação simbólica do Centro em "alto" e "baixo", este marcado pela desorganização cujos sinais já se fizeram presentes pouco após a inauguração da capital. Esse fenômeno será explicado ao abordarmos a teoria da desorganização social. Ver sessão 2.3. “Da década de 70 aos anos 80: Um grande centro urbano com grandes problemas”. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 79
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Durante a década de 1960, a intensa expansão da cidade desencadeou a
conurbação com os municípios circundantes e os espaços urbanos foram mais modificados em favor da circulação do crescente número de automóveis (BELO HORIZONTE, 2015). Ao longo do processo de desenvolvimento urbano, os anos 60 abarcaram transformações que causaram o redirecionamento na forma como ocorria a ocupação do Centro. O mercado residencial já não demonstrava mais interesse em fazer investimentos na região (LEMOS, 1988) e a grande concentração de serviços e facilidades intensificou a preferência do setor terciário pela ocupação das áreas que haviam sido destinadas ao uso residencial (VILELA, 2006). Por conta disso, o centro passou por uma profunda reconfiguração que consistiu por um lado em um decréscimo populacional e, por outro, pela alteração do perfil daqueles que ocupavam a região. Ao mesmo tempo em que a região central perde sua característica de área residencial, as transformações urbanas desde sua concepção até esse período permitiram que o Centro se consolidasse como espaço dos movimentos sociais, principalmente das reivindicações populares e das manifestações políticas (LEMOS, 1988, BOSI 1983; MACHADO DA SILVA, 1978). O edifício Maletta – prédio de uso misto formado por uma galeria que abrigava bares, restaurantes e livrarias sob um gigantesco conjunto de apartamentos simples – traduzia a efervescência da época do ponto de vista moral e político. Ele congregava os mais diferentes grupos sociais, da “juventude coca-cola” aos grupos de intelectuais, homossexuais e profissionais do sexo (MACHADO DA SILVA, 1978). Toda essa efervescência acabou despertando ainda mais insatisfação nos moradores tradicionais, que optaram por adquirir novas residências na região Sul da capital, deslocando os investimentos do setor imobiliário e do comércio de luxo. As classes mais altas também deixaram de frequentar a região central (MACHADO DA SILVA, 1978; LEMOS, 1988; FREITAS, 2006). O resultado dessa substituição territorial de um grupo social por outro é denominada na ecologia humana de sucessão (MCKENZIE, 1924). Esse fenômeno inicia-se com a invasão, quando indivíduos se mudam para um bairro habitado majoritariamente por integrantes de um grupo social distinto do deles. A resistência à invasão depende do tipo de invasor e da solidariedade entre os membros do grupo primário. De acordo com McKenzie (1924), o invasor indesejável costuma penetrar REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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através dos pontos de alta mobilidade e baixa resistência. A invasão por grupos socialmente indesejáveis geralmente acarreta desvalorização da terra e gera incômodos aos antigos moradores que, sentindo-se repelidos, tendem a mudar para outras regiões. Com o aumento no número de membros do grupo invasor no bairro ocorre a dominação da região e, consequentemente, a sucessão do antigo grupo residente (MCKENZIE, 1924). É possível fazer um paralelo entre essa discussão e o processo pelo qual Belo Horizonte estava passando durante a década de 1960. A invasão por diferentes grupos sociais causou repulsa por parte dos residentes tradicionais e impulsionou a sua saída da região. Devido ao crescimento da capital, a intensificação da atividade comercial e da prestação de serviços na região, espaços exclusivamente residenciais foram sucedidos pelo uso comercial, formando segmentos de ruas exclusivamente comerciais. Ambos os fenômenos foram acompanhados pela diminuição no valor imobiliário da região (BELO HORIZONTE, 2015). A partir dos anos 60, não se observava mais apropriação social do espaço público central pelas classes elevadas, que passaram a utilizá-la apenas como lugar de passagem (Lemos, 1988). A área central se torna cada vez mais utilizada como ponto de desembarque e baldeação de linhas de ônibus municipais e intermunicipais, aumentando massivamente o número de transeuntes e acelerando o processo de desgaste da região. Com a crescente deterioração do ambiente urbano central, tanto o capital privado quanto o Poder Público procuraram novas regiões para os seus investimentos, e as atividades administrativas, o comércio nobre e os edifícios de luxo não ampliavam mais a sua taxa de incidência no centro da cidade (LEMOS, 1988; MACHADO DA SILVA, 1978; VILELA 2006; FREITAS, 2006). A arquitetura desse período se direcionou para a construção de apartamentos bem pequenos, estilo quarto-e-sala, acompanhando a mudança no perfil de seus habitantes e a tendência a rotatividade que a região estava assumindo: Os impactos causados pelas intervenções do poder público no centro nos anos 60 e 70 revelaram uma segregação social nos seus espaços. Nota-se que, entre as poucas intervenções efetuadas, foram privilegiadas as áreas menos conturbadas, onde se instalavam os serviços de melhor qualidade. Além do mais, a destruição de marcos de referência e do meio ambiente levou a uma perda da identidade coletiva do lugar, já modificado pela concentração de atividades. Tantas mudanças não geraram nenhum tipo de retorno para a população e apenas aceleraram a degeneração da área. A destruição do patrimônio urbano do centro não resultou em nenhum ganho em termos de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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qualidade de vida, tendo ocasionado uma verdadeira transição social. Houve um esvaziamento populacional expressivo na região, com uma perda de 14% dos seus habitantes. [...] este passa a atrair um outro fluxo de população, formada pelas pessoas vindas do interior e também da periferia. Logo, os grupos de maior poder aquisitivo, que representavam a identidade do lugar, ao deixá-lo, ocasionam uma substituição em nível social. [...] Há uma substituição social apreciável, baseada num novo fluxo de pessoas que não têm um perfil único. A partir dessa nova composição social, o centro adquire mais um papel - o de lugar da moradia provisória - sendo que seus espaços ganham um alto grau de rotatividade. Como lugar de passagem, rompe-se o Ringstrasse, que situava o local no contexto da segregação social, enquanto região privilegiada para se morar e viver (LEMOS, 1988, p.271).
Decorrente de seu desenvolvimento acelerado que acabou impossibilitando um estrito controle urbanístico governamental (PARK, 1915), Belo Horizonte foi paulatinamente se assemelhando ao modelo de “Loop” proposto por Burgess (1925), sobre o qual falamos anteriormente. A grande concentração do comércio e de serviços passou a caracterizar o Hipercentro da capital, sendo circundado por uma área de transição fisicamente deteriorada e que apresentava rotatividade da população residente. Distanciando-se do centro, iam sendo formados bairros residenciais com elevados valores imobiliários e habitados pelas classes altas. O processo que deu origem a essa configuração espacial – bem diferente daquela que a elite e os projetistas da capital ansiaram: o centro como habitat exclusivo dos ricos – é considerado por Burgess (1925), McKenzie (1924) e Park (1915) um processo natural de diferenciação em agrupamentos econômicos e culturais a que todas as cidades acabarão se submetendo. 2.
Da década de 70 aos anos 80: Um grande centro urbano com grandes problemas Durante os anos 70, o Censo aponta o Hipercentro como a região mais
verticalizada de Belo Horizonte - encapsulando 63,3% de todas as unidades prediais existentes dentro da Avenida do Contorno. Ele também concentra 60,4% dos empregos do setor comercial, 39,7% do setor de serviços e 16,7% do setor industrial da capital, e é ponto de passagem e convergência da maioria das linhas de transporte coletivo que servem a cidade. Com uma considerável distância entre os pontos de ônibus – o que fazia com que os usuários fossem obrigados a caminhar cerca de 10 minutos – as ruas do Hipercentro, apesar de representarem apenas 3,3% do total da área urbanizada do aglomerado metropolitano, recebiam diariamente uma massa de 400.000 pessoas em média (PLAMBEL, s/d). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O enorme número de transeuntes decorrentes da disposição das vias, dos
terminais, da grande concentração de empregos e da ofertas de serviços, somavam-se a já elevada densidade habitacional da região, acelerando a transformação do espaço urbano central e seu processo de degradação. Este Hipercentro dos anos 70 é caracterizado pelo Instituto Horizontes como uma área urbana em estado de crise: Essa crise manifesta-se principalmente pela redução da densidade econômica e da degradação das condições ambientais. O modelo de transporte coletivo, que está superado há cerca de 15 anos, faz convergir para o Hipercentro a maioria de suas linhas e utiliza as vias da área central para operações de transbordo. Há perda da população residente, congestionamento de veículos e pessoas e invasão das calçadas pelo comércio informal. A função passagem, que não é uma função central, está sufocando a função “destino” que confere vida ao Hipercentro, ficando a centralidade cada vez mais comprometida. A perda da acessibilidade faz com que as atividades típicas dos grandes centros migrem para suas periferias, sendo substituídas por atividades de comércio e serviços típicos dos centros de bairros. (HORIZONTES, 2005, p.14)
Muitos autores demonstraram que essa transitoriedade populacional em uma região urbana é uma característica que favorece a maior ocorrência de crimes e probabilidade de vitimização naquele espaço (RONCEK, 1981; TAYLOR, 1995; REYNALD, 2011). Se por um lado, a utilização intensa de um espaço público pode reduzir a criminalidade sob determinadas circunstâncias – como quando há integração entre os seus usuários (JACOBS, 1961) ou coesão e controle entre residentes (SAMPSON et al 1997) –, por outro lado, as grandes aglomerações desconexas e um intenso fluxo de transeuntes – como o observado na região central de Belo Horizonte, constituído principalmente por moradores de distintas origens sociodemográficas e migrantes oriundos de outras cidades (PLAMBEL, s/d) – se relaciona positivamente com as taxas criminais, relação particularmente intensa quando analisamos os crimes contra o patrimônio. (RONCEK, 1981; REYNALD, 2011). Isso se deve ao fato da enorme população flutuante proporcionar anonimato, o que diminui a capacidade de reconhecimento e controle natural feita pelos habitantes da região, reduzindo a capacidade de detectar possíveis ofensores (TAYLOR, 1995) ao mesmo tempo em que as oportunidades para sua atuação é aumentada (COHEN E FELSON, 1979; FELSON, 2006). Posicionamento semelhante ao do Instituto Horizontes foi emitido pela PLAMBEL (PLAMBEL, s/d), que afirmou em documento oficial que durante a década REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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de 70 a região central vivenciava um período de rápida transformação e degradação do espaço urbano que obtinha um reflexo negativo sobre a dinâmica urbana da área central que: [...] Manifesta-se através da qualidade ambiental deteriorada, pela saturação dos passeios, da criminalidade juvenil, atuando ainda sobre o uso do solo com o estímulo de ocorrência de atividades de pequeno porte voltadas para o suprimento de bens de consumo imediato, próprios da estrutura do comércio de bairro (PLAMBEL, s/d, s/p).
A partir deste período, vemos que a criminalidade, sobretudo a juvenil, começa a ser citada como mais um dos problemas que afetam a qualidade do espaço público da região hipercentral de Belo Horizonte. A delinquência por parte de menores de idade, principalmente se tratando de crimes contra o patrimônio e ações de menor potencial ofensivo, constitui um fenômeno comum das grandes cidades modernas, tendo sido estudada por inúmeros autores (SHAW E MCKAY, 1942; CLOWARD E OHLIN, 1993, HIRSCHI, 1993; REISS E RHODES, 1961). Sobre essa temática, o estudo de referência que relacionou a delinquência juvenil à desorganização social foi realizado nas primeiras décadas do século XX por Shaw e McKay (1942), que analisaram as variações nas taxas oficiais de delinquência juvenil por unidade geográfica das cidades americanas com o propósito de determinar o quanto as diferenças sociais e econômicas locais se relacionavam com as variações dessas taxas. Em todas as cidades estudadas, foram encontrados padrões similares de distribuição da criminalidade juvenis: as áreas com as maiores taxas sempre possuíam elevados índices de rotatividade populacional, baixo status socioeconômico, heterogeneidade do ponto de vista étnico/cultural e a maior parte de seus moradores declarava que gostariam de se mudar para outros bairros assim que obtivessem condições financeiras para tal. Esse estudo é a base do que é conhecido na Sociologia como teoria da desorganização social, que postula que o crime ocorre nas áreas socialmente desorganizadas – comunidades que não podem resolver coletivamente os problemas, alcançar objetivos e prevenir comportamentos socialmente indesejáveis (GRASMICK E BURGESS, 1993, SAMPSON ET AL, 1997). Para além dos elementos que caracterizam um bairro como desorganizado e propenso à criminalidade (heterogeneidade, baixo status socioeconômico e rotatividade), a teoria da desorganização social iniciada por Shaw e McKay (1945) tem sido expandida por estudiosos através da identificação de duas dimensões básicas de controle social: A REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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primeira dimensão consiste nas normas compartilhadas pela comunidade que são usados para avaliar o comportamento adequado e inadequado, enquanto a segunda dimensão é composta pelos recursos que permitem aos grupos sancionar e evitar comportamentos inadequados – os laços sociais permitem que as comunidades desenvolvam as normas comuns de comportamento considerado adequado, enquanto as características econômicas e demográficas moldam a capacidade do bairro de formar os laços sociais que levam ao compartilhamento de normas comuns e a capacidade de fazer cumprir as normas que existem (RAMNEY E SHRIDER, 2014). Baseados neste arcabouço teórico, podemos inferir que as condições apresentadas pelo Hipercentro durante os anos 70 - intensa rotatividade de moradores, composição heterogenia do ponto de vista cultural e carência relativa de recursos econômicos - afetaria a habilidade dos moradores de formarem laços sociais ou manterem uma sociedade civil que fosse capaz de se autorregular, assim como se organizar de forma a atuar eficazmente dando resposta aos problemas da região (SHAW E MCKAY, 1942; SKOGAN, 1989; SAMPSON E GROVES, 1989; BELLAIR, 1997; BURSIK E GRASMICK, 1993; GUEST ET AL, 2006; KUBRIN E WEITZER, 2003). A pesquisa de Origem e Destino de 1972 (Fundação João Pinheiro, 1972) revelou que entre os moradores da região central de BH a intenção de se mudar dentro de até cinco anos foi manifestada por 40,5% das famílias entrevistadas, sendo que 25,1% delas reiteraram que desejavam mudar para outro bairro. Essa falta de interesse em permanecer no Hipercentro apontada pela pesquisa, assim como a ausência de sentimento de pertencimento acarretariam o desinteresse pela persecução de melhorias para o bairro, ficando estas à mercê das políticas públicas (WANDERSMAN, FLORIN, FRIEDMANN E MEIER, 1987; PETERSON E KRIVO, 2010) que, por sua vez, dependem significativamente da capacidade de articulação dos moradores com o poder público (BURSIK E GRASMICK, 1993). A importância do envolvimento da comunidade com o poder público para um efetivo controle da criminalidade foi analisada por Bursik e Grasmick (1993) através da incorporação de variáveis intervenientes ao modelo da desorganização social e a consideração da existência de três níveis (privado, paroquial e público) pelos quais os residentes de uma comunidade podem buscar ordem social (HUNTER, 1985). Isso permitiu que eles identificassem que, à nível privado (formado basicamente pelo relacionamento entre familiares, amigos e vizinhos), a rotação populacional dificulta REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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estabelecimento de laços entre os residentes, o que implica em menor capacidade de formação de redes relacionais fortes e controle social local débil; que o nível paroquial (constituído pelas relações entre os residentes e instituições locais, como igrejas, escolas e associações comunitárias) dependente da capacidade dos residentes de se organizarem e supervisionarem o comportamento uns dos outros; e que o nível público depende substancialmente da capacidade de articulação dos moradores com o poder público para a obtenção de recursos e serviços coletivos que possam beneficiar a comunidade. Ao compreender o papel de cada um desses três níveis de controle social no modelo sistêmico de crime, Bursik e Grasmick (1993) mostram que muitas das críticas feitas à teoria da desorganização social, como a existência de comunidades com população estável, baixa heterogeneidade e extensas redes interpessoais que mesmo assim sofrem com as elevadas taxas de crimes – características geralmente muito comuns quando trabalhamos, por exemplo, vilas e favelas Brasileiras –, não passam de falhas resultantes da não atribuição às análises do importante papel do nível público. Raciocínio teórico semelhante é feito por Ramney e Shrider (2014) ao afirmarem que a primeira dimensão de controle social – normas partilhadas decorrentes de vínculos sociais – é fortemente afetada por características socioeconômicas, o que sugere que a segunda dimensão – recursos para fazer cumprir essas normas – desempenha um forte papel no controle social. Consequentemente, muitas das normas compartilhadas por uma comunidade, como as que dizem respeito ao anseio de se reduzir a desordem (como o vandalismo), que normalmente requer investimento financeiro, ficam comprometidas. Geralmente, os bairros que exibem os níveis mais elevados de desordem são justamente os bairros mais pobres e menos articulados, que têm menos recursos para lidar com esse tipo de distúrbio e são os menos propensos a receber investimentos financeiros externos (PETERSON E KRIVO, 2010). Isso cria um ciclo em que os bairros que mais necessitam de recursos para combater os transtornos urbanos são os que mais encontram problemas para acessar tais recursos (RAMEY E SHRIDER, 2014). A dinâmica comunitária do Hipercentro também poderia estar sendo influenciada pelo fenômeno do feedback recíproco (SAMPSON E RAUDENBUSH, 1999). Como a confiança social e o senso de controle por parte dos residentes é abalada frente a criminalidade violenta, crimes em locais públicos e quando os ofensores são desconhecidos (SKOGAN 1990), a ocorrência constante destes dois últimos tipos de crime na região pode ter desestimulado as interações no espaço publico e, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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consequentemente, ter debilitado a coesão social e as expectativas de ativismo por parte da comunidade (LISKA E WARNER, 1991). O temor de ser atacado por estranhos nos espaços públicos urbanos reduz a eficácia coletiva (SAMPSON E RAUDENBUSH, 1999) e é um forte indutor do êxodo nos grandes centros urbanos (FRED ET AL., 2005). Além do aumento da criminalidade, outro fator que surgiu durante os anos 70 e que pode ter intensificado o êxodo do Hipercentro foi o surgimento dos Shopping Centers, construídos em diferentes regiões da cidade, proporcionado a junção de diferentes serviços (lojas, bancos, correios, restaurantes diversos dispostos em forma de praças de alimentação e cinemas) em um único espaço, distante do trânsito pesado do centro da cidade, com estacionamento gratuito e segurança privada. O surgimento desses cômodos centros de compras e lazer também tirou das ruas centrais as poucas lojas refinadas que ainda existiam e levou ao fechamento das tradicionais salas de cinema do Cine Brasil, Cine Patê e do Edifício Acaiaca (LEMOS, 1988). Em 1974, o Parque Municipal teve que ser completamente cercado por grades para evitar a ação de vândalos e a apropriação de seu espaço por moradores de rua, que ocorria principalmente durante a noite (BELO HORIZONTE, 2015). O Parque, que outrora fora um dos principais espaços de lazer da região, só seria aberto durante ocasiões especiais. Neste mesmo ano, os comerciantes do Hipercentro já se queixavam da ação dos camelôs e dos ambulantes que lotavam os passeios e ofereciam forte concorrência com a oferta de produtos por preços muito abaixo dos do mercado formal (SILVA, 1998). Com o intuito de melhorar essa situação estrutural e ambiental do Hipercentro, a Prefeitura desenvolvendo o Projeto da Área Central (PACE) que reordenou algumas atividades que contribuíam para a deterioração do espaço urbano central, como a distribuição dos pontos de ônibus e do comércio veiculado aos terminais (PLAMBEL, 1980). Todavia, ao mesmo tempo em que algumas ruas tiveram seu processo de degradação interrompido devido a realocação dos pontos de ônibus, outras passaram a ser vitimadas pelos impactos do redirecionamento do intenso fluxo de usuários do transporte coletivo que foram acompanhados pelos camelôs, ambulantes e pelas atividades dos ladrões e das gangues de meninos, que se aproveitavam das aglomerações e da distração dos usuários do transporte coletivo para cometer crimes (VILELA, 2006). Esse deslocamento espacial da criminalidade frente as mudanças implementadas pelo PACE indica que o crime é potencializado pela estrutura espacial e temporal das atividades rotineiras – tais como mobilidade urbana, compras, empregos e lazer –, que se REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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traduzem em oportunidades criminais, sendo elas igualmente importantes para a compreensão dos padrões criminais no Hipercentro. Portanto,
os
efeitos
das
condições
socioeconômicas,
heterogeneidade
composicional e rotatividade de moradores devem ser considerados juntamente com as características das atividades realizadas no segmento de rua e o tipo de uso dos imóveis centrais (SMITH, FRAZEE E DAVISON, 2000), até porque quando Shaw e McKay (1945) descobriram que a delinquência distribuía-se de forma heterogenia pela cidade, porém não aleatoriamente, e que as taxas elevadas concentravam-se em comunidades com determinadas características, eles não intuíam afirmar que os níveis elevados ocorriam em função das características dos grupos que habitavam essas comunidades, mas que os fatores estruturais da pobreza, heterogeneidade e alta mobilidade, esses dois últimos fortemente presentes no Hipercentro, criavam um ambiente de desorganização social e que a desorganização social a nível comunitário, por sua vez, favoreceria o desenvolvimento de atividades criminais – devido ao baixo controle social e eficácia coletiva, conformes explicamos nos parágrafos anteriores. Ao considerarmos isso, vemos a necessidade de complementaridade da teoria da desorganização social para o estudo do nosso objeto, pois ela explica porque o Hipercentro se tornou um lugar propício para a criminalidade, porém não elucida porque há uma concentração tão grande de crimes contra o patrimônio justamente nessa região, sabendo que outros bairros de Belo Horizonte são tão desorganizados ou mais que o Hipercentro e não exibem taxas de crimes contra o patrimônio tão altas. Para sanar essa limitação, propomos a complementação da teoria da desorganização social através da teoria das oportunidades criminais que, como demonstraremos, é capaz de explicar a concentração dos crimes contra o patrimônio no Hipercentro devido a sua atual configuração como ambiente das atividades rotineiras de grande parte da população, causando uma enorme confluência entre possíveis vítimas e ofensores, e devido a carência de guardião capaz, decorrente tanto do controle formal ineficiente – policiamento, vigilância formal e eletrônica – quanto da ausência de controle informal, que são ambos reflexos da forte desorganização social na região. A complementação teórica, portanto, se dá através da inter-relação existente na dimensão de controle de ambas as teorias, se mostrando necessária e extremamente valiosa para nosso estudo.
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O desenvolvimento do conceito de oportunidades criminais se iniciou através do
estudo do relacionamento entre as atividades rotineiras e a criminalidade urbana por Cohen e Felson (1979) que considerando vítimas, ofensores e guardiões partes igualmente essenciais na equação criminal desencadearam um giro paradigmático na Sociologia, ao provarem que as mudanças em qualquer uma das partes da equação poderiam impactar o nível de criminalidade na sociedade, enquanto as teorias tradicionais tinham focado exclusivamente sobre o elemento ofensor. Assumindo o crime como um tipo de atividade que, assim como as atividades legais, é dependente das atividades rotineiras da população, modificações no espaço urbano da forma como são propostas pelo PACE devem ser examinadas com atenção, pois implicam em uma grande modificação na dinâmica social urbana daquele espaço, o que certamente irá impactar na dinâmica criminal, pois a reordenação de pontos de ônibus nessa região causa o deslocamento geográfico de todo um conjunto de atividades rotineiras de milhares de cidadãos. Devido a grande concentração de empregos, serviços, entretenimento e sua importância na articulação do transporte público, atraindo diariamente uma quantidade enorme de pessoas para a realização de suas atividades rotineiras, o Hipercentro integra o awareness space80 de grande parte da população de Belo Horizonte e, probabilisticamente, de um número considerável de ofensores. Logo, segundo Smith, Frazee e Davison (2000), se a região for socialmente desorganizada – como demonstramos que é o caso do Hipercentro –, ela apresentará elevados índices criminais, pois proporciona inúmeras oportunidades para a realização de crimes. Diante desses desafios e dificuldades em estabelecer o controle na região, ela se consolida durante esse período no imaginário popular como um espaço urbano decadente e mal frequentado, marcado pela desordem e temido pela criminalidade. Nele, prevaleceram estabelecimentos que, ao mesmo tempo em que refletem a ambiência local, agem como elementos de atração de indivíduos que reforçam o caráter da região: botequins, saunas, motéis baratos, cinemas eróticos, caça níqueis, jogo do bicho, prostituição e atividades ligadas ao tráfico de drogas (SILVA, 1998; LEMOS, 1988). O termo awareness space foi criado por Paul e Pat Brantingham (1981) para designar a região familiar de um ofensor em potencial. Eles se baseiam na concepção de que os ofensores, como qualquer outra pessoa, tendem a permanecer próximos às ruas que conhecem bem, que em sua maioria são aquelas que compõem seus trajetos para a realização de atividades rotineiras, dificilmente se arriscando a delinquir fora desses limites (Bichler et al, 2011; Ratcliff, 2006; Felson, 2006). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 80
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Considerações Finais A região que atualmente compreende o Hipercentro de Belo Horizonte, desde a inauguração da capital até o final dos anos 80, período em que atingiu o ápice da degradação e da desorganização social (Vilela, 2006; Silva, 1998; Lemos, 1988; Lemos, 2006; Hausemer, 2017), mudou radicalmente. Da composição sociodemográfica às características arquitetônicas, todos os seus aspectos foram transformadas em função do desenvolvimento e do crescimento da capital mineira. A região hipercentral, ao longo destas décadas, apresentou substituição na composição de seus moradores, redução de seu status socioeconômico, elevada rotatividade, fraco sentimento de identidade, baixo anseio de permanecer residindo no bairro, grande população potencial, fácil acesso à região, uso misto, intensa atividade comercial, presença de zonas morais e intensa degradação dos imóveis e espaços públicos. Todos os elementos que constituem os indicadores teóricos da desorganização social. Embora o uso da metodologia documental como fora feito neste trabalho não permita que se estabeleça uma relação causal entre essas características e os fenômenos criminais, as reflexões oriundas da exploração da memória documental disponível sobre Belo Horizonte sob a lente do arcabouço teórico adotado lança luz sobre importantes aspectos que ajudam a elucidar o processo de desorganização social da região e que podem servir como norteadores para posteriores investigações fenomenológicas.
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AS ÁRVORES E A CIDADE: TEMAS DE PESQUISA NO CATÁLOGO DE FONTES SOBRE ARBORIZAÇÃO EM BELO HORIZONTE81
THE TREES AND THE CITY: THEMES OF RESEARCH IN THE CATALOG OF SOURCES ON AFFORESTATION OF BELO HORIZONTE
Carolina Marotta Capanema*
Resumo
A arborização é uma preocupação comum no âmbito da administração dos centros urbanos atualmente. Em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, o tema mostrou-se presente desde o planejamento da cidade em fins do século XIX. Diante de tal assertiva, o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, em parceria com o grupo de pesquisa História e Natureza, da Universidade Federal de Minas Gerais, elaborou um instrumento de pesquisa dedicado à temática, intitulado Catálogo de Fontes: arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte. Este artigo tem por objetivo apontar temas para investigações sobre arborização urbana e gestão de áreas verdes no referido catálogo com o intuito de incentivar a pesquisa científica sobre as interações entre sociedade e natureza em diversas áreas do conhecimento. Toma-se como premissa que o ambiente não se configura apenas como um espaço onde a história se desenrola, mas também como um campo de batalhas de ideologias e de representações políticas, sociais e culturais.
Palavras-chave: Arborização; políticas públicas; Belo Horizonte.
* Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: cmcapanema@gmail.com. 81 A ideia deste artigo originou-se das pesquisas empreendidas no Arquivo da Cidade de Belo Horizonte para a elaboração do Catálogo de Fontes: Arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte quando estava no exercício das funções de técnica em tratamento, arranjo e descrição de acervos permanentes na referida instituição, entre 2014 e 2016. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Abstract
Urban afforestation is a common concern in the management of urban centers. In Belo Horizonte, capital of the state of Minas Gerais, the theme has been present since the planning of the city in the late nineteenth century. In view of this assertion, the Public Archive of the City of Belo Horizonte, in partnership with the research group History and Nature of the Federal University of Minas Gerais, developed a research instrument dedicated to the theme, entitled Catálogo de Fontes: arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte [Sources Catalog: afforestation in Municipal Legislation of Belo Horizonte]. This article aims at pointing out themes for research on urban afforestation and management of green areas in this catalog with the purpose of encouraging scientific research on the interactions between society and nature in several areas of knowledge. It is assumed that the environment is not only a space where history unfolds, but also as a battlefield of ideologies and political, social and cultural representations.
Keywords: Afforestation; public policy; Belo Horizonte.
Introdução
Desde o planejamento de Belo Horizonte pensou-se em sua arborização. A Comissão Construtora da Nova Capital criada em 1894 e responsável por planejar e conduzir as obras da nova capital do estado de Minas Gerais82 tinha, como uma de suas preocupações, o planejamento das áreas verdes e arborização da cidade83. Inicialmente, a Comissão foi organizada em seis “divisões de serviços” e a quarta divisão, responsável 82
A capital do estado de Minas Gerais originou-se na região da freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral del Rey, criada na primeira metade do século XVIII. Em 1890, o decreto estadual nº 36 alterou a denominação da localidade para Belo Horizonte. A lei estadual nº 2, de 14 de setembro de 1891, confirmou a criação do distrito de Belo Horizonte, então vinculado a Sabará. Em 1893, foi elevada à categoria de município e capital, com a denominação de Cidade de Minas, pela lei estadual nº 3, de 17 de dezembro daquele ano, e decretos estaduais nº 716, de 05 de maio de 1894 e 776, de 30 de agosto de 1894, desmembrando-se do município de Sabará. A capital foi inaugurada em 12 de dezembro de 1897. Pela lei estadual nº 302, de 01 de janeiro de 1901 o município e capital passou novamente a denominar-se Belo Horizonte. BARBOSA, 1995, p.46-47; IBGE. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/minasgerais/belohorizonte.pdf. Acesso em: 21/07/2017. 83 Neste trabalho, assume-se o conceito de áreas verdes como qualquer área vegetada, englobando praças, jardins públicos, parques urbanos, canteiros centrais de avenidas, trevos e rotatórias de vias públicas, excetuando-se as árvores que acompanham os leitos das vias públicas, pois as calçadas são impermeabilizadas. FERREIRA, s.d, p. 12. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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pelo “estudo e preparo do solo”, tinha como uma de suas funções os serviços de ajardinamento e arborização, com o objetivo de garantir a salubridade e a beleza estética da capital. O parque municipal84, a principal área verde planejada da cidade, ficou a cargo da terceira divisão, que era encarregada, em sua terceira seção, da “confecção dos projetos de edifícios, monumentos, jardins, avenidas e mais construcções architectonicas, que tivessem que ser executadas na nova Capital” (CCNC, 1895a, p.56; CCNC, 1895b, p.13). As áreas verdes, portanto, tiveram espaço privilegiado nas discussões sobre o planejamento da cidade. Aos olhares contemporâneos, os referidos investimentos em arborização e planejamento das áreas verdes poderiam aparentar um compromisso da administração pública com questões ambientais. Mas estudos históricos sobre a temática, como aquele elaborado por Duarte (2007), assinalam que as preocupações institucionais com as árvores da cidade vão muito além do interesse ambiental e mostram que o espaço público foi, e ainda é, lócus privilegiado para negociações e imposições de determinados projetos políticos e sociais85. Este artigo visa apontar temas para investigações sobre arborização, gestão das áreas verdes e as relações entre sociedade e natureza no espaço urbano, de uma forma ampla, no Catálogo de Fontes: arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte86 (ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE, 2017)87. As considerações que se seguem alinham-se às perspectivas da história ambiental, que compreende a natureza como um problema histórico, como uma das variáveis que compõe a tessitura da história e, portanto, passível de estudos no que concerne às interações que com ela homens e mulheres estabelecem no tempo. Com os apontamentos aqui registrados pretende-se subsidiar pesquisas nas mais variadas áreas do conhecimento, tais como História, Arquitetura, Geografia, 84
Atualmente denominado Parque Municipal Américo Renné Giannetti, em homenagem ao prefeito que geriu o município entre 1951e 1954. 85 Sobre o tema ver também DUARTE; OSTOS, 2005; MESQUITA, 2013; OLIVER, 2008. 86 Doravante referido apenas como Catálogo de Fontes. 87 O instrumento de pesquisa, editado pelo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, apresenta o resultado do levantamento de dados sobre arborização urbana na Coleção Legislação Municipal, Estadual e Federal referente ao Município entre os anos de 1891 e 1986. O trabalho que resultou no Catálogo de Fontes foi desenvolvido mediante uma parceria entre o grupo de pesquisa História e Natureza, da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenado pela Profª. Regina Horta Duarte, e o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH). A primeira etapa da pesquisa foi realizada pelos bolsistas do grupo História e Natureza entre os anos de 2010 e 2011, sendo finalizada pelos técnicos do APCBH em 2015, ano em que também se elaborou a revisão e editoração do produto. O catálogo pode ser consultado online no endereço eletrônico www.pbh.gov.br/cultura/arquivo. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Administração Pública, Sociologia, Engenharia Ambiental, entre outras. Não se propõe uma análise conclusiva sobre os variados temas apresentados, mas apenas indicar temáticas passíveis de aprofundamento analítico. A metodologia utilizada baseia-se na indicação, para cada assunto abordado, de uma ou mais disposições legais que subsidiem as discussões iniciadas88. Assim, pretende-se atuar como um ponto de partida para investigações que terão no Catálogo de Fontes seu ponto de apoio.
Abordagens e possibilidades de pesquisa no Catálogo de Fontes
Nos quase cem anos que abrangem a documentação legislativa do Catálogo de Fontes, a arborização de Belo Horizonte e suas áreas verdes passaram por inúmeras apropriações políticas e culturais. À época do planejamento e instalação da nova capital, no final do século XIX, a idealização da cidade planejada com avenidas largas e arborizadas alinhava-se a um ideal de cidade “moderna”, nos moldes dos projetos republicanos guiados pelo lema “ordem e progresso”. Posteriormente, as árvores urbanas também foram investidas do significado de patrimônio coletivo referenciado por poetas e escritores que reverenciavam a cidade vergel, planejada em consonância com os ideais de “cidade jardim” (DUARTE, 2007, p.26-27). Os gastos com arborização foram expressivos no primeiro ano da Comissão Construtora, se comparados, por exemplo, ao valor investido em outras áreas para o mesmo período, como mostra publicação da Comissão, em 1895, relatando algumas de suas despesas (Figura 1). Embora a imagem de uma cidade arborizada não corresponda às representações do período inicial da história da nova capital. Segundo Aguiar (2006, p.160), até o fim da primeira década do século XX, a Cidade de Minas foi muitas vezes descrita como vazia e sem vida, com arborização rarefeita, mesmo conservando algumas árvores do antigo arraial. Não se podem desconsiderar as possíveis lacunas entre o planejado e o realizado na construção da capital mineira.
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As disposições legais são citadas apenas pelo número e data, pois podem ser consultadas no Catálogo de Fontes, que é organizado cronologicamente e fornece um resumo de cada item documental. O texto completo das leis, decretos e portarias citados está disponível no sítio da Câmara Municipal de Belo Horizonte: https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-legislacao. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Figura 1 – Despesas parciais da CCNC em 1894.
Fonte: CCNC, 1895c, p.30.
Outro momento de inflexão nas políticas públicas de arborização de Belo Horizonte são os meados do século XX em que outros símbolos do “progresso” se impuseram, tais como o asfalto e a indústria. Nesse período, o ambiente urbano da capital mineira sofreu grandes transformações. As ruas passaram a ser vislumbradas como lugar dos automóveis e, segundo esta concepção, pedestres, árvores ou córregos não deveriam atrapalhar o ir e vir dos carros. A derrubada das árvores de fícus da Avenida Afonso Pena, em 1963, foi um ato paradigmático dessa percepção, tendo sido justificada pelo então prefeito Jorge Carone como medida necessária para melhorar o trânsito de veículos na principal via da cidade (DUARTE, 2007; MESQUITA, 2013, p.101-109). No estudo da legislação de um período de quase cem anos (1891-1986) é possível observar diversas mudanças nas políticas públicas de arborização de Belo Horizonte, bem como se pode inferir o destaque dado à temática em diferentes épocas da história administrativa do município. O Catálogo de Fontes fornece detalhes sobre o tema da arborização e gestão das áreas verdes em vários âmbitos da legislação municipal, desde aqueles diretamente relacionados à temática até assuntos correlatos que indicam as políticas públicas de cada gestão administrativa da cidade. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Uma análise da legislação que regula o corte de árvóres na capital pode indicar os
diferentes intuitos da política de valorização do verde na área urbana e rural, bem como os seus limites. A Lei n. 86, de 9 de junho de 1949, por exemplo, previa multas para o corte de árvores sem autorização, com variação de valores para as zonas urbana, suburbana e rural89, estabelecia recompensa para replantio em propriedades rurais, propunha desconto no imposto territorial para os cultivadores de árvores frutíferas e autorizava o prefeito a instituir o serviço de reflorestamento com o fornecimento gratuito de mudas e sementes. Em 10 outubro de 1977, a Lei n. 2804 declarou imunes ao corte árvores de algumas áreas do município, tais como aquelas existentes em todas as vias públicas, as árvores ou conjunto de árvores junto de lagos, lagoas artificiais ou naturais, bem como o conjunto de árvores, bosques, matas e similares existentes em qualquer ponto do município, não mencionados anteriormente. Interessante destacar que o artigo que tratava da proibição do corte de árvores existentes em loteamentos aprovados foi vetado. Provavelmente devido à intervenção de interesses imobiliários.
Árvores como patrimônio
Outro ponto para análise seriam as políticas de patrimonialização da natureza, bem como as espécies arbóreas mais valorizadas em cada período específico, o que poderia guiar investigações sobre as representações simbólicas do mundo natural, bem como sobre as apropriações pragmáticas da mesma. Atualmente as dez espécies mais comuns na arborização viária de Belo Horizonte são a quaresmeira, eleita como a árvore símbolo
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À época do planejamento da nova capital, Belo Horizonte, então chamada Cidade de Minas, “foi ordenada em um arranjo tripartite, composto por três zonas concêntricas. No núcleo, estaria a área urbana, a cidade por excelência, o centro da vida urbana. Delimitada pela Avenida do Contorno, essa área urbana seria envolvida pela zona suburbana, o arrebalde, os subúrbios, espaço de transição entre a cidade e o campo. Por fim, essa zona suburbana seria circundada pela zona rural do município, ou seja, o campo”. Este arranjo foi estabelecido apenas como forma de estabelecer referências úteis à Comissão Construtora da Nova Capital na condução dos serviços se obras e mais tarde na gestão urbana, mas permanece oficialmente até os dias de hoje, embora poucos belo-horizontinos tenham conhecimento disso ou façam uso dele. AGUIAR, 2006, p.22. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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da cidade, alfeneiro, bauhínia, escumilha-africana, espatódea, ipê-rosado, magnólia, munguba, sibipiruna e tipuana.90 Em 1976, o Decreto n. 2.940, de 27 de setembro, declarou algumas árvores da cidade imunes ao corte ou derrubada devido à sua “beleza, raridade ou localização”. Entre elas, destacam-se algumas: uma paineira situada na Av. Bernardo Guimarães por caracterizar-se como uma “árvore majestosa, de grande porte”, com aproximadamente sessenta anos; um jambo do Pará situado na Rua Espírito Santo, por ser o “único exemplar desta espécie existente nas ruas de BH”; várias “árvores adultas” localizadas na Praça da Igreja da Boa Viagem; mangueiras da Avenida Carandaí e Alfredo Balena, por serem “as últimas mangueiras restantes das centenas que foram plantadas nas ruas da cidade”; entre outras. Vinte anos depois, em 1996, algumas espécies foram objeto de tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município (DOM, 12/04/1996; PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE, s.d.). As espécies tombadas foram paineira, pau d’óleo, pau-Brasil, jequitibá, ipê branco, jambo do pará, sapucaia, pau-ferro, sibipiruna, angico, esponjinha, pau rei, cássia. As duas iniciativas citadas, que dão valor patrimonial a algumas espécimes de árvores em Belo Horizonte, se dão em um período (décadas de 1970 e 1990) marcado por alterações significativas na concepção de patrimônio cultural, com a instituição do conceito de patrimônio ambiental urbano, que resultou na incorporação de novas categorias, tais como os chamados “bens naturais” (SCIFONI, 2006, p.68). Entre os principais argumentos para justificar o tombamento das árvores, em 1996, estão as questões da raridade e da importância histórica das espécies contempladas, quando poucos remanescentes restavam na malha urbana (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, s.d.). Em seu texto sobre a arborização de Belo Horizonte a partir da análise das perspectivas de dois autores do início do século XX – Abílio Barreto e Raul Tassini –, Graciela Oliver (2008, p. 108) identificou uma tradição na capital mineira de valorização dos espécimes históricos de árvores. As centenárias eram mais valorizadas, pois, associadas à hierarquização da própria sociedade, eram como as tradicionais famílias mineiras, que teriam presenciado a chegada da modernidade ao local.
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Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&app=meioambiente&tax=11020&pg =5700&taxp=0&idConteudo=67167. Acesso em: 11/02/2016. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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As escolhas feitas pelos poderes públicos representam, portanto, significados
políticos, sociais e culturais atribuídos à natureza no espaço urbano. Os exemplos citados acima mostram que naqueles contextos, tanto no caso do decreto de 1976, quanto no caso do tombamento de 1996, a valorização do verde se deu pelos seus aspectos estéticos, históricos e de raridade. Nesses casos, a questão ecológica e a importância da preservação de espécies pelo seu valor biológico e de manutenção do bioma em que está inserida a cidade é pouco ou nada considerada. A criação de uma relação identitária entre a cidade e sua arborização, sua natureza, já é clássica nas análise sobre a cidade (DUARTE, 2007; OLIVER, 2008), mas nem sempre a arborização foi vista sem ressalvas. No relatório de atividades do prefeito Cornelio Vaz de Mello, de 1917, os problemas causados pelas árvores à vida pública cotidiana se destacam, e o administrador chega a ironizar o título de cidade “vergel”:
A arborização da cidade, gabada por todos quantos a vêm e que lhe dá, na realidade, aspecto gracioso e alegre, não deixa de ter seus inconvenientes, em rasão [sic] da especie das arvores que a formam e da sua collocação nas ruas. (...) Em sua maioria, a arborisação [sic] é constituida de magnolias, cujo crescimento é exaggerado [sic] e além disso as folhas caducas e sementes são em tão grande quantidade, que a respectiva remoção acarreta não pequena despesa (PREFEITURA MUNICPAL DE BELO HORIZONTE, 1917, p.11)91
A citação acima mostra a complexidade da temática da arborização urbana e indica como em cada período da história atribui-se um significado específico à natureza, que é regido por percepções que definem as interações entre sociedade e natureza e se expressam no corpo jurídico de cada sociedade.
Programas de arborização e valorização do verde na capital
Ao longo dos anos, planos de arborização foram estabelecidos para a cidade, alguns deles em convênio com outras instituições públicas, como o Instituto Estadual de
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Os relatórios de prefeitos de Belo Horizonte (1899-2005) estão disponíveis em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=24201&chPlc=24201. Acesso em 31/07/2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Florestas92, e outros através da abertura de concursos.93 A legislação constante do Catálogo de Fontes também mostra a criação de campanhas educativas de valorização das árvores em âmbito municipal, tal como a instituição do prêmio “Pio Corrêa”94, que premiava o aluno que elaborasse a melhor composição sobre árvores, e o prêmio “Álvaro da Silveira”95, conferido ao melhor estudo ou pesquisa, de caráter inédito, feito por estudantes do ensino básico sobre a utilização e preservação de recursos naturais no país.96 Em 1971, o decreto n° 2.067, de 24 de setembro, instituiu uma campanha educativa de proteção às árvores nas escolas municipais. De acordo com Duarte; Ostos (2005, p.79-83) foi justamente na segunda metade do século XX, época em que o surto industrial passou a pressionar fortemente as árvores e matas do município, que se intensificaram as comemorações em torno do Dia da Árvore em Belo Horizonte. Iniciativas de campanhas de plantio de árvores e distribuição de mudas, entre outras, foram comuns na década de 1970, em Belo Horizonte (Figura 2).97 De acordo com Duarte (2007), o verde foi um elemento fundador de um sentido comum para os habitantes de Belo Horizonte e as árvores da cidade foram investidas do significado de um patrimônio coletivo. Assim, o seu corte – incentivado pelo desenvolvimento urbano do período – gerou inúmeros debates e reações por parte da população e da imprensa. Diante de tal configuração histórica – de valorização do verde por parte da população e sua consequente supressão pelas políticas de urbanização – não seria 92
Lei n. 1.627, de 31 de março de 1969; Resolução n. 445/80, de 04 de julho de 1980. Abertura de concurso público para arborização da Av. Afonso Pena .Lei n. 1.144, de 21 de outubro de 1964. 94 Manoel Pio Corrêa (1874- 1934) foi “naturalista, botânico, geólogo e pesquisador, nascido na cidade do Porto, em Portugal, filho do editor e livreiro Ignacio Corrêa, dedicou-se ao estudo da botânica aplicada, ressaltando aspectos científicos, econômicos e industriais das plantas. Membro de mais de uma dezena de instituições científicas. Os trabalhos desenvolvidos por este naturalista deram origem a importantes publicações, dentre as quais os seis volumes do Dicionário das Plantas Úteis do Brasil e das Exóticas Cultivadas, publicados a partir de 1926 pelo Ministério da Agricultura. Sua bibliografia completa inclui cerca de 150 trabalhos. Quando faleceu, era pesquisador do Museu de História Natural de Paris”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Pio_Correia#endnote_1. Acesso em 14/07/2017. 95 Álvaro Astolfo da Silveira (1867-1945), mineiro de Passos, formou-se engenheiro de minas na Escola de Minas de Ouro Preto, mas teve destacada produção no meio botânico e geográfico. Foi autor de estudo pioneiro sobre a arborização de Belo Horizonte, publicado em 1914. Cf. SILVEIRA, 1914. Atuou em instituições de destaque em Minas, como a Comissão Geográfica e Geológica de Minas Gerais, obtendo reconhecimento nacional. Viajou e classificou inúmeras espécies vegetais no estado, publicando livros como “Flora e serras mineiras” (1917), “Memórias corográficas” (1922), “Fontes, chuvas e florestas” (1923) e “Geografia do Estado de Minas Gerais” (1929), entre outros (FILHO, 1947, p.115-116). 96 Decreto n. 2.067, de 24 de setembro de 1971 e Decreto n. 2.067, de 24 de setembro de 1971, respectivamente. 97 Para uma interpretação histórica sobre as políticas de arborização no período, ver DUARTE; OSTOS, 2005. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 93
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incongruente o investimento da administração municipal em campanhas de arborização e na divulgação intensiva das mesmas, como documentado no acervo fotográfico constante do fundo “Assessoria de Comunicação Social do Município” (ASCOM) do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte98. Oswaldo Pieruccetti, prefeito entre 1964-1967 e 1971-1974, que teve suas gestões marcadas por programas de urbanização intensos da cidade, como a canalização de rios e o asfaltamento (MESQUITA, 2013), na figura 3 posa para fotografia no mês em que se comemora o dia da Árvore. Na foto, posa em uma atitude nitidamente publicitária, que alude a uma vontade de construir uma imagem de administrador público que “coloca a mão na massa” e se identifica com os interesses do povo.
Figura 2: Evento da Semana da Árvore na Avenida Afonso Pena. Prédio da Prefeitura. Dia da árvore, gestão Pieruccetti (1971-1975). Fonte: APCBH/ASCOM
Figura 3: Semana da Árvore. 1º à esquerda: Prefeito Oswaldo Pieruccetti. Setembro de 1965. Fonte: APCBH/ASCOM
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A Assessoria de Comunicação Social do Município (ASCOM) foi criada na estrutura organizacional da prefeitura de Belo Horizonte em 1992, depois de antigos órgãos e setores com atribuições semelhantes sofrerem inúmeras alterações. O órgão tem a finalidade de planejar e coordenar as atividades de comunicação social da administração municipal, dentre elas a divulgação, cobertura e distribuição do material jornalístico, assistência ao Prefeito e aos setores vinculados à gerência pública, além de coordenar a política de comunicação externa e interna da administração. O fundo documental homônimo (ASCOM), sob a guarda do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, possui itens datados de 1947 a 2015, e contém documentos textuais e iconográficos, como fotografias e cartazes, dentre outras tipologias documentais. MIRANDA, 2015, p.100; ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE, 2016, p.31-35. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Regulação urbana
A legislação referente à arborização e gestão de áreas verdes também contempla dados de interesse à regulação urbana, pois estabelece regras para a área destinada a jardins e áreas verdes nas construções da zona urbana e suburbana99 da capital, faz considerações sobre alterações na arborização de ruas da cidade ao alterar o espaçamento entre as árvores para facilitar o trânsito de veículos100, regula a conduta dos cidadãos nas áreas verdes da cidade, tais como jardins, praças e parques101, expressa em uma legislação, na maioria das vezes, excludente102, e determina regras a respeito da construção de marquises e toldos, para que não estes prejudicassem a arborização da cidade, entre outros assuntos.103 A legislação contempla também as normas mais amplas que regem as áreas verdes, estabelecendo suas categorias de uso, os modelos de assentamentos urbanos e delimitando as áreas a reservar.104 Algumas proibições reinteradas ao longo dos anos são indícios de que as disposições legais não estavam sendo cumpridas, como no caso da regulação do uso de árvores e áreas verdes por feirantes na década de 1940, reiterada na década de 1970.105 Em contraposição, na década de 1980, o Decreto Lei n. 4885, de 18 de dezembro de 1984, estabelece normas e concede permissão de uso para publicidade em grades protetoras de árvores nas vias públicas. Fato que não era novo, já que a Portaria n. 1985, de 17 de dezembro de 1973 designou uma “comissão julgadora da Concorrência Pública Ordinária” relativa à concessão de propaganda em grades de proteção de árvores. Outra determinação legal que trata da questão da arborização na regulação urbana é a disposição sobre a obrigatoriedade de os imóveis das seções urbanas e suburbanas 99
Lei n. 226, de 2 de outubro de 1922; Lei n. 264, de 9 de outubro de 1923. Decreto n. 8, de 6 de fevereiro de 1925. 101 Decreto n. 10, de 24 de junho de 1925. 102 Sobre o tema, ver DUARTE, 2007, p.27; OLIVEIRA, 2014, p.18. 103 Decreto n. 165, de 1º de setembro de 1933. 104 Lei n. 2.662, de 29 de outubro de 1976; Decreto n. 3.073, de 7 de junho de 1977; Decreto n. 3.074, de 7 de junho de 1977. 105 O Decreto n. 170, de 10 de janeiro de 1946 e a Lei n. 85, de 9 de junho de 1949, proíbem os feirantes de utilizarem os troncos e galhos de árvores para quaisquer fins. Já o Decreto n. 2.437, de 26 de outubro de 1973 regulamenta as feiras de artes e artesanato de Belo Horizonte. Em seu parágrafo único diz: “Não se admitirá a instalação de "stands" de exposição nas áreas verdes e floridas de parques, avenidas ou jardins, sob nenhum pretexto. Na organização de seus "stands" de exposição, o expositor: a) - não poderá colocar letreiros, cartazes, faixas ou outros processos de comunicação visual dependurados em postes, árvores ou gramados”. 100
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finalizarem suas construções com a criação de passeios calçados e arborizados, uma vez que ruas e avenidas que não estivessem providas de água, esgoto, energia elétrica, calçamento e arborização não seriam consideradas finalizadas e em condições de serem habitadas pela prefeitura106. O Catálogo de Fontes agrega várias possibilidades de pesquisa, pois fornece detalhes sobre o temas que, à primeira vista, não estão necessariamente vinculados à arborização, indicando ligações - algumas vezes até inusitadas – entre temáticas distintas. Um exemplo interessante é o estabelecimento da obrigatoriedade da instalação de “pátio arborizado” ou jardins em colégios, hospitais e asilos, bem como a arborização do cemitério e do matadouro nos primeiros anos da capital.107
As florestas e a cidade: pressões urbanas na vegetação
Outra abordagem possível da legislação constante no Catálogo de Fontes seria a análise cronológico-temporal dos dados, tentando abarcar características específicas de períodos pré-estabelecidos de pesquisa, relacionando-as ao contexto geral do período e especificamente à história de Belo Horizonte. Na década de 1910, por exemplo, a legislação apresenta referências sobre a questão florestal, que permanece ativa ainda nas décadas seguintes. A Lei n. 60, de 14 de outubro de 1912, autoriza o prefeito a dar prêmios aos proprietários de terrenos que plantassem árvores florestais108. Este é um caso interessante para a reflexão sobre a valorização de certas espécies florestais específicas em detrimento de outras em um dado período e sobre quais seriam os objetivos de tal disposição. No caso específico da lei de 1912, as espécies valorizadas foram: eucalipto, caneleira, ipê, cambuí, palmeira, cedro rosa, sucupira, folha de bolo, pinheira, canela, sassafrás e vinhático. Outros documentos do acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte são importantes auxiliares na análise desse contexto de valorização e incentivo de plantio 106
Lei n. 62, de 14 de outubro de 1912. Decreto n. 1.368, de 5 de março de 1900; Decreto n. 1.369, de 5 de março de 1900, respectivamente. 108 Lei n. 60, de 14 de outubro de 1912; Resolução nº 49, de 18 de fevereiro de 1937. Em âmbito federal, o tema também vinha sendo foco de legislação. Em 1918, com o intuito de intensificar a cultura de essências florestais no Brasil, principalmente o eucalipto, uma lei estabeleceu uma recompensa por árvore plantada. Cf. COLEÇÃO DAS LEIS DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS BRASIL, 1919, p.105-7 apud CAPANEMA, 2006, p.56. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 107
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de áreas florestais em Belo Horizonte, como a “Coleção dos relatórios anuais de atividades da Prefeitura de Belo Horizonte – 1899-1987”. No “Relatório apresentado aos membros do Conselho Deliberativo da capital pelo prefeito Dr. Olyntho Deodato dos Reis Meirelles”, em 1912, a devastação das florestas e matas do município é abordada, sendo contraposta à suposta exuberância da arborização da cidade:
A exuberancia e beleza da nossa arborização, na área da cidade, constituem uma das notas mais originaes e caracteristicas de Bello Horizonte, e que provocam verdadeira admiração dos nossos hospedes. E esta sensação é tão viva e intensa quanto ao lançarem as vistas pelos arredores e mesmo por todo o município da Capital só vêm uma vegetação pobre e rachitica. PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE, 1912, p.28.
O prefeito chega a elencar quais teriam sido as causas daquela situação no município. Segundo ele, os terrenos nas porções sul e sudeste da cidade, na sua quase totalidade mineralógicos, seriam naturalmente pobres para manter uma vegetação “luxuriante ou mesmo regular”. Já as partes norte e oeste, ao contrário, possuíam matas “bem vestidas e de bello aspecto”, que faziam parte de antigas fazendas, mas onde o fogo anualmente as consumia transformando-as em “enfesadas capoeirinhas de porte mesquinho e folhas anemiadas”. Nota-se aqui que ele não faz referência aos possíveis causadores dos incêndios. Ainda segundo Meirelles, o que foi preservado do fogo foi abatido “aos golpes impiedosos dos commerciantes de madeira branca, de lenha e de carvão”. Mal que, para ele, perdurava desde o tempo da Comissão Construtora. E, ao seu ver, era o maior inimigo da nossa riqueza florestal, o perturbador do regimen de nossas aguas, o abridor de largos flancos aos ventos predominantes, que mais ou menos impetuosos, dessecam a terra, estiolam e queimam a planta, despojando-as das suas vestimentas, alterando-lhe a forma e o porte. Si continuar a devastação praticada até agora, em breve será a cidade um oásis no meio de um grande deserto. PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE, 1912, p.28.
E é aí então que o prefeito contextualiza a Lei n. 60, de 14 de outubro de 1912, ao definir que todo comerciante de madeira branca, lenha ou carvão deveria pagar licença e imposto sobre sua produção, ao mesmo tempo em que o proprietário agrícola que possuísse maior quantidade de árvores florestais “que sirvam mais tarde para construção REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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e para industria” receberia um prêmio pecuniário da prefeitura (PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE, 1912, p.29). Nas primeiras décadas do século XX, a política florestal em Minas Gerais foi um assunto de estado. Naquele período, os governos mineiros pretendiam promover o desenvolvimento econômico por meio da diversificação e modernização da agricultura, seguindo as diretrizes propostas no Congresso Agrícola de 1903, liderado por João Pinheiro. Na medida em que a agricultura, a indústria e as ferrovias dependiam do consumo de combustível vegetal, a defesa das matas ganhou dimensão estratégica. Assim, ao longo dos anos 1910-1920, Minas Gerais elaborou uma política florestal ancorada nas discussões sobre a modernização econômica, social e tecnológica do Brasil. Em função das demandas crescentes de matérias-primas tanto no Sudeste Brasileiro quanto na Europa e nos Estados Unidos, Arthur Bernardes, presidente do estado (1918-1922) e principal mentor e executor desta política, considerou que o problema do combustível vegetal exigia solução prática e segura através do reflorestamento (MARTINS, 2011). Outra justificativa ao incentivo de políticas de conservação e reflorestamento nos arredores de Belo Horizonte refere-se à manutenção dos recursos hídricos da capital. A devastação teria causado problemas para o abastecimento hídrico da cidade, devido ao ressecamento de nascentes, como indica a legislação ao especificar a necessidade de conservação das “mattas, nas cercanias da Capital e nas encostas e cabeceiras de mananciaes, dentro do município 109. Três anos depois, a Lei n. 138, de 16 de outubro de 1917 previa que deveriam ser “reservadas quaesquer minas e fontes mineraes, as mattas e as terras que forem necessarias para a formação da reserva florestal da cidade”. A história mostra que muitas vezes quando um recurso se faz escasso amplia-se a legislação reguladora sobre aquele insumo. Em Minas Gerais, desde o século XVIII esta prerrogativa é abordada na legislação. A redução dos recursos hídricos vinculada ao desmatamento foi objeto de regulamentação naquele período (CAPANEMA, 2013, p.200-203). Essa política possui continuidade nas décadas de 1920 e 1930 em Belo Horizonte, com expressão nas políticas federais. Quando se falava em proteção à natureza nas primeiras décadas do século XX referiam-se essencialmente à conservação de florestas, a preservação/conservação de outros tipos de vegetação não era assunto prioritário, o que 109
Lei n. 78, de 21 de outubro de 1914. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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se constata na legislação essencialmente florestal vigente: Serviço Florestal do Brasil, criado em 1921 (Decreto n.4421, de 28/12/21) e organizado em 1925 (Decreto n.17042, de 16/09/25); Código Florestal (Dec. n. 23.793, de 23/01/1934) (CAPANEMA, 2006, p.56). Em 1926, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio publicou o Mappa Florestal do Brasil (CAMPOS, 2000), que vem reforçar a valorização do tema à época110. Em Belo Horizonte, uma resolução datada de 1937 previa o incremento do reflorestamento do município, incentivado através do estabelecimento de recompensa por árvore plantada na área rural111. A ligação entre a disponibilidade hídrica e as matas pode ser observada em outros dispositivos legais quando vincula, por exemplo, a função de conservar as matas à conservação e fiscalização de adutoras e mananciais.112 Outros dispositivos legais referem-se à aquisição de áreas de terrenos necessários à proteção de mananciais de córregos (Mutuca ou Cristais e Fechos) que abasteciam a capital113.
Dados quantitativos no Catálogo de Fontes
O Catálogo de Fontes apresenta dados quantitativos que podem ser úteis na elaboração de pesquisas sobre arborização e estudo urbanos, de maneira mais ampla. É possível comparar, por exemplo, os salários de jardineiros e outros funcionários do setor de parques e jardins com o de funcionários de outros setores para estabelecer uma análise comparativa, tentando traçar o significado e peso das funções na administração pública.114 Despesas do Departamento de Parques e Jardins, por exemplo, podem ser comparadas a gastos com outros departamentos, anualmente115. Assim como a abertura de créditos suplementares para empregar em aquisição de materiais e trabalhadores da área e no pagamento de aluguel de carroças para serviços de arborização116, créditos especiais para o Departamento de Parques e Jardins117, verbas para arborização e reflorestamento.118 O ano de 1957, por exemplo, apresenta o acréscimo de muitas verbas suplementares para o 110
Sobre o tema florestal no Brasil, ver também DRUMMOND, 1998/99. Resolução nº 49, de 18 de fevereiro de 1937. 112 Portaria n. 316, de 4 de setembro de 1930. 113 Decreto n. 511, de 8 de Setembro de 1956. 114 Lei n. 304, de 11 de outubro de 1952 115 Lei n. 356, de 7 de dezembro de 1953; Lei n. 525, de 3 de dezembro de 1954 116 Lei n. 306, de 11 de novembro de 1952 117 Decreto n. 633, de 17 de dezembro de 1957. 118 Decreto n. 264, de 2 de outubro de 1953; Decreto n. 267, de 6 de outubro de 1953. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 111
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Departamento de Parques e Jardins, bem como 1958 e 1959. Mas qual seria o motivo? A pouca disponibilização de verbas regulares? Ou um maior investimento real no setor? Ou outros setores também teriam recebido maior incentivo? Para uma análise da dotação orçamentária do município é necessário que o pesquisador compreenda a legislação pertinente à matéria, que define a legalidade, regularidade, possibilidade de aplicação de verbas, acréscimos e limites de investimento em cada setor. Atualmente, a lei orgânica de Belo Horizonte dispõe sobre os gastos prioritários do município, entre os quais se inclui a proteção ao meio ambiente. De acordo com o artigo 130, “a lei orçamentária assegurará investimentos prioritários em programas de educação, saúde, habitação, saneamento básico e proteção ao meio ambiente”. Grande parte dos dados disponibilizados na legislação municipal refere-se a dados quantitativos. Vale ressaltar que em alguns anos as receitas e despesas não foram citadas, o que prejudica a pesquisa, como a partir de certo período em que cada setor da prefeitura passa a ser identificado apenas por números e, por isso, os dados não foram selecionados para o Catálogo de Fontes devido à dificuldade de identificação. Em outros casos, os índices de receitas e despesas não são mencionados na legislação anual, como nos casos dos ano de 1938, 1943, 1947 e 1952. Já em outro, os orçamentos anuais não fazem menção a gastos com arborização ou temáticas afins, tais como os anos de 1937, 19391940, 1942, 1944 a 1946, 1948 e 1950. Esta ausência constitui outra perspectiva de pesquisa que se abre mediante a consulta ao Catálogo de Fontes. A partir de uma análise aprofundada dos dados anuais, unidos à observação de dados semelhantes em outros anos e em outros acervos municipais, o pesquisador pode levantar os motivos que levaram a um maior invetimento em uma área em um determinado período em detrimento de outras.
Políticas de criação e manutenção de parques e jardins A política de criação e manutenção de parques e jardins em Belo Horizonte também constitui um interessante tema de pesquisa e tem sido foco de manifestações populares em Belo Horizonte em defesa da preservação de áreas ameaçadas por pressões
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imobiliárias. Citam-se os movimentos recentes em defesa da “Mata do Planalto”, iniciado em 2010, e em defesa da criação do “Parque Jardim América”, a partir de 2011.119 O índice urbano de áreas verdes por habitante é constantemente utilizado pelas administrações municipais com intenções publicitárias, como indicadores de qualidade de vida nas cidades. Estes são os casos de Curitiba120 e Goiânia121, que muitas vezes se atribuem o título de “capitais verdes” do Brasil. O atual índice de áreas verdes por habitante em Belo Horizonte, segundo dados da prefeitura municipal, é de 18 m2. Este índice é considerado satisfatório, pois a administração pública toma como parâmetro o mínimo de 12 m² de área verde por habitante supostamente recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS)122. Guimarães (2010, p.20), entretanto, atenta para o fato de o número ser erroneamente atribuído à OMS, que não o reconhece oficialmente. O autor também revela que não há consenso na utilização de indicadores de medição de áreas verdes na administração pública. Dados quantitativos das áreas verdes são utilizados para identificar e localizar espaços para (re)planejamento das cidades e proposição de políticas públicas, mas muitas vezes utilizam parâmetros diferentes de medição. “Dessa forma, é bastante comum que um mesmo indicador seja utilizado de maneira diferente por cada gestor ou pesquisador, dificultando avaliações comparativas e reformulações urbanísticas” (GUIMARÃES, 2010, p.19). Ademais, há discrepância na utilização de termos utilizados sobre áreas verdes urbanas entre autores e profissionais que atuam na área e, consequentemente, nas informações veiculadas pela mídia. Similaridades e diferenças entre termos geram conflitos teóricos, como no caso dos conceitos de espaços livres urbanos, áreas livres, espaços abertos, áreas verdes, sistemas de áreas de lazer, jardins, praças, parques urbanos, 119 Os dois movimentos pressionam os poderes públicos a criarem parques nas áreas de remanescentes verdes nos bairros que dão nome aos movimentos: Planalto e Jardim América. O tema foi amplamente divulgado nas mídias locais e redes sociais. Disponível em: http://hojeemdia.com.br/horizontes/moradoresprotestam-e-pauta-sobre-a-mata-do-planalto-sai-da-reuni%C3%A3o-do-comam-1.393319; http://cidadeludica.com.br/2016/11/04/em-bh-moradores-resistem-e-lutam-para-criar-o-parque-jardimamerica/; https://www.facebook.com/salveamatadoplanalto/; https://www.facebook.com/ParqueJAbh/. Acesso em: 31/07/2017. 120 Disponível em: http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/indice-de-area-verde-passa-para-645-m2-porhabitante/25525; http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/novo-mapa-revela-aumento-de-areas-verdes-nacidade/25193. Acesso em: 31/07/2017. 121 Disponível em: http://www4.goiania.go.gov.br/portal/goiania.asp?s=2&tt=con&cd=1265. Acesso em: 31/07/2017. 122 Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal& app=meioambiente&tax=38428&lang=pt_br&pg=5700&taxp=0&. Acesso em: 12/02/2016. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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unidades de conservação em área urbana e arborização urbana. Este último conceito, por exemplo, corresponde aos elementos vegetais de porte arbóreo na cidade. Árvores plantadas nas calçadas fazem parte da arborização urbana, mas não integram os sistemas de áreas verdes, como parques, jardins e praças (FERREIRA, s.d, p.11-12)123. Nesse sentido, faz-se necessário relativizar os coeficientes de áreas verdes dos centros urbanos. Muitos parques urbanos foram criados em diversas partes do mundo valendo-se do discurso ambientalista, mas em muitos casos desempenham apenas função estética e de lazer, pela insignificância do seu conteúdo natural. Ainda assim, são utilizados para construir os índices de verde por habitante (GOMES, 2014, p.85). Nem sempre a criação de uma praça significa a proteção de uma área verde, às vezes a vegetação em uma praça pública é desprezível ou trata-se de uma área impermeabilizada, como é o caso da Praça Rui Barbosa (Praça da Estação) em Belo Horizonte (Figuras 4 e 5). Em artigo publicado na Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, Carlos Alberto Oliveira (2017, p.10) destaca o equívoco conceitual na definição de praças no Brasil, comumente confundidas com jardins e parques.
Figuras 2 e 5: Praça Rui Barbosa (Praça da Estação), Belo Horizonte/MG, sob duas perspectivas. Fotos: Rivail Miranda Xavier, julho/2017.
Como alerta Gomes (2014, p.82), no caso específico dos parques urbanos, “difundem-se que estes equipamentos contribuem para a proteção da fauna e flora, são importantes para o aumento dos índices de áreas verdes, além de estarem voltados ao uso das massas e, consequentemente, à melhoria das condições de vida do homem urbano, 123
Para uma definição pormenorizada dos termos, consultar FERREIRA, s.d., p.11-13. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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independentemente de sua classe social. No entanto, não se atentam para as disparidades socioespaciais que induzem”. Na verdade, muitas vezes os parques contribuem para o aumento da desigualdade socioespacial, pois alteram o preço da terra e se voltam a um público restrito, por terem localização privilegiada. Geralmente os discursos supostamente ambientais divulgados por instituições públicas e mídia não consideram os conflitos, as disputas pelo solo urbano e a apropriação desigual dos “espaços verdes” existentes nas cidades (GOMES, 2014, p.84-86). Esta é uma perspectiva de análise fecunda que poderia ser aplicada aos parques urbanos de Belo Horizonte. Quais seriam os reais objetivos da criação dos parques da cidade? A que ideais políticos, econômicos e sociais estariam submetidos? Atualmente, de acordo com dados disponibilizados pela Prefeitura de Belo Horizonte na plataforma digital BHMap124, a capital possui 73 parques municipais, sendo 6 parques na Regional Venda Nova, 15 na Regional Pampulha, 5 na Regional Norte, 13 na Regional Nordeste, 2 na Regional Noroeste, 1 na Regional Leste, 9 na Regional Oeste, 18 na Regional CentroSul e 4 parques na Regional Barreiro. A Figura 6 indica a desigualdade na distribuição espacial dos parques municipais da cidade, não apenas quantitativamente, mas também em extensão. A Regional CentroSul, que possui parques municipais em maior número e extensão, também apresenta a maior concentração de riqueza da capital. Enquanto 4,8% da população residente em Belo Horizonte possui renda mensal declarada superior a dez salários mínimos, na região Centro-Sul este percentual é de 22,6%.125
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Disponível em: http://bhmap.pbh.gov.br/BHMap/mapa/#zoom=0&lat=7799871.0925&lon=614126&layers=B0FFFFFFF FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF. Acesso em: 01/08/2017. 125 Dados baseados no Censo de 2010. Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=54009&chPlc=54009&v iewbusca=s. Acesso em: 01/08/2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Figura 6: Mapa dos parques municipais de Belo Horizonte. Fontes: PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE, s.d.; UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2014. Elaboração: Herbert Pardini.
Para além da pressão de aspectos econômicos e sociais sobre a criação e manutenção dos parques municipais, outros fatores devem ser levados em consideração no caso de uma análise comparativa sobre os parques, tal como a história do desenvolvimento urbano da cidade, expressa na ocupação e crescimento de cada regional, na medida em que os locais de ocupação mais antiga podem tender a ter menores áreas verdes passíveis de tornarem-se parques se o espaço destinado ao verde no passado for menos valorizado, bem como a pressão sofrida em cada região. Áreas ocupadas sem planejamento poderiam ser mais adensadas em população e, por isso, ter restado pouco espaço para o verde. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Uma maneira interessante de conjugar uma análise ambiental à história seria
investigar, quantitativa e qualitativamente, os momentos de criação dos parques urbanos, estabelecendo os períodos de surto, bem como de letargia, buscando compreender que relações poderiam ser feitas entre estes fatores e questões políticas, culturais, sociais e econômicas. Em âmbito federal, a criação dos primeiros parques nacionais tem relação intrínseca com o conceito de áreas de “natureza intocada” que deveriam ser protegidas do uso humano, exceto para contemplação, recreação e pesquisa científica, alinhadas a um ideal divulgado principalmente pelos idealizadores dos primeiros parques do mundo (como Yellowstone, em 1872), que tinham como pressuposto a ideia de que a as sociedades urbano-industriais eram destruidoras da natureza (DIEGUES, 2008, p.17). No Brasil, na década de 1930, também foram criados os primeiros parques nacionais – Itatiaia (MG/RJ), em 1937; Iguaçu (PR) e Serra dos Órgãos (RJ), em 1939. Nesse período, pode-se fazer uma associação entre os ideais de conservação e preservação da natureza e um projeto nacionalista de modernização Brasileira, em que a natureza passou a ser considerada uma peça chave para o desenvolvimento econômico mediante sua exploração “racional”, bem como pela utilização de seu conteúdo simbólico para a afirmação de uma identidade nacional (CAPANEMA, 2006). Se as primeiras áreas de proteção ambiental em nível federal foram criadas nos anos 1930, essa não foi uma prática que se manteve crescente nas décadas seguintes. Na década de 1940 houve uma estagnação; nos anos 1950 criaram-se mais três unidades de conservação; na década seguinte, oito; e, nas décadas de 1970 e 1980 houve um grande impulso à criação de parques e reservas biológicas, devido ao surgimento e intensificação do movimento ecológico no Brasil (DIEGUES, 2008, p.113-125). Segundo Roncaglio (2007, p.107), a criação de áreas de proteção também coincidiu com as frentes de expansão econômica sobre o território Brasileiro, como é o caso da década de 1970, caracterizada pelo investimento em indústrias de base através dos planos nacionais de desenvolvimento lançados na ditadura no Brasil. A criação ou implantação de parques e áreas verdes protegidas no município de Belo Horizonte também é marcante naquele período. Em de 21 de setembro de 1971, o Decreto n. 2.065 dispôs sobre a criação do Parque Municipal Vila Betânia (atual Parque Municipal Jacques Cousteau). No ano seguinte, o decreto n. 2.225, de 27 de junho de 1972 definiu a desapropriação de terreno no lugar denominado "Fazenda São José", nas REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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proximidades do Bairro Padre Eustáquio, para preservação de “matas naturais” e implantação de “parque florestal recreativo, de autódromo ou de outras obras públicas”. O decreto n. 2.345, de 30 de março de 1973, declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação, uma área de terreno com 156.800 m2 na Avenida José Cândido da Silveira, de propriedade da Fundação João Pinheiro.126 Em 1973, o decreto n. 2.408, de 5 de setembro, declarou de utilidade pública terrenos de propriedade da Imobiliária Mineira S/A, situados no Bairro Novo Itapoã, no local denominado "Lagoa do Nado", com área aproximada de 300.000,00 m2. O terreno conformou o Parque Municipal Fazenda Lagoa do Nado, implantado apenas em 1994.127 O Parque das Mangabeiras, por sua vez, foi implantado em 1974, tendo sido criado por decreto datado de 1966.128 O decreto n. 2.939, de 27 de setembro de 1976, dispôs sobre a transformação em Reserva Biológica o Parque Municipal da Vila Betânia. O decreto n. 3.338 de 23 de setembro de 1978, criou o Parque Municipal Ursulina de Andrade Mello, situado no bairro Castelo e também implantado apenas na década de 1990129. Já o decreto n. 3.590 de 3 de outubro de 1979, declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação, terrenos no Bairro Sion, zona sul da capital. A desapropriação destinava-se à “preservação ecológica” da área, assim como a implantação de parque de recreação e lazer no local. As diversas disposições legais dedicadas ao tema da criação de parques e áreas verdes na capital na década de 1970, momento de expressivo desenvolvimento urbano, indicam, portanto, a complexidade da análise do tema, que vai muito além de preocupações ambientais. A arborização e conservação de áreas verdes no ambiente citadino podem representar obstáculos para o seu desenvolvimento, bem como podem ser apropriadas por interesses econômicos, públicos e privados, que veem nesses espaços possibilidade de valorização imobiliária. Nesse sentido, são inúmeras as variáveis e
126
Ver também Lei n. 2.264, de 17 de dezembro de 1973.
127
Dado disponível em: http://belohorizonte.mg.gov.br/local/servico‐turistico/espaco‐para‐ evento/aberto/parque‐municipal‐fazenda‐lagoa‐do‐nado. Acesso em: 31/07/2017. Sobre o Parque Lagoa do Nado, ver também o decreto n. 3.568 de 14 de setembro de 1979 e a Lei n. 3.842, de 21 de agosto de 1984. 128 Ver decreto n. 1.466, de 24 de outubro de 1966, e lei nº 2.403, de 30 de dezembro de 1974, respectivamente. 129 Dado disponível em: http://www.belohorizonte.mg.gov.br/local/entretenimento‐cultura/parque‐ praca/parque‐municipal‐ursulina‐de‐andrade‐mello. Acesso em: 31/07/2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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possibilidades que se abrem à pesquisa das políticas de criação de parques, praças e jardins na cidade.
Esboço sobre os setores responsáveis pelas áreas verdes na estrutura administrativa municipal
As leis que regulamentam a organização administrativa da prefeitura são importantes para entender os interesses e valores que são privilegiados em cada época da administração municipal. Algumas disposições legais são bastante detalhadas, como a lei que institui o sistema de classificação de cargos no serviço público da prefeitura em 1957, que traz informações específicas sobre as funções de cada categoria, como a de chefe de conservação de arborização, chefe de jardinagem, chefe de manutenção de parques, entre outros.130 Outro exemplo detalhado é o decreto que aprova as competências e atribuições da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, à qual estava vinculado o setor de parques e jardins em 1970.131 Ao longo das pesquisas para a elaboração do Catálogo de Fontes, foi possível traçar um esboço sobre a estrutura administrativa municipal no que tange à gerência das áreas verdes. Um esboço, pois os dados levantados não foram confrontados com as informações disponibilizadas oficialmente pela prefeitura de Belo Horizonte132, assim como não foi feita uma análise exaustiva do conteúdo de cada alteração na legislação sobre organização administrativa municipal. Assim, a seguir listamos as alterações identificadas na estrutura administrativa que possuem relações com a gestão de áreas verdes e arborização do município, devido à sua importância para a elaboração de pesquisas na documentação jurídica levantada pelo Catálogo de Fontes. Afinal, a criação, a reestruturação ou a extinção de órgãos ou de partes deles – departamentos, gerências, divisões, seções, serviços e outros – traz impactos para a organização e o destino dos documentos que foram produzidos ou acumulados pelos órgãos públicos. A criação, a adição, a supressão de
130
Lei n. 620, de 19 de junho de 1957. Decreto n. 1.923, de 16 de novembro de 1970. 132 Os organogramas da “Evolução da Estrutura Administrativa da Prefeitura de Belo Horizonte” estão disponíveis em: http://www.pbh.gov.br/evolucaodaestrutura/organogramas.htm. Acesso em: 31/07/2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 131
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competências dos órgãos públicos, assim como a transferência de competências de um órgão para outro - o que, muitas vezes, implica na necessidade de transferência de documentos de um local para outro – são situações vivenciadas na administração pública que também impactam a política municipal de arquivos (ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE, 2016, p.22).
Outro fator importante a ser observado é que nem sempre os assuntos ligados à arborização e temas afins estão ligados apenas a um setor específico. Muitas vezes as funções se dividem em mais de um departamento. Em 1948, por exemplo, o Horto Municipal, que tinha como uma de suas funções o cultivo de espécies vegetais para a arborização da cidade, estava ligado à Seção de Serviços Agronômicos, apesar de haver uma Seção de Arborização no Departamento de Abastecimento na estrutura administrativa municipal133. Portanto, é possível coincluir que a distribuição de funções a cada órgão administrativo está ligada a fatores que não são objetivos, mas que possuem relação com as concepções específicas de natureza em cada momento. Com a instalação da Cidade de Minas (Belo Horizonte) pelo decreto nº 1.085, de 12 de dezembro de 1897, o governo da nova capital, que até então estava submetido ao estado, foi reorganizado134. Até então, os órgãos responsáveis pelo planejamento das áreas verdes, aos quais nos referimos no início do texto, estavam subordinados à Comissão Construtora da Nova Capital (1894-1898), que teve sua estrutura adminitrativa definida pelo decreto estadual nº 680, de 14 de fevereiro de 1894.135 O decreto nº 1.208, de 27 de outubro de 1898, organizou a estrutura da prefeitura da Cidade de Minas e a manutenção e conservação das áreas verdes da cidade passaram 133
Lei n. 51, de 21 de novembro de 1948. No período inicial, de acordo com dados da Prefeitura de Belo Horizonte, não havia uma estrutura administrativa legal, apenas uma divisão de serviços e atribuições de competências aos cargos. Ver: http://www.pbh.gov.br/evolucaodaestrutura/pbh_I_01.htm. Acesso: 31/07/2017. 135 “A Comissão Construtora da Nova Capital de Minas / CCNCM foi um órgão criado pelo governo do Estado de Minas Gerais (Decreto Estadual nº 680, de 14 de fevereiro de 1894, complemento à Lei nº 3, publicado pela então Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas) com a atribuição de tomar todas as providências, consultivas e executivas, para a construção de uma cidade que serviria de sede para a administração do Estado. Aquele decreto estabelecia as atribuições e a estrutura administrativa da CCNCM, organizada em 06 divisões de acordo com as tarefas que lhes caberiam, e tendo a chefia técnica e administrativa de um engenheiro-chefe. O paraense Aarão Leal de Carvalho Reis, nomeado engenheiro-chefe, contava com total apoio do presidente Afonso Pena (...) Comissão Construtora era diretamente subordinada à Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas . Para tarefas rotineiras e determinadas funções ( compras de imóveis, de materiais, assinaturas de contratos etc.) a CCNCM, atuaria como representante do Governo do Estado de Minas Gerais”. Disponível em: http://www.acervoarquivopublico.pbh.gov.br/acervo.php?cid=474. Acesso em: 31/07/2017. 134
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à responsabilidade do “diretor de Obras, Fazenda e Viação” e do “administrador do Parque”. É interessante observar que a administração do parque municipal é tratada à parte de outros órgãos administradores desde a criação da Comissão Construtora.136 O decreto n. 10, de 24 de junho de 1925, subordinou “parques, jardins e praças ajardinadas” à Seção do Patrimônio. Em 1927, vinculou-se a Inspetoria de Matas e Jardins à Diretoria Geral de Obras e Serviços pelo decreto n. 16, de 12 de maio. Em 1930, a Diretoria Geral de Obras foi subdividida em três setores, entre elas a Subdiretoria de Limpeza Pública, a qual se vinculava o setor de arborização.137 O decreto n. 102, de 2 de março de 1931, suprimiu o cargo de inspetor de Matas e Jardins. Enquanto o decreto n° 36, de 23 de julho de 1935, definiu as atribuições das inspetorias, entre elas a “Inspetoria de Águas” e a “Inspetoria da Limpeza Pública”, encarregadas dos assuntos concernentes à arborização e às áreas verdes da cidade. Em 1947 cria-se o Departamento de Parques, Jardins, Arborização, pelo decretolei n. 209, de 11 de novembro. A Lei n° 51, de 21 de novembro de 1948, dispôs sobre a reforma dos serviços da Prefeitura, entre eles os relacionados ao “Departamento de Abastecimento”, ao qual se vinculava a “Seção de Arborização”. Em 1951, a Seção de Arborização foi colocada provisoriamente sob a direção da Seção dos Serviços Agronômicos pela portaria n. 288, de 24 de março daquele ano. Ainda em 1951, cria-se o Departamento de Parques, Jardins e Arborização (o que nos faz inferir sobre sua extinção provavelmente no ano seguinte ao seu decreto de criação em 1947) e extinguese a Seção de Arborização do Departamento de Abastecimento, pela Lei n. 254, de 22 de novembro. O Decreto n° 1.562, de 28 de setembro de 1967, iniciou uma reforma administrativa na prefeitura e criou a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, à qual estavam incorporados os "Departamentos de Abastecimento", "Limpeza" e "Parques e Jardins". O Decreto n° 1.818, de 27 de novembro de 1969, modificou a estrutura de órgãos da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e o Departamento de Parques e Jardins foi transformado em Departamento Zoo-Botânico, subordinado à Secretaria Municipal de Serviços Urbanos. A portaria n. 1.822, de 1 de novembro de 1971, vinculava provisoriamente ao prefeito o Departamento Zoo-Botânico.
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Decreto n. 1.208, de 27 de outubro de 1898. Decreto n. 86, de 5 de setembro de 1930. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 137
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Em 1983, o decreto n. 4453, de 07 de abril, estabeleceu a reestruturação do
Departamento de Parques e Jardins da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos e, alguns meses depois, em 16 de junho, a Lei nº 3.570 reformulou a estrutura administrativa da prefeitura e criou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, cujas competências foram estabelecidas pelo decreto n° 4534, de 12 de setembro daquele ano. O Departamento de Parques e Jardins continuou a pertencer à estrutura administrativa, mas agora vinculado à nova secretaria. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente foi criada em um período em que a temática ambiental ganhou amplitude na sociedade Brasileira e tornou-se um tema premente. As questões ambientais começaram a assumir destaque para parte da sociedade a partir da década de 1970 vindo a constituir uma preocupação generalizada a partir do final do século XX. O Catálogo de Fontes possui um marco temporal restrito ao período de 1891-1986 e pode ser também um instrumento interessante para investigações que tratam do início da ação dos poderes públicos na montagem de estruturas para garantir a ação pública do estado no âmbito da ascendência de discursos ambientais na sociedade Brasileira.
Conclusão As políticas públicas de arborização e gestão das áreas verdes adotadas ao longo de quase cem anos em Belo Horizonte evidenciam, portanto, que as sociedades são constituídas em suas relações com o ambiente, ao qual conferem diferentes significados, quer sejam simbólicos, como quando as árvores assumem um papel identitário nos discursos sobre a cidade, quer sejam políticos e pragmáticos, como quando as árvores da principal via pública da cidade (Avenida Afonso Pena) são cortadas, em nome do progresso, para dar espaço aos automóveis. Sob essa perspectiva, o ambiente não se configura apenas como um espaço, mas também como um campo de batalhas de ideologias, políticas e culturas, já que os discursos e propostas de gestão da cidade nunca são unânimes. As teorias e ideias sobre a natureza constituem-se socialmente e podem servir, de diferentes maneiras e em diferentes períodos, como instrumentos de autoridade, identidade e reflexão (ARNOLD, 2000). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Em alguns momentos da história da capital de Minas Gerais, a defesa das árvores
da cidade, expressa em campanhas de arborização e distribuição de mudas à população, foi utilizada pela administração pública como item de manobra da opinião pública, que muitas vezes discordava das decisões políticas tomadas em relação ao verde da capital, como nas gestões do prefeito Oswaldo Pieruccetti nas décadas de 1960 e 1970. Nesse sentido, é necessário ressaltar que a elaboração de um discurso sobre a natureza em Belo Horizonte, bem como o estabelecimento de determinadas disposições legais, não corresponde, necessariamente, à aplicação das normas prescritas. No Brasil há extensa historiografia dedicada a estudar a distância entre o que propõe a legislação e a gestão prática das determinações legais, desde o período colonial. Nesse caso, citam-se especificamente aqui as prescrições elaboradas pela Comissão Construtora da Nova Capital no que concerne à arborização. O tema é constantemente citado em relatórios e planos, o que induz à construção de uma imagem de cidade arborizada, mas que não correspondia às representações do período inicial da história da nova capital. Por fim, e diante das diversas políticas públicas sobre arborização e gestão das áreas verdes de Belo Horizonte apresentadas no Catálogo de Fontes, conclui-se que cada época e cada cultura elabora uma ideia sobre a natureza, bem como estabelece relações diferentes com o mundo natural. O conceito de natureza não é, pois, “natural” e não pode ser considerado sob uma perspectiva única e universal. Às vezes é considerado sob a perspectiva simbólica, assumindo significados sublimes e identitários, e em outras é percebido em sua conotação pragmática, como insumo para o desenvolvimento econômico e cultural. A ideia de natureza é, pois, instituída pelas sociedades, sendo um dos pilares sobre os quais se erguem as relações sociais, a produção material e espiritual humana (GONÇALVES, 2001, p. 23).
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AVENIDA AFONSO PENA – BELO HORIZONTE/MG: ANÁLISE DE SUAS TRÊS ESPACIALIDADES (BAIXA, MÉDIA E ALTA)
AFONSO PENA AVENUE – BELO HORIZONTE/MG: ANALYSIS OF ITS THREE SPATIALITIES (LOW, MID AND HIGH)
Fernando Henrique da Silva Roque* Jackson Junio Paulino de Morais Lana Marx de Souza Regina Gonçalves Bastos Winnie Parreira Patrocínio
Resumo Construção, destruição e reconstrução, fenômenos que passam despercebidos. Desde sua construção, Belo Horizonte é tomada como uma pretensa cidade moderna, por isso várias modificações podem ser percebidas ao longo da historicidade da cidade, nos vetores de crescimento, nas ruas, nos bairros e nas avenidas. Tomando como estudo de caso a Avenida Afonso Pena, fundada em março 1897, construída para se tornar o principal eixo norte-sul do centro de BH é uma das avenidas mais antigas e importantes da capital. Temse como objetivo analisar a produção do espaço de Belo Horizonte ao longo da Avenida Afonso Pena. Esta pesquisa procura mostrar a relevância dessa avenida na grande Belo Horizonte, e como ela se fragmenta e se diferencia com seus usos e fluxos ao longo da mesma. Para evidenciar melhor essa fragmentação decidiu-se fazer um recorte espacial da Avenida em “Baixa, Média e Alta Afonso Pena”. Palavras-chave: Cidade; Belo Horizonte; Avenida Afonso Pena.
Graduando do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Bolsista do PIBID pela CAPES fernando.h.roque@hotmail.com Graduando do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Bolsista do PIBID pela CAPES e monitor do Laboratório de Práticas de Ensino e Pesquisa pela PUC-MG. jacksmorais@hotmail.com Graduanda do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Estagiária do Centro de referência a Juventude de Belo Horizonte/MG. lanamarx4@gmail.com Graduanda do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Estagiária em Geoprocessamento e Meio ambiente na Azurit Engenharia LTDA. reginab127@hotmail.com Graduanda do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Estagiária da PUC-MG no setor de Patrimônio, Limpeza e Conservação. winnieparreira@gmail.com REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 *
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Abstract Construction, destruction and reconstruction, phenomena that go unnoticed. Since its construction, Belo Horizonte is considered a modern city, so various modifications can be seen throughout the city’s historicity, growth vectors, streets, neighborhoods and avenues. Taking as a case study Afonso Pena Avenue, founded in March 1897, built to become the main north-south axis of downtown BH is one of the oldest and most important avenue of the capital. This paper’s objective is to analyze the production of the space of Belo Horizonte along Afonso Pena Avenue. This research seeks to show the relevance of this avenue in Belo Horizonte, and how it fragments and differs with its uses and flows along the avenue. To better illustrate this fragmentation, we decided to make a spatial cut of the Avenue in Low, Mid and High Afonso Pena. Key-Words: City; Belo Horizonte; Afonso Pena Avenue.
Breve contexto histórico
Belo Horizonte surgiu em um contexto histórico diferente de outras capitais Brasileiras. O final do ciclo do ouro no século XVIII deu lugar à expansão da pecuária e da agricultura e agregou uma nova identidade para o Estado de Minas Gerais. Já no fim do século XIX, o ciclo do ouro trouxe grande desenvolvimento econômico a nível mundial e regional, fazendo surgir a necessidade de expansão urbana. Naquela época, a cidade de Ouro Preto, devido à sua localização montanhosa, apresentava dificuldades para viabilizar a expansão urbana, fazendo surgir a necessidade de uma nova capital, mais condizente com os ideais reformistas e desenvolvimentistas da época vivida pelo Estado. Barreto (1996). Definiu-se, em dezembro de 1893, que a região do Curral Del’ Rei, habitada desde o século XVIII, era o local mais adequado para se construir a capital do Estado de Minas Gerais. Nessa mesma data, o então Presidente de Minas Gerais, Afonso Pena, promulgou a lei que designava o Arraial de Belo Horizonte para ser a capital do Estado, sendo que a capital, então denominada “Cidade de Minas”, foi inaugurada pelo presidente Bias Forte, no dia 12 de dezembro de 1897. Segundo Barreto (1996), a capital de Minas Gerais foi a primeira cidade planejada do país e construída a partir das ideias modernas do engenheiro paraense Aarão Reis. No projeto urbanístico da nova capital, Aarão Reis concebeu os setores urbano e suburbano, separados pela Avenida do Contorno. O plano da nova capital, elaborado por uma equipe de profissionais, previa uma cidade dividida em três áreas: uma área central, denominada REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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urbana; em torno desta uma área suburbana e uma terceira área, nominada rural. O nome “Cidade de Minas” foi mudado para Belo Horizonte. A nova capital cresceu tanto que extrapolou os limites da Avenida do Contorno. Figura 1 - Mapa do projeto da cidade de Belo Horizonte - MG
Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte
Segundo Borsagli e Medeiros (2013), a Avenida Afonso Pena foi uma das que mais se destacou ao longo das primeiras décadas do Século XX. Ela é considerada, por muitos, a mais importante de Belo Horizonte, não só por ser a via mais arborizada, mas também por ser definida como um dos principais pontos de encontros. Considerada eixo monumental da cidade, pois além de sua morfologia urbana revelou por meio de suas edificações a monumentalidade arquitetônica da época. Tinha como principais características: ser o principal eixo de ligação de pontos distintos na cidade, logo sendo passagem obrigatória para o deslocamento; um dos principais locais de verticalização e congestão urbana no centro; direcionar o crescimento urbano do centro à periferia.
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Estende-se hoje por 4,3 km no sentido norte-sul. Quase em linha reta, percorre os bairros Centro, Funcionários, Serra e Mangabeiras. A Avenida, quando criada, havia sido aberta desde o antigo mercado (atual rodoviária) até o atual cruzamento com a Av. Brasil. A partir disso, ela era em um caminho de terra até o Cruzeiro, que era o ponto onde a avenida se finalizava de acordo com a planta de 1895 (figura 1). Nas primeiras décadas do Século XX, a Avenida Afonso Pena e a Rua da Bahia tornaram-se os principais espaços de articulação urbana de Belo Horizonte. Era nessa avenida e nessa rua que se davam o maior fluxo de pessoas e de veículos diariamente, segundo Borsagli e Medeiros (2013). O Estado interventor permitiu a continuação da urbanização dentro da zona compreendida dentro da Avenida do Contorno próximo à Serra do Curral. A partir disso foram necessárias a regularização e a finalização da Avenida Afonso Pena e seu entorno. Após a retomada dos investimentos, tornou-se possível a finalização da Avenida Afonso Pena no trecho aberto entre a Praça 21 de Abril (Praça Tiradentes) e a Praça do Cruzeiro (Praça Milton Campos). Esta parte da avenida se caracterizava pela predominância de casas residenciais. Muitas delas já existiam mesmo estando a Avenida ainda inacabada até 1927. A região abaixo da Praça Tiradentes continuava apresentando uma função mista, com predominância de casas comerciais, terrenos e edifícios institucionais, concentrados na sua maioria nas proximidades do Parque Municipal. Em 1924 foi inaugurada a Praça Quatorze de Outubro, no cruzamento das Avenidas Afonso Pena e Amazonas, logo após foi denominada como Praça Sete de Setembro marcando o hipercentro de Belo Horizonte nas décadas seguintes, deslocando o espaço de articulação urbana do cruzamento da Rua da Bahia e Afonso Pena para o cruzamento da Avenida Amazonas. Segundo Borsagli e Medeiros (2013), até a década de 1940 ainda existiam muitos sobrados de dois pavimentos, destinados ao uso comercial e residencial. Ainda na década de1940 a Prefeitura lançou o regulamento de construções que permitiu o aumento da densidade da área central, incentivando a verticalização. Ainda segundo Borsagli e Medeiros (2013), a avenida Afonso Pena conservou-se na década seguinte de acordo com o projeto original, o prolongamento de 1940 permaneceu até a década de 1960 como uma larga estrada de terra próxima ao Parque Amilcar Vianna Martins (Caixa D'água), em direção à Serra do Curral. A avenida e suas árvores haviam sobrevivido praticamente intactas às transformações ocorridas no seu REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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entorno durante a primeira metade do século XX. A arborização da Afonso Pena era marca registrada da capital mineira, mas as árvores não sobreviveram ao intenso processo de urbanização e impermeabilização do solo urbano que acontecia na capital desde a década de 1950, responsável pelas mudanças na paisagem urbana que também sepultariam os principais cursos d’água da capital, em prol da mobilidade urbana, uma política vigente até os dias atuais. No final de 1962 foi retirado da Praça Sete o monumento comemorativo do centenário da Independência, o famoso “Pirulito”, sob alegação que obstruía o já caótico trânsito das Avenidas Amazonas e Afonso Pena, local que havia se tornado o “epicentro” da capital mineira. De acordo com Silva e Ziviani (2016), as reformas feitas na Praça Sete, podem ter relações diretas com a intenção de reprimir as manifestações públicas que ocorrem no local desde as primeiras décadas de existência de Belo Horizonte. Como pode ser observado na figura 2.
Figura 2 - Praça Sete na década de 1960.
Fonte: Borsagli, 2012 As profundas transformações da paisagem urbana ocorridas nas décadas de 1960 e 1970 viriam a descaracterizar a Afonso Pena, antes vista como um dos mais importantes cartões postais de Belo Horizonte, ponto de encontro da população, da construção de uma REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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sociabilidade e de manifestações populares e de resistência. Ela havia se tornado, com a evolução urbana, uma via rápida, onde reinavam a pressa e o não relacionamento. Em meio à metropolização e congestão urbana da região central, a malha urbana começa a se expandir para as partes de topografia mais altas da Avenida, próximas à Serra do Curral. Nessa expansão a Avenida Afonso Pena teria um papel central, por permitir uma melhor mobilidade entre o centro e a região sul, ao dar continuidade à via, como proposto em 1940 na gestão JK. Em 1966 foi criado o parque das Mangabeiras. Desde a finalização da Afonso Pena na década de 70 ela continua exercendo o papel de principal eixo articulador da zona urbana inserida dentro da Avenida do Contorno. Com pouco mais de quatro quilômetros de extensão a avenida continua sendo a artéria responsável pelo recebimento dos fluxos viários de grande parte das zonas sul e oeste da capital e abriga ainda a Estação Rodoviária, a Praça Sete, principal marco simbólico da capital e a sede da Prefeitura. A avenida Afonso Pena continua exercendo a função de artéria principal da cidade planejada, responsável pela ligação direta entre a parte mais baixa da capital às partes mais altas, atravessando toda zona planejada e canalizando os fluxos provenientes dela, tanto populacional quanto viário. Sem dúvidas, uma avenida que apresenta grandes contrastes e diversidades ao longo do seu trajeto. Para que se possa analisar a espacialidade da Avenida Afonso Pena decidiu-se por regionalizá-la em três recortes espaciais, como pode ser observado no Mapa 1, que serão apresentados e analisados a seguir. Considerada a sua importância para a capital mineira, a Avenida Afonso Pena recebe fluxos diários intensos, que revelam sua grande capacidade de mobilidade e utilidade para os que a frequentam. E, assim como Belo Horizonte é a capital promulgada como a moderna, através da avenida Afonso Pena, é possível analisar as implicações do moderno através das diferentes temporalidades encontradas nos fluxos que a avenida recebe ao longo de sua extensão. Foram definidos três recortes espaciais para o eixo de análise, pelas suas peculiaridades tão presentes e reveladas através dos fixos e fluxos. A “Baixa Afonso” Pena se caracteriza como uma região com intenso fluxo devido às suas apropriações de uso; a “Média Afonso Pena” é apresentada como uma região de transição entre a “Baixa Afonso Pena” e a “Alta Afonso Pena”, que revela grandes disparidades de uso, ao reconhecê-la como oposta ao percebido na “Baixa Afonso Pena”.
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Ao longo de sua caracterização, será perceptível a influência da paisagem como a
indicadora de diferentes usos e apropriações ao longo da avenida, assim como a disparidade da modernidade, como ela é e representa Belo Horizonte.
Mapa 1 – Espacialidades da Av. Afonso Pena BH/MG
Regionalização da Avenida Afonso Pena “Baixa Afonso Pena” A Avenida Afonso Pena é uma via responsável pela maior parte do deslocamento do fluxo viário e populacional proveniente de diversas regiões da capital mineira. A região que denominada “Baixa Afonso Pena”, segundo o Mapa 1, inicia-se na Rodoviária, e estende-se até o Othon Palace Hotel, que se localiza na própria avenida no número 1050. Essa primeira região foi, desde sua origem, uma das mais movimentadas e dinâmicas da capital. O fluxo de pessoas e a presença de um comércio significativo tiveram início ainda no final do século XIX. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Segundo Silva (1991), A Estação Rodoviária central era utilizada como ponto de
acesso às grandes casas comerciais e prédios públicos. Com isso as pessoas utilizavam a Rua da Bahia que, juntamente da Avenida Afonso Pena, consolidaram-se como principais espaços de articulação urbana de BH. Nessas vias se concentravam o maior fluxo de pessoas e de veículos da capital. Nesta mesma esquina, da Avenida Afonso Pena com Rua da Bahia, se consolidou a primeira centralidade da capital. Soma-se a isso a existência de um ponto final dos bondes, que incentivou e dinamizou essa espacialidade. Construída no início da Avenida Afonso Pena, a Feira Permanente de Amostras teve sua inauguração em 1935 e chamou atenção da população por ser até então o prédio mais alto de BH. Da sua torre era possível ver toda a cidade, como pode ser observado na figura 3. É importante mencionar que essa edificação foi construída no local do antigo mercado municipal. O prédio da Feira Permanente de Amostras (Figura 3) foi demolido para a consolidação de uma nova concepção moderna, a das edificações verticais. Com a implantação deste prédio na Afonso Pena houve aumento do fluxo de pessoas e veículos, pois o prédio era utilizado tanto para atender o comércio e os agricultores quanto para as indústrias de Minas.
Figura 3 - Prédio da Feira Permanente de Amostras (Início do séc. XX)
Fonte: Werneck, 2012. Em 1965 o prédio foi demolido para a construção do, até então, primeiro terminal rodoviário do Brasil, inaugurado em 1971. Com isso a Afonso Pena se consolida como Avenida de grande fluxo da capital. O grande comércio se localiza na parte "mais baixa" REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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por conta da facilidade de localização e por estar na parte central da Capital, este mesmo local que se transforma à noite com a diminuição do comércio e fluxo de pessoas, cedendo espaço para outro tipo utilização, como, por exemplo, o da prostituição. Definida a “baixa Afonso Pena”, essa região é considerada como uma das partes mais antigas do centro de BH, caracterizada pela presença dos primeiros prédios da capital, as primeiras moradias de baixo custo e também as primeiras lojas de comércio, trazendo para a região um caráter mais urbano e popular, pois é considerada a área da avenida apropriada pelas classes sociais de menor poder aquisitivo. Na “baixa Afonso Pena” o fluxo intenso de pessoas, os shoppings populares, o comércio intenso de vários tipos de produtos, as zonas de prostituição, os moradores de ruas que são elementos comuns da paisagem, que ali se aglomeram em cantos, debaixo de marquises se apropriando do espaço, tomando aquilo como seu território, caracterizam essa espacialidade da Avenida. Da rodoviária até a Praça Sete, nota-se uma parte muito dinâmica, seja por sua grande influência comercial ou por sua importância nas questões administrativas da capital, devido à presença de alguns edifícios públicos. Toda essa diversidade de elementos fixados ali constrói uma baixa Afonso Pena de fluxos, de transições rápidas, uma parte heterogênea. Subindo a Avenida em direção à Serra do Curral, há diversos cruzamentos com ruas significativas da capital, vários edifícios e lojas, dentre os quais destaca-se o edifício Ibaté, o primeiro arranha-céu de BH, cujo nome significa “o ponto mais alto” em tupi-guarani, (localizado na esquina da Rua São Paulo com Avenida Afonso Pena, para fim exclusivamente comercial). Próximo à Praça Sete (Figura 4), no encontro das avenidas Amazonas, Rio de Janeiro e Carijós, localiza-se o ponto do clímax do movimento da capital, talvez o ícone mais apropriado para se lembrar do novo centro da metrópole em processo de modernização. O obelisco tornou-se um dos marcos mais representativos do centro da cidade. No seu entorno é possível identificar ainda os prédios do Cine Teatro Brasil (1932), o Banco da Lavoura (1946) e o prédio do Banco Mineiro da Produção (1953), o edifício onde funciona o Posto de Serviço Integrado Urbano (PSIU) desde 1998, que foi construído no final do século XIX e abrigou a sede do Banco Hipotecário e Agrícola do Estado de Minas Gerais (Tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), o imóvel totalmente reformado em 2009). Grupos
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religiosos, culturais, sociais e políticos ali se manifestam de maneira muito regular e ganham foco com esses protestos, devido ao fluxo ali existente.
Figura 4 - Avenida Afonso Pena com o Obelisco (popularmente conhecido como Pirulito da Praça Sete)
Fonte: Morais, 2014. Com 120 metros e 30 andares, inaugurado em 1934, o edifício Acaiaca abrigou inúmeros tipos de estabelecimentos, já abrigou cinema, lojas de roupas femininas, boate, escola e teve importância na vida política, como pelo grupo conhecido como os Novos Inconfidentes, grupo empresarial que se reunia para planejar um golpe de estado. Além disso, a sede mineira do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também funcionaram neste prédio, o que o tornou um polo de cultura. No final da “baixa Afonso Pena”, localiza-se o cruzamento da avenida com a Rua da Bahia e em sua esquina o elemento que, pode ser considerado o mais contraditório, o Belo Horizonte Othon Palace, observado na figura 5. O hotel, construído na década de 1970, marca de uma controvérsia, em contraste com a “baixa Afonso Pena” é a região mais popular enquanto esse hotel apresenta um conceito elitizado para o local, sendo um dos hotéis de maior importância em BH. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Figura 5 - Belo Horizonte Othon Palace Hotel
Fonte: Vanessa, 2014.
Assim, a parte mais antiga da Avenida é evidenciada pela existência de prédios antigos, os primeiros da capital a testemunhar o começo do processo da verticalização, a intensificação do comércio, o enorme fluxo de pessoas, as manifestações e a demonstração da metropolização, ocorrida em um tempo curto na capital de Minas Gerais. “Média Afonso Pena” A fim de se realizar a análise da produção do espaço da Afonso Pena, considerouse como “Média Afonso Pena” a região da avenida que começa no quarteirão do Palácio das Artes e se estende até a Praça Milton Campos. Nesse recorte da paisagem, nota-se aspectos relacionados à produção de sentido de monumentalidade na Avenida. Nesse sentido, no que tange a perspectiva da construção do lugar enquanto categoria geográfica possível de ser trabalhada no campo epistemológico, a monumentalidade nem sempre é associada a uma possibilidade dessa construção, uma vez que, segundo Carlos (1996), “é através de seu corpo de seus sentidos que ele [o homem] constrói e se apropria do espaço e do mundo. O lugar é a porção do espaço REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus moradores.”. Nesse quarteirão, nota-se a transição de uma “baixa Afonso Pena” para uma “alta Afonso Pena”. Nesse “recorte” da Avenida destacam-se equipamentos públicos municipal, estadual e federal, como o prédio da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o Parque Municipal, Teatro Francisco Nunes, Palácio da Justiça, o Conservatório da Universidade Federal de Minas Gerais e o Palácio das Artes. Estando localizada no centro de Belo Horizonte e, como mencionado anteriormente, por ser dotada de monumentalidade, a avenida é uma referência espacial para trabalhadores e transeuntes que perpassam a região diariamente. Por esse motivo, é possível notar que a região funciona como catalisadora de fluxo de pessoas de diferentes lugares, a exemplo dos cidadãos da metrópole interessados em acessar os equipamentos ali localizados a turistas que param com o intuito do registro fotográfico da estátua de Tiradentes ou da arquitetura arrojada do Palácio das Artes (figura 6). O Parque Municipal assume papel de destaque entre os frequentadores com o intuito de permanência e/ou lazer na avenida, caracterizando-se enquanto um espaço do encontro. Nesse sentido, torna-se importante ressaltar a característica paisagística do parque, que conta com espécies nativas e exóticas (principalmente de origem europeia) que, além de conferir conforto visual, serve como uma amenidade do microclima. Figura 6 - Palácio das Artes
Fonte: Morais, 2014. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O Parque Municipal foi planejado (figura 7) para ocupar uma região muito mais
extensa que hoje ocupa (GÓIS, 2003). Porém, com o intuito de criar novos espaços para maximizar o uso do solo urbano, a fim de se impulsionar o desenvolvimento da capital, uma parte significativa do parque foi cedida para outros fins.
Figura 7- Parque Municipal de Belo Horizonte (1926)
Fonte: Paulo, 2008. Percebe-se nesse trecho da avenida um caráter de transição. Pois, ao contrário do que foi observado na “Baixo Afonso Pena” (que era dotada de um caráter popular e de intenso fluxo de pessoas, principalmente por efeito da Rodoviária), o padrão de uso vai, aos poucos, assimilando as características da “Alta Afonso Pena” (que será trabalhada no tópico seguinte), com funções mais especializadas e voltadas para atender as classes mais abastadas. A elevação desses padrões de serviços e consumo torna-se evidente de acordo com a variação da altimetria da avenida, tornando-se muito expressivo nos arredores do bairro Mangabeiras, cujo metro quadrado é um dos mais caros de Belo Horizonte. O comercio popular é cada vez mais escasso nessa região. A falta de equipamentos voltados para atender as classes menos privilegiadas é bastante notável nesse trecho. Percebe-se também que as atividades comerciais vão aos poucos cedendo lugar para edifícios com outros fins. A Praça Tiradentes é outro marco importante da Avenida (apesar de que a praça também está restrita a um caráter de monumentalidade, uma vez REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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que pouco se percebe a permanência de pessoas por ali) evidenciando o saudosismo da Inconfidência Mineira enquanto um indicativo de identidade da nova capital – que desde a concepção pretendeu-se romper com o “arcaico” do período colonial – além da Praça Milton Campos que carrega o nome de um Estadista mineiro.
Figura 8 - Praça Milton Campos
Fonte: Cardoso, 2014.
Torna-se perceptível ao olhar que o fluxo de pessoas é diminuído de acordo com a variação da hipsometria do local, quanto mais próximo a Praça da Bandeira, menor a presença de transeuntes. No “sentido Serra do Curral”, percebe-se outros usos da Avenida e dos equipamentos no entorno, evidenciando estruturas diferentes que visam atender as demandas de grupos pertencentes a camadas sociais mais abastadas. Desta forma, as análises e as comparações realizadas durante o percurso da avenida evidenciam grandes diferenças nas características espaciais. O grande fluxo de trabalhadores e transeuntes não chega com a mesma intensidade ao “alto da avenida”, pela própria característica do planejamento e do direcionamento do uso para as classes médias, como mencionado anteriormente. Porntato, é interessante notar como a alteração da paisagem ( e dos equipamentos ) ditam os fluxos, evidenciando que o que foi recortado enquanto “Média Afonso Pena” trata-se de uma espacialidade transitória.
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“Alta Afonso Pena”
O que denominamos de “alta Afonso Pena” compreende o trecho que vai do cruzamento da Avenida Afonso Pena com a avenida do Contorno, nos bairros Cruzeiro/Serra, até a Praça da Bandeira no bairro Mangabeiras, portanto a parte da avenida fora da região central de Belo Horizonte. O trecho é localizado numa região nobre de Belo Horizonte e contém características distintas (residencial e empresarial) e semelhantes (turística) de outras regiões da avenida. Pontos principais da “alta Afonso Pena”: Praça Milton Campos - Praça localizada no cruzamento da avenida Afonso Pena com a avenida do Contorno. Conta com a estátua de Milton Campos no centro, além da Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC), a Associação Hispano-Brasileira Instituto Cervantes e o Cartório 6º Ofício de Notas João Teodoro da Silva. No decorrer da Alta Afonso Pena, há, predominantemente, construções verticais modernas que evidenciam uma nova tendência arquitetônica das grandes metrópoles mundiais. Prédios com fachadas de vidro contrastam com as antigas construções de meados do século passado (localizadas principalmente na Baixa e Média Afonso Pena). Essas mudanças aparecem como uma forte concepção arquitetônica da modernidade. Belo Horizonte, que desde sua origem procurou se afirmar como moderna, se mostra adepta a esse tipo de construção. Um marco localizado nesta parte da Avenida é a Praça da Bandeira. Localizada no final da Avenida Afonso Pena, início da avenida Agulhas Negras e cortada pela avenida Bandeirantes, próxima à serra do Curral; a praça é conhecida por ter hasteada no centro a Bandeira Nacional, trocada de ano em ano pelo desfile do dia 7 de Setembro. É possível notar, mais ao sul da Avenida, uma pequena comunidade, que contrasta com o elitismo e imponência da Alta Afonso Pena. A Vila Santa Isabel, visualizada na figura 9, com suas residências típicas de classe baixa, é remanescente de uma favela maior, a Pindura Saia. Segundo Melo (2012), a vila surgiu no início do século passado. Por incrível que pareça, os conflitos de classes e as ações higienizadoras das elites que ali moram, não são muito frequentes. São atenuados por uma necessidade de mão de obra, oferecida por parte dos moradores da Vila, e pelo discurso da “diversidade urbana”.
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Figura 9 – Comunidade Vila Isabel
Fonte: Diniz, 2014 Em direção à Serra do Curral, no sentido sul da Avenida, chegando à Praça da Bandeira, é possível notar mansões horizontais luxuosas (que contrastam com outras habitações da Avenida, por sua horizontalidade e altos valores dos terrenos), habitadas por pessoas de classes altas que não consideravam mais interessante viver no centro urbano da cidade, impondo certa soberania, que é dotada de amenidades, pelos aspectos naturais da área como a Serra do Curral e geomorfologia do local. Encontram-se na área mais alta da Avenida as camadas mais elevadas da sociedade. A Praça da Bandeira (figura 10) marca o fim da Avenida Afonso Pena ao sul. Dali é possível ver os prédios luxuosos e as mansões de alto padrão do Bairro Mangabeiras.
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Figura 10 – Praça da Bandeira
Fonte: Borsagli, 2012
Considerações finais Belo Horizonte, uma cidade de dimensão considerável, expressa sua sociedade dentro de uma linha reta de 4 km, chamada Avenida Afonso Pena, de uma maneira que, em nenhuma outra localidade percebe-se tão nitidamente tanta diversidade, cultura, contradição e temporalidade com um toque tão monumental na grande metrópole mineira, a Avenida tem por "sobrenome" Modernidade. Cortando a área central da capital, uma das Avenidas mais antigas de BH integrando os bairros Centro, Boa Viagem, Funcionários, Savassi, Serra e Cruzeiro; que desde a sua fundação passou por várias transformações em seus aspectos seja arquitetônico, social, cultural e econômico, se reproduz de forma rápida pela e para a sociedade, se tornando como a via artérial da região central de BH com grande importância que teve no passado e mais ainda na atualidade. Ao caminhar pela extensão da Avenida, percebe-se que os espaços se diferenciam entre si: a “Baixa Afonso Pena”, que se destaca pelo intenso fluxo de automóveis e pessoas, com um comércio eloquente e popular, abrigando um dos mais importantes equipamentos da capital, sendo a rodoviária ou a Praça Sete, espacialidades contínuas de manifestações populares onde se cruzam religiões, ideais, classes e etnias, coisa típica de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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cidade grande. Na parte “Média da Avenida” temos importantes equipamentos como o Parque Municipal, Palácio das Artes, Prefeitura e importantes edifícios. Esse recorte assume um caráter transitório entre a “Baixa e Média Afonso Pena”, sendo a representação do recorte nos aspectos turístico e arquitetônico, variando entre prédios antigos como o Palácio da Justiça até a tendenciosa esquina dos espelhos na Praça Tiradentes. Quanto mais se acentua a declividade da Avenida, mais se eleva o padrão de vida e mais se reduz os fluxos, o requinte borda a chamada “Alta Afonso Pena”, onde se encontra os serviços de padrão sofisticado da Avenida, que reconfigura-se em uma mescla de residências e empresas. Nesse "degradé" de realidades, se debruça esse trabalho, que evidencia as diferenças encontradas em uma mesma localidade, e expõe a riqueza de culturas e contrastes existentes numa mesma Avenida, a moderna Afonso Pena.
Referências ARREGUY, Cintia Aparecida Chagas; RIBEIRO, Raphael Rajão. Histórias de bairros de Belo Horizonte: Regional Centro-Sul. Belo Horizonte: APCBH/ACAP-BH, 2008(a). BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996. BELO HORIZONTE, Plambel. O processo de formação de Belo Horizonte 1897-1970. Belo Horizonte: Plambel, 1979. BLOG CURRAL DEL REY. A Avenida Afonso Pena. <http://curraldelrei.blogspot.com.br/>. Acesso em nov. 2014.
Disponível
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BORSAGLI, ALESSADRO; MEDEIROS, FERNANDA. G. L. O Racionalismo como Progresso: A Avenida Afonso Pena e sua Influência no Crescimento Urbano de Belo Horizonte. UERJ, Rio de Janeiro, 2013. 19p. BRITO, Fausto; SOUZA, Joseane. Expansão Urbana nas Grandes Metrópoles. São Paulo em Perspectiva, 2005. 63 p. CARLOS, Afa. O lugar no/do mundo. São Paulo, Editora Hucitec. 1996 CARLOS, Ana. F. A. O Espaço Urbano: Novos Escritos sobre a Cidade. São Paulo: FFLCH, 2007, 123p. CORRÊA, Roberto L. O Espaço Urbano. 3ª Edição, n. 174, 1995, 16p. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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GÓIS, Aurino José. Parque Municipal de Belo Horizonte: público, apropriações e significados. Dissertação de mestrado entregue ao Curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2003. MELO, Tatiana. S. D. A Vila Santa Isabel na Avenida Afonso Pena: A experiência positiva da moradia popular em região central de Belo Horizonte. Escola de Arquitetura UFMG, Belo Horizonte, 2012, 232p. MONTE-MOR, ROBERTO. L. O Que é o Urbano, no Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro, v.21, n.3, 2005, 18p. PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Av. Afonso Pena. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/busca.do;jsessionid=4B98CB54289318D94460A6 37794EF53A.portalpbh1b?busca=Avenida+Afonso+Pena&evento=Ok>. Acesso em Out. 2014 LEFRÉBVE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte, UFMG, 1999,178P. SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Hucitec, 1988. 29 p. SILVA, Luiz. R. D. Doce Dossiê de BH. Editora Gráfica, 1991, 232p. UFMG. A Região Metropolitana de Belo Horizonte. Disponível <https://www.ufmg.br/boletim/bol1702/4.shtml> Acesso em nov. 2014.
em:
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RECONSTRUINDO UMA MEMÓRIA ESQUECIDA: A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE CONTAGEM EM SEUS PRIMÓRDIOS E O LUGAR DO POVO NEGRO
REBUILDING A FORGOTTEN MEMORY: THE BROTHERHOOD OF OUR LADY OF THE ROSARY OF CONTAGEM IN ITS EARLY BEGINNINGS AND THE ROLE OF PEOPLE OF COLOR Kelly Rabello*
Resumo O artigo tem como objetivo apresentar a história da fundação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem/mg, destacando o lugar concedido ao negro em sua estrutura. O trabalho se divide de acordo com os recortes dos documentos primários utilizados. Assim, analisa-se primeiramente a fundação da associação, em 1867, e a construção da capela; posteriormente, as inconstâncias da instituição na virada do século xix ao xx e, por fim, a reestruturação da Irmandade no contexto da década de 1970, encerrando o texto com a referência à demolição da capela de nossa senhora do rosário, em 1973. O estudo apresenta como elementos conclusivos a ideia de que ao longo de um século a comunidade negra foi deixada à margem da estrutura organizacional da Irmandade, apesar de atuante em suas atividades festivas. Mais tarde ganhou representatividade, entretanto sua capela foi destruída, demonstrando o descaso de seus valores perante as autoridades locais. Palavras-chave: Irmandade de Nossa Senhora do Rosário; Contagem; negros. Abstract The article is aimed to present the history of the brotherhood of our lady of the rosary from Contagem/mg, explaining the participation of the black community in the sisterhood. This paper is divided in accordance with the cutouts of primary documents used. Thus, it first analyzed the foundry of the association, in 1867, and the building of the chapel. Posteriorly the inconstancy of the institution at the turn of the century xix to the xx, and the restructuring of the sisterhood in context of the 1970s, closing the text with a mention for demolition of the our lady of the rosary chapel in 1973. The study presents as conclusive elements the idea that for a century the black community was left *
Mestranda em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista CAPES. kellyarabello@yahoo.com.br. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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on the fringes of the organizational structure of the sisterhood, although active in its festive activities. Later it gained representativeness, however its chapel was destroyed, showing the neglect of its values before the local authorities. Keywords: brotherhood of our lady of the rosary; Contagem; black.
As Irmandades são associações religiosas formadas por leigos que, no Brasil, desde o século XVI, se unem com as finalidades principais de atribuir devoção a um santo específico e de oferecer cooperação mútua entre os associados. A atuação destas instituições, bem como a execução das festas de congado e as coroações do reinado, que aconteciam em seu seio, foi difundida ao longo dos anos, principalmente no estado de minas gerais, onde são significantes ainda nos dias de hoje. No contexto do Brasil colônia, as motivações para a grande adesão de membros a estes grupos eram diversas e perpassavam pelos aspectos de exercício da fé, bem como ao assistencialismo que era ofertado por estes núcleos. As organizações destas instituições eram definidas a partir da cor da pele e da posição social que os seus membros ocupavam, sendo a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário a mais comum entre os “homens de cor”, havendo destaque também à adesão destes àquelas em homenagem a São Benedito, Santa Efigênia e São Elesbão. A devoção dos negros por estes oragos se explicavam pela afinidade epidérmica, pela origem social e geográfica ou pela identificação com suas histórias de vida. (BOSCHI, 2007, p.66-67). Estas associações estavam diretamente vinculadas à igreja católica, sendo que geralmente cada templo abrigava várias Irmandades, onde seus filiados devotavam os santos padroeiros utilizando-se de altares laterais. Tamanha a força que estas redes ganharam, muitas delas, ao longo do tempo, conseguiram erguer seus próprios templos. (REIS, 1999, p.50). Diante deste quadro, Boschi (2007, p.64) pontua a significância destas associações como promotoras de atividades culturais que, para além da realização de festas, tiveram importância considerável na configuração da arquitetura religiosa da época. Nas minas coloniais, foco de grande exploração econômica, a presença das Irmandades foi sentida de forma intensa. Importante ressaltar que “a população colonial se constituía apenas de poucos senhores brancos e de muitos escravos negros, além de índios que viviam espalhados pelas selvas e pelos sertões do Brasil antigo” e, no caso da REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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capitania das minas gerais, “durante todo o período colonial, os números relativos ao escravismo (...) Foram impressionantes.” (PAIVA, 2007, p.505). Diante da grande quantidade de escravos, as associações religiosas que se formavam pela população negra eram numerosas, sendo, inclusive, a primeira Irmandade documentada na região em devoção a nossa senhora do rosário. (BOSCHI, 2007, p.66). Não apenas, mas especialmente no caso dos grupos compostos por escravos, as Irmandades eram um importante veículo de sociabilidade, onde os agregados trocavam experiências e se apoiavam mutuamente em suas necessidades. Eram, assim, ambientes de trocas e fortalecimento de uma cultura comum. “As Irmandades davam aos negros a oportunidade de desabafar suas agruras, expressar suas necessidades e, até mesmo, tentar influir em seu futuro, procurando tornar suas vidas mais suportáveis.” (BOSCHI, 1986, p.152). Além destes significados, são de especial relevância os aspectos religiosos derivantes das práticas sincréticas que eram vivenciadas no âmbito destas associações. Espaço de coesão grupal, espaço de devoção, espaço de (re)construção de identidades, os únicos que lhes eram facultados formar, as confrarias instituídas pelos negros, para além de promotoras e locais de práticas sincréticas, impuseram-se porque nelas se revitalizaram as referências culturais africanas. (BOSCHI, 2007, p.69). Segundo Russell-Wood (2005, p.199-200), o século XVIII foi o apogeu de fundação das Irmandades religiosas e, neste contexto, “seria verdadeiro dizer que para cada pessoa, negra ou mulata, homem ou mulher, escrava ou livre, e para cada origem tribal e local de nascimento (crioula, ou seja, nascida no Brasil, ou vinda da África) existia uma Irmandade na qual poderia encontrar seus iguais.” A expressividade destas Irmandades no século XVIII favoreceu as condições para que permanecessem no XIX. Entretanto, formava-se neste contexto a ideia de nação Brasileira, onde algumas marcas da cultura popular foram limitadas, pois não correspondiam às caracterizações da ordem imperial. Gabarra explica que as associações no século XIX, como as devotas do rosário: Desempenhavam a função de mediadoras entre os limites indiscutíveis de cada um dos regimes de temporalidade que convivem no festejo. Se, por um lado, a sociedade de súditos de reis africanos incomodava o universo da ordem, por outro, era impossível mantê-lo sem ela. O espaço da sociabilidade de escravos e libertos que se constituiu em torno dos reis congos negociava, através de brechas mais estreitas, com o mundo do governo da sociedade escravista. (GABARRA, 2009, p.164).
Através desta negociação, as festas de coroação aos reis negros, prática comum às Irmandades de nossa senhora do rosário, foram difundidas no Brasil ao decorrer do século REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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XIX. Marina de Mello e Souza (2002, p.128) avalia que a realização destas festividades, principalmente entre o final do século XVIII e meados do XIX, foi condicionada a uma junção de fatores distintos, que favoreciam tanto à comunidade negra, quanto aos senhores que, se desejassem, detinham a autoridade de reprimir as manifestações deste cunho. Assim, cada localidade viveu uma realidade específica frente às restrições que foram impostas neste contexto, e cada associação se moldou conforme as condições vigentes. No caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, fundada no município mineiro de Contagem, a criação desta associação se deu, possivelmente, em meados do século XIX, sendo constituída de modo em que a elite contagense assumia os cargos de direção do grupo, enquanto os negros ocupavam o papel de atuação nas atividades festivas. Sendo assim, estes últimos atuavam sob o domínio da sociedade branca.
1.
A fundação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem A origem do município de Contagem é retratada através de diferentes versões na
literatura e nos relatos dos contagenses. Entre as narrativas apresentadas pela história oral, há a que diz sobre a existência de uma família, cujo sobrenome “abóboras” derivou a designação da localidade. Entretanto, na documentação referente ao período, assim como no catálogo de sesmarias, não há elencados nomes de sesmeiros com esta referência. (SECRETARIA, 2009, p.14). Outra versão relata sobre a preocupação dos tropeiros em garantir seus alimentos durante as viagens em direção à vila rica e região, realizando plantação de pequenas roças no caminho, de onde se fazia a Contagem das abóboras que saiam para Sabará, Belo Horizonte e outras localidades, dando assim origem ao arraial. (SECRETARIA, 2009, p.15). Há ainda outra história, esta construída sob documentos dispersos, que indica a existência de um posto fiscal na comarca do rio das velhas, intitulado “registro das abóboras”. Suas primeiras entradas foram datadas em agosto de 1716 e visavam regularizar o fluxo comercial sob a vigília da coroa. Nos arredores deste posto, teria surgido um pequeno arraial que, no entanto, não se configurou como núcleo urbano, tendo se enfraquecido junto ao fechamento do registro. Conta esta versão que, paralelamente, houve a povoação de Sam Gonçalo da Contagem das abóboras, em torno da capela com invocação a São Gonçalo. Por sua vez, neste ponto houve um crescimento que estruturou REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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o atual município de Contagem, cujas funções agropastoris e comerciais foram desenvolvidas entre os séculos XVIII a meados do XX. (SECRETARIA, 2009, p.14). Santos (2017, p.18) aponta que também não há consenso em relação à data de surgimento de Contagem, havendo apenas as seguintes evidências: “1711 (data de concessão de sesmarias), 1716 (data provável do início das atividades do posto fiscal) e 1725 (data gravada no cajado de prata do santo padroeiro da matriz de São Gonçalo do amarante)”.
De acordo com Adalgisa Campos e Carla Anastasia, o arraial de São
Gonçalo da Contagem apresentou uma considerável estabilidade econômico-financeira entre os séculos XVIII e XIX, baseada nas atividades agropastoris. A economia apoiavase no tráfico de escravos e de mercadorias que perpassavam pelos sertões da colônia e, logo, o número de pessoas escravizadas neste contexto era significativo na região. (SECRETARIA, 2009, p.17). As autoras (1991, p.133) explicam que as características de Contagem permaneceram muito semelhantes até meados do século XX, quando então foi pressionada pelo progresso, tendo como marco a criação da cidade industrial. Em relação aos aspectos políticos, durante aproximadamente duzentos anos o povoado pertenceu a Sabará e, em 1901, passou a ser vinculado a Santa Quitéria, atual Esmeraldas. Somente em 1911 Contagem recebeu sua primeira autonomia como município, que entretanto, em 1938 passou a ser distrito de Betim. Apenas em 1948 se tornou cidade independente (santos, 2017, p.19). É válido acrescentar que a política foi caracterizada pelo comando das oligarquias locais, desde a sua primeira emancipação político-administrativa até o início de 1970, sendo as famílias tradicionais da cidade os de sobrenome Cunha, Diniz, Mattos, Macedo, Camargos e Belém. A segunda metade do século XX foi marcada por um grande crescimento populacional em Contagem, o que culminou em transformações significativas na arquitetura e na vida social do povo contagense. De acordo com Santos (2017, p.19), em meio a esse cenário, “resistiram algumas edificações, em antigas fazendas e na sede do município, e tradições de caráter religioso.” Neste contexto, a manutenção de antigos hábitos religiosos pode ser pensada através de processos de adaptações frente às novas realidades locais, como é o caso, por exemplo, da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, atuante ainda nos dias de hoje. Como mencionado por Caio Boschi (2007, p.75), reconhecer a existência destas Irmandades “em pleno século XXI significa, quando nada, que, na essência, sua força persevera”.
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A criação da primeira Irmandade em devoção a nossa senhora do rosário, no povoado de Contagem, bem como a ereção de sua capela, possui datação imprecisa, dada a dificuldade de localização de documentos que as contemplem. Todavia, pode-se encontrar algumas pistas em arquivos primários, bem como na bibliografia sobre o tema. O compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem foi redigido no interior da capela de nossa senhora do rosário no ano de 1867 e aprovado em 1868, pelo bispado de mariana. O dado que aponta a redação no templo religioso é apresentado no trecho final do documento, onde estão inscritos os seguintes dizeres: “consistório da capela de nossa senhora do rosário da Contagem, 4 de agosto de 1867”. (COMPROMISSO, 1867). A elaboração deste texto indica que em tal data havia a formalização da associação, o que não quer dizer que, necessariamente, tenha sido nesse mesmo período em que houve a agremiação dos membros. Pode-se constatar apenas que o templo já havia sido construído em data anterior. Em consultas aos documentos referentes à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, o pesquisador Geraldo Fonseca observa uma provisão disponível no museu do ouro em Sabará, onde há um relato datado de 1858 sobre um zelador, chamado José Antônio da Costa Ferreira. O autor afirma (1978, p.99) que “a provisão fala de zelador da Irmandade e não da capela. Assim, a associação devia ter como templo a matriz ou uma das capelas da paróquia”. Por sua vez, também estudando o município de Contagem, Anastasia e campos fazem a leitura de um registro onde se cita o mesmo José Antônio da Costa Ferreira, como zelador da capela, o que contradiz o apontamento de Fonseca. Na análise das autoras (1991, p.61), a capela teria sido erigida por volta da década de 1940: “se Saint-Adolphe e d. Frei José da santíssima trindade não visitaram a capela do rosário na década de 20 e ela não consta no mapa estatístico de 1932 e nem na cartografia de 1837, é porque foi erigida após essa data, provavelmente entre 1837 e 1845.”Apesar de não existir com clareza um registro que comprove a data de construção da capela e da instituição dos irmãos do rosário, os estudos indicam, portanto, que tenha ocorrido em meados do século XIX. Os documentos primários referentes à organização do grupo mostram ainda que a composição dessa Irmandade foi instituída por homens de boas condições financeiras, sendo a grande maioria fazendeiros. Em sua fundação, a mesa administrativa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário foi composta por: José Antônio da Costa Ferreira, proprietário da fazenda do senhor bom jesus, que em 1858 era responsável pela REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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igreja e que em 1868 tornou-se juiz da Irmandade; Joaquim José de Alvarenga, comerciante de secos e molhados, como tesoureiro; Joaquim Brochado de Macedo, de profissão não documentada, em 1868 secretário da Irmandade. Outros nomes foram identificados como membros instituidores, como: Antônio Teixeira Terraz, juiz de paz e comerciante de secos e molhados; Padre Francisco de Paula e Silva, proprietário de terras; Romualdo José de Macedo Brochado, farmacêutico e juiz de paz; Francisco Liandro da Cunha, comerciante; Pedro d’Alcântara Diniz Moreira, comerciante de molhados e subdelegado; Joaquim Gonçalves da Silva Diniz, proprietário da fazenda campo alegre. (ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.114). A participação desta elite nos cargos de organização da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário indica a predominância dos homens brancos nos postos de direção do grupo. Por sua vez, sobre a presença da população negra em Contagem, consta-se que o antigo arraial possuía presença marcante de escravos, onde os “negros e mulatos” chegaram a ser predominantes entre o número total da população local. Campos e Anastasia apresentam um levantamento quantitativo referente ao ano de 1831, que apresentam o seguinte quadro: “de um total de 2.162 habitantes, 328 fogos (residências), 1.410 eram livres e 752 cativos. Do total 1.760 eram pretos e mulatos.” (ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.101). Assim, o crescimento populacional entre os negros era alto e, em alguns casos, resultante das uniões de cativos de uma mesma família. Como exemplo, há o caso da família de Antônio Victor da Silva Diniz, onde bastou a relação entre apenas dois escravos, Dionízio e Joaquina, para que através de seus sete filhos e vinte netos, a mesma fazenda abrigasse vinte nove homens de uma mesma descendência (ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.108). Apesar deste quadro, assim como característico da sociedade da época, a falta de dinamismo marcava o cenário local em meados do século XIX, onde as elites permaneciam em sua posição de status e os escravos e forros continuavam nas camadas mais baixas da estratificação social. Deste modo, as maiores porções de terras existentes no arraial se concentravam no domínio de algumas famílias, como os Alves, Macedo, Diniz, Ferreira, Freitas, Silva, Soares e, mais tarde, aos Camargos (ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.108). O controle sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário não fugiu, portanto, desta lógica de predominância da elite branca da época. Diante deste quadro, onde vê-se a presença expressiva de negros na sociedade contagense e a formação de uma Irmandade REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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religiosa dirigida apenas por homens brancos, pergunta-se: qual era o lugar ocupado pelo povo negro nesta associação religiosa, tradicionalmente composta pelos “homens de cor”? Anastasia e campos assim consideram: A Irmandade do Rosário da paróquia de São Gonçalo [de Contagem] além de ser tardia, foi mais paternalista que aquelas erigidas, no século XVIII, em arraiais voltados para a atividade mineradora, por ter apresentado uma ingerência muito grande das elites na devoção dos pobres. Diferentemente da Irmandade do rosário dos pretos do distrito diamantino, ou mesmo de sua congênere de vila rica, organizada já no primeiro quartel do século XVIII, o rosário da Contagem, já nas origens, contou com o estrangulamento econômico dos cativos da região. Esta falta de recursos é claramente explicitada no próprio estatuto da Irmandade, de 1868, pois a maior parte dos irmãos instituidores, ali presentes, pertencia à nata da sociedade (...). (ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.113).
Nos estudos sobre as Irmandades dos homens negros do período colonial, Julita Scarano questiona: Que motivos levariam os brancos a ingressar numa confraria de homens de cor? Embora não deixassem de invocar para tanto razões piedosas, parece inegável que a sua presença valia ali por um meio de controle, que acabava por tirar dos irmãos muito de sua independência. (SCARANO, 1976, p.131).
Boschi explica que a presença maciça de brancos nos cargos administrativos das Irmandades das minas coloniais estariam relacionadas à necessidade de se ter pessoas alfabetizadas, que pudessem se responsabilizar pela escrituração de seus livros internos, bem como os termos de mesa e as petições, os registros nos livros de receita e despesa e afins. Isso porque todo este material correspondia às exigências clericais da época e poderia ser controlado pelas visitas eclesiásticas, ou pela prestação de contas através dos ouvidores das comarcas. Neste sentido, dificilmente estes cargos poderiam ser ocupados pelos escravos (BOSCHI, 1986, p.138). O autor (1986, p.139) ainda pontua que “a presença de brancos nos cargos de destaque da administração das Irmandades de negros demonstra a dominação ideológica a que estes estavam sujeitos.” Neste sentido, na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem também se torna evidente que, por um lado havia a posição de controle que era exercida pela elite branca, enquanto por outro os negros podiam exercer seus ritos de devoção à padroeira, mas em espaços limitados. Assim, de acordo com gomes e pereira (1988, p. 148): “as Irmandades do rosário de Contagem seguiram os modelos dos compromissos redigidos no século XVIII. Os negros ocupavam os cargos não deliberativos como rei, rainha, juíza por devoção ou mordomos de mastro.” Os autores citados (1988, p. 149) ainda enfatizam REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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que: “o negro escravo estava antecipadamente impossibilitado de eleger-se para os cargos de maior importância. Na maioria das situações ele não era inserido entre as pessoas devotas com possibilidade de arcar com as despesas.” Curioso é que o compromisso da Irmandade redigido em 1867 apresenta uma abertura para a inserção de membros, independentemente de sua condição social. Isto pode ser lido no capítulo 1º, artigo 1º: “a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, ereta nessa freguesia de Contagem, é associação religiosa de todos os fiéis de um e outro sexo – sem exceção de qualidade ou condição”. (COMPROMISSO, 1867). Embora à primeira vista a instituição pareça ser receptiva aos diferentes tipos de grupos sociais, o corpo do texto apresenta rígidas deliberações quanto ao emprego de fundos financeiros. Logo no artigo 2º do capítulo 1º, é lido que: “será admitido irmão, todo aquele, que dirigindo-se ao tesoureiro, lhe entregar a quantidade de hum mil réis de sua entrada.” (COMPROMISSO, 1867). A pontuação pode ser ainda completada com as taxas anuais: “cada um irmão que se alistar nesta Irmandade, pagará anualmente a quantia de quinhentos réis”. (COMPROMISSO, 1867). Além disso, os irmãos que não cumprissem com suas obrigações financeiras, seriam, por ordem, desligados da associação. Sendo assim, estas exigências delimitavam os contornos daqueles que poderiam apenas se agregar como irmãos do rosário, ou dos que poderiam atingir os cargos mais altos. Outro documento que aborda as taxas entregues pelos irmãos é o Livro de receita e despesa da Irmandade, que traz informações sobre o fundo financeiro da instituição, entre os anos de 1888 a 1890. Conta-se que alguns irmãos faziam pagamentos adiantados de seus anuais, como é o caso de: “Manuel de Matos Pinho, pg. Annuais até 1890, 7 anos.” (LIVRO DE RECEITA E DESPESA, 1889). É importante ressaltar que geralmente os irmãos que se antecipavam na quitação, compunham a mesa da Irmandade e detinham recursos financeiros ou eram pessoas influentes, como é o exemplo da citação transcrita. Manuel de matos pinho atuou como prefeito de Contagem algumas décadas mais tarde, de janeiro a fevereiro de 1933, o que demonstra o seu poder econômico e status social. Ainda no compromisso, se faz possível identificar que para a mesa administrativa era eleito um juiz, um secretário, um tesoureiro, um procurador, doze mesários, e um andador. Além dos cargos da mesa, também eram eleitas duas irmãs, um rei, uma rainha, uma juíza por devoção, dois mordomos de mastro e doze irmãs de mesa. Esses últimos
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agiam com maior representação nas festas realizadas pela associação e não tinham direito de voto nas decisões da mesa, sendo possivelmente estes os cargos ocupados pelos negros. Sobre as principais atribuições da Irmandade, lê-se no compromisso sobre o zelo com a capela e a realização de diversas cerimônias religiosas. Em relação a este último ponto, há o seguinte trecho:
A Mesa ordenará a festividade que a Irmandade costuma a fazer anualmente como sejam a de Nossa Senhora do Rosário, Padroeira da Capela, no dia próprio de seu SSmo. Rosário; os Terços nos primeiros Domingos de cada mês, e o Santo Jubileu das Quarenta Horas na Dominga da Qüinquagésima e nos dias seguintes. (COMPROMISSO, 1867).
À festa de Nossa Senhora do Rosário foi dedicado um capítulo exclusivo que dispõe sobre sua organização, onde se faz possível perceber a relevância que este evento apresentava no calendário da associação:
É rigoroso dever da Irmandade fazer solenizar com a maior pompa que for possível, o Terço da primeira Dominga de outubro, ajudando aos Juízes que forem nomeados para ele, porque se lucram muitas graças e indulgências, concedidas pelo Sumo Pontífice aos Irmãos do Rosário. (COMPROMISSO, 1867).
Dados sobre estas celebrações também são identificados através dos registros de gastos apontados pelo livro de recibos, onde anota-se tanto sobre a reza do terço, quanto à festa do reinado. Em relação ao primeiro, há:
Recebi do actual Thesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario desta Freguesia a quantia de quarenta mil reis (40¢000) que venci nos Terços das primeiras Domingas dos Meses de conformidade com o Compromisso e forão 5 terços que fis por ordem do respectivo Procurador. Passo este por ter recebido e para que conste. Contagem 31 de dezembro de 1881. O Vigário José João Nunes Moreira. (LIVRO DE RECIBOS, 1881).
Quanto ao reinado, descreve-se:
Recebi do actual Thesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario desta Freguesia a quantia de R16000 da muzica no reinado do anno de 1881 e por REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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ter recebido passo a prezente. Contagem 9 de fevereiro de 1882. Domingos J. D. Silva. (LIVRO DE RECIBOS, 1881). Recebi do actual Thesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario erecta nesta freguesia oito mil reis (8:000) que venci na Festa intitulada do Reinado; e por ter recebido passo este. Contagem 10 de fevereiro de 1882. O vigário Pe José João Nunes Moreira. (LIVRO DE RECIBOS, 1882).
O livro de Receitas e Despesas (1889-1890) apresenta uma série de contribuintes, onde, apenas através da leitura, não se faz possível localizar quais os setores sociais às quais estavam inseridos os doadores de “esmolas”. No entanto, no intuito de se identificar a presença de pessoas negras associadas à esta Irmandade, destaca-se a seguinte referência, datada nos registros de 1888/1889: “quantia entregue por Camilo Silvério como regente de congado”. (LIVRO DE RECEITA E DESPESA, 1888/1889). Este trecho indica a execução do congado, festividade em que se celebra a coroação de reis e rainhas negros, comumente realizada desde o Brasil colonial no interior das Irmandades em invocação à nossa senhora do rosário. Além disso, o documento aponta para a participação de Camilo Silvério, africano, levado para minas gerais como escravo no século XIX (dois pontos, 1992, p.60), pai de Arthur Camilo Silvério, negro que deu origem à Comunidade dos Arturos.
Para os que não conhecem, os Arturos são uma Comunidade familiar, tradicional, de ascendência negra, formada pelos descendentes e agregados de Arthur Camilo Silvério e Carmelinda Maria da Silva. Em sua vivência diária detêm diversas expressões culturais. Os sons e os ritmos ditados pelas batidas dos tambores são constantes em todos os momentos e estão presentes no Batuque, na Folia de Reis, no Candombe, no Reinado de Nossa Senhora do Rosário, na Festa da Abolição e na Festa do João do Mato. (IEPHA, 2014, p.12)
Em relação ao contexto de fundação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, através da leitura dos documentos primários e das referências bibliográficas que versam sobre o tema, constata-se, portanto, que o povo negro era atuante através da realização dos congados e ocupando apenas os cargos referentes aos rituais festivos. Deste modo, não houve espaço para a sua inclusão na mesa diretória do grupo, sendo controlado pelos que alcançavam este status.
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2.
Das inconstâncias documentais do século XIX para o XX A documentação referente a segunda metade do século XIX, no que diz respeito
à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, trata-se dos já mencionados: compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem (1867); livro de recibos da Irmandade do rosário da paróquia de São Gonçalo da Contagem (1875-1897); livro de receita e despesa da Irmandade do rosário da paróquia de São Gonçalo da Contagem (1888-1890). Após os registros dos anos de 1890, do livro de receita e despesa, e de 1897, do livro de recibos, não foram feitas anotações nestes documentos, não havendo nem mesmo uma nota de encerramento em quaisquer um destes. Os arquivos que armazenam a documentação e que versam sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem apresentam como próximo documento apenas o livro de atas datado de 1920 a 1958. A abertura deste livro (1920) mostra que, neste contexto, a mesa provisória foi dirigida pelo Padre Joaquim Martins, que convidou José d’Oliveira para secretário interino e Augusto Teixeira Camargos, José Ferreira de Aguiar e Jovino Camargos como membros. Quanto às eleições para os cargos dirigentes, foi deixado de lado o voto secreto, que deu lugar à ocupação através de alguma sugestão dada por um dos membros da mesa: Deixou de haver eleição por escrutínio secreto porque por proposta do Sn – Augusto Teixeira Camargos foram aclamados unanimente os seguintes senhores: Jovino Camargos, Juis, José Ferreira de Aguiar, Tesoureiro, Randolpho Rocha, Secretario, Joaquim Costa Ferreira, procurador e João Felippe Muniz procurador andador. (LIVRO DE ATAS, 1920).
O cancelamento das eleições pode ter sido uma estratégia eficaz para a liderança dos mais favorecidos e a manutenção das famílias tradicionais de Contagem nos cargos dirigentes, como é o caso da família Camargos, que, como já mencionado, foi marcante na história da cidade dentro do cenário da oligarquia local. O termo de abertura deste Livro de Atas fala ainda sobre uma reorganização da associação: Termo de Abertura. Servirá este livro para lançamento de Actas da Mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, da Freguesia de Contagem, reorganisada, de conformidade com o Compromisso, aos sete de Novembro de 1920. Contem cem (100) folhas rubricadas por mim com a rubrica de que uso e diz JMartins levando na ultima pagina o termo de encerramento. Villa de Contagem, 7 de Novembro de 1920. Pe Joaquim Martins. (LIVRO DE ATAS, 1920). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Haveria assim um vácuo entre os anos de 1897 a 1920, que pode ser lido como uma interrupção nas atividades, principalmente, dado o fato do documento deixar explícita tal “reorganização”. Porém, até mesmo dentro desse livro, percebemos uma inconstância, já que ele finaliza sua primeira parte no ano de 1921 e retoma apenas em 1958, quando então fala sobre o “lançamento das atas da comissão de reconstrução da igreja do rosário em 5-6-58”. (LIVRO DE ATAS, 1958). Possivelmente nessa data a antiga capela, que agora passava a ser chamada de igreja, estaria passando por uma ampliação. No entanto, mais uma vez as anotações foram paralisadas, sendo identificados novos registros apenas em 1972. Outro dado que intriga a pesquisa é que, neste mesmo livro de atas, em janeiro de 1921 registrou-se o seguinte: Ao dia oito de Janeiro de mil novecentos e vinte um no consistório da igreja do Rozario da Freguezia de S, Gonçalo da Contagem as trez horas da tarde conforme a convocação do Prezidente na reunião de posse a primeiro de Janeiro do corrente anno o Sm Alfredo Camargos reprezentante do [ilegível] Thezoureiro João Teixeira Camargos, que por motivo de grave infermidade deixou de comparecer e apresentou os seguintes: Primeiro a entrega de todas as cintas durante o tempo que exerceu o cargo de Thezoureiro de 1º de janeiro de 1891 a 1º de janeiro de 1920 em poder do actual Thezoureiro, verificandose em saldo a favor da Igreja na importância de 140¢150 réis, uma salva velha de prata, 115 metros de tabuas para assoalho, seis livros pertencentes a Irmandade (...). (LIVRO DE ATAS, 1921).
O documento acima menciona que o tesoureiro havia executado suas atividades entre os anos de 1891 a 1920 e que, ainda, o saldo da igreja estava positivo. Além disso, menciona sobre a existência de seis livros, totalidade que não foi identificada nesta pesquisa e que pode cobrir o intervalo de tempo o qual não se identificam registros documentados sobre a atuação da Irmandade. Diante disto, questiona-se se a Irmandade teria sido interrompida durante os períodos de inconstância dos registros identificados, ou se teria ocorrido apenas descontinuidades pontuais, que levaram à sua reformulação posterior. Estas dúvidas não foram sanadas neste estudo, embora façam valer algumas reflexões sobre o contexto vivido na sociedade contagense no período de passagem do século XIX ao XX. Analisando de forma ampla, contextualiza-se as mudanças ocorridas, inicialmente, pela abolição da escravatura, em 1888, a proclamação da república, em 1889 REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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e a separação entre a igreja e o estado vivida neste mesmo período. Situações estas determinantes para alterações no quadro social em toda a extensão das terras Brasileiras e que também atingiram a localidade de Contagem. Geraldo Fonseca pontua que: Em sessão da Câmara dos Deputados de Minas Gerais, a 24 de setembro de 1891, os deputados Severino Rezende e Aristides Caldeira traçam um quadro da caótica situação da agricultura depois da lei de 13 de maio, que não disciplinou o trabalho remunerado obrigatório para os libertos, enquanto que, pouco mais tarde, a constituição impedia criar tal disposição. Evidentemente, senhores e libertos passam não se entenderem. As grandes obras de construção de Belo Horizonte, tão próxima a Contagem, logicamente absorveram boa parte da mão de obra liberta do distrito. (FONSECA, 1978, p.98).
Além disso, Boschi explica que no final do século XVIII e no início do século XIX, a situação financeira e institucional das Irmandades apresentava problemas que culminaram em um quadro de decadência destes grupos. Segundo o autor (2007, p.65), entre as situações encontradas neste contexto estavam: “suspensão de ofícios religiosos; redução de despesas com celebrações, inclusive festas em homenagem aos santos padroeiros; dispensa dos serviços de músicos, artistas e artífices de nomeada (...)”. Para além dessas questões, partindo especificamente para a realidade política de Contagem, há que se considerar que o início do século XX representou uma alternância da dependência da localidade em relação a outras regiões, através do desligamento de Sabará após duzentos anos, e vinculação à atual Esmeraldas, conforme já citado. Portanto, o quadro geral apresentado na região durante este período era de instabilidade e, dentro disto, as questões religiosas, que até então estavam interligadas com as questões políticas, consequentemente foram revisadas a partir da separação dos dois setores. Assim, possivelmente essas transformações ocorridas em Contagem foram fatores que, se não foram determinantes, ao menos foram influentes para que houvesse traços de fragmentações ou interrupções na atuação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Quanto à atuação dos negros nesta associação, o que foi possível identificar no livro de atas, trata-se de uma reunião datada de 1958, em que a Irmandade demonstrava preocupação perante à autoridade diocesana quanto à atuação do Congado: A seguir o Rvdmo. Vigário passou a fazer referencias ao Congado, esplicando a sua situação frente a liturgia e as determinações da autoridade Diocezana. Prosseguindo fez ver que a Igreja pertence a Paróquia, e qualquer solenidade que verifique na mesma, dependeria da autoridade do vigário. (LIVRO DE ATAS, 1958). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Diante desta transcrição, vale mencionar que no período que compreende os
meados do século XIX até a efetivação do Concílio do Vaticano II, década de 1960, a Igreja Católica brasileira sofria interferências diretas do movimento ultramontano, em que buscava-se reagir à “algumas correntes teológicas e eclesiásticas, ao regalismo dos estados católicos, às novas tendências políticas desenvolvidas após a Revolução Francesa e à secularização da sociedade moderna.” (SANTIROCCHI, 2010, p.24). Neste contexto, o catolicismo popular e suas manifestações sofreram intensa vigília, e logo, os Reinados e Congados foram também atingidos. Na circunscrição eclesiástica de Belo Horizonte, ao longo da primeira metade do século XX, os Reinados receberam diretrizes restritivas que foram difundidas em cartas pastorais e em comunicados avulsos. Segundo Oliveira (2011): “a primeira referência à proibição do reinado que aparece nos registros eclesiásticos da diocese de Belo Horizonte data de 1923, dois anos após a posse de Dom Cabral”. Todavia, apesar das diretrizes restritivas aos Reinados, cada localidade e cada Irmandade que apresentava as manifestações congadeiras em sua programação religiosa, reagiu a seu modo. No caso de Contagem, através do documento transcrito, parece ter havido uma tentativa de se controlar as atividades congadeiras, de modo que sua atuação correspondesse às “determinações da autoridade Diocezana” (LIVRO DE ATAS, 1958). No entanto, a escassez de documentos não permite que tal análise seja averiguada em profundidade. Geraldo Fonseca (1978) apresenta a transcrição de um documento relevante para a compreensão de como se dava a execução do congado na Irmandade do rosário em Contagem e de que modo esta manifestação era lida por alguns dos párocos locais: Toma conta da Capela, o Snr. Capitão José Aristides de Salles, que é o Chefe Supremo do Congado no Brasil. As festas consistem em uma Missa às 10 horas, seguindo-se o terço cantado pelas ruas, o resto é dançar, pular, sapatear. Levam o Rei e a Rainha debaixo do Pálio; os negros vão dansando na frente. Por fim, segue o Capitão, vestido de vermelho com cauda e caudatárias; usa manípulo no braço direito, corôa e cetro. Tudo isso é proibido pela Cúria, mas não há vigário que os enfrente.... Durante as festas levantam 5 mastros, que no fim das mesmas põem abaixo. Na última “procissão”, o Capitão vai debaixo de uma umbrela, de cor vermelha e azul. Diz o povo que isso é feitiçaria. Durante as “procissões”, não é permitido rir, senão, o capitão castiga duramente. Mas, neste ano, os “Candongueiros” não tiveram sorte, pois a chuva foi tão grossa que se apagaram as luzes, toda a noite. (FONSECA, 1978, p. 100).
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Apesar da riqueza desta fonte, o autor preferiu omitir os dados de sua referência,
não sendo possível identificar a datação e autoria. Embora haja esta falta de informação, o relato confirma a atuação dos negros nos rituais festivos da Irmandade. Além disso, quando fala sobre feitiçaria ou sobre a resistência destes diante das restrições clericais, reforça a possibilidade da mesa diretória ter sido constituída pela elite branca, entre outros fatores, pela necessidade de controle destas agremiações dos negros que ocorriam em seu seio. Como mencionado, após o ano de 1958 o próximo registro referente à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem identificado nos arquivos data de 1972, quando então inicia-se uma nova configuração neste grupo.
3.
A reestruturação da Irmandade do Rosário, onde os negros ganham novos
lugares Em 1972 foi redigido um Estatuto138 para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, que substituiria o antigo Compromisso datado de 1867. O documento foi adaptado à nova realidade em que se encontrava a sociedade contagense, após a abolição da escravatura e o rompimento do Padroado Régio, e representava a intenção de mais uma reorganização do grupo de irmãos. As adaptações ficaram evidentes nas novas finalidades atribuídas à associação, onde a responsabilidade dos seus membros passou a ser: a) Difundir o Folclore Brasileiro na cidade de Contagem. b) Promover o Intercâmbio Cultural e elevação do nível da união de todos os componentes dentro dos princípios sociais e educativos. c) Patrocinar ou apoiar todas as iniciativas dentro dos mesmos princípios. d) Representar os interesses da I.N.S.R.C. perante os poderes públicos. e) Manter as tradições com elevação de espírito. f) Pugnar pelos direitos da pessoa humana. g) Defender a liberdade dentro do direito para todos, menos para o mal, e os malfeitores. h) Procurar defender a doutrina contida no código familiar da moral social e da justiça. (ESTATUTO, 1972).
Se comparadas tais atribuições ao antigo compromisso, pode-se perceber que, no que tange às questões de registro documental, houve um considerável distanciamento das questões religiosas e devocionais que outrora marcaram os princípios da Irmandade. A 138 ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem. 1972.
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partir do estatuto, a Irmandade do rosário de Contagem passou a ter predominantemente um caráter cultural, sendo uma de suas finalidades cumprir o papel de difusora do folclore Brasileiro, conforme explicitado em seu próprio regimento. Pode-se notar, portanto, que nesse contexto o grupo passava a ser um instrumento de apoio para o estado, que através da organização das manifestações dos irmãos divulgava a manutenção dos grupos associados sob sua tutela. Não foi involuntariamente, que poucos anos mais tarde, em 18 de fevereiro de 1976, a Irmandade foi declarada como instituição de utilidade pública. A irmandade procurou reavaliar a sua atuação, inserindo-se nas mudanças ocorridas na sociedade. (...) Visando substituir as disposições de caráter excludente do antigo Compromisso, o estatuto prepara a associação para relacionar-se juridicamente com os órgãos oficiais. A Irmandade passa a ter uma atividade social, além da tradicional atuação como entidade religiosa. (GOMES; PEREIRA, 1988, p.204).
Por um lado, o Estatuto não apresentava características excludentes como o Compromisso, por outro ponto diluía as marcas das celebrações religiosas que eram mais evidentes no primeiro documento. Identifica-se apenas uma referência, no capítulo que diz sobre qual era papel dos membros, onde estes deveriam: “comparecer aos ensaios e festas comunicadas pelo presidente.” (ESTATUTO, 1972). Essa pequena citação muito se difere do capítulo cedido exclusivamente para a organização da festa de nossa senhora do rosário, descrita no antigo Compromisso. Possivelmente, esta alteração buscava atender às expectativas dos órgãos oficiais, o que traria maiores condições de vitalidade da Irmandade na sociedade contagense. Destacando que, o fato das festividades não ganharem representatividade no texto do estatuto, não quer dizer que, necessariamente, os festejos não ocorriam. Pelo contrário, através da composição da mesa diretória, indicase que os eventos festivos tenham sido realizados com bastante expressividade. De acordo com o Estatuto, a Mesa de direção era composta por “um presidente, um vice-presidente, um 1º secretário, um 2º secretário, um 1º tesoureiro, um 2º tesoureiro, um capitão-mor.” (ESTATUTO, 1972). Sobre a eleição da Mesa, registra-se que: “A diretoria terá mandato de 3 anos e será eleita, em escrutínio secreto, pelos membros efetivos, isto é, o presidente, vice-presidente e o secretátio. Os demais membros são cargos de confiança do presidente.” (ESTATUTO, 1972). O Estatuto foi assinado em 6 de outubro de 1972 e carimbado pelo Cartório G. Pinto em 21 de dezembro do mesmo ano. Assinavam como membros os seguintes nomes: Josias Gomes de Oliveira como REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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presidente; Joel Pereira Ribeiro como vice-presidente; Geraldo Leonor como Presidente de Honra; Raimunda Calixta da Silva como 1º sercretária, Geraldo Arthur Camilo como capitão-mór; Izaira Maria da Silva como 2º secretária; José Braz dos Santos como 1º tesoureiro e Mário Braz da Luz como 2º tesoureiro (ESTATUTO, 1972). Entre os nomes citados é possível identificar a presença da comunidade negra, através da inscrição dos filhos de Arthur Camilo Silvério, fundador da Comunidade dos Arturos, sendo eles: Geraldo Arthur Camilo, Mário Braz da Luz e Izaira Maria da Silva. Outro documento que dispõe sobre os membros da Irmandade e que dá indícios da participação dos Arturos é o Registro de Títulos e Documentos das Pessoas Jurídicas, expedido pelo Cartório Massote em 1973, que diz: “São seus membros efetivos: os componentes das Guardas do Congo e Moçambique, os benfeitores contribuintes e honorários” (REGISTRO, 1973). Neste contexto, a Comunidade dos Arturos já executava seus rituais festivos através das Guardas de Congo e Moçambique:
Na Comunidade dos Arturos, a Guarda de Congo foi formada, no final dos anos de 1950 e é composta por homens e mulheres de várias idades. (...) Com essa estrutura, a Guarda de Congo segue limpando o percurso e enfrentando os males. Anuncia também, com suas alegorias, fitas, brilhos e cores, o Trono Coroado. (...) Nos cortejos o Moçambique caminha após o Congo, com ritmo e canto lento e pausado, acompanhado por uma dança vertical, rememorando o sofrimento dos seus ancestrais africanos. (...) A Guarda [na Comunidade dos Arturos] é composta essencialmente pelos homens mais velhos da Comunidade, embora também possua membros de outras idades e do sexo feminino. (IEPHA, 2014, p.23-25).
Através desta nova composição da Mesa houve uma considerável mudança, se comparada às organizações que anteriormente apenas permitiam a presença da elite branca nos cargos de direção da Irmandade do Rosário de Contagem. Sobre estes aspectos, Anastasia e Campos (1991, p.121) afirmam que: “vimos que a Irmandade do Rosário de Contagem, pelo menos e seguramente até fins do século passado, foi elitista na direção e paternalista com relação aos irmãos escravos. Os Arturos apresentavam uma alternativa diferente, porque enraizada num cotidiano mais igualitário e familiar.” Os dados, bem como as referências bibliográficas, indicam que a união entre os membros da Comunidade dos Arturos e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário trouxe vigor para a associação, dando abertura para a construção de uma nova história, onde a instituição passou a atuar de modo mais estável. Gomes e Pereira (2000, p.205) também pontuam: “A ligação dos Arturos com a Irmandade é um prolongamento dos laços criados REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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entre a população negra e Nossa Senhora do Rosário nos primórdios da capitania. O culto à padroeira dos homens pretos encontrou na Comunidade um lugar fértil de vivência e reelaboração.” Por outro lado, justamente um ano após esta consolidação, foi efetivada a demolição da Capela de Nossa Senhora do Rosário. Neste contexto, governava o prefeito de Contagem Newton Cardoso, que acabava de tomar posse. Momento esse em que a cidade passava por um processo de dinamismo econômico, onde a especulação imobiliária determinou a demolição de conjuntos arquitetônicos, dando lugar às construções modernas que atendiam aos interesses de desenvolvimento local. Estas ações atropelaram os valores subjetivos dos irmãos do Rosário, como bem analisado por Gomes e Pereira: Para os Arturos havia o significado profundo que envolvia a história de um passado no qual os ancestrais dobraram noites para erguer o templo de sua padroeira. A demolição da igreja reatualizou a violência tantas vezes praticada contra os antepassados. A ruina das paredes refletiu como uma ameaça à continuação das festas do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. (GOMES; PEREIRA,1988, p.152).
Geraldo Fonseca (1978, p,100) indica que “os rumores acerca da demolição da centenária capela começaram por volta de 1971.” Ainda no ano de 1970 foi expedida uma carta pelo presidente da Câmara Francisco Pena, ao Senhor Arcebispo D. João de Rezende Costa, solicitando medidas para preservação da capela que se encontrava em ruínas. Neste ofício, Francisco Pena relata sobre as verbas recebidas para os reparos do templo, que foram desviadas para as obras da matriz, e que outros dez mil cruzeiros foram novamente concedidos para a Capela do Rosário, mas que, no entanto, não foram aplicadas. Além disso, o documento demonstra o estado de descuido em que se apresentava o imóvel: O certo é, senhor Arcebispo, que já se passaram 3 (treis) meses e a igreja continua em ruínas, completamente abandonada, sem suas imagens, algumas históricas e de grande valor, com rumos ignorados; a porta dos fundos da igreja vive aberta e o seu interior servindo para os inescrupulosos a fins detestáveis, tornando-se como já dissemos, uma lástima. (OFÍCIO, 1970).
Além do ofício transcrito, outras medidas foram tomadas no sentido de apelo às autoridades, solicitando o zelo à capela. Fonseca (1978, p.101) aponta que: “A 22 de maio de 1972 a Irmandade de N. S. do Rosário se manifesta contra a medida proposta, através REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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de abaixo-assinado remetido à vereadora e lido em plenário. (...). Tudo em vão.” O autor diz ainda que
(1978, p.100): “Ouvindo os antigos da Comunidade dos Arturos,
agremiação que com devoção e boa vontade tenta reerguer o culto ao Rosário, ficamos sabendo do quanto sumiu da Capela. Livros, imagens, joias. Tudo tomou rumo ignorado.” Sendo assim, a demolição da Capela foi determinada contra a vontade dos fiéis, que se organizaram na intenção de preservá-la e de manter em seu interior a religiosidade e reverência à Nossa Senhora do Rosário. Percebe-se, portanto, que a efetivação desta destruição veio a acontecer justamente quando a direção da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário deixou de ser composta exclusivamente pela elite branca contagense e quando entra em cena a comunidade negra. Fator este que reafirma o lugar de dominação instituído pelos mais favorecidos, enquanto, por outra via, reforça o papel de resistência colocado pelos negros, que deram continuidade às suas tradições religiosas e culturais, apesar da derrubada do templo.
4.
Conclusão O estudo sobre a história do primeiro século de existência da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário deixa vários questionamentos em aberto, principalmente ao que tange aos aspectos de sua inconstância. Ademais, sua análise apenas se faz possível a partir de um montante específico de documentos, sendo estes restritos ao que a comunidade da época intensiova deixar evidente em registros oficiais. Assim, não se faz possível identificar com maior clareza como eram os rituais religiosos e festivos executados pela associação, tornando-se limitada a leitura do papel do negro nesta Irmandade. No entanto, há evidências de que a população negra foi excluída dos cargos de direção da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, apresentando, por outro lado, papel significante na execução das festividades em homenagem à padroeira. Uma vez que tais eventos religiosos eram fundamentais para a prática ritual das associações que se organizavam em torno de um patrono católico, constata-se a relevância desta comunidade negra para a manutenção da Irmandade contagense, ao mesmo tempo em que seu lugar nos registros oficiais era pautado como coadjuvante. É possível identificar tamanha ligação entre os negros e a invocação de Nossa Senhora do Rosário, quando, junto à participação de membros da Comunidade dos Arturos, estes, após longos períodos de atuação fragmentada da Irmandade, passaram a REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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assumir sua direção. Ocorrência essa que indica a construção de uma nova história para a associação, que a partir de então, ganha maior vitalidade. Por fim, identifica-se que em 1972 houve uma reconfiguração das finalidades de atuação da Irmandade, ao menos no que se apresenta em seus documentos legais. Possivelmente isso tenha ocorrido, pois, tratando-se de uma associação com finalidades mais culturais e menos religiosas, haveria mais espaço para diálogo com os órgãos do Estado. Porém, talvez tenha sido essa uma importante estratégia até mesmo para a conservação de seus preceitos religiosos, uma vez que, ganhando maior apoio estatal, colaborava-se para a manutenção da Irmandade e seus ritos poderiam dar continuidade sem que estivessem expostos em papel. Assim, por um lado, esta atuação foi acautelada pelo Estado, que inclusive instituiu o grupo como utilidade pública, mas, por outro, houve descaso das autoridades contagenses perante aos valores subjetivos dos irmãos do Rosário, ao demolirem a sua capela centenária. Portanto, o que vemos neste fragmento de história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem é um percurso de resistência dos negros em que, apesar de terem sido deixados à margem da estrutura organizacional da Irmandade por cerca de um século, permaneceram com a fidelidade à tradição dos irmãos do Rosário e, quando lhes foi possível, reascenderam uma nova história no cenário religioso contagense.
Referências Documentais
ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Declaração de utilidade pública. 1976. ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem. 1972. ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Ofício escrito pelo Presidente da Câmara Francisco Pena ao Senhor Arcebispo D. João de Rezende Costa. 29 de junho de 1970. ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Registro de Títulos e Documentos das Pessoas Jurídicas. 1973. ARQUIVO DO MEMORIAL DA ARUIDIOCESE DE BELO HORIZONTE. Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem. 1867.
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Referências
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A FREQUÊNCIA E AS TEMÁTICAS DE USO NO ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE PELOS ESTUDANTES DO CURSO DE HISTÓRIA DA UFMG
THE FREQUENCY AND THEMES OF THE USING OF PUBLIC ARCHIVE OF THE CITY OF BELO HORIZONTE BY THE STUDENTS OF THE HISTORY COURSE OF UFMG Bruna Michels* Rafaela Patente*
Resumo O presente trabalho tem como objetivo identificar a frequência de uso e quais as necessidades dos estudantes ou pesquisadores do curso de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que fazem uso do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH). Para o desenvolvimento dessa pesquisa, foi questionado o fato de haver uma diminuição do número de usuários do curso de História no APCBH, sendo a principal hipótese levantada para isso, o cancelamento da oferta da disciplina Arquivos e Museus Históricos, ministrada para o curso de História. Procurou-se investigar, então, por meio de análise de questionários de pesquisa do APCBH e entrevistas realizadas com alunos do curso de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), quem são os usuários do arquivo formados ou graduandos em História, para conhecer quais usos que os mesmos fazem dos arquivos. Constatou-se que a não oferta da disciplina em questão não influenciou na procura de temas para pesquisa no APCBH, porém modifica a percepção do estudante quanto a novos temas passíveis de serem pesquisados e usos de instituições como os arquivos. Palavras-chave: História; Pesquisa em História; Arquivo Público; Estudo de Usuário. Abstract The present work aims to identify the frequency of use and the needs of the students or researchers of the history course of Federal University of Minas Gerais (UFMG), who make use of the Public Archive of the City of Belo Horizonte (APCBH). For the development of this research, it was questioned the fact that there was a decrease in the number of users of the History course in APCBH, being the main hypothesis raised for Graduanda do 8º período do Curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais. Forma da História pela Universidade Federal de Santa Catarina. * Graduanda do 8º período do Curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais. Formada em Biblioteconomia pela mesma instituição e servidora do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. http://www.acervoarquivopublico.pbh.gov.br/. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 *
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this, the cancellation of the offer of the discipline Archives and Historical Museums. It was therefore sought to investigate, through analysis of research questionnaires in the APCBH and interviews with students of the history course of the Faculty of Philosophy and Human Sciences (FAFICH) who are the users of the archive graduated or graduated in History, to know what uses they make of the archives It was found that the non-offer of the subject in question did not influence the search for research topics in the APCBH, but modifies the student's perception of new research themes and uses of institutions such as archives. Keywords: History; Search History; Public Archive; User Study. Arquivos pelo Mundo Consideram-se arquivos como “um conjunto de documentos produzidos e recebidos no decurso das ações necessárias para o cumprimento da missão predefinida de uma determinada entidade coletiva, pessoa ou família” (RODRIGUES, 2006, online). Tem-se também definido Arquivos como um conjunto de documentos produzidos e recebidos no curso das ações necessárias para o cumprimento da missão predefinida de uma determinada entidade coletiva, pessoa ou família (ARQUIVO NACIONAL, 2005). O primeiro Arquivo Nacional do mundo foi criado na França, o Archives Nacionales, em pleno período da Revolução Francesa, em 1789. Após o período pósSegunda Guerra Mundial, ocorreu a denominada explosão documental na esfera da administração pública, e a consequente necessidade de racionalizar e controlar o grande volume de massas documentais. No Brasil, o Arquivo Nacional foi criado em 1838 com o objetivo de fixar um destino aos originais das leis publicadas pelo governo, sendo então estabelecido. Somente em 1991, houve a promulgação da Lei n. 8.159 (Lei Nacional de Arquivos), que dá providências sobre a política nacional de arquivos públicos e privados. Torna-se fundamental identificar os preceitos da Arquivologia e seus significados nos processos de gestão de documentos arquivísticos e as principais dificuldades para o acesso à informação. O conceito de Arquivo mudou em conformidade com as alterações políticas e culturais que as sociedades ocidentais viveram. Atualmente os arquivos são um reflexo da sociedade que o produz e o modo de interpretá-los também acompanha as mudanças que ocorrem. Os princípios arquivísticos, importantes para o estudo e as atividades da área, surgiram com a expressão francesa respect des fonds (respeito aos fundos), que não foi REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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bem entendida no momento de sua criação. Mais tarde, os alemães definiram dois outros princípios que refletem o respeito aos fundos: o princípio da proveniência que costuma ser tratado como sinônimo do princípio francês, e o princípio da manutenção da ordem original, mais recentemente definido como o princípio da integridade ou indivisibilidade. Além do respeito aos fundos, elencamos os princípios de Pertinência, Organicidade, Territorialidade, Unicidade. Esses são alguns dos principais pontos abordados na teoria arquivística no intuito de aprimorar e tornar mais eficaz e efetivo o uso de arquivos, contribuindo para uma melhor interação com as demandas da sociedade, sendo elas de ordem prática ou de pesquisa.
Estudo de Usuários: importância Os arquivos públicos municipais são considerados até os dias atuais como depósitos da história e da memória dos órgãos do município. Nestas instituições, o trabalho do arquivista perpassa a necessidade fundamental do profissional: reconhecer seu dever, a importância de sua atuação, o compromisso que deve ser assumido, assim como o tipo de usuário e as necessidades que o mesmo explicita quando realiza uma pesquisa, pois, segundo Le Coadic, (...) trabalhar com a matéria informação para obter um efeito que satisfaça a uma necessidade de informação. Utilizar um produto de informação é empregar tal objeto para obter, igualmente, um efeito que satisfaça a uma necessidade de informação, que esse objeto subsista (fala-se então de utilização), modifique-se (uso) ou desapareça (consumo) (LE COADIC, 1996, p. 39, grifo nosso).
Deste modo, é imprescindível conhecer o que o usuário busca para melhor atendêlo. Por esse motivo, avaliar o perfil de usuário que acessa esses arquivos e conhecer suas necessidades informacionais é fundamental. A intenção do nosso trabalho foi de avaliar que tipo de pesquisa o usuário está buscando dentro da temática história e, assim, conseguir disponibilizar ao mesmo tempo um material de forma eficiente e eficaz para este estudante/pesquisador. Assim, segundo Pinheiro, “para que [os estudos de usuários] possam ser desenvolvidos a nível de profundidade, é imprescindível fazer descrições do comportamento do usuário, definir conceitos e teorizar relações” (PINHEIRO, 1982, online).
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O acesso às informações, por meio dos documentos arquivísticos, servirá de prova
para os usuários, pois nunca perderão este atributo, e servirá de pesquisa para qualquer cidadão. Em outras palavras, os usuários podem requerer do Arquivo tanto documentos para comprovar direitos quanto informações contidas nos documentos para diversas finalidades, como as de pesquisa e entretenimento. Marília Dias e Daniela Pires (2004, p. 14) apresentam as etapas para o desenvolvimento de um estudo de usuários: 1) 2) 3) 4) 5)
Identificar os usuários e os usos da informação; Descrever a população-alvo e o ambiente; Identificar as necessidades dessa população; Avaliar as necessidades; Descrever, comunicar e implementar as soluções.
Das etapas indicadas por Dias e Pires (2004), identificar o usuário neste universo de pesquisadores do APCBH, dentre eles podemos destacar arquitetos, cidadãos, estudantes do curso de História, Geografia, Pedagogia, Arquivologia, Biblioteconomia, foi importante para oferecer novos serviços prestados pelo arquivo para suprir suas necessidades informacionais. Esses pesquisadores poderão estar à procura dos mais variados temas, desde que estejam vinculados a necessidades de fontes informacionais contidas no APCBH. O Arquivo em Belo Horizonte O Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte foi criado por meio da aprovação às das Leis n. 5.899 e n. 5.900, de maio de 1991, que dispõem respectivamente sobre a política municipal de arquivos públicos e privados, e sobre a criação do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, além de prever a criação do Conselho Municipal de Arquivos. A criação do APCBH foi fomentada a partir do Seminário de Bases para a implantação de um arquivo moderno139. Há vinte e seis anos, o APCBH cumpre a função de guardar, organizar, conservar e dar acesso à documentação produzida pelo poder municipal, preservando a memória da cidade. Em 2017, o Arquivo promoveu palestras, além de preparar obras para publicação, Definindo-se como um arquivo moderno desde sua gênese, as ações da instituição sempre tiveram em conta seu papel na gestão dos documentos da Prefeitura de Belo Horizonte. Sua atuação foi orientada pela Lei Municipal n. 5.899 de 20 de maio de 1991, que dispõe sobre a política municipal de arquivos públicos e privados e que se aproxima bastante da norma nacional. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 139
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por meio da série “O Arquivo e a Cidade”. Neste período, o APCBH desenvolveu diferentes trabalhos de preservação do patrimônio documental da capital, modernização da gestão de documentos na administração pública municipal, educação patrimonial e desenvolvimento e difusão do conhecimento científico sobre o município. A principal preocupação que nos chamou a atenção para o desenvolvimento dessa pesquisa foi o fato de haver uma diminuição do número de usuários do curso de História da Universidade Federal de Minas Gerais no APCBH, sendo a principal hipótese levantada para isso, o cancelamento da oferta da disciplina Arquivos e Museus Históricos, ofertada para esses alunos. Por esse motivo, levantamos a hipótese de que a possibilidade de o estudante de História conhecer a entidade custodiadora diminui bastante sem a oferta dessa disciplina, acontecendo de visitá-la, possivelmente, somente no caso de fazer estágio nesta instituição arquivística ou na ocasião de realizar alguma pesquisa, nem sempre durante o percurso acadêmico. Procurou-se investigar, então, quem são os usuários do APCBH formados ou graduandos em História, para conhecer quais usos que os mesmos fazem dos arquivos da instituição e, assim, responder a esse questionamento.
Metodologia da pesquisa Para o desenvolvimento da pesquisa tivemos dois momentos de coletas de dados. O primeiro referente à escolha do público alvo, por meio da identificação e seleção das fichas de atendimento de usuário preenchidas pelos pesquisadores no APCBH (Anexo A). Por meio dela, foi possível identificar a população da nossa pesquisa e seguir para o segundo momento da pesquisa, onde foi aplicado o segundo questionário (Apêndice A) que consistiu em perguntas focadas ao desenvolvimento de respostas para alcançarmos o objetivo deste trabalho. Apesar de aplicarmos uma metodologia não probabilística para obtenção de informações para análise nessa primeira etapa, compreendemos, ainda assim, se tratar de uma pesquisa quantitativa, uma vez que os dados são analisados mediante sua frequência e não quanto a sua subjetividade. No que diz respeito à porcentagem das visitas:
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Tabela 1 - Pesquisadores do APCBH – 2010-2015
Ano da Usuários Usuários com coleta de totais formação em dados História 2011 509 36 2012 547 45 2013 1.465 39 2014 632 37 2015 619 24 TOTAL: 3.772 181 Fonte: elaborado pelas autoras
Usuários com e‐mail 32 23 16 10 08 86
Porcentagem dos alunos de História 7,07% 8,22% 2,6% 5,85% 3,8% 4,7%
Verificou-se que apesar do número considerável de pesquisadores que frequentam o Arquivo, o número daqueles com perfil condizente com as nossas necessidades de pesquisa caiu drasticamente. Em média, temos um percentual muito baixo de pesquisadores, especificamente, formados em História. Mesmo nos anos de maior número de usuários no APCBH, somente 2,6 % deles foram da área de História. Ao realizar a quantificação do perfil dos usuários, foi possível perceber que grande parte dos pesquisadores são residentes da cidade de Belo Horizonte, e encontram-se realizando pesquisa para o Trabalho de Conclusão do curso de História, uma vez que, pela datação e informações dadas nas fichas de pesquisa, foi possível compreender que estavam realizando o desenvolvimento de monografias, dissertações e teses sobre os mais variados temas como: bairros, cinemas, Parques da Cidade e a história da construção e planejamento de Belo Horizonte. Dentre elas, computamos como os três temas mais pesquisados nos anos que compreendem a pesquisa: bairros da cidade, história de Belo Horizonte e cultura. Houve uma consulta para comprovação de direitos, quando foi consultado o Livro de Registros de Sepultamento do Cemitério do Bonfim para a localização do jazigo de sepultamento de familiares a fim de confecção de inventário. O presente trabalho, por conveniência, utilizou a amostragem não probabilística na pesquisa, selecionando os elementos da população sem sorteio, de forma não aleatória. No caso dos usuários do arquivo, foram selecionados para a amostragem aqueles que informaram em suas fichas cadastrais seu grau de formação no curso de história e seus endereços de e-mail. Para estes usuários, foram encaminhados e-mails com um novo questionário explicando os motivos da pesquisa, buscando dados e informações para uma melhor definição das fontes e temas que haviam no questionário da instituição. Dos REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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questionários encaminhados, foram retirados uma parcela das respostas para servir de amostra para pesquisa. A etapa seguinte da pesquisa nos ajudou a responder a questão sobre a diminuição das consultas em nosso acervo, a partir da análise quantitativa dos dados coletados, uma vez que a pesquisa até o presente momento havia confirmado nossa hipótese de diminuição de público. Com a segunda etapa tínhamos a pretensão de saber os motivos que levaram a essa diminuição. Independente da etapa da pesquisa, um dado interessante a ser levado em consideração, é o perfil do usuário dessa pesquisa e os temas solicitados por esse público para estudo. Os mesmos refletem naturalmente as necessidades e interesses desses pesquisadores. Podemos depreender que este perfil reflete não somente interesses particulares, como a busca por um documento familiar, mas também as necessidades de um coletivo, em se tratando de temas de trabalho para uma disciplina que estuda especificamente, História e Museus. Esse tipo de análise traz uma demanda pouco exequível para o momento, mas fica de ponto de partida para um aprofundamento dos estudos referentes a esse artigo para um momento futuro.
Coleta de dados Figura 1 - Durante a graduação você foi contemplado com alguma bolsa?
Opções de Respostas
Quantidade
Total
Sim Não TOTAL:
80% 20% 100%
8 2 100
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Podemos perceber que 80% dos entrevistados possuíam bolsa de estudo no
momento da graduação e somente 20% não foram contemplados com este benefício. Com isso podemos observar que na sua grande maioria são alunos que se dedicavam de forma praticamente direta aos estudos, o que muito influencia os temas escolhidos e os usos que fazem das ferramentas disponíveis para pesquisa. Figura 2 - Durante a graduação você participou de algum grupo de pesquisa?
Opções de Respostas
Quantidade
Total
Sim Não TOTAL:
60% 40% 100%
6 4 100
Podemos perceber que 60% dos entrevistados participaram de uma bolsa de pesquisa momento da graduação e 40% não foram contemplados com este benefício, gerando um estímulo diferenciado ao desenvolvimento de algumas temáticas e, consequentemente, sua busca por fontes em arquivos.
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Figura 3 - Há quanto tempo você se dedicou a esta pesquisa?
A maior parte dos entrevistados, cerca de 50%, se dedicaram à pesquisa durante 1 ano, outros se dedicaram durante 2 anos, no caso 30% dos entrevistados. Já os que se dedicaram por 3 anos e 4 meses, temos o quantitativo de 10% dos pesquisadores respectivamente. O tempo dedicado a uma pesquisa também é um fator importante, pois pode informar o teor de complexidade para realizá-la ou até mesmo demonstrar dificuldades pessoais para o desenvolvimento da mesma.
Tabela 2 - Em qual temática relacionada a cidade sua pesquisa foi desenvolvida
Cerca de 66% dos entrevistados pesquisou na área de História no APCBH. Os outros temas mais pesquisados: Cultura, Política e Saúde mantiveram o mesmo interesse em 11% respectivamente.
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Pergunta 5 - A sua pesquisa no APCBH atendeu à sua demanda informacional para o seu trabalho (graduação, pós-graduação)?
Na totalidade dos entrevistados, todos tiveram as suas demandas informacionais atendidas no processo de pesquisa no acervo do APCBH. Resultado muito positivo tanto para o pesquisador, como para a instituição. Figura 4 - Com que frequência você foi ao APCBH realizar a sua pesquisa?
Cerca de 40% dos entrevistados foram ao APCBH uma vez por semana para realizar a sua pesquisa. Cerca de 20% foram uma vez ao mês ou uma vez ao ano. Somente 10% dos entrevistados foram ao APCBH mais de uma vez por semana realizar a sua pesquisa. Isso pode demonstrar o caráter da pesquisa, caso seja para o desenvolvimento de um Trabalho de conclusão de Curso - TCC, uma pesquisa de mestrado, uma pesquisa de doutorado ou uma iniciação científica e seu grau de dificuldade.
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Figura 5 - Qual é o seu grau de satisfação em relação aos itens abaixo considerando que: Ótimo: 5 Bom: 4 Regular: 3 Ruim: 2 Péssimo: 1
1 2 3 4 5 6
Opções de Resposta 1. Atendimento no Arquivo
Ótimo 80%
Bom
8 2. Infraestrutura para pesquisa na Sala de Consultas
40%
3. Infraestrutura para o usuário
40%
4
8 4. Instrumentos de Pesquisa (índices, inventários,
20%
5. Obtenção de dados quanto ao assunto pesquisado
30%
6. Rapidez na busca e disponibilização do material pesquisado
40%
2
3
4
Regular
Ruim
Péssimo
Não se aplica
TOTAL
20%
0%
0%
0%
0%
100%
2
0
0
0
0
10
30%
30%
0%
0%
0%
100%
3
3
0
0
0
10
50%
10%
0%
0%
0%
100%
2
1
0
0
0
10
70%
10%
0%
0%
0%
100%
7
1
0
0
0
10
50%
10%
0%
0%
10%
100%
5
1
0
0
1
10
50%
0%
0%
0%
10%
100%
5
0
0
0
1
10
Podemos observar que mesmo havendo respostas informando que as condições do APCBH são regulares, ainda assim o saldo é muito positivo, alcançando um nível de satisfação muito grande com relação aos seus serviços e infraestrutura.
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Pergunta 8 - Se desejar, deixe alguma consideração sobre o atendimento no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte:
Somente um pesquisador deixou um comentário sobre o atendimento no APCBH e foi de uma forma elogiosa aos servidores que atuam na sala de consultas da instituição. No que diz respeito a segunda etapa da pesquisa, em seu nível qualitativo, novamente buscamos uma amostra de estudantes que se dispusessem a responder, dessa vez, um questionário verbalmente com indicações mais específicas sobre a disciplina estudada e a escolha de tema de pesquisa. O fato de os estudantes respondentes da primeira etapa via e-mail, não serem os mesmos que responderam a segunda etapa por meio de entrevista presencial, se deu pela necessidade de encontrarmos caminhos para obtenção de informações que estivessem ao nosso alcance de realização. As entrevistas foram realizadas durante o período de ocupação das Universidades Federais, sendo os alunos participantes, da ocupação do complexo da Escola de Ciência da Informação - ECI e Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH em novembro de 2016, por esse motivo tivemos um número baixo de adesões, o que é um dado a ser considerado em se tratando se resultados obtidos em meios adversos. O intuito foi buscar a resposta de pelo menos 25 pessoas, tendo em vista que este número corresponderia a mais ou menos 10% do número total de alunos dentro do perfil escolhido (porcentagem que achamos pertinente para uma amostragem, tendo em vista que de um público de 250 discentes 25 seria uma quantidade possível de efetivarmos a entrevista) do total de alunos que atualmente frequentam o curso na UFMG. Os participantes entrevistados tinham idade entre 19 e 30 anos. A escolaridade abrangeu alunos de graduação e mestrado (87% e 12%) respectivamente, não obtendo nenhum entrevistado no curso em nível de doutorado. Os alunos de graduação entrevistados estavam frequentando do 1º ao 6º período do curso de História. Somente um aluno conhecia o APCBH, tendo realizado pesquisa nas dependências do arquivo. Um segundo aluno informou ter pesquisado o acervo do arquivo, porém somente via internet pois seu interesse foi a revista online disponibilizada no site do APCBH. Apesar da maior parte dos entrevistados saber qual é o objetivo de um arquivo municipal, porém, foram poucos aqueles que informaram terem ido a um. No REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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nosso caso, durante toda a análise dos dados, fazemos referência ao APCBH, para pesquisa ou visitação. Pelo fato de a grande maioria dos entrevistados não terem tido acesso ao acervo que é oferecido pelo APCBH, foi difícil obter respostas para os assuntos que possuíam interesse no APCBH. Entre as duas pessoas que já tiveram acesso ao mesmo, os temas que surgiram foram: estudo de gênero e censura a mulheres no teatro durante a Ditadura Militar. Os entrevistados não souberam determinar o seu grau interesse em desenvolver algum tipo de pesquisa com os arquivos do APCBH. Compreendemos que essa informação é o reflexo de uma prática pouco aliada a visitas e conhecimento do acerco analisado. Já alguns entrevistados demonstraram interesse em desenvolver pesquisas no APCBH, mas não nesse momento ou ainda responderam que são sabem se no APCBH especificamente por não conhecerem o acervo e não saberem se suas temáticas serão contempladas, mesmo compreendendo que é um arquivo público municipal sobre a história de Belo Horizonte. Dentre aqueles que tinham um tema de pesquisa (sendo elas duas pessoas), os motivos estavam relacionados a questões pessoais, sem estarem ligados a uma disciplina específica.
Resultados da pesquisa Podemos depreender da coleta de dados por meio da pesquisa qualitativa que, em sua maioria, o público da pesquisa consistiu em alunos em nível de graduação. Também em sua grande maioria não obtivemos respostas afirmativas quanto à frequência na disciplina que estava sendo analisada, no caso, “Arquivos e Museus Históricos”, uma vez que esses alunos eram oriundos do bacharelado do curso, para o qual a mesma não estava mais sendo ofertada. Constatou-se que a não oferta da disciplina em questão não influenciou na procura de temas para pesquisa no APCBH, porém modifica a percepção do estudante quanto a novos temas passíveis de serem pesquisados. Observamos, a partir dessa informação, que aqueles que tinham conhecimento do que se trata o APCBH, seus objetivos ou o tipo de acervo que o mesmo mantém, eram aqueles alunos que desenvolveram alguma pesquisa a respeito da cidade. Os demais, mesmo que fossem alunos iniciados em pesquisa científica, não tinham muito conhecimento dos questionamentos realizados a respeito do arquivo, demonstrando um distanciamento de temas ligados ao espaço em que vivem ou transitam, e REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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desconhecimento dos instrumentos e instituições disponíveis para a realização de pesquisas voltadas a sua própria região. Chegamos ao entendimento com as respostas do questionário, que a não oferta de uma disciplina que estimule a frequência dos alunos da FAFICH a espaços como o APCBH, é um dos motivos, e não o único ou principal, agravantes no que se refere ao aumento da dificuldade de diálogo e conhecimento de um mecanismo importante de pesquisa e guarda da memória da cidade. Uma vez não sendo conhecedor desses espaços, dificilmente este discente se tornará um professor que estimule da mesma forma seus alunos a esse hábito. Um outro aspecto que devemos considerar, como pertinente, porém não isolado de outros fatores, estaria relacionado com o tema das pesquisas realizadas na UFMG. Por estas não contemplarem ou estimularem a História recente de Belo Horizonte, podem contribuir para a falta de conhecimento que os alunos possuem dos próprios espaços de pesquisa da cidade. Outro fato a ser analisado são os acervos das instituições arquivísticas estarem disponível na Web. Um dado de mão dupla uma vez que facilita a vida do usuário que pretende realizar uma pesquisa, mas tem dificuldade de se deslocar até o arquivo, mas que também gera um esvaziamento dos espaços de pesquisa e consequentemente de encontros com documentos que embora não sejam o foco de um estudo, contribuem para o conhecimento da área.
Considerações finais O que podemos pontuar com as análises dos dados coletados e com as entrevistas feitas com os alunos do curso de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) foi que apesar da disciplina Arquivos e Museus Históricos deixar de ser ofertada, isso não impediu ou fez ocorrer a diminuição do número de estudantes de história ao APCBH. Isso porque, analisando o número de visitas dos estudantes de história, antes e depois da oferta desta disciplina, não observamos diminuição da frequência desses estudantes, mas sim do grande público. Se questionarmos os números, essa constatação não fornece um resultado positivo, uma vez que se mantendo o número de visitas desse público, podemos chegar à conclusão de que os interesses que haviam ao frequentar o arquivo mantiveram-se, ou seja, não aumentaram mesmo havendo um exercício para isso com a oferta de um conteúdo que, em suma, deveria estimular ainda mais o comparecimento dos discentes ao APCBH, pois promoveria pesquisas e discussões a respeito desses espaços e acervos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Por ser uma disciplina ofertada apenas para a formação em licenciatura, pudemos
chegar a mais uma conclusão: o interesse referente a visitas ao APCBH não se trata da formação do aluno em licenciatura ou bacharelado, mas sim, das temáticas de pesquisas nas quais está interessado, independente de se este é voltado à licenciatura ou não. Mesmo com a diminuição de visitas do público em geral, a consulta ao acervo da Secretaria Municipal Adjunta de Regulação Urbana aumentou durante os anos de análise desta pesquisa, sendo este o acervo mais consultado do APCBH. As plantas e os projetos arquitetônicos são documentos probatórios, sendo muito consultados por arquitetos e advogados em processos judiciais e reformas, que necessitam dessa verificação. O objetivo do trabalho foi alcançado, pois identificamos que a questão da diminuição dos estudantes de História da UFMG não ocorreu por conta da não oferta da disciplina Arquivos e Museus Históricos. Há possivelmente outras razões atreladas às necessidades de pesquisa em seus mais variados níveis acadêmicos, além do interesse pessoal do pesquisador que procura o APCBH. Com relação ao público pesquisado também podemos salientar os temas das dissertações e teses da pós-graduação em História da UFMG que hoje estão mais voltados para temas do século XVII e XVIII sendo que o acervo do APCBH se concentra nos séculos XIX e XX, levando-se em conta que Belo Horizonte tem somente 120 anos de vida. A diminuição da frequência de visitas do historiador no APCBH pode estar relacionada também com a disponibilização dos acervos via web para a consulta. Esse, porém, já seria foco para uma próxima pesquisa, não abrangendo o tema estipulado e trabalhado nesse momento.
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ANEXO
ANEXO A - Formulário - Atendimento ao usuário do APCBH
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APÊNDICE
APÊNDICE A – Questionário para o público alvo da pesquisa QUESTIONÁRIO PARA OS ESTUDANTES DO CURSO DE HISTÓRIA DA UFMG QUE JÁ VISITARAM O APCBH Apresentação da Pesquisa O preenchimento do questionário é individual e direcionado ao pesquisador que já visitou o APCBH e utilizou seus serviços de arquivo. Suas respostas contribuirão para um trabalho realizado na Disciplina Usuários da Informação, do curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da UFMG. Servirá para identificar e caracterizar interesses e necessidades de informação dos alunos de graduação e pós-graduação do curso de História da UFMG. Sobre a pesquisa do Usuário 1. Durante a graduação você foi contemplado com alguma bolsa? [
]Sim
[
] Não
2. Durante a graduação você participou de algum grupo de pesquisa? [
]Sim
[
] Não
3. Há quanto tempo você se dedicou à esta pesquisa? _____________________ 4. Em qual temática relacionada a cidade sua pesquisa foi desenvolvida: [ ] Arquitetura [ ] Crescimento populacional [
] Cultura
[ ] História [ ] Movimentos Sociais [ ] Política [ ] Saúde Outros. Especifique: _____________________________ Sobre a demanda de pesquisa REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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5. A sua pesquisa no APCBH atendeu à sua demanda informacional para o seu trabalho (graduação, pós-graduação)? [
]Sim
[
] Não
6. Com que frequência você foi ao APCBH realizar a sua pesquisa? [
] Mais de uma vez por semana
[
] Uma vez por semana
[
] Uma vez por mês
[
] Bimestralmente
[
] Uma vez ao ano
[
] Outro. Especifique: _______________________________
7. Qual é o seu grau de satisfação em relação aos itens abaixo considerando que: Ótimo: 5 Bom: 4 Regular: 3 Ruim:2 Péssimo: 1
8. Se desejar, deixe alguma consideração sobre o atendimento no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte:
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APÊNDICE B – Entrevista com o público alvo da pesquisa QUESTIONÁRIO DE ENTREVISTA PARA OS ESTUDANTES DO CURSO DE HISTÓRIA DA UFMG QUE PRETENDEM VISITAR O APCBH
Apresentação da Pesquisa O fornecimento de informações para essa pesquisa é individual e direcionado ao aluno/pesquisador que pretende visitar o APCBH e utilizará seus serviços de arquivo. Suas respostas contribuirão para um trabalho realizado na disciplina Usuários da Informação, do curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da UFMG. Servirá para identificar e caracterizar interesses e necessidades de informação dos alunos de graduação e pós-graduação do curso de História da UFMG no uso do APCBH. 1. Nome: 2. Idade: 3. Nível de escolaridade e período: [
] Graduação
[
] Mestrado
[ ] Doutorado
3.1 Período: 4. Você cursou a disciplina sobre arquivos na FAFICH? 5. Você conhece Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – APCBH. 6. Sabe o objetivo de um arquivo municipal? 7. Já consultou o acervo do APCBH? Qual foi a primeira vez que isso ocorreu? 8. Dentro os assuntos oferecidos qual o seu principal interesse no APCBH? 9. Tem interesse em desenvolver algum tipo de pesquisa com os arquivos do APCBH? De qual temática? 10. Se a resposta for afirmativa para a pergunta anterior, qual o tema tem interesse ou que já está desenvolvendo sua pesquisa. 11. Por qual motivo se interessou em desenvolver tal pesquisa?
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Referências ARQUIVO NACIONAL (BRASIL). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. Disponível em: <http://www.portalan.arquivonacional.gov.br>. Acesso em: 18 de jun. 2017. ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Estudos de usuários conforme o paradigma social da ciência da informação: desafios teóricos e práticos de pesquisa. Inf. Inf., Londrina, v. 15, n. 2, p. 23 - 39, jul./dez. 2010. Disponível em: <http://www.uel.br>. Acesso em: 02 set. 2016. BARBETTA, Pedro Alberto. Estatística aplicada às Ciências Sociais. 9.ed. Florianópolis: Ed. Da UFSC. 2014. BELO HORIZONTE. Lei n. 5.899, de 20 de maio de 1991. Dispõe sobre a política municipal de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/home> Acesso em: 26 ago. 2016. BELO HORIZONTE. Lei n. 5.900, de 20 de maio de 1991. Dispõe sobre a criação do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br> Acesso em: 22 ago. 2016. DIAS, Maria Matilde; PIRES, Daniela. Usos e usuários da informação. São Carlos: Edufscar, 2004. FIGUEIREDO, Nice Menezes de. Estudos de Uso e Usuários da Informação. Brasília: IBICT, 1994. Disponível em: <http://livroaberto.ibict.br/>. Acesso em: 02 set. 2016. LE COADIC, Yves-François. A ciência da Informação. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 1996. PINHEIRO, Lena Vânia Ribeiro. Usuários – informação: o contexto da ciência e da tecnologia. Rio de Janeiro: IBICT, 1982. Disponível em: <http://biblioteca.ibict.br>. Acesso em: 01 set. 2016. RODRIGUES, Ana Márcia Lutterbach. A teoria dos arquivos e a gestão de documentos. Perspect. ciênc. inf. [online]. 2006, vol.11, n.1, p. 102-117. Disponível em: <http://dx.doi.org>. Acesso em: 23 ago. 2016.
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EUGENIA E RAÇA EM BELO HORIZONTE: UM DISCURSO A PARTIR DA REVISTA ALTEROSA
EUGENIA AND RACE IN BELO HORIZONTE: A SPEECH FROM THE ALTEROSA MAGAZINE
Ivana Morais Silva de Carvalho* Lucimar Lacerda Machado**
Resumo A década de 1930 ficou marcada pela vigência dos regimes totalitários, e pela presença do discurso de raça e eugenia nas sociedades da época. Em Belo Horizonte, a Revista Alterosa, um periódico que circulou na capital mineira entre 1939 e 1964, fez um forte diálogo com as questões políticas do momento, trazendo em suas publicações contextos com ideologias nazifascistas, o que aponta para a presença do discurso de raça e eugenia em sua sociedade. Assim, a proposta deste artigo é pensar e entender como a capital mineira, através da análise de exemplares da Revista, entre os anos de 1939 a 1945, se inseriu no contexto de guerra, e como o discurso de raça e de eugenia se fez presente em sua sociedade. Palavras-chave: Revista Alterosa; Eugenia; Segunda Guerra Mundial. Abstract The 30´s was marked by the totalitarian regimes, and by the race speech and eugenics in the society of that time. In Belo Horizonte, the Alterosa Magazine, a periodic that ran in the capital of Minas Gerais between 1939 and 1964, had a strong dialog about the political questions of the moment, bringing on its publications Nazi-fascists ideological contexts , * Historiadora – Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte; Pós- graduanda em Teologia - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia; Pós-graduanda em Memória e Historiografia: identidades e patrimônio cultural em Minas Gerais – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Auxiliar Administrativo; ivanamoraiss@gmail.com. **
Orientadora – Profa. Ms., docente no Centro Universitario Estacio de BH lucimar.machado@yahoo.com.br REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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that points to a speech of race and eugenics in its society. That way, the proposal of this articles is to present and understand how Minas Gerais Capital, through the analysis of the magazine copies, between 1939 and 1945, presented the war context, and how the race speech and eugenics made it self present in its society. Keywords: Eugenics; Alterosa Magazine; Second World War.
1. Introdução
A partir da crise mundial vivida em 1929, o autoritarismo, o totalitarismo, o nacionalismo e o corporativismo começaram a ganhar força nos países da Europa contra o modelo liberal pelo qual eram organizadas essas sociedades anteriormente. A década de 1930, particularmente, ficou marcada pela vigência dos Estados Totalitários140 que acabaram por levar o mundo ao confronto da 2ª Guerra Mundial que iniciou em 1939. Com a perda da guerra e enfrentando as exigências do Tratado de Versalhes, a Alemanha se tornou um campo propício para a propagação do discurso nacionalista. Em 1919, Adolf Hitler (1889-1945) se tornou líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, assumindo o poder em 1933 com uma proposta nacionalista, ultradireitista, antissemita, militarista, e contando com o apoio da maioria da população, que se via desgastada e humilhada pelas condições do pós-guerra. Experiências parecidas ocorreram também na Itália, com Benito Mussolini (1883-1945), e em Portugal, com Antônio Salazar (1889- 1970) (PANDOLFI, 1999). Os regimes totalitários que surgiram após a Primeira Guerra Mundial eram contrários ao ideal liberal, aos ideais de esquerda, e se caracterizavam pelo governo forte, centralizado, por um extremo sentimento nacionalista, e pelo apoio e organização das massas. A América Latina, que se viu envolvida na crise do pós-guerra, sofreu a influência dos regimes fascistas europeus, que era exercida em regimes autoritários, trazendo também uma forte presença dos discursos de raça e de eugenia (HOBSBAWM, 2014). No Brasil, em 1930, um movimento político destitui o presidente Washington Luiz (1869 – 1957) e leva ao poder Getúlio Dornelles Vargas (1882- 1954). O nacionalismo, o populismo, o totalitarismo, o controle da economia pelo Estado, 140
Veja sobre Totalitarismo em Bobbio (1983). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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caracterizaram seu governo, o que ocasionou o afastamento das elites civis e militares do poder. O país passou então por mudanças radicais: de agrário a exportador, buscando a industrialização e almejando se transformar em uma nação urbana. Além disso, Vargas procurou implantar um forte sentimento de identidade nacional. Em Minas Gerais, Benedito Valadares (1892 – 1973) é nomeado interventor em 1933 por Getúlio Vargas, exercendo o poder até a queda do Estado Novo em 1945. Nessa mesma época, Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976) foi nomeado prefeito de Belo Horizonte por Valadares, governando de 1940 a 1945 fazendo uma administração inovadora. Assim, enquanto no Brasil o presidente Vargas concebia um projeto nacional de modernização do país, na prefeitura de Belo Horizonte Kubitschek modernizava demonstrando empreendedorismo o que aponta para uma sintonia de Minas com o processo político e econômico vigente no país, na época. O discurso resultante desse tempo esteve presente em publicações da época como jornais, revistas e propagandas. No mesmo período, surgiu em Belo Horizonte a Revista Alterosa, um periódico mensal141 que circulou entre 1939 e 1964 na capital mineira, e que fez um forte diálogo com as questões políticas do momento, trazendo inclusive, em suas publicações contextos nazifascistas, o que evidencia a presença de alguns discursos de raça e de eugenia no pensamento de parte da sociedade mineira. Através de pesquisa realizada no acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte - APCBH, este artigo foi elaborado a partir da análise de exemplares da Revista Alterosa, dentro do recorte temporal de 1939 a 1945, onde foram selecionadas propagandas, reportagens, recortes, textos que permitiram pensar e entender como que, através de uma revista, parte da sociedade de Belo Horizonte se inseriu nesse contexto de guerra e como o discurso de raça e eugenia se fez presente.
141
A revista inicialmente tinha uma tiragem mensal, mas a partir de 1953 passa a circular quinzenalmente, até julho de 1960. (RODRIGUES, 2013). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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2. Ascensão do nazismo e sua influência no Brasil
Após a Primeira Guerra Mundial, houve uma ascensão da direita radical no mundo. Esses movimentos radicais de direita existiam desde o final do século XIX, mas foram mantidos sob controle até 1914. Após o conflito mundial, essa direita radical teve uma grande ascensão, que pode ser explicada por diversos fatores, dentre eles, principalmente, o advento da Revolução Russa, pois a partir dela o poder operário e a revolução social se tornaram uma realidade. Assim, “o que deu ao fascismo sua oportunidade após a Primeira Guerra Mundial, foi o colapso dos velhos regimes, e com eles das velhas classes dominantes e seu maquinário de poder, influência e hegemonia” (HOBSBAWM, 2014, p.127). Portanto, A vitória do bolchevismo produziu novos medos e provocou a transformação de movimentos de critica ao capitalismo em movimentos contrarevolucionários. Ao anticapitalismo, acrescenta-se o antimarximo na composição das doutrinas fascistas, na situação de crise provocada pela guerra e pelo temor da revolução comunista, setores das elites tradicionais e da classe média passaram a ver a política fascista como alternativa para os problemas da sociedade (MILZA, 1985 apud CAPELATO, 1995, p.90).
Em alguns países a população se encontrava descontente pela crise econômica vigente, pelo ressentimento nacionalista causado pela guerra, fatores esses que propiciaram condições para a instauração desses movimentos. Em outros países nos quais os antigos regimes não entraram em colapso, e onde essas classes dominantes continuaram em funcionamento, como Grã Bretanha e França, e em países recémindependentes como a nova Polônia, esses movimentos não encontraram lugar para ascenderem. Essas condições acabaram por transformar esses movimentos de direita radical em poderosas forças organizadas. Na Itália e Alemanha, países onde esses movimentos aconteceram de forma mais contundente, os mesmos chegaram ao poder de uma forma constitucional, e por iniciativa dos antigos regimes. No entanto, assim que ascenderam ao poder, tomaram posse de tudo e se recusaram a aceitar as regras que eram praticadas pela política anterior (HOBSBAWM, 2014). Os movimentos de direita traziam em sua ideologia o conservadorismo, e o seu surgimento pode ser explicado como uma reação ao capitalismo e à grande migração de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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estrangeiros no mundo, considerada a maior da História. Esse fator intensificou a xenofobia de massa, e o racismo que, assim, tornou-se expressão comum, pois, (...) o cimento comum desses movimentos era o ressentimento de homens comuns contra uma sociedade que os esmagava entre a grande empresa de um lado, e os crescentes movimentos trabalhistas do outro. Ou que, na melhor das hipóteses, os privava da posição respeitável que tinham ocupado na ordem social, e que julgavam lhes ser devida, ou do status social numa sociedade dinâmica a que achavam que tinham direito a aspirar. Esses sentimentos encontram sua expressão característica no anti-semitismo que começou a desenvolver movimentos específicos baseados na hostilidade ao judeus no último quartel do século XIX em vários países (HOBSBAWM, 2014, p.122,123).
Os judeus, que foram o alvo principal do racismo nazista, estavam presentes no mundo todo e se tornaram símbolos das injustiças praticadas pelo capitalismo, uma vez que tinham um engajamento com as ideias iluministas e com as ideias da Revolução Francesa, o que acabou por lhes dar autonomia e emancipação, tornando-os visíveis ao mundo (HOBSBAWM, 2014). O termo raça surgiu pela primeira vez no início do século XIX com Georges Cuvier (1769 – 1832) e propunha a ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos. O darwinismo trazia os conceitos de competição, seleção do mais forte, evolução, hereditariedade, definições essas que tiveram interpretações desfocadas do que foi originalmente traçado para analisar a sociedade humana, inclusive na politica na qual essas ideias serviam como sustentação teórica para práticas conservadoras. Assim, o darwinismo social, ou teoria das raças postulava que todo cruzamento seria um erro uma vez que as raças seriam fenômenos finais, sendo então enaltecidos os tipos puros, e a mestiçagem tida como degeneração racial e social, criandose um ideal político onde se pretendia a submissão ou eliminação das raças inferiores (SCHWARCZ, 1993). O racismo que vigorava no período é explicado pelas teorias do darwinismo, do evolucionismo e do determinismo social que alcançaram muita força na mesma época. Segundo essas teorias, “a raça era um ‘fenômeno essencial’ e havia uma grande distância entre grupos humanos, por exemplo, o negro e o branco” (DIETRICH, 2007, p.130). Muitos historiadores tentaram imputar à ciência e à pesquisa filológica ou biológica a explicação da ideologia racista. Na realidade o racismo era usado para explicar REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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o nacionalismo exagerado, e assim o imperialismo se apossou da ideologia racista como sua principal arma (ARENDT, 1973). Sendo assim, A ideologia racial, e não a de classes, acompanhou o desenvolvimento da comunidade das nações européias, até se transformar em arma que destruiria essas nações. Historicamente falando, os racistas, embora assumissem posições aparentemente ultranacionalistas, foram piores patriotas que os representantes de todas as outras ideologias internacionais; foram os únicos que negaram o princípio sobre o qual se constroem as organizações nacionais de povos — o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos, garantido pela idéia de humanidade (ARENDT, 1973, p.191).
A grande crise que a Alemanha passou após a Primeira Guerra, é tida como fator preponderante para explicar o surgimento do nazismo. No entanto, a Europa também estava em crise, e, em muitos países, surgiram líderes fascistas e ideologias de direita, mas “em nenhum país foi elaborado e implementado um projeto como o de Hitler” (CAPELATO, 1995, p.83). No plano nazista, regras básicas de convivência foram violadas, valores foram invertidos e a maioria da população aceitou, envolveu-se e legitimou essas ações, pois acreditavam que fosse bom para a comunidade. A ideia do nazismo era embelezar o mundo tirando o feio, o sujo, o impuro e, para isso, usou as ideias de beleza, pureza e harmonia, já presentes na cultura alemã, impondo em nome delas o ódio, a violência, a destruição, a morte. (CAPELATO, 1995). Portanto,
Para uma abordagem histórica do fenômeno nazista, faz-se primordial desvendá-lo, não como uma obra de meia dúzia de endemoniados; é preciso alcançar a dimensão social de uma experiência originária de sérios embates, fruto da crise porque passava o mundo capitalista. Nessa mesma trilha, é preciso acompanhar a dimensão específica que o fenômeno alcança na Alemanha, onde a crise explode, ativa e torna agudos problemas que já vinham de muito antes: a tradição autoritária prussiana, o nacionalismo exacerbado e o racismo (LENHARO, 2007, p.11).
O surgimento do nazismo se deu em meio ao medo, revolta e insegurança presentes na população alemã, sentimentos gerados pela inflação enorme, pela crise econômica, pelas fronteiras modificadas, pela carga financeira das reparações do pósguerra, dentre outros fatores. A psicose da guerra, que se espalhou pela Europa a partir de 1914, atingiu o ápice na Alemanha derrotada. As lembranças do conflito provocavam horror e REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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a derrota estimulava desejos de desforra. Na frágil República de Weimar, o nazismo se fortaleceu, acenando com um projeto de libertação do passado e purificação. [...] O sacrifício dos impuros na Alemanha de Hitler visava unir os corações arianos, estabelecendo a ordem. [...] o sacrifício das vítimas, os inimigos da raça ariana, representava para os nazistas, a purificação da sociedade (CAPELATO, 1995, p.90,92).
Dentro desse panorama, Hitler também trazia, em seu discurso, ideias de eugenia, conceito que esteve presente no pensamento europeu desde meados do século XIX e que se baseava em teorias que tentavam explicar como se dava o processo de transmissão de características entre as gerações (CONT, 2008). Com o propósito de aplicar os pressupostos da teoria da seleção natural ao ser humano, Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin, em 1883, reunindo duas expressões gregas, cunhou o termo eugenia ou bem nascido. A partir desse momento, eugenia passou a indicar as pretensões galtonianas de desenvolver uma ciência genuína sobre a hereditariedade humana que pudesse, através de instrumentação matemática e biológica, identificar os melhores membros – como se fazia com cavalos, porcos, cães ou qualquer animal –, portadores das melhores características, e estimular a sua reprodução, bem como encontrar os que representavam características degenerativas e, da mesma forma, evitar que se reproduzissem (CONT, 2008, p.202).
A eugenia era um avançado darwinismo social que tinha o proposito de intervir na reprodução e provar que “a capacidade humana era função da hereditariedade e não da educação” (SCHAWARCZ, 1993, p.60), transformando-se em um movimento científico e social vigoroso. Segundo as ideias eugênicas da corrente do darwinismo social, as sociedades puras e sem miscigenação estariam propensas ao progresso, sendo a evolução uma opção obrigatória. Seguindo esse pensamento, uma nação desenvolvida seria o resultado de uma conformação racial pura (SCHWARCZ, 1993). Assim, Como ciência, ela supunha uma nova compreensão das leis da hereditariedade humana, cuja explicação visava a produção de nascimentos desejáveis e controlados; enquanto movimento social, preocupava-se em promover casamentos entre determinados grupos e – talvez o mais importante – desencorajar certas uniões consideradas nocivas à sociedade (SCHWARCZ, 1993, p.60).
Esse pensamento foi usado como justificativa para práticas discriminatórias e racistas, aplicando-se ao ideário nazista que enfatizava a manutenção da raça e do sangue REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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(MACIEL, 1999). Assim, o nazismo oferecia à sociedade alemã um retorno ao passado, pois prometia um “Homem Novo – ariano – contra seus corruptores: judeus e outros” (CAPELATO, 1995, p.85). E Hitler conseguiu explorar bem os sentimentos do pósguerra alcançando assim o apoio de grande parte da população. Outro fator interessante era a propaganda eleitoral nazista que levou o eleitorado à inclinação para o voto radical, pois atendia aos anseios de todas as classes: os nazistas tinham vínculos com setores da burguesia, prometiam aos trabalhadores salários melhores e participação nos lucros das empresas, nacionalização dos trustes; aos camponeses reforma agrária, perdão das dívidas, preços melhores para os produtos agrícolas e defesa dos artesãos e comerciantes (LENHARO, 2007). Na América Latina o fascismo exerceu enorme influência, tanto em políticos quanto em regimes ditatoriais. Os americanos temiam um cerco nazista nesse continente, mas esse temor se mostrou infundado já que a influência nazista aconteceu internamente em alguns países e, mesmo esses, quando entraram na guerra, se declararam ao lado dos Aliados (HOBSBAWM, 2014). Sendo assim podemos apontar que, O que os líderes latino americanos tomaram do fascismo europeu foi a sua deificação de líderes populistas com fama de agir. Mas as massas que eles queriam mobilizar, e se viam mobilizando, não eram as que temiam pelo que poderiam perder, mas sim, os que não tinham nada a perder. E os inimigos contra os quais eles as mobilizavam não eram estrangeiros e grupos de fora [...], mas a oligarquia – os ricos, a classe dominante local (HOBSBAWM, 2014, p.137).
No cenário brasileiro as teorias do positivismo, evolucionismo, darwinismo só foram conhecidas e introduzidas no pensamento nacional a partir de 1870, sendo muito bem acolhidas, principalmente nos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa. Assim, as teorias raciais surgem como um modelo viável para o novo contexto do país que, com o fim da escravidão, apresentava problemas com a substituição da mão-de-obra, como também com a conservação da hierarquia social que estabelecia critérios diferenciados de cidadania. “É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenças sociais” (SCHWARCZ, 1993, p.18). No entanto, a adoção dessas teorias encontrou um paradoxo, pois de um lado as mesmas tentavam justificar as hierarquias que se viam ameaçadas com o fim da escravidão, e por outro inviabilizavam, um projeto REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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nacional recém-montado por conta da interpretação pessimista da mestiçagem (SCHWARCZ, 1993). Achou-se então, nesse paradoxo, uma saída original: Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscigenação [...] Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso (SCHWARCZ, 1993, p.18).
Assim, as ideias nazistas encontraram um campo propício no Brasil e eram bastante divulgadas na sociedade brasileira, o que foi facilitado pela grande comunidade alemã inserida nas grandes cidades brasileiras. O discurso do governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, em 1937 é um exemplo dessa influência e pontua a importância da presença dos alemães no Brasil objetivando melhorar a raça brasileira (DIETRICH, 2007): Para as festividades em Porto Alegre apareceu o governador de Estado do Rio Grande do Sul e fez um discurso onde elogiou com grandes palavras a diligência o amor à ordem do germanismo rio-grandense-do-sul como “componente racial do muito valoroso povo brasileiro’. Além disso, ele demonstrou a sua admiração pelo trabalho do ímpeto do III Reich (Ata 27916.AA/B, Alemanha, 1937 apud, DIETRICH, 2007, p. 234).
Na primeira fase do governo Vargas (1930 - 1937) as relações de amizade com o governo alemão eram muito boas, inclusive com assinatura de tratados comerciais e treinamento de policiais brasileiros pela Gestapo – Polícia Secreta do Estado - o que levou ao estabelecimento de embaixadas em ambos os países em 1936. Essa intensa relação de amizade é observada em uma correspondência enviada ao governo alemão, em 1937 quando o Brasil já estava perto de romper com a Alemanha, em virtude da situação mundial – em que Vargas se referiu ao chanceler alemão como “grande e bom amigo” (DIETRICH, 2007, p.174). Entre 1938 e 1942 tem início no Brasil uma nova era de ordem, progresso e industrialização, e um investimento na nacionalidade brasileira. E com a sua entrada na guerra ocorre uma mudança no pensamento do governo que, enquanto neutro, não coagia estrangeiros, e muito menos alemães por conta, principalmente dos acordos comerciais estabelecidos entre as duas nações, e a partir da tomada de posição, muda a sua postura iniciando um período de coação e repressão a estrangeiros e à difusão das ideias e ideologias de cunho nazista (DIETRICH, 2007). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O advento do nazismo na Alemanha e a influência de suas ideias na sociedade
brasileira foram possíveis e aconteceram em detrimento das situações sociais e políticas que os dois países atravessavam. Na Alemanha, a nação se encontrava humilhada e em crise em virtude do pós-guerra, e encontrou conforto na ideologia nazista de valorização do povo e da nação em prol do crescimento. No Brasil, na mesma época, buscava-se uma identidade nacional com valorização do povo brasileiro, e uma busca pelo desenvolvimento industrial. O cenário dos dois países também mostrou a centralização e controle personificados por Getúlio Vargas, no Brasil, e por Adolf Hitler, na Alemanha. 3. A influência do discurso nazista no Governo Vargas
O discurso de Vargas e suas políticas foram construídos dentro do pensamento autoritário vigente nos anos 1920- 1940 e eram favorecidos pelas condições presentes no campo político e intelectual, em âmbito nacional. Durante seu governo, Vargas investiu em propagandas, em políticas públicas inovadoras nos campos social e cultural (GOMES, 2011), e tinha a intenção de realizar uma profunda transformação econômica e política no Brasil, pois “olhava com interesse as experiências autoritárias e corporativas que estavam ocorrendo na Europa e que lhe pareciam compatíveis com as mudanças que estava aplicando” (PEREIRA, 2011, p.115). A Alemanha nazista, entre 1936 e 1939, iniciou no Brasil uma ofensiva comercial conseguindo alcançar o lugar de segundo parceiro comercial com acordos que propiciaram uma aproximação comercial e militar maior entre os dois países. Uma das estratégias usadas pelo governo alemão foi influenciar os países com colônias alemãs através dos grupos nazistas locais, e o Brasil era o país que melhores condições oferecia para os projetos de expansão dessa influência alemã nas Américas. Até o início da Guerra, o governo brasileiro tolerava e ignorava os alemães e sua infiltração, mesmo porque a ideologia alemã era compatível com os objetivos e com a ideologia vigentes no país (GAMBINI, 1977). Desse modo o nacionalismo alemão foi então inspiração para a criação de um Estado forte, nacional e uniformizado. Os ideais de igualdade e fraternidade foram substituídos pela disciplina do corpo e do espírito, pelo culto a força e a raça eugênica. A discriminação REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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política e o preconceito racial transformaram-se em fermentos das inquietações interferindo no cotidiano dos anos 30 e 40 (CARNEIRO, 1994, p.154, 155).
O Varguismo na época não foi definido como um fenômeno fascista, mas se inspirou nas experiências alemã e italiana, principalmente na propaganda política usando de emoção, promessas de benefícios materiais, além de fortalecimento nacional e unificação. Em regimes totalitários, a propaganda política é essencial e visa provocar paixões que se exemplificam no amor ao chefe, à pátria, ou nação, e no antissemitismo, e os meios de comunicação são os responsáveis por acentuar isso (CAPELATO, 1999). A propaganda política é estratégica para o exercício do poder em qualquer regime, mas naqueles de tendência totalitária ela adquire força muito maior porque o Estado, graças ao monopólio dos meios de comunicação, exerce censura rigorosa sobre o conjunto das informações e as manipula. [...] Os organizadores da propaganda varguista, atentos observadores da politica de propaganda nazi-fascista, procuraram adotar os métodos de controle dos meios de comunicação e persuasão usados na Alemanha e na Itália, adaptando-os à realidade brasileira (CAPELATO, 1999, p.169).
No Estado Novo, a finalidade da propaganda era conquistar o apoio da população já que o novo poder vinha de um golpe e era preciso legitimá-lo. Eram usadas então, técnicas de linguagem com slogans, palavras-chave, frases de efeito, recursos das novas técnicas de persuasão presentes em outros países, principalmente na Alemanha. Houve a criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), em dezembro de 1939, para regular, centralizar e fiscalizar os meios de comunicação e era um órgão vinculado diretamente à Presidência da República que produzia e divulgava “o discurso destinado a construir certa imagem do regime, das instituições e do chefe do governo, identificandoas com o país e o povo” (CAPELATO, 1999, p.172). Nessa época, eram produzidos livros, revistas, folhetos, cartazes, programas de rádio, números musicais, radionovelas, fotografias, cinejornais, documentários cinematográficos e filmes de ficção que eram divulgados principalmente na imprensa e no rádio, e que sofriam a ação da censura. Através da imprensa, o presidente Vargas foi tratado como o governante que “identificou os novos ventos nacionais e internacionais e reorganizou o Brasil conforme as novas contingências sociais, políticas e econômicas do momento” (LOSSO, 2008, p. 143). Os periódicos, no governo Vargas, eram obrigados a mostrar os discursos oficiais, a divulgar as inaugurações, a enfatizar os atos do governo, a publicar fotos de Vargas, e, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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os mesmos foram controlados também através de pressões políticas e financeiras (LOSSO, 2008). De 1937 a 1945, o Estado Novo se serviu da eugenia para construir o novo homem brasileiro, através da promoção da cultura física e da “eugenização da imagem da criança no cinema” (TEIXEIRA, 2011, p.163), sendo os belos e saudáveis designados por essas políticas. Em 1943, na revista Educação Física, o médico Irving Fisher (1867 – 1947) publicou um artigo em que traçou o perfil do novo homem brasileiro: A nova educação física deverá formar um homem típico que tenha as seguintes características: detalhe mais delgado que cheio, gracioso de musculatura, flexível, de olhos claros, pele são, ágil, desperto, erecto, dócil, entusiasta, alegre, viril, imaginoso, senhor de si mesmo, sincero, honesto, puro de atos e de pensamentos, dotado com o senso da honra e da justiça, comparticipando no companheirismo dos seus semelhantes, e levando o amor da Providência e dos homens no seu coração (FISHER apud TEIXEIRA, 2011, p.164).
Assim, é mostrada a preferência ao branco, belo, forte, viril e dócil. Forte para suportar o trabalho, viril para gerar muitos brasileiros eugenizados, e dócil para não contrapor o Estado (TEIXEIRA, 2011). A eugenização dos mais pobres surgia também como uma justificativa para as desigualdades sociais que eram explicadas pela desigualdade racial o que aumentava o poder do Estado. A realidade brasileira, no entanto, moldou a eugenia priorizando o controle do comportamento no lugar do embranquecimento, mesmo porque, embranquecimento em uma população tão mesclada como a brasileira se tornava difícil ou quase impossível (TEIXEIRA, 2011). A eugenia se voltou também para os sadios e se aliou à cultura física que era uma forma do povo brasileiro evoluir: O Estado investe no discurso sobre a cultura do corpo, da saúde e da higiene com o objetivo de moldar também o corpo da nação e conquistar aqueles comportamentos requeridos pela civilização burguesa, para a manutenção da nova ordem política e econômica do país (TEIXEIRA, 2011, p.168).
O Estado fez uma ampla divulgação desses hábitos, e a educação física passou a ser uma ferramenta para disciplinar a sociedade e acabou por ser instituída como parte do Sistema Educacional. As escolas, inclusive, eram usadas pelo governo para divulgação REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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da ideologia estadonovista, e, dentro dessa lógica, a atividade física era muito estimulada, até mais que a educação intelectual. Além disso, assim como na Alemanha, que investia em lazer para os trabalhadores, no Brasil, fora da escola, eram promovidas atividades de lazer com jogos, escotismo, colônias de férias, todas oferecidas pelo Estado (TEIXEIRA, 2011). Podemos observar, então, que o governo Vargas, assim como o nazismo na Alemanha, fez um uso intenso dos meios de comunicação para divulgar as diretrizes do seu governo, e dentro dessas diretrizes e ideologias esteve presente o discurso de raça e de eugenia.
4. Revista Alterosa: uma análise
Sendo assim, para pensar, analisar e compreender o discurso de raça e de eugenia que esteve presente em Belo Horizonte, no período de vigência do Estado Novo, foi feita uma análise da Revista Alterosa, no período de 1939 a 1945. Realizou-se uma pesquisa prévia na coleção do acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte APCBH142, no qual foram selecionados dez exemplares que, em suas publicações mostraram essas circunstâncias. A Revista Alterosa, que foi editada pela Sociedade Editora Alterosa Ltda., era um periódico voltado à classe média alta da sociedade mineira e em suas páginas eram tratados assuntos diversos como culinária, moda, comportamento, literatura, rádio, cinema, colunas sociais, entrevistas com celebridades, assuntos políticos, dentre outros, tendo seu maior foco na capital mineira, Belo Horizonte, mas sempre trazendo também reportagens sobre as cidades do interior do Estado. A sua existência se deu em meio à ditadura do Estado Novo, passando por um curto e conturbado período de democracia brasileira encerrando as suas publicações às vésperas do golpe de 1964. O acervo da revista é composto por 68 exemplares, e está disponibilizado digitalmente na internet facilitando assim a consulta e a pesquisa. No ano 1939, quando tem início a circulação da Revista Alterosa, a cidade de Belo Horizonte apresentava um crescimento econômico significativo, e um grande aumento da 142
A Coleção da Revista Alterosa está disponível no site do APCBH. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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sua população, o que proporcionou uma ampliação dos espaços de convivência na cidade. Com o advento da Segunda Guerra Mundial e a posterior entrada do Brasil ao lado dos Aliados, podemos perceber uma mudança no comportamento de parte da sociedade da capital que, impulsionada pelos acontecimentos mundiais, tentou se inserir nesse contexto, inclusive com uma maior participação feminina. A Revista Alterosa, em suas publicações, apontou essas mudanças fazendo um diálogo com a conjuntura da época. A cidade de Belo Horizonte almejava crescer, e o esporte se apresentou como um elemento de construção desse desenvolvimento. Essa relação foi mostrada no primeiro número da revista, em agosto de 1939, em uma matéria na qual o Minas Tênis Clube é enaltecido como uma das “mais notáveis praças de esportes da América do Sul”, e em que se evidencia também a ideia de eugenia, mostrando ser este um pensamento presente em uma parcela da sociedade mineira.
Figura 3: Revista Alterosa, ano I, nº 1, 1939
Fonte: Acervo APCBH
Na imagem acima, o enunciado diz ser o “Minas Tênis Clube um templo de cultura e de aperfeiçoamento da raça”, e “uma das mais vastas realizações da energia mineira” numa clara alusão ao conceito de eugenia. E a reportagem reitera essa ideia quando declara: O apoio que o governo mineiro vem prestando à cultura física do Estado, representa, para a geração que se está formando, nos campos do esporte, uma grande obra de eugenia e civilização. [...] o “Minas Tênis Clube” vem REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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cumprindo com rara eficiência, a sua alta e nobre finalidade de formar a geração forte de amanhã.143
Na busca pelos valores de modernidade e progresso, havia a exaltação do discurso eugênico, que na época era muito difundido em todo o mundo, sendo também muito aproveitado pelo nazismo. Nesse contexto, o esporte surge como um complemento importante, pois no conceito de eugenia o corpo deveria ser dotado de força, utilidade e beleza, almejando o aprimoramento da raça (SCHETINO, 2013). Assim, no Estado Novo a raça pura e a eugenia eram conceitos necessários para se construir uma nova nação com um povo valorizado nos esportes, sendo esses estereótipos, figura constante em discursos acadêmicos e políticos (CARNEIRO, 1994). Em 1941, na matéria intitulada “O sexto aniversário do Minas Tênis Clube” na qual é retratada a comemoração do aniversário do clube, mais uma vez é evidenciado o discurso de defesa da raça:
Os seus sucessos consecutivos obtidos nos setores de natação, evidenciam a pujança de seus atletas de ambos os sexos, em disputas sensacionais, de repercussão continental, onde o vigor da nossa raça e a destreza de nossos desportistas ficaram patenteadas com o mais raro esplendor e a mais justa glória para os mineiros. [...] O Minas Tênis Club teve assim o seu dia de glória, um dia que será caro à sua vida de entidade triunfante, pela compreensão pública que logrou obter, desde o seu início, firmando-se em definitivo, como elemento vital da grandeza de Minas na preparação da juventude, no fortalecimento físico da raça de que dependerá a vitória das futuras gerações brasileiras.144
Podemos perceber que a valorização da raça é apresentada como um traço importante, dentro dos conceitos da época, indo ao encontro às sugestões dos ideais nazistas implantados no país por Getúlio Vargas. Isso é exemplificado quando se diz “o vigor da nossa raça”, o “fortalecimento físico da raça”, além do nacionalismo exacerbado quando se diz “a vitória das futuras gerações brasileiras”. Assim, o projeto nacional de Vargas visava ao financiamento da industrialização e à valorização dos padrões de cultura do país, buscando um forte sentimento de identidade nacional. Para sustentar a inovação na política e na economia investia-se na cultura ao corpo, na saúde e higiene da população, 143
Uma das mais vastas realizações da energia mineira. REVISTA ALTEROSA nº 01. Agosto de 1939, p. 51. Matéria não assinada. 144 O sexto aniversário do Minas Tênis Clube. REVISTA ALTEROSA N. 21. Dezembro de 1941, pp. 90-91. Matéria não assinada. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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comportamentos que eram exigidos pela burguesia, objetivando, assim, a transformação da nação (PEREIRA, 2011). Além disso, ambicionava-se, pela prática da educação física, estimular a “consciência nacional e o espírito a obediência das novas gerações” (TEIXEIRA, 2011, p.169). Os pensamentos que vigoravam no período estudado se moldaram ao ideal de modernização pretendido pelo governo Vargas no Brasil. Em Belo Horizonte a busca pela modernização não se deu apenas na materialidade e nas suas estruturas, porque desde a sua fundação a capital mineira “representava o esforço da imersão em uma nova época” (JÚNIOR, 2011, p.87). Assim, em busca dessa modernidade pretendida e na tentativa de se incorporar ao pensamento vigente na época e propagado nacionalmente, na década de 1940, o esporte passou a ser valorizado e, aos poucos, começou a ser inserido na cultura urbana da cidade, sendo os espaços esportivos cada vez mais prestigiados. A prática esportiva, sinônimo de beleza, saúde e progresso, acabou por legitimar o discurso de raça e eugenia que alcançou, assim, um grande crescimento. (SCHETINO, 2013). Nesse período, com o mundo em guerra, a Revista Alterosa começou a fazer alusão ao conflito, numa tentativa de inserir seus leitores nos acontecimentos mundiais. Em 1941, nas páginas da revista, há alguns tímidos flagrantes do conflito, e ainda presente, uma defesa da ideologia nazista. Isso pode ser evidenciado na reportagem “A Alemanha e a religião cristã” em que Hitler e seu governo são mostrados como aliados à Igreja Católica. Segundo a reportagem,
Na Alemanha, sempre se dedicou a máxima atenção a questões de religião. [...] Somente o Estado e o seu fundamento, que é o Partido Nacional-Socialista têm influência decisiva no terreno da política. Este é um dos princípios básicos da política alemã, desde o ano de 1933. É verdade que a execução desse princípio chegou a registrar, de quando em quando, choques com as diversas confissões, acontecimentos logo aproveitados pela propaganda anti-alemã para acusar o Reich de anti-cristão. Na verdade as autoridades alemãs apenas pretendiam tolher às igrejas qualquer atividade política. [...] Não existe uma religião oficial na Alemanha porque a cisão entre cidadãos católicos e protestantes não o permite. Entretanto, não é completa a separação entre o Estado e Igreja, separação que se observar por exemplo, na França e nos Estados Unidos. [...] Constata-se que bispos católicos alemães depois de uma consulta prévia junto ao Santo Padre Pio XII, agradeceram e exprimiram sua lealdade ao Fuehrer (sic).145
145
A Alemanha e a religião cristã. REVISTA ALTEROSA n. 21. Dezembro de 1941, pp. 102-103 – transcrito do “Deutsche Rio-Zeitung” de 13 de setembro de 1941. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Há então um claro posicionamento em defesa do nazismo e uma justificativa para
a exclusão da Igreja do comando político do país, que caberia somente ao Führer, e, à instituição religiosa, somente a evangelização. Ao mesmo tempo se nega a total separação entre Igreja e Estado, fazendo ainda uma provocação à França e aos Estados Unidos. A reportagem finda fazendo alusão ao reconhecimento de bispos e do papa a Hitler, numa clara tentativa de humanizar o governo alemão, uma vez que a propaganda antialemã começava a se fazer presente. Isso é evidenciado em 1942 na reportagem “Caridade na Paz e na Guerra” (novembro de 1942, n. 31) na qual há informações sobre o curso emergencial de enfermagem da Cruz Vermelha e uma verdadeira conclamação para o envolvimento da sociedade na guerra ao lado dos aliados e contra os alemães. União nacional, eis a ordem do momento que vivemos. A mocidade acadêmica está nas ruas vibrando de civismo, convocando o povo mineiro para as iniciativas patrióticas. O operariado fecundo de nossa terra também saiu às largas ruas para protestar contra os piratas do eixo que trouxeram a guerra para o nosso tranquilo litoral. O povo está na rua vibrando. [...] O povo é a grande reserva dos países que amam a liberdade e odeiam a tirania nazista.146
Como podemos perceber, há uma clara mudança no pensamento da linha editorial
da Revista e de seus leitores, e uma tomada de posição, alinhada ao pensamento europeu, contra os alemães, no momento em que o governo Vargas decide entrar na guerra em favor dos aliados. Se antes o governo brasileiro olhava com bons olhos a ideologia alemã e fazia uso dela em diversas situações no país, com a entrada na guerra esse pensamento muda radicalmente, não sem deixar marcas profundas em nossa sociedade. Com o decorrer do conflito mundial, algumas consequências afetam diretamente o periódico, repercutindo em seus leitores. Na revista número 22, de janeiro de 1942, há uma nota da direção pedindo desculpas aos leitores pelo atraso da entrega da mesma que se deu por causa do atraso no transporte marítimo ocorrido pela situação internacional. E na revista número 31, de novembro do mesmo ano, outra nota da direção explica que a escassez de papel provocada pela crise nacional é mais uma vez causada pela falta de transporte marítimo, acarretando a diminuição do número de páginas da revista. 146
Caridade na paz e na Guerra. REVISTA ALTEROSA n. 31. Novembro de 1942, pp. 14-15-77-78. Matéria de Marcelo Coimbra Tavares REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Figura 4: Revista Alterosa, ano IV, nº 22, 1942
Fonte: Acervo APCBH
Figura 5: Revista Alterosa, ano IV, nº 3, 1942
Fonte: Acervo APCBH
Assim, a guerra que era travada na Europa começava a surtir efeitos no Brasil e,
consequentemente, em Belo Horizonte, fazendo com que parte da população se envolvesse e, da sua maneira, participasse do conflito. Há então uma profusão de propagandas de bônus e obrigações de guerra convocando os brasileiros a fazerem a sua parte para ajudar o governo. A maioria dessas propagandas era feita com ilustrações que faziam referência à situação mundial, o que pode ser exemplificado nas imagens abaixo em que as ilustrações de aviões, tanques de guerra, navios, mísseis estão presentes.
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Figura 6: Revista Alterosa, ano V, nº 39, 1943
Figura 7: Revista Alterosa, ano V, nº 40, 1943
Fonte Acervo APCBH
Podemos observar então que a maioria das propagandas presentes na revista utilizou do tema da guerra para passar a sua mensagem a seus leitores, trazendo um forte sentimento antinazista e um ufanismo pelo fato do Brasil participar do conflito. Em meio a toda essa conjuntura, os conceitos de raça e de eugenia continuavam a se fazer presentes no pensamento de uma parcela da sociedade mineira e belorizontina ao mesmo tempo em que se misturavam com a valorização da figura do brasileiro e sua mestiçagem. Isso é apontado em um pequeno texto de humor publicado na seção “Sedas e Plumas” em 1944, que discorria sobre o amor de um rapaz, louro e rico, com uma morena pobre. No texto há, primeiramente, uma alusão ao combate à união entre arianos e impuros na Alemanha:
Uma mulher ariana só pode beijar e casar-se com um indivíduo do mesmo sangue. Para isso, Hitler mantém laboratórios perfeitos [...]. Se o sangue de qualquer dos dois acusar impurezas será inútil e perigoso insistir.
Após essa explicação, a narrativa segue para o caso do namoro na capital: REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Apesar de não estarmos na Alemanha, a família [do rapaz] faz uma tremenda oposição. As irmãs do rapaz, granfinas e melindrosas, chegam a dizer que êle quer manchar o bom nome dos seus avós e encher a casa de criolinhos de cabelos anelados e duros. Quando a namorada do rapaz passa pela rua onde moram, a irmã solteirona canta pra infernar o mano a velha toada – “O teu cabelo não néga”. [...] A família ariana vai ser vencida pela graça da mestiça invencível. A vizinhança assiste a luta torcendo pela morena. Viva o Brasil!147
Podemos perceber então que esse tipo de situação causava estranheza e não aceitação por parte da sociedade, o que demonstra uma insinuação de racismo quando se é aventada a hipótese de “manchar o bom nome dos seus avós” (grifo nosso) e quando é mencionado “criolinhos de cabelos anelados e duros” e “família ariana”, todas essas falas muito envolvidas dentro dos conceitos de raça e de eugenia. Mesmo sendo um texto em forma de galhofa denotando humor, e piada, não se pode negar a clara presença desse tipo de preconceito presente em parte da população. Mas, ao mesmo tempo o conto, no final, mostra a sua preferência pela nossa mistura racial uma vez que enaltece e mostra até uma torcida para o sucesso do namoro nas palavras “torcendo pela morena”, e ainda mostra uma valorização do brasileiro ao alemão quando diz “a família ariana vai ser vencida pela graça da mestiça invencível” numa clara alusão à Guerra como se fosse uma subjugação dos alemães ao Brasil e à sua mistura étnica. Com o fim da guerra, em 1945, as publicações da Revista se inserem nesse contexto, atendendo também à expectativa do público consumidor, uma vez que esse era um assunto em alta no momento. Assim a paz se faz presente nos assuntos da Revista, fazendo um diálogo com os leitores, e demonstrando certo alívio nessa conquista. Na revista de outubro, por exemplo, em uma reportagem sobre o surgimento de um novo bairro da capital essa ligação é demonstrada: Terminou a guerra, e com ela, novos horizontes se rasgam em toda parte, ao trabalho do homem. Belo Horizonte, como todos os centros adiantados do país, passou por uma longa e cruciante crise de habitações, decorrente da situação anormal do mundo. [...] Agora que a paz voltou ao seio da terra, é de esperar, com a natural melhoria das condições gerais do trabalho e da produção de paz, que o novo e alentador surto de edificações venha a caracterizar as nossas atividades dotando a bela capital mineira de novos e pitorescos aspectos no seu painel urbanístico.148
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Sedas e Plumas. REVISTA ALTEROSA n. 49. Maio de 1944, p. 48. Redação. Surge o novo bairro na capital. REVISTA ALTEROSA n.66. outubro de 1945, pp. 112-113. Matéria não assinada. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 148
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Quando essa reportagem emprega as frases “Belo Horizonte, como todos os centros adiantados do país” e “crise de habitações decorrente da situação anormal do mundo”, podemos perceber uma tentativa de se inserir os leitores na conjuntura mundial e nacional, o que vinha de acordo com a modernização vivida na época, produzida pela dinâmica atuação do prefeito Juscelino Kubistchek. Assim, a partir do fim da guerra, todas as publicações e propagandas se voltaram para essa situação mundial, mas, em novembro de 1945, em uma propaganda de um creme dental, mais uma vez a alusão à eugenia se fez presente. O creme dental Gessy é mostrado com toda a sua eficácia e elogios estampados na foto de uma criança sorridente, e, ao final da propaganda, a frase “50 anos a serviço da eugenia e da beleza”, sugerindo que, mesmo após a guerra, esse conceito ainda se fazia presente no pensamento de parte da sociedade belorizontina.149
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Propaganda creme dental Gessy. REVISTA ALTEROSA n. 67. Novembro de 1945, p.7 REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Figura 8: Revista Alterosa, ano VII, nº 67, 1945
Fonte: Acervo APCBH
Esse pensamento discriminatório e racista, em um Brasil onde se pregava a “democracia racial”, foi legitimado por um discurso científico e apoiado inclusive por intelectuais. Talvez por isso tenha ganhado tanta força e se espalhado pela sociedade das mais diversas formas e interpretações, fazendo-se presente no comportamento do dia a dia (MACIEL, 1999).
5. Considerações finais Ao se empreender uma pesquisa em uma fonte primária, o pesquisador depara com inúmeras limitações, como a dificuldade de acesso, às vezes, a precariedade do documento, a linguagem da época, dentre outras coisas. A Revista Alterosa oferece uma gama de possibilidades para pesquisa e, talvez aí resida a maior dificuldade, pois há que se estabelecer um recorte temporal e delimitar o tema. Mas uma vez definido o tema a ser estudado, o mesmo se mostrou de suma importância tanto para esse estudo quanto para estudos posteriores, pois ao se empreender essa pesquisa se constatou não haver estudos discutindo esse tema especificamente. Na realidade, a Revista Alterosa foi muito estudada e trabalhada, mas os vários trabalhos mostram, em sua grande maioria, o diálogo da REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Revista com a moda, e com o comportamento da sociedade, na época em que circulou na capital mineira. Conseguimos observar somente um trabalho que tratava do esporte na capital, através da revista, no qual o tema eugenia foi mostrado como parte do pensamento presente na sociedade belorizontina no período. A presente pesquisa permitiu concluir que o discurso de raça e eugenia esteve presente na capital mineira, sendo evidenciado em propagandas, reportagens e textos, publicados na Revista Alterosa. Além disso, observou-se também que a cidade de Belo Horizonte, através das publicações da Revista, esteve em sintonia com o contexto da Segunda Guerra, acompanhando as mudanças e direcionamentos gerados pelo conflito mundial. Sendo assim, este trabalho é uma contribuição para se entender como as situações vividas no mundo e no Brasil, entre 1939 e 1945 se mostraram presentes em uma parcela da sociedade da cidade de Belo Horizonte. Esta pesquisa, no entanto, não pretendeu esgotar as páginas do periódico, uma vez que há ainda um campo muito vasto para se pesquisar. Pretendeu-se aqui, enfim, mostrar caminhos que evidenciam, através de uma revista, a presença do discurso de raça e eugenia na sociedade de Belo Horizonte.
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MEMÓRIA E MANIFESTAÇÕES ART DÉCO NAS PÁGINAS DE BELLO HORIZONTE
MEMORIA Y MANIFESTACIONES ART DECO EN LAS PÁGINAS DE BELLO HORIZONTE Carlos Eduardo de Almeida Oliveira*
Resumo O artigo analisou a coleção de revistas Bello Horizonte, das décadas de 1930 e 1940, disponibilizadas ao público através do site do APCBH. As revistas circularam, sobretudo, na capital mineira. O periódico publicava contos, textos, crônicas e poemas em suas páginas, que falavam do cotidiano em Belo Horizonte. A partir de uma leitura generalizada, foi possível selecionar alguns exemplares e compará-los visual e textualmente. A análise visual levou em consideração aspectos do design gráfico. A análise textual focou no tipo de texto e conteúdo. Concluiu-se que o deslocamento do centro urbano de Belo Horizonte, em 1936, foi um marco na transição de uma cidade com função puramente administrativa para a metrópole atual, bem como para o amadurecimento do conteúdo da revista e, consequentemente, seus aspectos gráficos. Palavras-chave: Memória; Arquivo; Art Déco.
Resumen El artículo analizó la colección de revistas Bello Horizonte, de las décadas de 1930 y 1940, disponibles al público a través del sitio web del APCBH. Las revistas circularon sobretodo en la capital de Minas Gerais. El periódico publicaba cuentos, textos, crónicas y poemas en sus páginas, que hablaban de lo cotidiano en Belo Horizonte. A partir de una lectura generalizada, fue posible seleccionar algunos ejemplares y compararlos visual y textualmente. El análisis visual llevó a cabo el diseño gráfico. Un análisis textual se centró en el tipo de texto y contenido. Se concluyó que el desplazamiento del centro urbano de Belo Horizonte, en 1936, fue un hito en la transición de una ciudad con función puramente administrativa hacia una metrópolis actual, así como para la maduración del contenido de la revista y, consecuentemente, sus gráficos. Palabras clave: Memoria; Archivo; Art Déco. *
Graduado em Artes e Design pela UFJF. Mestrando em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG. E-mail: kadu.olliveira@gmail.com REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Introdução O Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH) disponibilizou, em seu site, diversos documentos e coleções sobre a história e o patrimônio da capital mineira. Um deles foi a coleção analisada nesse artigo: as revistas Bello Horizonte. Esse material foi publicado entre as décadas de 1930 e 1940. Circulou, principalmente, na capital e, posteriormente, foi distribuído em outras cidades de Minas Gerais. Seu conteúdo era literário e cultural, trazendo informações sobre cinema, poemas, contos, crônicas, fotos de crianças, personalidades e pessoas anônimas – principalmente as mulheres, fotografadas nas saídas das matinês e na avenida Afonso Pena, que na década de 1930 era a mais importante via da capital. Por sua vez, a Rua da Bahia era considerada uma das mais movimentadas do centro. Além do forte comércio, dos bares e cafés, no encontro dos dois endereços situava-se a estação central dos bondes, onde hoje se encontra uma floricultura. À sua frente, onde atualmente existe um hotel, funcionava o “Bar do Ponto”, local de encontro, romances e conversas. Esse memorável lugar saiu de cena em 1936, quando novas linhas de bonde surgiram. A estação central foi deslocada dessa esquina para a Praça Sete, ao redor do “Pirulito”, sendo até hoje o coração da cidade de Belo Horizonte. Esse deslocamento geográfico marcou uma mudança na revista: se antes as capas eram Art Déco, após a mudança as capas passaram a buscar uma estética mais próxima do modernismo. Enquanto a capa se alinhava à estética vigente, percebeu-se que o miolo da publicação não a acompanhou – exceto os efeitos de fotografia e as publicidades. Para este estudo, foram selecionadas algumas revistas de acordo com o ano, a estética das capas e a paginação interna – além dos textos, contos, crônicas e poemas observados numa leitura prévia. Foi possível identificar os nomes de alguns diretores da publicação, como Augusto Siqueira e Miguel Chalup, e de colaboradores fixos e ocasionais, como Don Ruy (pseudônimo do cronista Djalma Andrade) e Rubem Braga. O site do APCBH não possui todas as edições150 da revista Bello Horizonte – embora a defasagem na coleção não invalide esta pesquisa. Lamentavelmente, os dois 150
Conforme publicado no site do APCBH, “as revistas Belo Horizonte chegaram à custódia do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte através de recolhimento realizado na Secretaria Municipal de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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primeiros números da revista não estão catalogados, portanto, não foi possível identificar precisamente os motivos da criação da revista. Contudo, na edição comemorativa do sétimo aniversário, o editorial afirmava que a revista “fundada para bem servir a’ terra montanheza” era o “espelho da vida mineira” (BELLO HORIZONTE, n.107, 1939, p.3). Foram analisadas as revistas de número 12, 18, 73, 82, 93, 107, 111, 148, 166 e 188; e especificadas quanto ao conteúdo e estética. Ambas as análises perceberam mudanças significativas a partir do momento em que o centro urbano de Belo Horizonte se deslocou do “Bar do Ponto” para a Praça Sete. O que não mudou foi a manifestação da cultura local em suas páginas. As pessoas de Belo Horizonte, os que chegavam, os que nasciam, os ilustres e as inaugurações sempre foram retratadas pela revista ao longo do tempo. Levando em consideração a função “memorialística” da revista na atualidade, estética e texto se somam nas páginas, transformando a coleção de exemplares num arquivo a ser lido e descoberto por aqueles que se interessam pela cultura local e pelos costumes da primeira capital planejada do Brasil.
A revista como um arquivo Resgatar o passado é uma maneira de contribuir para a formação da identidade belo-horizontina, pois de acordo com Gagnebin, “as formas de lembrar e de esquecer, como as de narrar, são os meios fundamentais da construção da identidade, pessoal, coletiva ou ficcional” (GAGNEBIN, 2014, p.218). Mas que identidade é essa? A volta ao passado através da revista Bello Horizonte pode contribuir para a construção de uma identidade urbana, social e arquitetônica da primeira capital planejada do Brasil. A revista, quando deslocada de sua época, é capaz de funcionar como um ponto de preservação da memória, ou um arquivo, para ler e ser revelado. O exercício necessário para resgatar essas lembranças é descrito por Gagnebin ao investigar a rememoração: “Não se trata de tentar alcançar uma lembrança exata de um momento do passado, como se esse fosse uma substância imutável, mas de estar atento às ressonâncias que se produzem entre passado e presente, entre presente e passado [...]” (ibdem, 2014, p.240). Portanto, os textos de Bello Horizonte funcionam como ponto de partida para o exercício da memória, que funciona como uma linha do tempo entre o passado e o futuro – e esse Cultura em 1994. A coleção está incompleta e é composta por 52 revistas produzidas em Belo Horizonte e editadas semanalmente.” REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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passado (e esse futuro) pode ser visto através de histórias. A memória cultural é, pois, “um ato de imaginação e interconexão” (TAYLOR, 2013, p.128), que pode ser construída através de rastros deixados pela coleção em questão. É nesse sentido que as revistas funcionam como um arquivo. O que reforça tal teoria é a definição do termo dada por Foucault em seu trabalho intitulado “A Arqueologia do Saber”. Nele, o filósofo afirma que o arquivo é, inicialmente, a lei daquilo que pode ser dito (um sistema que rege o surgimento de enunciados enquanto acontecimentos singulares); num segundo momento, o arquivo é aquilo que permite que todas as coisas ditas não se amontoem numa massa amorfa. Ele é, portanto, aquilo que define o sistema de enunciabilidade desde o princípio de sua formação, e que é capaz de diferenciar os discursos em sua múltipla existência e, ao mesmo tempo, especificá-los (FOUCAULT, 1987, p.149). É isso o que, de certo modo, uma revista faz. Ela determina quais personagens e quais notícias podem aparecer e pertencer ao seu mundo, prezando por certa coerência entre os elementos distintos, que não permite a eles serem vistos pelo leitor como uma massa de textos desconexos. Ao falar do cotidiano da capital, a revista Bello Horizonte se torna um espaço onde assuntos diversos convergem para a formação de um arquivo das décadas de 1930 e 1940. A Belo Horizonte de outros tempos pode ser reconstruída a partir da leitura das páginas de Bello Horizonte, uma vez que o arquivo serve como um local de apoio e armazenamento das memórias.
A Belo Horizonte de Bello Horizonte A revista Bello Horizonte teve como foco a vida na capital de Minas Gerais. De início, suas crônicas e poemas giravam em torno do centro urbano, sobretudo nas imediações da Avenida Afonso Pena com a Rua da Bahia. Conforme a cidade crescia, a revista evoluía: as reportagens ganharam mais espaço, fatos de outras cidades apareceram em suas páginas, a publicação se tornou mensal, e seu design mudou – sem perder o foco na capital, em seus “moradores ilustres” e nas transformações urbanas ao longo dos anos. Na edição comemorativa de sete anos da revista, uma reportagem apresentou alguns dados estatísticos. Em 1900, por exemplo, Belo Horizonte contava com 13.472 moradores; já em 1938, a população era de 208.177 habitantes – em 1905 eram 3.213 prédios na capital; em 1938, a cidade possuía 29.605 edifícios erguidos. Dentre as novas REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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edificações, em outra reportagem, a revista destacou algumas imagens da usina da firma Ulysses Vasconcelos. O edifício, em estilo Art Déco, foi composto dentro das regras clássicas da arquitetura deste período: janelas amplas em grade de ferro e vidro formando uma malha geométrica retangular; linhas horizontais e verticais ressaltando o efeito de escalonamento; e a platibanda ocultando o telhado, esse considerado “feio” à época por não ser uma tecnologia moderna. Além das imagens, um depoimento da revista sobre o senhor Vasconcelos demonstrou o valor dado ao cidadão belo-horizontino: O sr. Ulysses Vasconcellos commerciante e industrial á moderna traz, assim, uma apreciavel contribuição ao progresso montanhez nesse ramo de actividades. O seu estabelecimento offerece as melhores vantagens tanto a compradores, como a vendedores de cereaes, vantagens não só em preços como em qualidade dos productos beneficiados. Elemento de destaque nos altos circulos conservadores de Minas, acompanha o Sr. Ulysses Vasconcellos todos os aspectos da vida mineira nesses sectores, dos quaes é uma das mais estimadas figuras (BELLO HORIZONTE, n.107, 1939, p.43).
De maneira igual à apresentação do Sr. Ulysses, a revista tratou diversas outras personalidades locais daquela época, configurando uma espécie de “materialismo histórico” (BENJAMIN, 2012). As personagens retratadas em Bello Horizonte representavam a história contada sob um viés – a visão da elite, o discurso ideal para atender aos anseios da alta sociedade mineira. Assim como os cidadãos ilustres, a arquitetura foi um tema recorrente no periódico. Sobre construções arquitetônicas, Ricoeur afirma que “cada novo edifício inscreve-se no espaço urbano como uma narrativa em um meio de intertextualidade” (RICOEUR, 2007, p.159). Diversas edificações da capital carregaram em si narrativas de vidas. Elas puderam ver a cidade crescer e fomentaram a maneira de como as relações sociais aconteciam – a exemplo dos cinemas. Sob o título de “Chronica Cinematographica”, o trecho abaixo traz informações sobre a formação da identidade local, mostrando, por exemplo, que os cinemas aguardavam o público, hábito incomum atualmente: Os cinemas da Capital têm um horário para dar começo á sua primeira sessão. Entretanto, elle não é obedecido á risca, como devêra ser. Porque, afinal de contas, Bello Horizonte não é nenhum logarejo do interior, onde se condiciona o inicio das “soirées” á circumstancias de haver um determinado numero de pessôas para assisti-las (BELLO HORIZONTE, n.18, 1934, p.5).
A cidade se dá, ao mesmo tempo, a ver e a ler. O tempo narrado e o espaço habitado estão nela mais estritamente associados do que no edifício isolado. A cidade REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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também suscita paixões mais complexas do que a casa, na medida em que oferece um espaço de deslocamento, de aproximação e de distanciamento (RICOEUR, 2007, p.159). Um exemplo claro dessa relação entre o urbanismo e a revista se deu através do “Bar do Ponto”. Nas edições de número 12 e 18, por exemplo, houve a presença de poemas sobre a Avenida Afonso Pena e a Rua da Bahia. No encontro destas duas vias ficava o Bar do Ponto, em frente à estação central dos bondes de Belo Horizonte. A importância desse encontro foi destacada na crônica de 16 de novembro de 1933: Esse ângulo reto formado no coração de Bello Horizonte pela rua da Bahia e pela avenida Affonso Penna, em todo o esplendor de sua beleza elegante, já está celebre na memoria da nossa cidade moderna. Ali, a cidade genuflecte-se, como numa procissão de fé. E´a ronda das mulheres mais bellas e elegantes, que passam numa espuma de sedas e numa onda de perfumes, na hora macia da tarde, quando até o ar parece mais leve. O encontro dessas ruas elegantes, até faz lembrar o reflexo de fadas encantadas passando por dois espelhos, como nas nossas historias de creança. Quanta belleza, quanto esplendor nesse vae e vem constante (BELLO HORIZONTE, n.12, 1933, p.8).
O destaque dado à presença das mulheres revelava o público que frequentava a região, a forma de como a figura feminina era vista, a importância de conviver na cidade, a calma que o tempo permitia aos sujeitos. A descrição também revelou um hábito social dos belo-horizontinos, o footing – andar pela cidade para ver e ser visto, conhecer pessoas, flertar. “Footing” era também o nome de uma coluna da revista, que trazia uma crônica sobre o passeio da semana, às vezes com fotografias das moças que por ali transitavam. O texto emulava possíveis diálogos dos homens sobre as garotas, ou simplesmente comentava o quanto elas eram importantes naquele evento. O Bar do Ponto foi “substituído” por volta de 1935, segundo Castriota e Passos (1998). Em 1934, foi criada a Comissão Técnica Consultiva da Cidade, em parte responsável por reformular o plano urbanístico da capital. Pelos planos da comissão, o ponto central dos bondes mudaria de endereço: “a transferência da estação central de bondes do ‘Ponto’ para a Praça Sete veio marcar o deslocamento do ‘centro’ da cidade” (CASTRIOTA E PASSOS, 1998, p.134). A mudança no trânsito mudou também a estrutura da revista Bello Horizonte: uma tradicional coluna, denominada “Avenida”, não apareceu publicada em 1936. De forma versada, “Avenida” era uma coluna/poema que informava o que acontecia no Bar do Ponto e nas redondezas. A edição de 12 de junho de 1937 trouxe de volta o poema/periódico, agora sob o título de “Praça Sete” –, uma indicação para o novo referencial da cidade. Escrito por Dom Sancho ao invés de Dom REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Ruy (autor da “Avenida”), o poema seguiu a mesma estrutura e estilo da coluna extinta. Segue um trecho destacado: A Praça 7, agora, virou sala: E´ali que se “corta”, é ali que se fala... Segredam, quando passas, junto ás louras, Que já não és, amor, o que tu fôras... Ninguém sabe, meu bem, si és feliz, Si já encontraste aquelle que te quis... Agora isso é verdade; o povo dil-o: Quando tu queres isso, é bem aquillo... –Veja que loura vem passar, depois... – E´ ”blonde”, sim, – mas H²O²[...] Olha quem vae ali: E´ um caso sério... A sua vida – dizem – é um mysterio... Um bom malandro; nunca viu trabalho... Outra vida não quer: – é do baralho... [...] (BELLO HORIZONTE, n. 87, 1937, p.15)
Intitulado “O Bar do Ponto Morreu”, o texto de Astolpho Gazolla falava sobre a transferência da estação central para a Praça Sete na página seguinte ao poema destacado. Além disso, trouxe à tona um termo comum ao obelisco presente no centro da praça: “O Bar do Ponto estava velho e feio. A Praça 7 é moça e bonita. E tem pirolito e cinema. E, também, um círculo grande, onde os bondes brincam de roda. De ciranda, cirandinha...” (BELLO HORIZONTE, n.87, 1937, p.16). A ideia do velho em oposição ao novo e a brincadeira com o pirulito evidenciam que a arquitetura e o urbanismo são capazes de carregar consigo, ao longo do tempo e das gerações, traços do passado; memórias que se mantêm vivas na sociedade, por mais longas que sejam. A consolidação da Praça Sete como centro da capital pôde ser vista na capa da edição de 3 de junho de 1938. A vida da cidade grande promoveu uma espécie de “desconcentração” da revista em torno de um único local. Era como se, a partir do deslocamento da central de bondes, Belo Horizonte tivesse ficado grande demais para ser vista apenas de um único “ponto”. Ao mesmo tempo em que o bonde (que ia até o bairro Carlos Prates) se tornava cenário de uma crônica urbana, a revista exibia textos situados em outros países; as poesias (que ficavam espalhadas pelas páginas do periódico) deram lugar às publicidades e fotorreportagens; e os textos jornalísticos foram perdendo a linguagem descompromissada. Em 1939 a revista passou a ser mensal. Junto com a novidade, a ilustração e o título Bello Horizonte, na capa, foram modificados: tornou-se padrão publicar uma faixa com o logotipo da revista, além do texto inicial e ilustrado de um conto. Segundo a REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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reportagem “Visões da Cidade”, de 1940, as novas sedes da Prefeitura e dos Correios e Telégrafos foram responsáveis por um milagre: os prédios trouxeram “vida” para a Avenida Afonso Pena, outrora o coração da cidade. Ainda durante a década de 1940, a Segunda Guerra Mundial também apareceu nas páginas da revista. A edição de janeiro de 1943 mostrou o posicionamento editorial a favor dos Países Aliados. Numa ilustração, trazia Hitler, Mussolini e Tojo atrás de grades protegidas pelo Anjo da Justiça, que carregava o mundo (envolto por pombas brancas) em suas mãos. Internamente, foi publicado um poema, escrito por A. J. Pereira da Silva, intitulado “Para a Vitoria! Britanicos”. A edição de julho de 1944, além das notícias sobre o conflito na Europa, trouxe um texto do historiador Abílio Barreto sobre a evolução da cidade de Belo Horizonte. Na matéria “O Vertiginoso Evoluir de Belo Horizonte”, um interesse público pela memória da cidade planejada se fez presente. Barreto destacou o ano de 1922 como fundamental na modificação da paisagem urbana local, pois a cidade se desvinculara do fantasma da Primeira Guerra e estava pronta para começar a mudar seus ares “interioranos” em busca do crescimento e industrialização, necessários para se transformar em metrópole: Entretanto, esse ainda não era o período máximo do evoluir da cidade. A fase de mais intenso progresso desta começou em 1935, com a sua transfiguração decorrente de uma série imensa e grandiosa de melhoramentos, realizados no período administrativo do Prefeito Otacílio Negrão de Lima, mandatário da confiança do Excelentíssimo Senhor Governador Benedito Valadares. Em seguida, [...], tivemos a dinâmica e arrojada fase governamental do Prefeito Juscelino Kubitschek de Oliveira, fortemente prestigiado pelo Excelentíssimo Senhor Governador Benedito Valadares [...] (BELLO HORIZONTE, n.166, 1944, p.42).
Em 47 anos desde sua inauguração, portanto, Belo Horizonte já era reconhecida como uma cidade industrial e de grande porte. A última das revistas analisadas foi publicada mais de três anos depois, em dezembro de 1947. Uma das reportagens chamou atenção para o trabalho de arquivamento da história da cidade pelo mesmo Abílio Barreto. Uma exposição de pinturas foi planejada por Elpídio Lemos de Vasconcelos no Edifício Goitacazes, e sua abertura aconteceu no dia 12 de dezembro, dia do aniversário de 50 anos da capital. As telas ilustravam desde o descobrimento da Serra do Curral até a inauguração de Belo Horizonte, e foram feitas por vários artistas, usando como referência o trabalho de Abílio Barreto, relatos de moradores antigos, fotografias e até mesmo outras pinturas. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O “estilo moderno” nas páginas da revista A Primeira Grande Guerra fomentou um movimento de recomeço na Europa. Criadores diversos procuravam uma estética que abandonasse o passado, e encontraram nos povos antigos (pré-colombianos) a sua referência. “Na verdade, a Europa desinteressava-se dos produtos de uma sociedade enferma que decidira chacinar a sua juventude em campos de batalha do Somme e voltava-se para uma arte primitiva, intocada e natural” (LEMME, 1996, p. 32). O estilo Art Déco foi o resultado das experimentações feitas por artistas parisienses. Ele se internacionalizou a partir da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas de Paris, no ano de 1925. Porém, o termo conhecido hoje (Art Déco), surgiu na década de 1960, com a publicação do livro “Art Déco”, de Bevis Hillier. Antes disso, o Art Déco era popularmente conhecido como “Moderno” ou “Cubista”. Para avaliar de que maneira o estilo manifestou-se nas páginas e nas capas da revista Bello Horizonte, foram adotadas apenas algumas edições para análise. A seleção de tais edições constituiu-se das seguintes etapas: agrupamento por similaridade da composição das capas; análise do conteúdo das revistas de cada grupo; e manutenção das revistas cujo conteúdo trazia elementos típicos.
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Capas As capas do início da publicação ainda não utilizavam a policromia, e abusavam das cores maciças e dos traços geométricos, característicos do
Art
Déco
(Imagem
1).
Também
predominavam o uso dos vermelhos, verdes e negros. As cores seriam alteradas com o passar do tempo, ampliando a paleta cromática até chegar aos dégradés e à exploração das tecnologias modernas de impressão em cores. Levando em consideração que boa parte dos impressos da época era feito em tipografias, onde as cores eram aplicadas ao papel, uma a uma, tem-se uma referência dos motivos da Imagem 1: Revista Bello Horizonte. Edição de 9 de Outubro de 1933. Capa. Fonte: site do APCBH.
pouca exploração cromática nas capas do início da publicação – quanto mais cores, maior o trabalho, e mais caro o produto final. Os traços
das ilustrações possuíam linhas puras e, geralmente, a figura feminina era o motivo do desenho. A tipografia do logotipo Bello Horizonte não seguia o estilo Art Déco, que buscava formas geométricas e puras, pois: A tipografia de estilo Art Déco, por ter sua construção baseada nos princípios geométricos, aparenta ser de fácil execução, o que levou, em diversos momentos, a ser executada por pessoas com pouca intimidade com os procedimentos do desenho tipográfico, resultando em exemplares com formas no mínimo curiosas, que apresentam também soluções únicas de aplicação, geralmente para possibilitar que um tamanho determinado de letras se encaixe no espaço físico disponível, ou de outros procedimentos que variam caso por caso (D’ELBOUX, 2013, p. 281).
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Exceção à regra, a capa da revista de 18 de Setembro
de
1933
foi
uma
perfeita
representante do uso da estética Art Déco no campo do design gráfico (Imagem 2). Toda colorida em verde e vermelho, a capa possuía as figuras de um cavalo e de uma mulher nua, esta coberta por um fino véu transparente, com traços (aparentemente) feitos à régua e compasso. Observou-se, aqui, uma tipografia geométrica e maciça, composta por elementos como o círculo e o quadrado, não deixando dúvidas sobre a adoção do “moderno” pelo corpo editorial da publicação. Imagem 2: Revista Bello Horizonte. Edição de 18 de Setembro de 1933. Capa. Fonte: site do APCBH.
Conforme já dito, o estilo gráfico das capas sofreu alteração quando a estação central dos
bondes mudou de lugar (Imagem 3). Nessa transição, o layout da capa recebeu uma faixa superior e um logotipo. A revista também ganhou um conto em sua capa, que continuava no miolo da publicação; nesse padrão, a ilustração seguia o conto iniciado na capa. Com essas mudanças, a presença de mais cores, incluindo a sobreposição destas, apareceu, revelando que novas tecnologias de impressão haviam chegado ao meio gráfico
Imagem 3: Revista Bello Horizonte. Edições de 19 de Fevereiro de 1934, Maio de 1937 e Janeiro de 1939, respectivamente. Transição estética das ilustrações em cores sólidas para ilustrações, contos e logotipo. Capas. Fonte: site do APCBH. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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de Belo Horizonte. Foi a partir de então, onde a ilustração já não era mais Art Déco, que o logotipo aderiu à tipografia típica do estilo, sendo destacado da composição por uma faixa. Algumas capas foram classificadas como edições especiais. Nessas foram encontradas fotografias ou ilustrações referentes à reportagem principal, que não aparecia na capa (um exemplo de edição especial é a segunda capa da imagem 3; outros exemplos de capas especiais eram aquelas que utilizavam fotografias impressas em cor única). As edições especiais se distanciavam das capas das outras edições, por serem mais autênticas em função da temática empregada. Elas variavam entre si, de acordo com o tema proposto. A ousadia permitida pelo tema da publicação era vista na composição entre ilustração e tipografia, ou fotografia e logotipo, que variavam e se adequavam entre si, não importando a estética vigente.
Páginas internas Em suas primeiras edições, a revista era semanal e possuía 24 páginas. Sua configuração interna apresentava um editorial, colunas fixas (“Avenida”, “Footing”, “A saída da missa”, “Depois da matinê”, “Belo Horizonte no cinema” etc.) e diversos contos, notas sociais, matérias e poemas. Posteriormente, a revista passou a ser quinzenal e mensal, totalizando 52 páginas. Com maior uso de fotografias – e ampliando o número de reportagens e o tamanho das colunas sobre cinema, rádio, literatura, horoscopo, cartas e curiosidades –, notou-se, também, a colaboração de escritores de renome, como Olavo Bilac e Carlos Drummond de Andrade. Não foi possível identificar as dimensões físicas da revista e sua tiragem. A coluna “Avenida” era uma das mais importantes da fase inicial. O grande poema/crônica da semana era publicado nas páginas iniciais da revista, próximo ao editorial. Seu título buscava um alinhamento Imagem 4: Revista Bello Horizonte. Edição de 12 de Novembro de 1933. Uma das tipografias utilizadas no título do poema semanal "Avenida" com ornamentação da página. Recorte. Fonte: site do APCBH.
com a tipografia típica do estilo Art Déco, enquanto o corpo do texto utilizava fonte serifada
(Imagem
4).
Outro
elemento
recorrente era a ornamentação da página,
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geralmente feita com linhas finas e retas. Essa ornamentação foi utilizada também em outras páginas da revista, sempre cumprindo a mesma função: compor visualmente a página. Vale ressaltar que as estéticas anteriores ao Art Déco eram carregadas de ornamentos. Desprender-se dessa tendência provavelmente era algo difícil para as pessoas da época. Portanto, a ornamentação geométrica pode ser interpretada, atualmente, como uma necessidade de se embelezar o “moderno”. Alguns jogos volumétricos, ora colocando o texto em ziguezague, ora promovendo um jogo de preenchimento dos espaços, remetiam à abstração geométrica herdada do futurismo pelo Art Déco. Essa exploração da composição tipográfica não era utilizada com frequência. Em geral, as Imagem 5: Revista Bello Horizonte. Edição de 12 de Novembro de 1933. Exemplo da exploração da composição entre texto e imagem no período. Recorte. Fonte: site do APCBH.
páginas possuíam quatro colunas de texto, uma distribuição textual similar a dos jornais. Após a alteração do centro da
cidade e as mudanças gráficas desse período, a revista passou a ter apenas três colunas de texto. Com o passar do tempo, a tipografia do texto corrido ganhou formas mais adequadas ao estilo Art Déco. Porém, nesse momento, a arte gráfica da capa já mostrava sinais do modernismo. A análise tipográfica revelou que a revista diferenciava o tipo do título e o tipo do texto – às vezes, um mesmo título possuía mais de uma tipografia, algo que na atualidade “menos é mais” seria um pecado pelo excesso de informação. Em 1940, a coluna “Um Conto Para Você”, por exemplo, possuía um logotipo que combinava tipos geométricos e manuscritos. O título do tal “conto para você” era escrito com outra fonte, às vezes serifada, às vezes geométrica. Dentre as experimentações fotográficas feitas
pela
revista,
notou-se
uma
preocupação com o acabamento das fotomontagens. Tal acabamento era feito entre
as
composições
com
formas
geométricas impressas, trabalhadas nas Imagem 6: Revista Bello Horizonte. Edição de 12 de bordas da própria fotografia ou ao lado das Novembro de 1933. Fotografia recordada ocupando a área equivalente a duas colunas de texto. Recorte. mesmas. Eram utilizadas principalmente Fonte: Site do APCBH. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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linhas finas, que complementavam a composição das páginas. A preocupação com esse tipo de acabamento foi percebida nas publicações da década de 1930. Na década seguinte, a presença de ornamentos diminuiu, e a manifestação das composições geométricas e anguladas deu lugar à disposição de imagens típicas do design gráfico modernista.
Conclusão A revista Bello Horizonte foi um referencial da cultura belo-horizontina do início do século XX. Nas duas décadas analisadas, a evolução gráfica da revista se mostrou alinhada às evoluções territorial, cultural e social da capital mineira. A cidade de Belo Horizonte havia ultrapassado suas expectativas antes mesmo de completar cinquenta anos de existência – o que, de certo modo, forçou os governantes a elaborarem um novo planejamento para o município. O crescimento populacional foi, de certa forma, desejado em diversos setores, por ser um motivo a mais para livrar a região da pecha de cidade interiorana. A modernidade desejada chegou junto com o estilo “moderno”, pelo qual foi largamente conhecido e nomeado o Art Déco; e a revista não deixou de exibir traços da influência dele em suas páginas: linhas retas, assimetria e fotomontagens na concepção das matérias. As crônicas e contos se mantiveram perenes, ora com menos, ora com mais espaço. Os poemas, que preenchiam boa parte da revista em 1933 e 1934, foram dando espaço às publicidades e às reportagens de outras cidades do estado, do país e do mundo, a partir do deslocamento da estação central dos bondes – um marco, reafirmamos, na metropolização da capital mineira. O projeto gráfico da revista evidenciou a mudança sofrida pela cidade que crescia em ritmo acelerado, recebendo seu parque industrial e transfigurando o centro urbano. Mais do que a preservação da memória, Bello Horizonte era um retrato da manifestação do estilo francês na cultura local. Em suas páginas e capas, contudo, pôde ser percebido que a adoção do Art Déco não ocorreu totalmente, por não haver coerência estética entre capa e miolo. Quando houve uma mudança na edição, houve também uma maior exploração de cores na capa. Com o passar do tempo, o estilo foi se manifestando internamente e perdendo espaço na capa. Dentre as evoluções do miolo da publicação, notou-se a diminuição da presença de elementos ornamentais no layout das páginas, e uma mudança tipográfica no corpo do texto. Houve também uma redução das colunas de texto, de quatro para três, o que REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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contribuiu para uma melhor legibilidade. A evolução gráfica da revista, como um todo, mostrou como o Art Déco foi utilizado e como foi superado por outras estéticas, algo comum quando um estilo se tornava moda. A coleção de revistas Bello Horizonte é, portanto, avaliada como um referencial onde as memórias da cidade estão reunidas – não apenas para retratar a vida mineira naquela época, mas para mostrar a virada instituída na cultura local, através do desejo de ser moderno e ser metrópole, ultrapassando os planos da comissão de arquitetos e urbanistas que projetaram a capital. Bello Horizonte funciona como um arquivo contendo textos e imagens de um momento fundamental: de como a sociedade se viu revestida de poder para se articular a favor da expansão e da industrialização. O arquivo também é importante por trazer demarcações espaço-temporais do momento que foi alcançado: a mudança do “Bar do Ponto” para a “Praça Sete”; da pequena localidade que levaria cem anos para atingir cem mil habitantes para a grande cidade de mais de duzentas mil pessoas, antes mesmo de completar meio século. As memórias preservadas em Bello Horizonte sobre a Belo Horizonte são, em outras palavras, memórias do abandono de uma cidade planejada em função da adoção de novas memórias, ideais para respeitar a tradição e inaugurar o futuro nas Minas Gerais.
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ENSINO DE HISTÓRIA, EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E RELAÇÕES DE GÊNERO: UMA ANÁLISE DA OFICINA DESVENDANDO O ARQUIVO PÚBLICO
HISTORY TEACHING, HERITAGE EDUCATION AND GENDER RELATIONS: AN ANALYSIS OF THE WORKSHOP DESVENDANDO O ARQUIVO PÚBLICO Tiago Vidal Medeiros
Resumo Este artigo busca refletir sobre a experiência de uma oficina criada pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) que relaciona educação patrimonial, ensino de história e relações de gênero. Para tanto, é feita uma revisão da bibliografia sobre estudos de gênero na historiografia e sua recente apropriação pelo campo do ensino de história buscando entender o contexto e a pertinência de ações educativas que relacionem os dois temas. Por fim, a oficina Desvendando o Arquivo Público é descrita e analisada, procurando refletir sobre suas possibilidades e potencialidades enquanto ação educativa problematizadora da história das relações de gênero a partir do patrimônio documental do APERS. Palavras-chave: Relações de Gênero; Ensino de História; Educação Patrimonial. Abstract This paper seeks to reflect about the experience of an workshop created by the Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) which relates heritage education, history teaching and gender relations. Therefore, a review of the bibliography on gender studies in historiography and its recent appropriation by the field of history teaching is made, aiming to understand the context and the pertinence of educational actions that relates the two themes. Finally, the workshop Desvendando o Arquivo Público is described and analyzed, seeking to reflect on its possibilities and potentialities as educational action problematizing the history of gender relations from the documentary heritage of the APERS. Keywords: Gender Relations; History Teaching; Heritage Education
Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: tiagovm.t@gmail.com. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Debates sobre as relações de gênero e feminismo vêm tomando um espaço cada vez maior na opinião pública, na mídia e na escola, se considerarmos os últimos anos. Tais discussões vêm mobilizando a sociedade brasileira na qual diferentes grupos enfrentamse, tomando posições diversas. A educação, enquanto campo próprio de disputas políticoideológicas, é um tema que tem recebido grande atenção desses grupos no que diz respeito ao papel das professoras/es e da escola em incitar (ou interditar) os debates de gênero. Nesse sentido, vimos surgir movimentos que tentam inserir pautas conservadoras em programas educacionais no país, a saber, o projeto “Escola Sem Partido” e a cartilha intitulada “Ideologia de Gênero” que pauta diversos outros projetos conservadores. Ao mesmo tempo, observamos o emergir de um movimento estudantil – principalmente secundarista – sob a forma de ocupações das escolas em diversas partes do país, desde a segunda metade de 2015. Dentre suas características principais, estava um visível protagonismo feminino e o desenvolvimento de atividades dentro das ocupações que tratavam das temáticas de gênero, feminismo, fascismo e movimentos sociais (AQUINO et al., 2015). Considerando-se esses fatos, podemos dizer que os debates sobre relações de gênero e educação tornaram-se “imperativos do tempo presente” (CUBAS; ROSSETO, 2016, p. 213). Em conexão com esses processos, as instituições de ensino não formais como museus, arquivos e memoriais passaram a elaborar ações educativas e a promover eventos que também têm como centro as questões de gênero. É o caso do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) que, em 2016, criou uma oficina cujo objetivo é fazer os participantes refletirem sobre as relações de gênero numa perspectiva histórica, denominada Desvendando o Arquivo Público: relações de gênero na história151. Este artigo busca refletir sobre essa ação educativa à luz do diálogo entre estudos de gênero, ensino de História e educação patrimonial. Especificamente, busco entender em que medida a oficina permite problematizar as relações de gênero na História a partir do patrimônio documental do APERS. Dessa forma, inicio apresentando os debates teóricos que articulam estudos de gênero e ensino de História; em seguida, descrevo a proposta e o funcionamento da oficina, bem como suas aproximações e disparidades com os estudos No segundo semestre de 2016, pude participar, enquanto oficineiro, de diversas atividades práticas relacionadas a esta oficina em razão da disciplina de Estágio em Educação Patrimonial. É com base nesta experiência que busco construir a reflexão a seguir. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 151
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de gênero; por fim, busco refletir sobre a potencialidade da mesma enquanto ação de educação patrimonial.
1. Gênero e Ensino de História
Por volta dos anos 1960, uma crise atingia a historiografia ocidental. Seu caráter historicista era criticado já desde os inícios do século XX por diversas correntes e movimentos intelectuais. As críticas dos seguidores da Escola dos Annales e dos historiadores marxistas britânicos já vinham pautando os apagamentos históricos de grupos minoritários, como pobres e operários. No contexto de finais dos anos 1960, impulsionadas politicamente pelo movimento feminista e pela entrada de mais mulheres na academia, as historiadoras feministas também passaram a arrolar a invisibilidade das mulheres nesta historiografia pretensamente objetiva e neutra. Surgia, assim, na senda dos Estudos das Mulheres e de Gênero, uma História das Mulheres como um novo campo de estudo que acrescentaria novos temas e objetos, além de criticar a forma como o trabalho científico vinha sendo realizado. Passadas quase duas décadas do início deste movimento, a historiadora estadunidense Joan Scott assumiu a tarefa de fazer um balanço da produção das historiadoras feministas até então. Assim, apontava, em hoje clássico texto, que a estas caberiam a função de não somente inscrever as mulheres na história, mas também de propor uma nova metodologia que resultaria em uma nova história (SCOTT, 1995). Para avançar, tornava-se necessário questionar as bases epistemológicas na qual a historiografia (e a ciência) moderna havia se assentado. Nesse sentido, contestava o caráter pretensamente universal e neutro do sujeito ocidental, que havia sido o objeto privilegiado da historiografia até então. Sem questionar seu caráter essencialista, os historiadores tomavam não somente o sujeito, mas também as bases conceituais e epistemológicas da historiografia desde uma lógica masculina. Assim, propunha operar uma mudança epistemológica que colocasse o gênero como uma categoria de análise histórica (SCOTT, 1995). Ao fazer tal proposição, Scott estava se dirigindo não somente aos historiadores tradicionais, mas também às historiadoras feministas que vinham buscando teorizar sobre REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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a experiência feminina na história. Analisando e sistematizando as tentativas das feministas de teorizar o gênero até então, a historiadora aponta os problemas e limitações que essas teorias apresentam. Para ela, as abordagens produzidas pelas historiadoras feministas eram problemáticas, pois insistiam no caráter fixo e universal do binarismo de gênero, produzindo noções a-históricas e essencialistas da categoria mulheres e falhavam na desconstrução dos termos da diferença sexual. De maneira geral, ela chama a atenção para a necessária historicização da categoria de gênero, tomada de maneira relacional, o que quer dizer que seria necessário estudar tanto as diferentes formas de “ser mulher” e “ser homem”. Assim, essa perspectiva também implicava compreender o gênero de modo interseccionado com as categorias de classe e raça (SCOTT, 1995). Da década de 1980 até hoje, os estudos de gênero conseguiram construir um espaço consolidado na academia e na produção historiográfica, embora ainda enfrentem algumas dificuldades para se colocar em alguns campos mais tradicionais. Por vezes, historiadoras feministas que trabalham no campo das relações de gênero são acusadas de fazerem uma “história militante” como oposta a uma “história científica”, mesmo a historiografia já tendo superado a certeza da neutralidade há bastante tempo (PEDRO, 2011). Muitas autoras concordam, porém, que no campo do Ensino de História a produção acerca do gênero ainda é bastante incipiente (CUBAS, ROSSETO, 2016; GALLI, 2015; WASZAK, 2015). Nesse sentido vale a pena destacar dois aspectos do Ensino de História no Brasil que podem explicar a parca apropriação da categoria de gênero neste campo: o currículo e os livros didáticos. Cubas e Rosseto (2016) chamam a atenção para a recente e tímida incorporação das questões de gênero nos currículos brasileiros. Foi no âmbito dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998 que surgiram as primeiras referências textuais às relações de gênero, incluída na temática transversal de “orientação sexual”. Ainda assim, a referência, nos parâmetros curriculares, não é garantia de que essa questão será abordada de forma consistente e comprometida com as produções deste campo de estudo. Em relação aos livros didáticos de História, os estudos mais recentes têm apontado para um silêncio acerca das mulheres nesses materiais. Pesquisas apontam que apesar de nos últimos anos ser possível ver uma incorporação de mais figuras femininas nos livros, elas ainda estão em bordas e margens, sendo ressaltados alguns ícones pontuais sem grande influência no processo histórico (MISTURA; CAIMI, 2015 apud CUSBAS; ROSSETO, 2016). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Considerando-se esta modesta representação do feminino, o Ensino de História no Brasil, no que tange as questões de gênero, tem sido tratado a partir de uma lógica de suplemento em relação a uma história geral masculina. Esta observação foi feita por Joan Scott na década de 1990 para se referir aos lentos avanços que a história das mulheres tinha alcançado naquele momento, mas parece se encaixar no contexto atual para este campo (SCOTT, 1992). Desta forma, uma história que se volte para as questões de gênero acaba dependente de ações individuais de professoras/es que se proponham a trabalhar a temática. A respeito desse silêncio, Miranda (2013) se questiona o quanto este influencia a aprendizagem histórica de meninas do ensino fundamental, num momento da vida escolar em que há forte produção de identidades de alunas e alunos, na qual se inclui a identidade de gênero. A autora afirma que a invisibilidade da experiência de determinados atores na história ensinada, como é o caso das mulheres, contribui para que as alunas não se percebam nos processos históricos. E, assim, têm dificuldades em perceber que as experiências femininas que formam suas identidades de gênero (como o machismo e a violência, por exemplo) possuem historicidade, e que, portanto, podem ser mudadas (MIRANDA, 2013). Este quadro complexo, exposto acima, que caracteriza as relações entre o Ensino de História e os Estudos de Gênero, suscita a criação de ações inovadoras, que busquem dar conta da história das relações de gênero no ensino básico. Neste sentido, a educação patrimonial torna-se uma importante aliada, permitindo abordagens diferentes para uma temática pouco estudada na escola. Algumas ações educativas já realizadas vêm permitindo problematizar as relações de gênero na História, muitas vezes preenchendo um espaço de vazio e invisibilidade, como é o caso relatado por Laura Galli (2015) em seu Trabalho de Conclusão de Curso no qual ela reflete sobre a elaboração de uma oficina sobre história das mulheres de Porto Alegre e a aplicação desta em escolas básicas da rede pública de ensino, além da oficina do APERS, que será descrita a seguir.
2. Desvendar um arquivo, descobrir relações de poder
Desde 2008, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul realiza oficinas de educação patrimonial numa parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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(UFRGS) que se concretizou no Programa de Educação Patrimonial (PEP). Nessas oficinas estudantes de escolas de Ensino Fundamental e Médio são recebidos no Arquivo para participarem de oficinas com temáticas diversas. Atualmente, há três oficinas em funcionamento. A primeira se chama Os tesouros da Família Arquivo e é destinada a turmas dos 6º e 7º anos do ensino fundamental. Nela os/as alunos/as conhecem e problematizam a história da escravidão e da luta por liberdade no Brasil e em especial no Rio Grande do Sul, através de alguns documentos selecionados. A oficina Desvendando o Arquivo Público: as relações de gênero na história, foco deste artigo, tem como público alvo estudantes do 8º e 9º ano do ensino fundamental, na qual são chamados a desenvolver habilidades do trabalho do/a historiador/a a partir das relações de gênero ao tomarem conhecimento de uma série de documentos diversos. A terceira oficina é denominada Resistência em Arquivo: Patrimônio, Ditaduras e Direitos Humanos e foi construída para estudantes do Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) com o objetivo de discutir temas relacionados à memória, aos direitos humanos e à história da ditadura civilmilitar brasileira a partir dos processos oriundos da Comissão Especial de Indenização do Estado (RODEGHERO et al., 2015). As três oficinas são constituídas por etapas semelhantes que compõem um percurso dentro do Arquivo, cada uma com suas particularidades. Irei me ater a descrever o funcionamento da Desvendando, pois é meu objeto de análise aqui. As/os alunas/os das escolas são recepcionadas no auditório do APERS onde serão apresentados à instituição e à oficina que realizarão; neste momento eles também são brevemente introduzidos ao assunto da educação patrimonial. Após essa primeira etapa, os estudantes são divididos em grupos, sendo que cada grupo fica sob a responsabilidade de um/a oficineiro/a, e fazem uma visita rápida ao pátio interno da instituição, na qual recebem informações sobre a construção dos três prédios que fazem parte do Arquivo, sua arquitetura e acervos. Em seguida, são conduzidos para dentro de um dos prédios, que contém uma grande parte do acervo da instituição, e no qual são informados sobre os diferentes tipos de documentos salvaguardados, as formas de armazenamento, preservação, restauração e organização do patrimônio documental. No final desta etapa, os alunos recebem envelopes com pistas para que localizem dentro do acervo uma caixa, que conterá os documentos que serão trabalhados por eles na etapa seguinte. Após encontrarem a caixa, os estudantes são levados até a sala Borges de Medeiros na qual cada grupo trabalhará com uma caixa, que
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conta uma história específica. Todo o trabalho é mediado por um/a oficineiro/a que dá as indicações de como o trabalho pode seguir. Em cada caixa há a reprodução de uma fonte que faz parte do acervo do APERS e sua transcrição. Os tipos desses documentos são processos crimes, certidão de nascimento, habilitação para casamento e processo de desquite. Dentro da caixa há também um texto de apoio que tem por objetivo suscitar uma reflexão sobre como funciona o trabalho do/a historiador/a, ou seja, atenta para o fato de que é preciso compreender que existem certos procedimentos de pesquisa que devem ser seguidos. Além disso, o texto também introduz a discussão de gênero, fazendo uma rápida referência ao clássico ensaio de Joan Scott, citado anteriormente. As caixas também possuem uma série de outros materiais de apoio específicos para cada fonte trabalhada, como fotografias da época, trechos de legislações antigas e contemporâneas, textos historiográficos, notícias de jornais, gráficos, linhas do tempo, etc. que permitem ao oficineiro orientar as discussões feitas a partir da fonte para múltiplos caminhos possíveis. De modo geral, as oficinas funcionam com um primeiro momento para a leitura coletiva dos documentos e, em seguida, é feita uma discussão. Ao total, cinco caixas foram elaboradas pela equipe do APERS para esta ação educativa, na qual é possível discutir tópicos específicos com as alunas e os alunos a partir de cada fonte e dos materiais de apoio. A primeira caixa contém a certidão de nascimento da famosa cantora Elis Regina. A partir desta e dos materiais de apoio (um vídeo, capas e reportagens de revistas, letras de música) o oficineiro tenta provocar a construção de uma narrativa biográfica da vida de Elis, enquanto uma personagem feminina protagonista que marcou a música e a história do Brasil, no contexto da ditadura civilmilitar e da redemocratização. A segunda caixa tem como fonte o processo-crime de Joanna Eiras, mulher criminosa que residia em Porto Alegre no início do período republicano. Com ela é possível problematizar os muitos aspectos que sua vida apresentou à sociedade, como as repressões e as valorações que lhe foram apontadas por não se conformar aos papéis de gênero do período. Há outro processo-crime na terceira caixa, que conta a história da “Maria Degolada”, nome criado pelo imaginário social de Porto Alegre para se referir à história de Maria Francelina Trenes, assassinada por seu amásio em 1899. A partir do processo é possível trabalhar questões de violência contra a mulher no passado e no presente, bem como a importância da denúncia e das legislações que buscam proteger as mulheres. O documento do processo de Desquite de Ida Kerber, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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ocorrido em 1935, é a fonte analisada em outra caixa. Através dela podemos analisar as relações hierárquicas estabelecidas entre homens e mulheres no matrimônio, compreendendo os papéis desempenhados pelos dois, destacando as submissões que eram impostas às mulheres com aval na legislação da época, e como essa relação foi se alterando com o tempo. A quinta caixa contém uma habilitação para o casamento de uma região de imigração do Estado na primeira década do século XX. Com esta fonte é possível refletir sobre as possibilidades de matrimônio para homens e mulheres, e sobre os papéis de gênero construídos dentro de uma família em região rural. Também se discute sobre o casamento enquanto direito, e como este se modificou ao longo do tempo. Após as leituras e as discussões com as fontes e os materiais das caixas, as alunas e os alunos são convidados a compartilharem com os demais as descobertas e as reflexões feitas nos grupos. Neste momento contam o que puderam aprender sobre as histórias das pessoas e como elas possibilitam pensar sobre as relações de gênero na história. Encerrada esta dinâmica, um/a oficineiro/a de apoio, explica aos estudantes dados sobre violência contra as mulheres no Brasil. Ao longo da oficina esta/e oficineira/o terá colocado, em silêncio, no painel metálico presente na sala imãs que simbolizam estatísticas de violência para o período em que estiveram fazendo a atividade (2 horas): cerca de 300 mulheres espancadas, 11 estupradas e 1 assassinada. A fala desta/e oficineira/o encerra a ação educativa evidenciando as desigualdades nas relações de poder e a violência estabelecida na sociedade por conta do gênero, e fazendo um apelo para que avancemos nas discussões acerca do machismo e das relações hierarquizadas, denunciando os casos de violência que vivenciamos ou presenciamos. Este último momento da oficina deixa claro que, além de instigar alunos e alunas a desenvolverem noções do trabalho de historiador/a a partir das relações de gênero na história, ela tem um propósito político muito claro que é o de se colocar contra as opressões e violências vividas pelas mulheres na sociedade contemporânea; uma posição necessária no tempo presente, momento em que gênero é objeto constante de discursos. Mas a existência de violências não é apenas mencionada e condenada moralmente; no trabalho com as caixas a violência e a submissão da mulher são explicadas historicamente. A partir das fontes os estudantes são apresentados a situações em que as personagens estavam envolvidas em relações de poder (às vezes de violência, às vezes de insubmissão, outras de conformação com papéis de gênero), mas que com o auxílio dos demais materiais tomam contato com discursos diversos (da imprensa, dos códigos, etc.) que as REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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engendravam nessas situações. Além disso, são chamados a fazerem comparações com outros momentos históricos, onde é possível perceber os pontos de corte, as descontinuidades e as continuidades. Assim, a oficina busca mostrar aos alunos a historicidade de diversas experiências femininas, como pretendia Scott ao propor o gênero enquanto categoria de análise histórica. A atividade, portanto, está em conexão com o proposto pelos estudos de gênero: visibiliza as mulheres, e ao mesmo tempo explicita os mecanismos sociais e culturais que as invisibilizam. Por outro lado, porém, é necessário se questionar sobre quais mulheres estão recebendo visibilidade nesta oficina. A reflexão de Scott (e demais historiadoras feministas) alerta para a necessidade de não se essencializar a categoria mulheres, de modo que os estudos de gênero devam se articular também com questões de classe e de raça. No tangente à problemática de classe, há mulheres que pertenciam à classe média e nesses casos sua posição social é explicitada e comparada a casos de mulheres das classes baixas (como no caso das mulheres públicas152 e das empregadas domésticas), e há também mulheres representadas que de fato pertenciam a um estrato social mais baixo (como o caso de Maria Francelina Trenes). Nas questões raciais, contudo, não há a mesma representação, pois todas as histórias abordadas são de mulheres brancas; embora seja possível que cada oficineiro/a problematize raça e etnia a partir dos materiais de apoio. Existe também outra dimensão importante que não havia sido mencionada por Scott, mas que, na sociedade atual, toma grande significado político: trata-se das pessoas trans* e travestis. Neste caso, também não há representação e a problematização é parca. Acredito, contudo, que a representatividade de mulheres negras e trans* era uma preocupação da equipe que montou a oficina. Mas há no APERS uma quantidade enorme de documentos, a grande maioria ainda desconhecida ou que foram catalogados sem levar em conta marcadores raciais e de gênero. Este fato, no entanto, não deve nos imobilizar frente a essas temáticas, deve nos motivar a realizar mais pesquisas de modo interseccional e que contemplem pessoas negras, indígenas, trans* e travestis. Durante a Primeira República (1889-1930), as mulheres que tinham trabalhos assalariados, como operárias, lavadeiras e engomadeiras recebiam o apelido de “mulheres públicas”. Elas eram mal vistas socialmente, pois segundo os valores da época, a mulher deveria apenas se ocupar dos afazeres domésticos. Essa alcunha afetava, principalmente, as mulheres mais pobres que precisavam trabalhar para sustentar suas famílias. Para mais, ver: FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, M. (org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. Na oficina analisada, o caso das mulheres públicas é comparado com a história de Ida Kerber, mulher de classe média, que passou por um processo de desquite. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 152
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3. Patrimônio e identidades Neste momento, é importante refletir brevemente sobre educação patrimonial, a metodologia de trabalho utilizada pelo APERS na realização das oficinas. Historicamente, a noção de patrimônio nasce no Ocidente como um conjunto de bens materiais que representariam a memória da nação. O patrimônio nacional estava, assim, atrelado a uma dimensão identitária (e educativa) que junto com outros elementos permitiria imaginar a nação, como nos lembra Zita Possamai (2013). A noção de patrimônio e de educação patrimonial, entretanto, mudou muito ao longo tempo. No Brasil, por exemplo, num primeiro momento, a educação patrimonial estava vinculada à conscientização para preservação dos bens materiais em “pedra e cal”, representativos da memória nacional oficial e das classes dominantes. Mais recentemente, vemos uma ampliação do conceito de patrimônio que busca contemplar também expressões e saberes populares, fazendo surgir a noção de Patrimônio Imaterial. Desta forma, passamos a entender que os bens patrimoniais não têm valores que lhes são inerentes, mas que a sua valorização passa por um processo de atribuição de sentido, que é resultado de disputas e tensões ao longo do tempo (GALLI, 2015). É nessa mesma perspectiva que devemos compreender a noção de identidade. Zita Possamai ressalta que ambos, patrimônio e identidade, não são conjuntos fixos e imutáveis, mas fenômenos que fazem parte de um processo de invenção no imaginário social. Assim, identidade e patrimônio são criados no tempo presente para atender a suas demandas (resultado de embates no campo social), mas fazendo apelo a aspectos do passado. Deste modo, a educação patrimonial assume um caráter de formadora de identidades. Mas se na contemporaneidade a ideia de identidade nacional como única e fixa no processo de constituição dos sujeitos está enfraquecida, dando lugar a múltiplas identidades local, étnica, cultural, de gênero, sexual, etc. é possível nos questionarmos se através da educação patrimonial não corremos o risco de enquadrar alguma identidade específica como se fosse fixa e imutável (POSSAMAI, 2013). Seria a identidade de gênero uma categoria imprópria para lidar com o patrimônio do APERS? A resposta a essa pergunta articula o pensamento de Possamai com o de Scott. Para a primeira, a identidade não se torna um empecilho para a educação patrimonial se a considerarmos como um objeto em investigação, no sentido de que seja possível REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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desconstruir as narrativas que levaram a sua formulação: “Mais do que afirmar identidades, é mister compreender as diferenças”, afirma a autora (POSSAMAI, 2013, p. 97). Para além disso, é necessário compreender os processos que levaram a constituição das diferenças. De modo semelhante, Scott (1995) propunha que a pesquisa histórica atentasse para a historicização das formas como as hierarquias e as diferenças de gênero são construídas e legitimadas no seio de relações de poder que engendram tanto mulheres quanto homens. Nesse sentido, entendo que a categoria gênero não se torna inadequada para ser trabalhada pela educação patrimonial, desde que seja problematizada historicamente. Pelo contrário, vejo grande potencial na educação patrimonial como metodologia que permite discutir os processos de atribuição de sentido aos bens patrimoniais, questionando os silêncios e a invisibilidade de sujeitos historicamente excluídos, como as mulheres, objeto da ação educativa do APERS.
4. Considerações finais Busquei, ao longo deste texto, refletir sobre a oficina Desvendando o Arquivo Público a partir das interações entre estudos de gênero, ensino de História e educação patrimonial. Ressaltei que a historiografia das relações de gênero lança luz sobre a historicidade das experiências masculinas e femininas e o modo como estas são construídas hierarquicamente. Também relatei como a categoria gênero ainda é pouco apropriada nas aulas de história, restando ainda silêncios sobre a história das mulheres. Por fim, tentei mostrar como a educação patrimonial pode auxiliar no trabalho de questionar e visibilizar as experiências femininas historicamente. Desta forma, entendo que a ação educativa analisada lida de modo muito eficaz com as questões de gênero, estando em conexão com as reflexões teóricas levantadas. Na oficina, as relações de gênero não são tomadas numa perspectiva identitária fixa (as mulheres como naturalmente reprimidas, por exemplo), mas sim, procura, num trabalho processual, incluir as mulheres na História, colocando em questão e historicizando suas experiências. Sendo assim, acredito que esta oficina se torna uma importante aliada das professoras e dos professores que buscam construir um Ensino de História problematizador das diferentes relações de poder. A ação educativa do APERS dá visibilidade às histórias de mulheres, apresentando suas atuações em diferentes contextos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Possibilita, assim, um trabalho continuado em sala de aula que questione o conhecimento histórico escolar produzido, permitindo oferecer outros olhares, possibilitando criar outras Histórias.
Referências AQUINO, Francieli; HUBNER, Laura; MEDEIROS, Tiago. “Lute como uma menina”: uma análise das ocupações escolares a partir das relações de gênero, 2015. [no prelo]. CUBAS, Caroline; ROSSETO, Luciana. Imperativos de um Tempo Presente: Ensino de História e Gênero em um projeto desenvolvido por bolsistas do Pibid. Revista História Hoje, Florianópolis, v. 5, n. 10, p. 211-230, 2016. FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, Mary. (org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 510-553. GALLI, Laura S. Mulheres na História de Porto Alegre: uma reflexão sobre educação patrimonial e ensino de História a partir de experiência com caixa pedagógica do museu Joaquim Felizardo. Porto Alegre: UFRGS, 2015. (Trabalho de Conclusão de Curso). MIRANDA, Anadir. Reflexões sobre mulheres, gênero e aprendizagem histórica. Historiae, Rio Grande, v. 4, n. 2, p. 103-114, 2013. PEDRO, Maria Joana. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 270-283, jan.-jun. 2011. POSSAMAI, Zita. Patrimônio e identidade: qual o lugar da história? In: GASPAROTTO, A.; FRAGA, H.; BERGAMASCHI, M. Ensino de História no CONESUL: Patrimônio cultural, territórios e fronteiras. Porto Alegre: Evangraf, 2013. p. 87-98. RODEGHERO, Carla; BRANDO, Nôva; ALVES, Clarissa (org.). PEP em revista: o Programa de Educação Patrimonial UFRGS-APERS. Porto Alegre: UFRGS/APERS, 2015. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre,v. 20, n. 2, p. 71-99, jul.-dez. 1995. SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. p. 63- 95 WASZAK, Aline. História das Mulheres, Gênero e Educação: reflexões sobre o Ensino de História no Brasil (1998-2015). Curitiba: UFPR, 2015. (Trabalho de Conclusão de Curso).
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PENSAR AS AÇÕES EDUCATIVAS DO MUSEU CASA KUBITSCHEK: ABORDAGENS E PRÁTICAS EXPERIMENTAIS PARA A EDUCAÇÃO EM MUSEUS
PONDERING OVER KUBITSCHEK HOUSE MUSEUM’S EDUCATIONAL ACTIONS: APPROACHES AND EXPERIMENTAL PRACTICES DIRECTED TOWARDS EDUCATION IN MUSEUMS
Ana Karina Ribeiro Bernardes* Pollyanna Lacerda Machado**
Resumo O intuito deste artigo é apresentar como as ações educativas realizadas pelo Museu Casa Kubitschek, desde agosto de 2016, vêm sendo desenvolvidas. Optou-se por fazer uma breve contextualização da instituição, passando pelas abordagens e práticas que possibilitaram o andamento do trabalho, apresentando também alguns resultados. Como parte deste projeto, implementou-se ações que visam a aproximação do público e sua apropriação do espaço, bem como, a elaboração de materiais educativos que servem de apoio às atividades. Entendemos o museu enquanto espaço de diálogo e aberto para o exercício da cidadania, local propício para a formação de sujeitos responsáveis pelo meio em que vivem, cientes do valor dos bens culturais e da importância de sua preservação. Palavras chave: Educação em Museus; Patrimônio; Ações educativas.
Abstract The purpose of this article is to present how the educational actions carried out by the Casa Kubitschek Museum, since August 2016, have been developed. It was decided to make a brief contextualization of the institution, through the approaches and practices Mestranda em Ciência da Informação pela UFMG, Especialista em História da Cultura e da Arte pela UFMG, Bacharel e licenciada em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte-UNI/BH. Técnica em Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. akbernardes@gmail.com ** Mestranda em Educação e Docência com graduação em Museologia, ambas pela Universidade Federal de Minas Gerais. pollyanna.mus@gmail.com *
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that enabled the progress of the work, also presenting some results. As part of this project, actions were implemented that aim at the approximation of the public and their appropriation of space, as well as the elaboration of educational materials that support activities. We understand the museum as a space for dialogue and open to the exercise of citizenship, a place conducive to the formation of subjects responsible for the environment in which they live, aware of the value of cultural assets and the importance of their preservation. Keywords: Education in museums; Cultural heritage; Educational activities.
Contexto histórico: de Casa a Museu Casa Kubitschek
Inaugurado em 2013, o Museu Casa Kubitschek (MCK), instituição vinculada à Secretaria Municipal de Cultura (SMC) e à Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte (FMC), foi originalmente projetado para ser uma casa de campo no ano de 1943. A residência também foi concebida com o intuito de servir de modelo para outras construções que viriam a ocupar as margens da Lagoa da Pampulha, local escolhido por Juscelino Kubitschek para implantar a modernidade na capital de Minas Gerais. Ao longo de sua história, a casa desempenhou funções de residência particular, finalidade para a qual foi projetada, estando sob os cuidados da família Kubitschek por curto espaço de tempo153. Foi quando Juscelino Kubitschek se transferiu com sua família para a cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, que a família entendeu, por bem, vender o imóvel ao seu assessor e amigo pessoal, Sr. Joubert Guerra. A família Guerra, proprietária da casa entre 1951 e 2005, foi a responsável por mobiliar o espaço, constituindo a belíssima coleção de móveis modernistas que compõem seu acervo, e cuidar de sua preservação para a comunidade belorizontina. A Sra. Juracy Guerra, esposa do Sr. Joubert Guerra, manifestou em diversas oportunidades o desejo de que o espaço viesse a se tornar um Museu. Após a morte da Sra. Juracy, em 2004, a Prefeitura de Belo Horizonte desapropriou o imóvel conjuntamente com seus objetos de decoração e mobiliário, e iniciou os trabalhos para a restauração do edifício e seu acervo, assim como a preparação para a abertura do espaço ao público.
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As fontes documentais disponíveis não fornecem com exatidão este período/dado.
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O Museu Casa Kubitschek foi aberto em 10 de setembro de 2013 e, desde sua inauguração, conta com duas exposições de longa duração, “Casa Kubitschek: uma invenção modernista do morar” e “Pampulha: território da modernidade”, constituindose um espaço para a comunicação do modernismo, os modos de morar, a arte integrada e paisagismo; e da história da Pampulha, destacando-a como território da multiplicidade, marcado pelo encontro entre a tradição e a modernidade. Atualmente a edificação integra o Conjunto Moderno da Pampulha, sendo tombada pelas instâncias do patrimônio municipal, estadual e federal. Em julho de 2016, outros equipamentos que integram este conjunto – Casa do Baile, Museu de Arte da Pampulha, Iate Tênis Clube e a Igreja São Francisco de Assis – foram reconhecidos pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, sendo o primeiro bem cultural a receber o título de Paisagem Cultural do Patrimônio Moderno (IPHAN, 2016). Esta particularidade nos permite perceber que, para além de comunicar somente os edifícios e a singularidade e pioneirismo de sua arquitetura, também se faz necessário considerar os jardins de Burle Marx, as obras de arte (em diversas linguagens de vários artistas renomados mundialmente) e a própria paisagem em que estamos inseridos. O título trouxe consigo novos desafios e uma série de fatores que contribuem para o destaque ainda maior dessas instituições, recebendo um apelo mais evidente dos meios de comunicação e divulgação e da indústria de turismo. Dada a recente criação deste Museu e sua inserção neste cenário – mesmo que não tenha sido incluído e reconhecido como Patrimônio da Humanidade – percebemos como tem ganhado mais destaque e experimentado o aumento significativo de público. A contagem de público espontâneo é quantitativa e conforme tabela abaixo, conseguimos perceber a grande diferença nos últimos anos:
Ano
Público
2017
29.825*
2016
32.278
2015
15.381
2014
10.588
2013
não tem
*Até o mês de outubro de 2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Essa amostragem – retirada do cadastro de atividades finalísticas e serviços do Sistema de Monitoramento e Avaliação de Programas e Projetos (SMAPP) da SMC, nos permite ter ao menos uma base em relação ao número de pessoas que frequentam os espaços culturais. Com o intuito de sistematizar informações quantitativas e qualitativas, realizamos com o público agendado (grupos com mais de 10 pessoas) a aplicação de formulários online. Tanto para a realização do agendamento, quanto para a avaliação da visita, enviamos questionários que nos fornecem informações relacionadas ao perfil do público, o que motivou a visita ao espaço, entre outras informações. Com base nisso conseguimos obter dados primários que nos auxiliam em levantamentos mais detalhados em relação à origem do público visitante, o que buscam, etc., fornecendo o básico para traçar o perfil e talvez, futuramente, subsidiar um estudo de público qualificado. Por fim, a adoção do termo “museu” no nome da instituição - desde agosto de 2016 - demonstra um esforço em fortalecer sua vocação, a fim de garantir a salvaguarda do patrimônio, buscando estabelecer, entre outras coisas, o cumprimento de sua função social. Neste sentido, uma série de iniciativas, em consonância com os pilares da Museologia (pesquisar, preservar e comunicar), foram tomadas desde então, com o intuito de consolidar-se como uma instituição comprometida e integrada com as questões museológicas contemporâneas. Dentre elas, destacamos a elaboração do Plano Museológico, importante documento que norteia o planejamento de todas as atividades do museu em curto, médio e longo prazo; o arrolamento e organização do acervo documental e museológico; a sistematização e o levantamento de dados relativos ao perfil do público visitante; organização de encontros entre museu e comunidade; pesquisa e produção de publicações e, por fim, o cerne deste artigo: as ações educativas. Vale lembrar que algumas dessas iniciativas foram interrompidas ou caminham mais lentamente, temporariamente, devido aos ajustes realizados em função da reforma administrativa.
A dimensão educativa dos museus: abordagens conceituais e práticas
Ao assumir sua função educativa os museus e centros de memória adotam uma perspectiva alternativa daquela mais comumente utilizada nos processos educativos tradicionais. Entendemos o museu como um local propício para a formação de sujeitos REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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conscientes e responsáveis pelo meio em que vivem, onde o diálogo entre Educação e Museologia pode se dar de diversas maneiras subsidiando práticas distintas. Discorrendo sobre os aspectos da pedagogia museal, Marta Marandino afirma que a educação em museus implica métodos específicos e defende a ideia de que existem certas particularidades que determinam quais são os elementos essenciais que orientam o trabalho do mediador. Ao considerar que o lugar, o tempo, a importância dos objetos e a linguagem expositiva influenciam diretamente na maneira como a visita pode ser realizada, a autora coloca o mediador enquanto o “decodificador” das informações contidas nas exposições. Nos baseamos nesta abordagem acreditando que o papel assumido durante a mediação deva ser o de quem estabelece as pontes e o diálogo entre o conteúdo exposto, os conhecimentos que cada um possui e o próprio repertório dos mediadores. Elaborar estratégias que estimulem a participação do público nos processos educativos e comunicativos dos museus resulta em experiências que podem e são construídas conjuntamente (MARANDINO, 2008, p. 20). O nosso trabalho tem como eixo principal o Patrimônio Cultural e além de nos apoiarmos em conceitos procedentes da educação patrimonial (HORTA, 1999), da Museologia Social e da noção de mediação proposta por Vygotsky, transitamos por outras abordagens que servem de inspiração e vão ao encontro das diretrizes mais recentes. Neste sentido, lembramos o fato de Belo Horizonte estar entre as 482 cidades educadoras distribuídas em 36 países do mundo. Sobre o conceito de Cidade Educadora, destacamos o seguinte trecho:
(...) o compromisso dos signatários com a construção de cidades mais inclusivas, mais justas e mais participativas, com especial destaque para a criação de mecanismos que permitam às crianças e adolescentes vivenciarem plenamente sua cidadania: A Cidade Educadora deve ocupar-se prioritariamente com as crianças e jovens, mas com a vontade decidida de incorporar pessoas de todas as idades, numa formação ao longo da vida. (CIDADES EDUCADORAS, 2017).
A partir desta perspectiva, incluímos não só o compromisso dos museus neste panorama, como também todas as esferas das iniciativas públicas e privadas. Ainda neste contexto temos o exemplo da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED) – de onde vem grande parte da demanda de inclusão de crianças em espaços culturais, em função do atendimento destas exigências. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Visto isso, as nossas práticas de mediação e experiências no âmbito da educação em museus funcionam como instrumentos que auxiliam na leitura do mundo que nos cerca, levando-nos à compreensão do universo sociocultural e da trajetória históricotemporal em que estamos inseridos. Entendemos que estes processos reforçam a autoestima dos indivíduos e comunidades, valorizando a cultura brasileira - compreendida como múltipla e plural. O diálogo, principal ferramenta de nossas ações, visa estimular a comunicação e a interação entre mediador-público-bem cultural, possibilitando a troca de conhecimentos e contribuindo para a construção de possibilidades de percepção e compreensão da cultura, das noções de patrimônio, valorização e preservação desses bens.
Experimentando novas perspectivas e recursos materiais para as ações educativas
Cientes de que inicialmente as atividades se dariam de forma experimental, tivemos como pressuposto a exploração da ambiência e de certa intimidade, que, enquanto ambiente familiar, a casa nos fornecia. A primeira atividade nasceu com o nome Brincadeiras de Quintal e trata-se de um convite ao brincar. Brincadeiras de pés descalços, sem muitos recursos, como eram comumente realizadas nos quintais de casa, entre os familiares e amigos. Neste caso, também nos serviu de inspiração abordagens que guiam, entre outros, o movimento das Cidades Educadoras. Como exemplo, a abordagem conhecida como Reggio Emilia, proposta pelo pedagogo Loris Malaguzzi. Partindo de pressupostos como esse, entendemos que todo sujeito é compreendido como agente capaz de apoiar e impactar de maneira positiva o desenvolvimento do potencial humano. O projeto Brincadeiras de Quintal age neste viés e nos permite explorar o quintal, reconhecendo mais um potencial deste Museu. O objetivo de explorar os tipos de jardins no contexto da história do MCK (jardins ornamentais, de contemplação planejados por Roberto Burle Marx e os jardins domésticos cultivados pela Sra. Juracy, apelidados carinhosamente de “jardins de casa de vó”) nos despertou o interesse em desenvolver atividades específicas, ligadas à “educação ambiental”. Para estas atividades pensamos a relação do ambiente interno com o externo - incluindo também a paisagem do entorno (Lagoa da Pampulha). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Dentre as atividades desenvolvidas de educação ambiental, realizamos passeios pelos jardins ou pela orla da Lagoa, observando sua composição, refletindo sobre a sua importância enquanto patrimônio e a necessidade de cuidado e preservação. Também foram realizadas oficinas de mudas e/ou jardinagem, assim como, a distribuição gratuita de mudas dos jardins do Museu. Essas mudas são distribuídas aos visitantes do MCK, de modo a estender o laço entre o público e a instituição. Vale lembrar ainda que esta iniciativa visa reforçar a ideia de proteção e preservação dos nossos jardins, uma vez que, as pessoas não precisam mais arrancá-las. Todo este movimento resultou também na construção de um herbário, que demandou um trabalho de pesquisa e catalogação das espécies. Esta pesquisa está subsidiando quatro novos volumes da cartilha educativa “Conhecer e Reconhecer: patrimônio cultural”, que serão ilustradas com desenhos botânicos, e com previsão de início de lançamento para 2018. Estas estratégias buscam propor um olhar diferenciado para o Museu e seu entorno, buscando proporcionar experiências e vivências diferenciadas para os visitantes. Pretende-se ainda, a ampliação deste público por meio do incentivo à apropriação do espaço e de seu (re)conhecimento, buscamos despertar o interesse, chamando a atenção para o museu em sua totalidade, para além do patrimônio edificado e da materialidade (muito presente no discurso expositivo e também dado pela própria arquitetura). É nossa intenção ainda, contribuir e reforçar a noção do museu como espaço de diálogo e aberto para a sociedade, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio material e imaterial, como determina a definição utilizada pelo Comitê Internacional de Museus (ICOM, 2013, 34). Deste modo, tratando-se de um museu em uma casa, boa parte das atividades se apoiam nas lembranças deixadas por um ambiente doméstico e carregado de memórias afetivas - tendo como maior inspiração o legado deixado pela Sra. Juracy Guerra. A partir daí projetos menores foram surgindo em intersecção com outros, levando em consideração assuntos como a sociabilidade e a apropriação no/do espaço, memória coletiva e individual, a exploração do ambiente museal além de suas exposições considerando a imaterialidade, as vivências, os saberes e os fazeres. À saber: Bordando Memórias: Tendo como inspiração a Sra. Juracy Guerra e suas intervenções no mobiliário que atualmente são do acervo do MCK, foram realizados encontros mensais para bordar temas relacionados ao MCK. Serviram como molde para os bordados REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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ilustrações deste acervo, e ao final foi confeccionada uma colcha de retalhos que será exposta no Museu. Rota Alternativa - o museu de fora para dentro: Esta ação busca se aproximar dos caminhantes que praticam atividades físicas na orla da Lagoa e que desconhecem o Museu. Com eles propomos um desvio no percurso durante algum tempo para entrarem, conhecerem e explorarem a instituição. Águas da Pampulha tour: É um passeio com foco no meio ambiente e chama a atenção dos participantes para as questões ambientais e para a importância da preservação dos recursos naturais, buscando refletir acerca do modo de ver e tratar este assunto, além de nos engajarmos na construção de políticas mais efetivas para a nossa cidade. Em parceria com o CEA/PROPRAM154, o passeio explora os desafios e problemas que afetam a Bacia Hidrográfica da Pampulha. Por Outro Ângulo: Esta atividade busca proporcionar ao público uma experiência diferenciada de visitação ao Museu como casa e espaço de pertencimento e sociabilidade, explorando cada cômodo e seus mobiliários. São feitas pequenas intervenções nos ambientes que se diferenciam e destacam frente às práticas cotidianas da instituição. Esta atividade acontece esporadicamente, com um grupo pequeno de visitantes. Diálogos Possíveis: Este projeto trouxe para o espaço museal rodas de conversa com o público e personalidades de destaque, sobre temas importantes para a cultura e a cidade de Belo Horizonte, criando um ambiente saudável para o debate de opiniões e o surgimento de novas ideias acerca dos usos e apropriação da cidade e dos espaços culturais. Como pôde ser visto, a maior parte das atividades vai além da temática estritamente selecionada pela curadoria da exposição, se desenvolvendo, inclusive, fora dos espaços expositivos. Acreditamos que essa proposta favorece não só a percepção do mundo que nos cerca, considerando as diferentes vivências e experiências que cada sujeito carrega, como também auxilia para uma compreensão mais ampla do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que estamos inseridos. 154
Centro de Educação Ambiental do Programa de Recuperação e Desenvolvimento Ambiental da Bacia da Pampulha.
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Com a ampliação das ações e o intuito de atingir um público diverso, desenvolvemos materiais que auxiliam as visitas mediadas e oficinas propostas pelo Educativo (estes materiais pretendem, em algum momento, promover o acesso para todos). Parte do material desenvolvido ainda se encontra em fase de teste e/ou de implantação. A intenção é desenvolver atividades e materiais que possam atender às diversas demandas existentes. Em geral, usamos objetos já existentes ou confeccionados pela própria equipe, com materiais básicos disponibilizados pela instituição. Dentre eles, destacamos a utilização de uma maleta composta por itens lúdicos: fichas com desenhos do mobiliário existente no acervo (neste caso utilizamos as fichas como jogos de adivinhação), jogo da memória, quebra-cabeça, cubos com diferentes elementos arquitetônicos, exemplares de discos de vinil, entre outros. Para além dos materiais supracitados, produzimos uma Caderneta de Campo que pode ser utilizada durante ou após a visita, tanto nos espaços expositivos, quanto pelos jardins. A ideia desta Caderneta é deixar fluir as percepções e dar autonomia para o visitante, propiciando o exercício do olhar livre das intencionalidades que dão sentido ao que nos acontece. Ela foi pensada como um material mais propositivo. Nela é possível desenhar, escrever, utilizar outros recursos (colagens; coleta de amostra dos jardins de sementes, folhas secas; pintura, etc.). Pensamos que este formato pode ser o início de uma contribuição para a democratização do acesso e da inclusão, uma vez que, por exemplo, não é necessário que todos saibam ler ou escrever para utilizar o material. Em uma das experiências que tivemos, percebemos como foi positiva a reação de uma das crianças com espectro autista. Acreditamos que à medida que conseguirmos aperfeiçoá-lo, poderemos alcançar melhores resultados. Com o intuito de deixar com que, em alguma medida, as coisas aconteçam no tempo de cada um, permitindo uma dose de autonomia, ao visitar o MCK o visitante nem sempre sairá com todas as informações disponíveis. A ideia é que ele possa voltar, pois,
(...) a experiência é irrepetível e, (...) posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’. (BONDÍA, 2002, p. 28)
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Contudo, por mais ambíguo que isto possa parecer e por mais carregados de intenções que possamos estar, ao se propor experimentar e transitar entre as diversas possibilidades, ocorre a “abertura para o desconhecido”, o que nos permitiu alcançar bons resultados em relação às ações educativas.
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Considerações finais
O caminho percorrido até aqui nos provocou diversas inquietações e dúvidas. Pensar as relações do público com o museu não é um exercício fácil e entendemos que é, principalmente, por meio das ações educativas que alguns resultados podem ser alcançados. Desejar que função social do Museu se cumpra também é tido como um desafio, uma vez que, apesar de ser o mais novo dos espaços culturais da Pampulha, o Museu Casa Kubitschek já sofre com problemas relacionados à sua identidade, infraestrutura, entre outras carências. Acreditamos que a aproximação do público e sua REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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apropriação deste espaço seja uma das saídas para a solução de algumas dessas questões, tendo em vista a premissa de que estando em uma Cidade Educadora, e todas as questões da atualidade relacionadas ao protagonismo da nossa sociedade, entendemos:
(...) que, para além de suas funções tradicionais, reconhece, promove e exerce um papel educador na vida dos sujeitos, assumindo como desafio permanente a formação integral de seus habitantes. Na Cidade Educadora, as diferentes políticas, espaços, tempos e atores são compreendidos como agentes pedagógicos, capazes de apoiar o desenvolvimento de todo potencial humano”. (CIDADES EDUCADORAS, 2017).
No entanto, avaliamos que se o nosso desejo foi aproximar-nos do público, criando vínculos e fortalecendo-nos, temos observado o aumento no número de participantes das atividades oferecidas, na taxa de retorno e a indicação dos visitantes que participam e avaliam de maneira positiva. O estreitamento dos laços com a comunidade de nosso entorno e o aumento da visibilidade do Museu diante da cidade, são fatores que nos incentivam a dar continuidade no desenvolvimento dessas atividades. A intenção é que possamos consolidar o Museu Casa Kubitschek como espaço de referência para: a educação de patrimônio paisagístico; o estudo e a discussão do modernismo em Belo Horizonte, bem como dos hábitos culturais e os diversos modos de morar e a casa brasileira; a salvaguarda da memória individual e coletiva, relativas ao desenvolvimento da região da Pampulha e suas comunidades tradicionais e a diversidade cultural e social que é marca característica da população belohorizontina. Para que este trabalho se concretize e vigore ao longo dos anos, é preciso entender e defender os museus enquanto territórios férteis para a realização de diversas questões ligadas aos processos educativos, de reconhecimento e apropriação cultural e salvaguarda da memória coletiva e individual.
A abertura do museu ao meio e a sua relação orgânica com o contexto social que lhe dá vida, têm provocado a necessidade de elaborar e esclarecer relações, noções e conceitos que podem dar conta deste processo. (MOUTINHO, 1993, p. 8)
Por fim, mesmo que de forma embrionária e experimental, as ações têm sido bem avaliadas pela equipe e recebido um bom retorno do público. Embora não seja nosso único REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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objetivo, envolver o público nos processos educativos e comunicativos dos museus resulta em experiências que podem e são construídas conjuntamente. Conforme avançamos procuramos consolidar cada vez mais a mediação e as atividades, investindo em novas experiências e nos estudos e na pesquisa, tendo em vista o amadurecimento das práticas e o diálogo com a comunidade.
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(RE) DESCOBRINDO A PAMPULHA: PATRIMÔNIO, DISCURSOS E ALTERIDADE155 (RE) DISCOVERING PAMPULHA: HERITAGE, DISCOURSES AND ALTERITY
Ana Carolina* Bernardo Guimarães* Bryan Martins* Gustavo Dias* Gustavo Matos* Marco Antônio* Náthalekaren Oliveira* Scarlath Ohana* Tamires Celi da Silva*
Resumo Recentemente incluído na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade, o Conjunto arquitetônico da Pampulha, é um dos cartões postais de Minas e do Brasil e uma das referências no imaginário construído sobre a modernidade brasileira, as políticas públicas e expressões artísticas. O presente artigo é fruto de um trabalho desenvolvido com os alunos do 3° ano do Ensino Médio, que estudam em uma escola próxima ao Conjunto Arquitetônico da Pampulha. O trabalho teve por princípio buscar o olhar dos alunos sobre o Patrimônio e entender a relação que os mesmos estabelecem com o conjunto arquitetônico para, a partir de suas experiências, trabalhar questões sobre patrimônio, preservação, memória, alteridade e políticas patrimoniais entendendo que a educação para o patrimônio envolve questões profundas sobre existência e construção do sujeito social. 155
O presente artigo é fruto do trabalho final da disciplina, T.I.G. III, orientado pelo professor Luís Filipe Arreguy Soares. * Ana Carolina - Graduanda em História pelo UNI-BH; ac.corrako@gmail.com *Bernardo Guimarães - Graduando em História pelo UNI-BH; bernardoguimaraes93@gmail.com *Bryan Martins - Graduando em História pelo UNI-BH; bryanmartins@outlook.com * Gustavo Dias - Graduando em História pelo UNI-BH; gustavodias75@yahoo.com.br * Gustavo Matos - Graduando em História pelo UNI-BH; gustavomsc94@gmail.com * Marco Antônio - Graduando em História pelo UNI-BH; marcospsj78@hotmail.com * Náthalekaren Oliveira - Graduanda em História pelo UNI-BH; nathalekaren@hotmail.com *Scarlath Ohana - Graduanda em História pelo UNI-BH; scarlathohanaf@hotmail.com * Tamires Celi da Silva - Graduanda em História pelo UNI-BH; tamiresceli@hotmail.com REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Palavras-chave: Alteridade; Educação patrimonial; Pampulha.
Abstract Recently included in the list of World Cultural Heritage, the Pampulha Modern Ensemble is one of the postcards from the state of Minas Gerais and one of the references in the imaginary built on Brazilian modernity, public policies and artistic expressions. This article is the result of a work developed with the students of the 3rd year of High School, who study in a school near the Pampulha Modern Ensemble. The purpose of this study was to seek students' views on heritage and to understand the relationship they establish with the architectural group, in order to, from their experiences, work on questions about heritage, preservation, memory, alterity and heritage policies, understanding that heritage education involves deep questions about the existence and construction of the social subject. Keywords: Alterity; Heritage education; Pampulha. 1. Introdução
Quando falamos em patrimônio histórico logo nos vem à mente os lugares que fazem parte de uma memória coletiva e que adquiriram valor histórico ao longo dos anos, normalmente associado a edificações tombadas e a cidades históricas. Essa é uma visão que tem raízes na chamada história metódica, desenvolvida no século XIX e que elegia como fonte de caráter histórico somente o que tinha relação com o oficial (normalmente político)156. Essa perspectiva influenciou as primeiras políticas patrimoniais, incluindo as brasileiras, que tiveram início na década 1920 associando valor histórico a prédios públicos e a templos religiosos (os chamados patrimônios de pedra-ecal). Tanto as concepções de História e suas fontes como as concepções de patrimônio passaram por profundas transformações ao longo do tempo. Destacamos a influência da Nova História que, em síntese, defende que toda ação humana é história.
156
Essa concepção histórica se desenvolveu na Alemanha do século XIX, momento em que era de interesse promover a unificação da nação por meio da formação de uma identidade nacional, por isso é comum a recorrência a documentos diplomáticos, pois esses eram interpretados como verídicos e, portanto, fonte de uma história inquestionável. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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É possível perceber que hoje as políticas patrimoniais procuram abranger muito mais do que prédios públicos e templos religiosos e reconhece como patrimônio não só aquilo que possui caráter oficial, mas também o que é do cotidiano como elemento formador da cultura. O conceito de patrimônio se estendeu, nas palavras de Umberlino Peregrino: Recorrendo ao dicionário, encontraremos uma acepção de patrimônio como herança paterna. Isso denota, em síntese, que patrimônio é um complexo de bens legados pelos nossos antepassados, representados não apenas no seu restrito sentido material, mas naquela condição de bens que assumem uma dimensão imaterial. (PEREGRINO, 2012, p.7).
Entender o conceito de patrimônio e suas dimensões culturais se faz importante, uma vez que buscamos trabalhar com o educando, propondo-lhe uma ação frente ao objeto estudado, enquanto sujeito pertencente e atuante do seu tempo. Tendo em vista estes conceitos, a educação patrimonial apresenta um significante caminho para, além de proporcionar conhecimento sobre bens importantes para preservação, desenvolver consciência da relação destes com a vida do estudante, apresentando como estes bens se relacionam com o espaço no qual está inserido e como tradições culturais preservadas podem estar expressas no cotidiano. Mas, pensar a educação para o patrimônio sem pensar em educação não é suficiente para atender a demanda deste projeto. É preciso fazer uma reflexão acerca do significado de educação, buscando sair do método tradicional de ensino, por isso, defendemos neste projeto que a função do educador deve ser a de um mediador entre o aluno e sua experiência de aprendizado, o que segundo Casanova (2013), proporciona o estimulo de suas habilidades de apreensão e interação do conhecimento. Partindo da percepção do sujeito enquanto agente histórico e, portanto, agente dentro no meio no qual se insere, pode-se adotar como base as teorias educacionais nas quais se defende a ideia de sócio interacionismo e sócio construtivismo como vetor de aprendizado desenvolvidas por Vygotsky. Segundo Nascimento (2004), esta teoria defende que o vínculo que o sujeito estabelece com o meio é mediado pelo seu conhecimento e/ou experiências que possui. Portanto, pensar patrimônio e o conceito de educação para o patrimônio numa perspectiva de aprendizado que abarque a interação do indivíduo com o meio e com as relações
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estabelecidas em relação ao local ou a cultura com base na sua “bagagem” de conhecimento e identificação se faz significativo para obter bons resultados. Não se trata somente de levantar informações históricas a respeito do lugar ou da manifestação cultural. É preciso possuir uma relação experimental e de reflexão acerca do patrimônio, para depois pensar no global e entender outras manifestações culturais que se constituem como patrimônio e por que é importante a preservação. Buscamos com esta reflexão, responder à pergunta: patrimônio para quem? Esta questão é interessante e nos possibilita pensar nos vários caminhos que o patrimônio, tanto material como imaterial, pode nos apresentar, além de permitir observar e trabalhar assuntos como empatia e alteridade, apontando a importância simbólica de determinado patrimônio para um grupo de pessoas. O filósofo Edgar Morin, em seu livro Os sete saberes necessários para a educação no futuro (2012), aponta que é preciso refletir sobre a compreensão humana, já que não se ensina a pensar no outro e a compreendê-lo. O que significa compreender? A palavra compreender vem de compreendere em latim, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de explicação, quer dizer, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos. Mas a compreensão humana vai além disso, porque na realidade ela comporta uma parte de empatia e identificação, o que faz com que se compreenda alguém que chora, por exemplo, não é analisando as lágrimas no microscópios, mas porque sabe-se do significado da dor, da emoção, por isso é preciso compreender a compaixão que quer dizer sofrer junto, é isto que permite a verdadeira comunicação humana. (MORIN, 2012, p.7).
Educação para o patrimônio exige o exercício da empatia. É preciso entender o significado de determinado bem tombado ou registrado para um grupo, entender que essas políticas dão visibilidade a grupos antes esquecidos pela História e pelo Estado e que são atuantes na formação cultural do Brasil. Por isso, é importante este quarto ponto: compreender não só os outros como a si mesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a auto-justificação, pois o mundo está cada vez mais devastado pela incompreensão que é o câncer do relacionamento entre os seres humanos. (MORIN, 2012, p.8).
Percebemos que a educação patrimonial tem potencial para trabalhar essas questões e desenvolver não só a educação que ensina de modo acrítico os conteúdos e conceitua Patrimônio, sem refletir sobre existência, política e sociedade. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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Quando pensado sobre estes aspectos, o patrimônio possibilita trabalhar uma nova perspectiva que incentiva a empatia e que busca desenvolver uma visão complexa sobre as relações humanas e a sociedade. Morin nos fala sobre a importância de se buscar um pensamento complexo e que a educação não deve só buscar construir conhecimento, mas transformar as pessoas para que elas possam transformar a sociedade. Educação para o patrimônio envolve construção de referenciais inicialmente pessoais e, progressivamente, estende-se para o entendimento dos referenciais do outro. Assim entendemos o nosso lugar e o do outro na sociedade, como as políticas públicas moldam o sistema e interferem no cotidiano das pessoas, como a História constrói memórias e esquecimentos e como as tradições podem promover resistência e permanência. Com esta reflexão, buscamos pensar o Patrimônio para além dos tombamentos. Tendo em vista estas reflexões, o presente artigo tem por objetivo relatar a experiência da aplicação do projeto “(Re) Descobrindo a Pampulha”, que foi desenvolvido em grupo e deu origem a este artigo. Para tornar o trabalho mais objetivo, explicaremos a escolha da escola e as dinâmicas adotadas para se desenvolver o trabalho e depois apresentaremos o relato das experiências obtidas.
2. O Conjunto Arquitetônico da Pampulha
A região da Pampulha, diferente de outros espaços de Belo Horizonte, tem sua história marcada por ser uma área planejada que recebeu obras arquitetônicas que adquiriram importância artística e se configuraram como um dos marcos de Minas Gerais, e que no ano de 2016 recebeu o título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. O projeto iniciado na gestão do prefeito de Belo Horizonte, Otacílio Negrão de Lima, que tinha como objetivo o represamento do ribeirão Pampulha, não contemplava a inclusão do conjunto arquitetônico, que foi incluído somente na gestão posterior pelo prefeito Juscelino Kubitschek e construída entre os anos de 1942 e 1944. Segundo Fernandes (2016), em seu artigo “PAMPULHA: atualização simbólica de uma paisagem modernista”, antes da construção do conjunto que veio a se tornar cartão postal de Minas Gerais, a região foi indicada pelo urbanista Agache para abrigar uma
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“Cidade Satélite” que abrigaria trabalhadores em torno da lagoa e assim resolver os problemas causados pelas desigualdades sociais presentes na cidade. Ainda segundo Fernandes, o então prefeito Juscelino Kubitschek, já possuía outros planos para a região, o que incluía fazer dela uma área nobre e luxuosa, conferindo a Belo Horizonte a imagem de uma cidade moderna e incentivar o turismo na região. Fato é que as intenções de Kubitschek se fizeram presentes no projeto, que contemplou os traços marcantes da arquitetura de Oscar Niemeyer, que fugiu dos padrões arquitetônicos tradicionais da época e inovou com suas curvas de aparência simples fazendo com que a Pampulha se associasse a uma imagem ligada à ideia de modernidade e luxo. É possível notar ainda que o projeto do Conjunto não traria somente mudanças no campo da arquitetura, um novo estilo de vida também surge em torno dos espaços da região: (...) as obras da Pampulha trouxeram inovação também quanto às práticas sociais da sociedade de Belo Horizonte. Isso se dá principalmente em relação ao Cassino, peça fundamental, ao ver de Juscelino, para o turismo. Sua intenção era “antes de tudo, dar a Belo Horizonte uma obra que não só refletisse o seu vertiginoso progresso, como ainda tomasse um espelho da cultura mineira” (FERNANDES, 2016, p.10).
É significativo também dizer que o Projeto da Pampulha contemplou muito mais do que as obras de Niemeyer. Num contexto onde o conceito de cidade planejada se fez presente aliada à ideia de construção de uma identidade nacional, a construção do conjunto não deixou de fora essa racionalidade urbanística contemplando projetos que envolviam áreas residenciais, de lazer e projetos sanitários dando ao entorno do conjunto o aspecto que ainda é perceptível nos dias de hoje: é um espaço organizado e bem estruturado. A construção do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, composto pela Igreja São Francisco de Assis, o Cassino (que hoje abriga o Museu de Artes da Pampulha), o Iate Tênis Club e a Casa do Baile representou um dos marcos na história ligada a Belo Horizonte e deu a capital mineira um destaque em escala mundial.
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3. Descobrindo o olhar
Para realizar este trabalho, tomamos como uma atividade primária, conhecer o olhar dos alunos que iriam participar do projeto. Conhecer a escola, seu entorno, os lugares frequentados por eles, para assim conhecer o que os alunos entendem por patrimônio. Pensando neste olhar, a escolha da região da Pampulha se fez atrativa, pois no ano de 2016 seu conjunto arquitetônico foi declarado “Patrimônio da Humanidade”. Mas, mesmo tendo esse título, ainda se apresentam muitos desafios para a efetiva democratização do uso do espaço na região, visto que ela é ocupada por bairros nobres e cercada por áreas de menor Índice de Desenvolvimento Humano. O mesmo se aplica a alunos de escolas próximas, que passam por lá todos os dias e constituem o cotidiano daquela região. Localizada na Av. Dom Pedro I, no bairro Santa Branca, em Belo Horizonte, escolhemos para a realização do projeto a Escola Estadual José Heilbuth Gonçalves. Em 2012, a escola passou por obras de intervenção que reformularam seu espaço físico, perdendo parte de seu pátio para o alargamento da Avenida D. Pedro I. Com isso, o muro que faz frente à avenida ficou a cerca de 1 metro de distância das janelas das salas de aula, criando um desconforto sonoro para professores e alunos. É uma escola próxima ao Conjunto e se enquadrou nos critérios para realização do trabalho que são:
Possibilidade de compreender o olhar que os alunos possuem sobre o tema Patrimônio;
Perceber as relações estabelecidas entre os alunos e o Conjunto;
Estimular uma reflexão acerca da democratização dos espaços, uma vez que nem todos estabelecem uma relação de apropriação com o mesmo.
O projeto buscou, por meio da mediação dos conhecimentos, apresentar aos alunos os conceitos de patrimônio cultural, material e imaterial, valorizando o protagonismo deles no espaço e identificando as relações destes com os objetos trabalhados e a importância dos lugares e das histórias para a formação do imaginário coletivo sobre o bairro.
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Para a realização do projeto, adotamos como proposta o conceito de educação para o patrimônio, e temos como instrumento de reflexão as palavras de Denise Grinspum, que defende que educação para o patrimônio: (...) pode ser entendido como formas de mediação que propiciam aos diversos públicos a possibilidade de interpretar objetos de coleções dos museus, do ambiente natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos sentidos, estimulando-os a exercer a cidadania e a responsabilidade social de compartilhar, preservar e valorizar patrimônios com excelência e igualdade. (GRINSPUM, 2000, p.29).
Tendo como base a reflexão de Grinspum, adicionamos ainda que essa mediação e essa interpretação não se restringem somente aos bens de natureza material, podendo ser utilizadas também para lidar com os bens patrimoniais de natureza imaterial. Com isso, entendemos que a educação para o patrimônio possibilita a adoção de diversas metodologias de trabalho e adequação das mesmas à realidade do público trabalhado. Optamos como ponto de partida o uso do conceito de memória, envolvendo as histórias da cidade, como construção e idealização, bem como associando a isso os conjuntos patrimoniais materiais edificados que a região oferece, buscando uma articulação com as experiências dos alunos.
4. O Encontro
Na primeira etapa do projeto foram ministradas aulas dialogando com os alunos dentro do espaço escolar. A turma era pequena (cerca de 15 alunos) e foi dividida em pequenos grupos para os quais foi entregue um material paradidático157 produzido pelo grupo. Foi iniciada uma discussão perguntando aos alunos “o que é patrimônio para você?”. Os alunos estavam tímidos, então o grupo propôs temas para situá-los na discussão, mostrando imagens de bens tombados e registrados ligados ao patrimônio cultural de Minas Gerais. Pouco a pouco os alunos começaram a interagir construindo conceitos atrelados às experiências deles, envolvendo memória, patrimônio, história, cotidiano, cultura e a 157
O material paradidático referido é uma cartilha com informações sobre patrimônio cultural, conceitos e etapas do processo de registro e tombamento. As informações foram trabalhadas durante as discussões em sala e durante a visita. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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construção da história. Alguns citaram lembranças de viagens a cidades como Ouro Preto, outros logo indicaram o Conjunto da Pampulha, e poucos se lembraram de outros elementos, como o queijo. Depois da conversa inicial, os alunos se sentiram mais à vontade para definir tal conceito. Ainda era presente a ideia de patrimônio que privilegia elementos arquitetônicos e cidades históricas, que destaca os Prédios Públicos e Oficiais. Essa discussão situou os alunos sobre as políticas patrimoniais atuais e passadas, o que permitiu com que junto a eles concluíssemos que esses elementos produzidos pelo homem se mantêm vivos na memória, e se refletem no cotidiano das pessoas, em seus valores, atitudes e posicionamento. Partindo desta reflexão, tornamos a indagar: Para vocês, o que é patrimônio? Usando uma definição de dicionário que interpretava patrimônio como um bem herdado pelo pai ou pela mãe e contextualizando as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, tanto no campo da história, como no campo das políticas patrimoniais, que vêm dando protagonismo aos diversos agentes da história, propusemos uma reflexão sobre o conceito de patrimônio associado à visão metódica, e demonstramos as novas possibilidades de se pensar o patrimônio e as políticas patrimoniais. Uma discussão sobre o patrimônio enquanto formador de identidade foi levantada partindo do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, que se localiza próximo à escola e os alunos rebateram, descontruindo a visão apresentada. Uma aluna disse que o Conjunto Arquitetônico da Pampulha não diz nada sobre ela e que a Pampulha retratava algo fora da realidade deles e que aquilo era “lugar de gente rica”. Muitos desses alunos moram nos bairros que ficam em torno do conjunto, e alguns relataram que dificilmente frequentam o espaço que é conhecido por ser uma área nobre da região. Além disso, verificamos que o acesso se torna mais difícil devido a barreiras econômicas, já que o potencial turístico do local torna mais altos os preços de produtos e de entradas em alguns espaços. Outra aluna rebateu essa ideia, defendeu que muitos lugares são gratuitos, mas complementou dizendo que nem sempre parecem interessantes. Alguns alunos defenderam que o Conjunto só merecia a posição que ganhou, porque guardava uma arquitetura que “eles devem achar bonita”, evidenciando que a escolha partiu de um desejo do Estado e não da população. Outros disseram que aquilo
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era só para atrair turistas, que não adianta ter um patrimônio da Humanidade na Pampulha que em torno tudo é caro e a região não colhe nenhum benefício disso. É preciso lembrar que a construção do Conjunto se deu em um período onde as discussões sobre identidade nacional eram fortes e o Modernismo estava em alta. O projeto de construção deste espaço passou por essa reflexão. O Estado brasileiro se reorganizava e tentava consolidar uma nova realidade social, mais complexa, urbana e industrial que pudesse favorecer a inserção do país na rota de modernização aberta pela civilização europeia (CARSALADE; MORAIS, 2014, p. 9).
Foi pontuado pelo grupo como as políticas de patrimônio podem servir de ferramenta política, e que a Pampulha serviu como instrumento de afirmação de uma identidade ligada à elite local, o que culminou nas práticas das políticas patrimoniais deixando como herança a valorização de uma história elitizada. 5. A visita
Na segunda etapa da aplicação do projeto, a visita, tivemos como objetivo proporcionar aos alunos uma experiência com o conjunto e aplicar toda a reflexão que foi feita durante as discussões em campo. A primeira parada foi no Museu de Artes da Pampulha158 que foi o primeiro espaço projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer para o Conjunto Arquitetônico da Pampulha. Inicialmente foi projetado para ser um Cassino, função que ocupou até os anos de 1946, quando o jogo foi proibido no Brasil. Após dez anos fechado, foi transformado em museu em 1957. Recebeu exposições de artistas renomados como Emiliano Di Cavalcanti e Ivan Serpa, além de artistas brasileiros. Por conta do horário, o museu ainda se encontrava fechado para visita. Foi proposto aos alunos para voltarmos mais tarde, eles não se mostraram entusiasmados a entrar no museu, então começamos a contar informações acerca da história de Belo Horizonte e sua construção e sobre a idealização da Pampulha, e, enfim, sobre o museu. A problematização apareceu logo na primeira parada, uma aluna disse que o saguão do museu estava vazio, “eles não fazem nada que atraia a gente, só coisas estranhas, essa O museu conta com atividades como visitas mediadas além de eventos com artistas. Informações Obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 158
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estatua mesmo aí na porta, o que significa? Ninguém entende, vocês sabem porque estudam isso, nós não. ” Em conversa, foi perceptível que, na visão dos alunos, aquela cultura valorizada dentro desses espaços não fazia parte da cultura da população geral, e que existem outros museus que contém um acervo mais significativo, que remetem ao que eles entendem como “nosso”, mas que apesar de ser um espaço elitizado, em sua essência, é possível realizar apropriações e ocupar esses espaços. Uma aluna levantou que a arquitetura diferente merecia destaque porque “pelo menos foi um brasileiro quem fez e os jardins são muito bonitos, colorido”, segundo ela.
Legenda: Imagem 01- Debate no Museu de Artes da Pampulha. Belo Horizonte 31 de Maio de 2017. Arquivo Pessoal.
O segundo local do circuito foi a Casa do Baile159. Inaugurada em 1943, a Casa do Baile foi projetada para ser um restaurante e um salão com mesas e pista de dança. A finalidade do projeto era a de criar um espaço popular de eventos, que animasse as noites de Belo Horizonte, passando a ser frequentada pelas elites locais. Porém com o fechamento do cassino, a casa passou por crises e foi fechada em 1948. Voltou a ser aberta e funcionou como espaço comercial, depois como anexo do Museu de Arte Moderna e em 2002, após restauração realizada pelo seu arquiteto e idealizador Oscar Niemeyer, a casa foi reaberta. 159
Informações obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017.
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Foi perguntado aos alunos quais os espaços para eventos eles frequentavam. Alguns pontuaram lugares no centro de Belo Horizonte como o baixo centro, sorrindo outros disseram que hoje em dia eles fazem resenhas em casas de amigos ou espaços alugados para realizarem as festas. Contamos a eles que aquela pequena casa era um desses lugares de eventos, um aluno pontuou o tamanho da casa, perguntamos se ele acreditava que as festas ali eram frequentadas por muitas pessoas, outro aluno respondeu, “mas é claro que não, aqui só tinha ricos, e ainda tem, nunca entrei nesse negócio”. E assim voltamos à discussão do porque o Conjunto Arquitetônico da Pampulha ser considerado Patrimônio Cultural da Humanidade. Sem uma conclusão construída, os alunos foram conhecer o espaço. O mediador de visitas da casa se ofereceu para nos acompanhar. Os alunos se entretiveram no bar da Casa, reconheceram bebidas que eles viam e consumiam nas tais resenhas, discutiram política quando viram uma exposição no museu que continha palavras de ordem contra e a favor de alguns políticos notáveis atualmente. Nesse momento, um dos alunos relembrou um caso do ex-governador de Minas: “acho que foi o Aécio [Neves] quem disse que a lagoa ia ficar tão limpa que ia dar pra beber água nela, queria ver ele vir beber”. Levantamos uma reflexão sobre como o destaque trazido à Pampulha interfere na vida das pessoas moradoras da região. Os alunos disseram que é bom porque gera emprego, existem muitos vendedores ambulantes na região, além do marco turístico que traz visitantes que gastam no conjunto, porém as coisas são caras e nem todos conseguem frequentar. Na vida dos moradores, eles acreditam que o fato da propaganda da região como um bom lugar atrai bandidos [sic]. O ponto que se fez presente entre os alunos é a violência contra o patrimônio versus a violência contra os cidadãos. É possível verificar que: (...) vários estudos no país têm mostrado que a violência afeta a população de modo desigual, gerando riscos diferenciados em função de gênero, raça/cor, idade e espaço social. (SOUZA; LIMA, 2006, p.2).
Foi concluído, juntamente com os alunos, que a sensação provocada e que a violência que atinge a região da Pampulha se tornam veladas devido à valorização do conjunto arquitetônico passando uma ideia de segurança que o ambiente provoca por estar localizado em uma área nobre.
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Os alunos ainda completaram que a Pampulha é muito mais do que aquilo que cerca a lagoa, dizendo que não muito longe dali existe bairros pobres, favelas, onde se instalam visíveis desigualdades sociais. Outra constatação que os alunos levantaram foi a existência de elementos que fazem parte da cultura popular e que eles se identificam. Citaram as festas de ruas e o funk, que passou a ser mais bem aceito em outras camadas sociais e que tem origem nos aglomerados. Ao levantarem a questão da aceitação de elementos vindos de outras culturas, percebemos como o papel da empatia e da alteridade possuem valor significativo na prática de educação para o patrimônio.
Legenda: Imagem 02. Casa do Baile. Belo Horizonte, 31 de Maio de 2017. Arquivo Pessoal.
A terceira parada foi a Igreja São Francisco de Assis160, popularmente conhecida como “Igrejinha da Pampulha”. A Igreja é o marco do Conjunto, sendo vista como um dos cartões postais de Minas. Desde sua construção, ficou fechada por quatorze anos, pois contrariava os modelos tradicionais da arquitetura sacra. A igreja abriga painéis feitos por Candido Portinari.
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Informações obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017.
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Sentamos com os alunos em uma praça para que antes fizessem um lanche. Eles fizeram fotos para o arquivo pessoal deles, observamos o cuidado de mostrar ao fundo da foto a Igreja e a lagoa. Direcionamo-nos para a Igreja, circulamos, observamos os turistas que ali paravam para fazer fotografia, todos evidenciando a igreja, tentando achar um ângulo diferente para fazer as fotos. Caminhamos para o painel da igreja, mostramos a eles o mosaico feito pelas mãos de Portinari, contamos a eles que a igreja ficou alguns anos fechada por não ter aceitação da Igreja Católica e de católicos mais tradicionais, fato que marca a igreja junto à sua arquitetura modernista e única. Bernardo, integrante do grupo, contou a eles sobre a recente pichação feita na igreja, os alunos não se mostraram contra ou a favor. Não sabemos dizer se a presença de grupos de turista que passavam próximos os inibiu de falar sobre o assunto.
Legenda: Imagem 03 Igreja da Pampulha. Belo Horizonte, 31 de Maio de 2017, Arquivo pessoal
A última parada foi feita na Casa Juscelino Kubitschek161. A Casa Juscelino Kubitschek é mais um dos projetos assinados por Niemeyer e que integram o Conjunto Arquitetônico da Pampulha. Projetada em 1943, a casa serviu ao então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino, atendendo a ele e à sua família nos finais de semana. É um marco do traçado modernista.
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Informações obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017.
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Lá os alunos ficaram intrigados com o tamanho da casa (que era a casa para uso nos finais de semana) e com a beleza e o luxo. Eles interagiram bastante com os objetos da casa, alguns totalmente desconhecidos para eles, outros mais conhecidos. A disposição dos cômodos também foi questionada: na casa havia dois quartos integrados, falamos sobre os possíveis valores da época, levantamos hipóteses de situações vividas pelos moradores da casa. Do lado de fora da casa, falamos com os alunos sobre o passeio, sobre o nosso lugar na sociedade, sobre a necessidade de se conhecer e de reconhecer onde você é visto e onde sua voz é silenciada. É importante salientar que durante o passeio os alunos não demostraram um sentimento de identificação com o conjunto patrimonial e que a Pampulha apresentada naquele conjunto não reflete a existência desses alunos e moradores em sua totalidade. Ainda assim, o conjunto serve como instrumento para se pensar politicamente, para entender a construção e a valorização da arte no Brasil, fazendo com que eles percebam que eles são agentes sociais e atuantes e, por isso, devem buscar ocupar os espaços e se apropriar da sua história e lançar luzes aos que foram lançados ao escuro do esquecimento, além de valorizarem aquilo que eles têm como patrimônio e o que pertence a grupos que sofreram invisibilidades na história e na sociedade e que também constituem a história plural e diversa de Minas e do Brasil. Na quarta e última etapa do projeto, os alunos se organizaram em grupo para elaborar textos que foram utilizados na produção do “Jornal Mural”, que foi uma iniciativa do Professor de História dos alunos, e que nos convidou para ajudar na produção do mesmo junto aos alunos usando como tema o projeto “(Re) Descobrindo a Pampulha”. Servindo-se do material paradidático recebido no primeiro encontro, resgatando as problematizações feitas no passeio e debatendo entre eles, os alunos produziram textos, quadrinhos e o editorial da revista. Conversando com os alunos, descobrimos que no ano de 2016 a escola participou do movimento de ocupações e os alunos que participaram do projeto estavam presentes. Concluímos com eles que essa ação política pode se repetir em outros ambientes, como na apropriação do patrimônio, exercendo assim a sua cidadania na busca pela democratização dos espaços públicos. Pontuamos também a história enquanto discurso e que o discurso contado nas primeiras ações de patrimonialização era pautado em ideais que buscavam apresentar o REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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progresso do país em aspectos políticos, econômicos e sociais – eles pontuaram várias vezes o descontentamento. A segunda conclusão que tivemos junto aos alunos foi que através do conhecimento dos ideais do Estado e do seu passado é que se torna possível perceber e problematizar a história e a política. O que já está patrimonializado demonstra essa história marcada pela segregação. Apagar esses registros silencia ainda mais as desigualdades, precisamos saber lidar com nosso passado e reconhecer nele as permanências e as rupturas. Tratando das rupturas, apesar dos ideais defendidos por anos, houve uma mudança na perspectiva e na abordagem da história. Hoje a disciplina não trabalha mais com a valorização dos ditos heróis, e nem com o sofrimento dos chamados vencidos, mas é abordada numa perspectiva que procura valorizar as relações a nível macro e o sujeito em nível micro buscando aqueles que por anos foram negligenciados pela História e pelo Estado. E, por fim, pontuamos a história das políticas patrimoniais e da inserção de novos objetos que foram registrados e tombados nos últimos anos construindo a terceira e última conclusão junto aos alunos.
Legenda: Imagem 04 Jornal Mural, Belo Horizonte, 1 de Junho de 2017. Arquivo Pessoal
6. Considerações finais
O presente trabalho teve por finalidade levar os alunos a conhecer uma “nova Pampulha”. É preciso destacar que o grupo descobriu um olhar inédito sobre o mesmo espaço e um novo olhar sobre o patrimônio. Chegamos lá esperando ouvir histórias
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positivas sobre o espaço e a convivência dos alunos dentro do mesmo, mas descobrimos um espaço que se distancia muito da região considerada Patrimônio da Humanidade. O patrimônio não diz somente sobre política, diz também sobre identidade e existência, sobre História, mas não somente sobre os fatos - é sobre narrativas, sobre construções. As políticas patrimoniais visam garantir a permanência da memória, mas elas também demostram as rupturas, como a da mentalidade barroca da Igreja e o povo mineiro ao reconhecer a Igreja de São Francisco de Assis como espaço de cultos e como imagem representativa de Minas. A permanência de elitizar a arte e os espaços e marginalizar ações definindo como vandalismo as apropriações do patrimônio. O patrimônio não vai passar ileso a essas rupturas, ele vai ser repensado assim como a sociedade, o que nos compete a fazer com que essas políticas abracem a pluralidade e não afaste a humanidade como um todo desses bens patrimonializados. O patrimônio é uma forma de dialogar com a própria existência, com a existência de outros grupos e entendendo a linguagem e pensamento do Estado, é possível buscar seu lugar dentro dele.
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SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA
PROPOSTA PEDAGÓGICA 1
Autores: Moacir Fagundes de Freitas Licenciado em História e Estudante de graduação em Museologia (Bacharelado) UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Fafich (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas) e ECI (Escola da Ciência da Informação). Professor na Escola Municipal Anne Frank Luíza Rabelo Parreira Estudante de Graduação: História (Licenciatura e Bacharelado) UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Fafich (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas). Douglas de Freitas Bacharel em História, UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Fafich (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas). Nível de ensino: Fundamental – 7º Ano Tema: História do bairro Confisco. Disciplina: História. Interdisciplinaridade: Artes, Geografia e Português. Transversalidade: Relações de gênero, identidade, direitos humanos, temas locais, pluralidade cultural, ética.
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Documento 1
Título: Relatório sobre a situação de risco da parte alta do Conjunto Confisco.
Gênero:
Textual, em formato de folha avulsa. Iconográfico, em formato de fotografia. Cartográfico, em formato de mapa.
Instituição de guarda:
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura
Notação do documento: Relatório sobre a situação de risco da parte alta do Conjunto Confisco. 1992. Disponível no Arquivo Público da Cidade. Localização: Guia 356, AC: 00.00.00, Depósito: Tx, Móvel: AD.01/MO. 03/ES, Nº 15, Posição: PR. 05, Caixa 60.
Objetivos da atividade: A proposta da aula se insere no projeto desenvolvido pelo professor Moacir Fagundes de Freitas denominado “Entre o Diário e a História em Quadrinhos: Estudantes Construindo a História de um Bairro. ” O objetivo desse projeto é “possibilitar aos estudantes da Escola Municipal Anne Frank e à sua comunidade, condições de pesquisar, criticar, construir, conhecer e comunicar a história do bairro Confisco”. Nesse sentido, a aula proposta tem como principal intuito oferecer aos estudantes uma visão panorâmica da história do bairro Confisco, contextualizar a formação do bairro dentro da história da cidade de Belo Horizonte, discutir as diferentes versões da história do bairro, desconstruir a noção progressista de caráter positivista dessa história e reforçar a ideia de que a identidade do bairro e de seus moradores é fruto de uma construção marcada pela luta social dessas pessoas. Para isso, será utilizado o documento “Relatório sobre a situação de risco da REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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parte alta do Conjunto Confisco”, que é composto por fotografias que mostram as primeiras moradias do bairro, os assentamentos em lona, a população que residia ali no período, mapas e relatórios que explicam a situação político-geográfica do bairro, que se localiza entre as divisas dos municípios de Belo Horizonte e Contagem.
Aula 1 - Duração: 60 min Conteúdo: A aula partirá da discussão e apresentação dos conteúdos sobre a história do bairro Confisco, apresentando imagens fotográficas e documentos, além de contextualizar a história do bairro dentro da história da cidade de Belo Horizonte. A metodologia utilizada para trabalhar o conteúdo parte de uma perspectiva mais horizontal com o intuito de privilegiar o conhecimento dos estudantes sobre a história do bairro e também favorecer a participação e a interlocução. Para isso, será feito o uso de perguntas-chave para explorar o conteúdo prévio da turma. A principal intenção ao analisar os documentos é desconstruir a imagem negativa que alguns estudantes têm do bairro e mostrar que os ganhos e mudanças ocorridas são resultado de conquistas dos moradores. Assim, esperase que ao final da aula os alunos possam entender melhor o contexto social no qual estão inseridos e possam ser agentes de mudança para o futuro. Ao final da aula será dada uma atividade para ser feita em casa, na qual os estudantes deverão elaborar questões de verdadeiro ou falso sobre o conteúdo ministrado em aula. Procedimentos/estratégia de ensino:
A primeira aula será guiada pelas questões: o O que é um bairro? o Como surgiram os bairros em BH? o Exibição de mapa e fotos antigas de Belo Horizonte. o Quem conhece a história do bairro Confisco? o Por que o nome Confisco? REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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o Como imaginam o bairro há 25 anos? A aula será interativa, com apresentação em PowerPoint. Ao final, haverá uma explicação da dinâmica do jogo que ocorrerá na aula. O jogo será de “Verdadeiro ou Falso” e abordará o conteúdo discutido durante a aula. Cada aluno terá como tarefa criar uma questão verdadeira e uma falsa a respeito da história do bairro Confisco. Exemplos de questões: O bairro Confisco chamava-se São Jorge. Algumas ruas do bairro Confisco começam em Belo Horizonte e terminam em Contagem. Quando o grupo dos Mariquinhas chegou ao bairro as casas deles já estavam prontas para recebê-los. Na época que existia o “buracão” na praça, já havia linha de ônibus circulando no bairro. O nome da escola é Anne Frank porque ela doou o terreno para a escola através de seu testamento. Aula 2 - Duração: 60 min Conteúdo: A segunda aula tem como objetivo a reflexão acerca do que foi apresentado na primeira, através de um jogo de revisão. A intenção é que os alunos possam demonstrar o que aprenderam sobre a história do bairro Confisco. Espera-se assim, que os alunos possam desenvolver maior domínio sobre o conteúdo apresentado, uma vez que o jogo privilegia o debate e o raciocínio. Nos primeiros minutos da aula será feita uma revisão do conteúdo dado na aula anterior, guiado pelas perguntas: o Como está o bairro hoje? o Por que é importante escrever a história dele? REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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O restante da aula será utilizado para a realização do jogo. Regras do jogo: O(a) professor(a) lerá questão em voz alta; Uma vez lida, a questão não será repetida pelo professor; Os membros dos grupos terão alguns minutos para discutir entre si sobre a questão; Cada grupo deve escolher um representante para levantar a placa escolhida (V ou F); A placa escolhida deve ser levantada ao sinal do professor; Não é permitido a troca de informação entre os grupos. O restante da aula será utilizado para esclarecer eventuais dúvidas. Recursos necessários: -Data Show e computador para a primeira aula. -Documentos utilizados. Relatório sobre a situação de risco da parte alta do Conjunto Confisco.
- Papel e caneta para confecção das placas de V ou F na segunda aula.
Referências:
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortês, 2004. 408 p. (Coleção Docência em Formação. Série Ensino Fundamental). BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: História/Geografia.2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. ARREGUY, Cintia Aparecida Chagas. RIBEIRO, Raphael Rajão (coordenadores). Histórias de bairros [de] Belo Horizonte. Belo Horizonte: APCBH; ACAP-BH, 2008. (Cadernos disponíveis em versão digital no site do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte: www.pbh.gov.br/cultura/arquivo). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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LIMA, Benvindo. Canteiro de saudades: pequena história contemporânea de Belo Horizonte (1910-1950). Belo Horizonte: Promove, 1996. RESENDE, Luiza de Marilac.; ZARZAR, Patrícia Maria Pereira de Araújo; FERREIRA, Efigênia Ferreira e. Percepção de moradores de um aglomerado em Belo Horizonte, sobre os fatores relacionados à mobilidade urbana. 2015. 79f. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Odontologia. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1843/BUBD-A8XNUK>. Acesso em: 26 abr. 2016. SILVA, Luiz Roberto da. Doce dossiê de BH. 2.ed. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 1998. UFMG. Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Cedeplar. Projeto PBH Séc. XXI – Relatório final. Disponibiliza arquivos de pesquisas e estudos sobre Belo Horizonte. Disponível em: <http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/projeto_pbh_sec._xxi.php>. Acesso em: 03 out. MAUAD, Ana Maria. Ver e conhecer: o uso de imagens na produção do saber histórico escolar. In: ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo e GONTIJO, Rebeca. A Escrita da História Escolar. Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. p.247-262. NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania Maria Bessone (orgs.). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; FAPERJ, 2006. Sem Nome. Informativo da E. M. Anne Frank, Comunidade do Bairro Confisco e arredores. N. 0, novembro de 2004. Bairros de Belo Horizonte: Conjunto confisco. Disponível em: http://bairrosdebelohorizonte.webnode.com.br/conjuntos-populares-/ Histórico do Conjunto Habitacional Confisco. Centro de Referência Popular do Bairro Confisco BH. Disponível em: https://www.facebook.com/confiscobh/posts/440726819404942
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PROPOSTA PEDAGÓGICA 2
Autora: Marcelina das Graças de Almeida Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, Docente na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais e do Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte
Nível de ensino: Ensino Médio Tema: O Cemitério do Bonfim e os livros de registro de sepultamentos Disciplina: História Interdisciplinaridade: Português, Geografia, Artes Transversalidade: A morte, o morrer e o culto aos mortos
Documento 1 Título: Livro Registro de Sepultamentos
Gênero:
X textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) __ iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) __ cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa) __ micrográfico (formato: microfilme)
Instituição de guarda:
X Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura ___ Museu Histórico Abílio Barreto – Fundação Municipal de Cultura ___ Museu de Arte da Pampulha – Fundação Municipal de Cultura ___ Centro de Referência Audiovisual – Fundação Municipal de Cultura REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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___ Outros
Notação do documento: DQ.07.00.00
Objetivos da atividade: Propor uma inter-relação entre o conteúdo dos livros do registro dos sepultamentos e o espaço do Cemitério do Bonfim da cidade de Belo Horizonte
Procedimentos/estratégia de ensino:
O Cemitério do Bonfim, para além do cumprimento de suas funções habituais ligadas ao culto aos mortos, vem sendo cada vez mais utilizado como espaço de educação não formal. O hábito de ministrar aulas específicas utilizando o espaço cemiterial vem sendo recorrentemente praticado. Essa prática na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais se realiza através do trabalho de docentes em disciplinas diversas que são ministradas para os cursos de Design Gráfico, Design de Produto, Design de Ambientes e Licenciatura em Artes Visuais. As atividades educativas são coordenadas pelas docentes Marcelina das Graças de Almeida e Patrícia Pinheiro, como parte do currículo das disciplinas “Espaços Museográficos” e “Fatores Filosóficos e Culturais I”, respectivamente. O objetivo das visitas consistia, para além da coleta de material e investigação acadêmica, a promoção da educação patrimonial.
Entretanto essa ação educativa vem, desde junho de 2012, se estendendo a outros segmentos da sociedade belo-horizontina através de uma ação de extensão que promove, em parceria com Fundação de Parques Municipais, FPM e o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, IEPHA, visitas mensais ao cemitério com o intuito de instigar o interesse, despertar o gosto pelo turismo cemiterial e ao mesmo tempo promover a educação patrimonial. Estas atividades têm a cada dia incrementado de modo considerável a visibilidade naquilo que se refere ao espaço e consequentemente à necessidade de ampliar o conhecimento acerca do acervo e história do cemitério.
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Nesse sentido a proposta da atividade é correlacionar as visitas e a análise do conteúdo dos livros de registros de sepultamentos que se encontram no acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, APCBH, que compreendem o período que se estende desde os anos de 1898 a 1967, de modo que tanto os docentes, quanto discentes envolvidos possam, ao realizar a visita ao Bonfim, correlacionar os dados contidos nos livros e a distribuição geográfica dos sepultamentos no espaço cemiterial, identificando as características dos túmulos, os aspectos estéticos e sociais, bem como detectando as transformações pelas quais a necrópole vem experimentando ao longo do tempo.
Para a realização dessa atividade é importante que sejam planejadas duas visitas: uma ao Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, para análise e escolha dos livros que serão mapeados e analisados e outra ao Cemitério do Bonfim, ocasião em que os dados colhidos na primeira visita possam ser confrontados. Nessa visita, inclusive, sugere-se além das anotações o uso de máquina fotográfica para captação de imagens e registro das investigações a serem realizadas em campo. Os resultados da pesquisa e das visitas técnicas podem ser desdobrados em textos redigidos pelo corpo discente, bem como a organização de uma exposição fotográfica.
Referências:
ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Morte, Cultura, Memória: Múltiplas Interseções – Uma interpretação acerca dos cemitérios oitocentistas situados nas cidades do Porto e Belo Horizonte. 2007. 404 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
_______.Belo Horizonte, Arraial e Metrópole: memória das artes plásticas na capital mineira. In. RIBEIRO, Marília Andrés e SILVA, Fernando Pedro da. (org.) Um Século de História das Artes Plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora C/ARTE / Fundação João Pinheiro / Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997. Coleção Centenário. ________. PROJETO DE EXTENSÃO Passeio pelo Bonfim - visitas guiadas Relatório 2012/2013. Belo Horizonte, Escola de Design, 2013. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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________. Cemitério do Bonfim: Arte, História e Educação Patrimonial RELATÓRIO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DAS ATIVIDADES DURANTE O ANO DE 2014. Belo Horizonte, Escola de Design, 2015. ________. A cidade e o cemitério: uma experiência em educação patrimonial. Revista M. Estudos Sobre a Morte, os Mortos e o Morrer. Rio de Janeiro, Vol.1, n.1, p.217-234, Jan.Jun.,2016. AVELAR, Bruna Dalva e ALMEIDA, Marcelina das Graças de. PROJETO CEMITÉRIO DO BONFIM: ARTE, HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL. EDITAL: 01/2013. Belo Horizonte: Escola de Design/UEMG, 2013. 23 p. Relatório de pesquisa PAPq.
RELATÓRIO FINAL DE PESQUISA DE INVENTÁRIO DO ACERVO DE ESTRUTURAS ARQUITETONICAS E BENS INTEGRADOS DO CEMITÉRIO DO BONFIM. Belo Horizonte: IPEHA, 2010.
TRIGUEIRO, Ana Carolina Zegarra e ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Relatório Final de Pesquisa Projeto Cemitério do Bonfim: Arte, História e Educação Patrimonial. Edital 04/2014 Belo Horizonte, ED/UEMG, 2015.
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ENTREVISTA
Luciana Teixeira de Andrade Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas. Pesquisadora do CNPq, da Fapemig e do Observatório das Metrópoles.
Foto: Acervo pessoal
Apresentação No ano de comemoração dos 120 anos de Belo Horizonte, a REAPCBH entrevista a professora Luciana Teixeira de Andrade da PUC Minas, para compartilhar suas experiências sobre os temas pesquisados sobre a cidade, assim como realizar um balanço dos 120 anos da capital.
REAPCBH pergunta: Pensando na sua experiência com estudantes universitários, quais seriam os temas mais pesquisados sobre Belo Horizonte e quais as perspectivas acadêmicas para os estudos sobre a cidade? Luciana Teixeira de Andrade responde: Posso responder essa pergunta a partir da minha experiência como orientadora de teses e dissertações na PUC Minas e também por acompanhar parte da produção sobre a cidade em função das pesquisas que desenvolvo. Em todos esses casos, haverá uma marca da minha inserção institucional e da minha área de pesquisa. O que vem a seguir, portanto, não tem o rigor científico de uma avaliação REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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que contemple toda a produção acadêmica sobre a cidade. São apenas registros de avaliações parciais. Importante dizer isso, tanto como um alerta sobre o que aqui será dito, como também para chamar a atenção sobre a necessidade de tal avaliação que, pelo que conheço, ainda não foi feita. E, sobre isso, vale também dizer que a produção acadêmica de teses, dissertações e artigos sobre a cidade cresceu muito nas últimas décadas em função da expansão das universidades públicas e privadas, e dos programas de pós-graduação. Por incentivo do próprio APCBH, que em duas ocasiões me convidou para fazer palestras, tentei, nessas oportunidades, me informar um pouco além do que a rotina de trabalho nos exige acerca do estado da arte das pesquisas sobre Belo Horizonte. Foram sempre incursões limitadas no que diz respeito às fontes e em função do tempo que tinha para me dedicar a essa tarefa. Na primeira oportunidade, analisei os registros produzidos pelo APCBH, das 172 teses e dissertações apresentadas no projeto Novos Registros, desde o seu início, em 1993, até 2011, como mote para a fala no evento Cidade em Debate que comemorou os vinte anos do Novos Registros. Importante chamar atenção aqui que esses dados não abrangem a produção acadêmica sobre a cidade, mas somente as obras selecionadas pelo APCBH para apresentação no Novos Registros. Nessa fala destaquei os espaços, os temas e os períodos das obras. Em relação ao espaço, o Centro histórico da cidade aparecia como o lugar privilegiado das apresentações. Interessante foi observar que apesar das muitas mudanças por que vem passando, como a perda de parte da sua centralidade, desde que passou a dividi-la com novos espaços, mesmo assim o Centro continuou a atrair a atenção dos pesquisadores, interessados, possivelmente, em acompanhar essas mudanças. Em seguida, apareciam os bairros do pericentro, localizados no entorno do Centro, e, em terceiro lugar, mas já com um número bem menor de trabalhos, as periferias e as favelas de um lado, como territórios da pobreza, e o eixo sul e a Pampulha de outro, como territórios das classes médias e altas. Interessante notar que se foram poucas as apresentações sobre as favelas e as periferias, menor ainda foram as apresentações sobre os bairros dos estratos altos. Em função de um projeto de pesquisa sobre favelas em Belo Horizonte, pude observar que cresceu o número de estudos sobre favelas na cidade. Em um levantamento realizado em 2011, com ajuda de dois bolsistas, identificamos 42 teses e dissertações sobre favelas em Belo Horizonte. A maioria estudos de caso sobre favelas específicas, que tratavam de temas como habitação, reassentamento, urbanização, organização social, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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crime e violência, seguido de outros como juventude, trabalho, educação, sexualidade. Poucos, mas que vale o registro, com abordagens sobre memória e produção cultural. O que reforça a visão (limitada) da favela como um problema social. A favela da Serra era, à época desse levantamento, a mais estudada, seguida por Santa Lúcia, Cabana, Pedreira e Taquaril. Os estudos de caso qualitativos predominavam, mas identificamos também trabalhos quantitativos que comparavam algumas favelas com as periferias ou outros espaços da cidade. Faltavam trabalhos com abordagens mais amplas, a exemplo da tese pioneira, e nunca publicada, de Berenice Guimarães Cafuas, barracos e barracões: Belo Horizonte, cidade planejada, de 1991. Como acima mencionado, a falta de estudos sobre os espaços de moradia dos estratos altos da população não é uma idiossincrasia local, ela se reproduz em outros lugares do país. Parece que o fato de 1% da população do país concentrar 25% da renda total não se configurou ainda em um problema real de pesquisa. Arriscaria duas hipóteses para isso. A primeira estaria relacionada ao fato dos cientistas sociais terem maior empatia com os pobres e os excluídos. Ao estudá-los estariam também denunciando seus problemas. E, num certo sentido, procurando ser solidários para com eles. Daí que a representação da favela e da pobreza como um problema, o que acaba por reforçar os seus estigmas, não seja algo deliberado, seria, ao contrário, um efeito não desejado ou mesmo não esperado. A segunda tem a ver com acesso. Os ricos dificilmente se rendem aos pesquisadores, um exemplo é a dificuldade que o próprio Censo Demográfico tem para recenseá-los. Seus lugares de moradia, em geral, são muito bem protegidos dos intrusos, entre eles, os pesquisadores que querem saber como vivem, suas rendas, escolaridade, opiniões etc. Já os mais pobres não têm esses mesmos recursos e se rendem mais facilmente às nossas intromissões. Voltando aos dados das apresentações das teses e dissertações no Novos Registros, um outro recorte possível é o do tempo, ou das décadas. A tarefa não é fácil, pois os estudos não são necessariamente por décadas, há vários que abordam períodos mais longos. O que eu tentei foi perceber o foco em determinadas décadas – tentando compreendê-las como representativas de algum momento da vida da cidade e do país. Como comentarei adiante, a partir de um levantamento mais atualizado desses mesmos dados pelo próprio APCBH, notam-se algumas diferenças entre o meu levantamento e
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este último, o que pode ter a ver com a diferença temporal (a publicação
do APCBH
abordou as apresentações até o ano de 2016, cinco anos a mais), mas também pela dificuldade que tive em classificar, por um critério em grande parte arbitrário, os trabalhos em décadas. Mas vamos lá. Foi possível identificar uma concentração das apresentações em estudos sobre a Primeira República, mas que não era maior do que nas décadas atuais (1990-2000). São dois dados interessantes. O fato de ser uma cidade planejada parece exercer um grande fascínio. Afinal, poder investigar um fenômeno com um início tão identificável, atraiu um grande número de pesquisadores. Além do planejamento da cidade, muitos outros aspectos da Primeira República foram também estudados: cafés, cinema, modernismo, carnaval, vida social e intelectual, esporte, lazer, futebol, catolicismo, ordem social, imprensa. Diferentemente, os estudos sobre a década de 1960, apresentavam um viés mais político, mas também cultural, dos movimentos artísticos. Na década de 1970, permaneceu o interesse pela dimensão política, com o acréscimo da questão urbana, da expansão e o crescimento populacional da cidade e sua região metropolitana. As apresentações de trabalhos com foco nas décadas de 1990 e 2000 evidenciavam uma preocupação com o tempo presente, mesmo levando-se em conta o predomínio das apresentações oriundas dos programas de pós-graduação em história no Novos Registros. Neste ano de 2017, o APCBH lançou a publicação A trajetória do projeto Novos Registros, que com mais critérios e tempo do que o meu levantamento, muito exploratório, construiu uma estatística das apresentações entre 1993 e 2016. Ainda que as formas de organização dos dados sejam diferentes (essa publicação trabalhou com as regiões administrativas), verificou-se uma concentração das apresentações na região Centro Sul da cidade (onde se localiza o Centro histórico). Em relação aos tempos, nossas classificações divergem um pouco, e, como não teria como voltar a esses dados, deixo aqui o registro para que, caso haja interesse, seja objeto de outras explorações. Diferentemente dos meus resultados, eles identificaram uma distribuição mais homogênea por décadas. A segunda oportunidade que tive, mais uma vez provocada pelo APCBH, para falar das pesquisas sobre a cidade foi no evento O arquivo e a cidade. A produção do conhecimento em Belo Horizonte: perspectivas acadêmicas, realizado em 2017. Para esse A Trajetória do Projeto Novos Registros do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, 2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513 162
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evento, levantei as teses e as dissertações produzidas no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas (PPGCS) onde leciono e oriento. Investiguei pelo título e quando este não era suficiente, pelo resumo, 274 dissertações e teses que, até aquele momento, estavam no Banco de Teses do PPGCS. Como salientado acima para o caso das apresentações no Novos Registros, trata-se também aqui de uma amostra: as teses de um programa de pós-graduação, em um universo bem mais amplo. Outro viés de qualquer amostra como essa é a sua relação com a área de concentração, linhas de pesquisa e, muitas vezes, com pesquisadores específicos. O PPGCS tem como área de concentração Cidades: Cultura, Trabalho e Políticas Públicas, e três linhas de pesquisa: Cultura, Identidades e Modos de Vida, Políticas Públicas, Participação e Poder Local e Metrópoles, Trabalho e Desigualdades. Dessa segunda investida, os dados mais significativos que apurei foram os seguintes: 49% da produção foi sobre a cidade de Belo Horizonte; 11% sobre a Região Metropolitana de Belo Horizonte, 23% sobre Minas Gerais e 10% sobre outros espaços. Os 7% restantes eram estudos comparativos. Mais uma vez os espaços centrais e, dentro destes, os espaços públicos, foram os mais estudados. Seguidos pelas favelas e periferias e depois pelos bairros pericentrais. Isso para as teses e dissertações que versavam sobre a cidade de Belo Horizonte. Três temas atravessavam, com maior frequência, as dissertações e as teses das três diferentes linhas de pesquisa: a) juventudes, b) patrimônio e memória e c) pobreza, vulnerabilidade e desigualdades sociais. Um conjunto significativo se inseria no campo das políticas públicas, com investigações sobre as políticas educacionais, de habitação, de saúde, de assistência social, de juventudes, entre outras. Dentre esses, um subgrupo significativo versava sobre as políticas públicas urbanas, como orçamento participativo, conselhos municipais, planos diretores e gestão municipal e metropolitana. Alguns temas novos ou ligados à conjuntura também apareceram, como a Copa do Mundo de 2014, mobilidades e ocupações urbanas. O segundo grupo abordou os temas relacionadas à cultura e aos modos de vida, à memória e ao patrimônio cultural. Distintas manifestações culturais como dança, teatro, cinema, grafite e festas foram analisadas, assim como instituições como museus e centros culturais. O terceiro grupo, teve como foco as questões do trabalho (formal, informal, mercado de trabalho, reestruturação produtiva), das profissões (de camelôs, policiais, médicos, bancários, funcionários públicos entre outras), da pobreza e da vulnerabilidade social, mental e física. Nesse último grupo há um conjunto importante de trabalhos sobre REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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população de rua. Há que se destacar ainda dois outros temas: o da criminalidade e da segurança pública e os estudos sobre gênero. Em menor número estão os estudos sobre religião, cor ou raça. A baixa ocorrência deste último tema, como no caso da classe alta, acima destacado, não é uma característica do PPGCS da PUC Minas. Trata-se de uma lacuna nacional. Ainda que seja uma das desigualdades mais persistentes, não foi até então estudada como deveria. Minha intuição, em razão da atual mobilização em torno do tema, é que essa produção venha a ser incrementada em breve.
REAPCBH pergunta: Os estudantes têm procurado acervos de arquivos públicos? Como você vê o papel do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte no contexto das pesquisas dos estudantes universitários? Luciana Teixeira de Andrade responde: A facilidade de acesso a fontes digitais tem levado os atuais pesquisadores a limitarem suas pesquisas às fontes disponíveis na internet, um mundo de coisas muito distintas, que incluem acervos de arquivos, periódicos, teses, etc., bem como trabalhos de qualidade duvidosa, em detrimento das pesquisas em fontes históricas cujo principal lugar são os arquivos. Mesmo na área da sociologia que tem como uma de suas marcas centrais a preocupação com a modernidade e com o tempo presente, as pesquisas históricas e de sociologia histórica são muito relevantes. E, até mesmo as pesquisas etnográficas e de campo, não devem prescindir de investigações históricas. Além do que, a comparação, seja no tempo, seja no espaço, é um dos traços essenciais da disciplina. O que comumente chamamos de contexto é profundamente influenciado pela história. Acho que é até desnecessário bater nessa tecla, talvez seja mais importante procurar por algumas explicações e as armadilhas que se escondem por trás delas. Penso que uma delas sejam as transformações aceleradas que vivemos, o que tem levado a um sentimento de urgência, inscrito nessa tentativa de desvendar o presente. Uma outra é o fenômeno da globalização que numa interpretação limitada levou à análise dos fenômenos sociais em diferentes espaços como produtos de processos globais. Como se essa força, a globalização, desconsiderasse as condições históricas e os contextos locais. Ainda que essa interpretação venha sendo questionada há algum tempo e, mais recentemente, com força ainda maior, ela é uma marca de muitos estudos sobre os chamados temas globais (alguns deles temas tipicamente da moda da qual o ambiente REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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acadêmico não está imune), para ver como “se manifestam” nas nossas cidades e realidades. Nesses casos, a história e o contexto são secundarizados e, muitas vezes, sacrificados para que o fenômeno possa ser analisado tal como em outros lugares (entendido aqui como os centros hegemônicos da produção de teorias). Trata-se de um equívoco teórico e metodológico que abre mão da compreensão da realidade local a partir de uma investigação aprofundada para apenas tentar identificá-la ou colocá-la em um fluxo de acontecimentos cuja matriz são os países centrais ou do Norte. O que se verifica em muitos desses casos é que a produção desses países, focada em realidades muito específicas, é exportada, mas também aceita, como teoria geral e universal. Trata-se de uma questão de poder, de quem produz teoria, mas que vem encontrando algumas resistências. Uma delas tem a ver com a produção de conhecimentos e de teorias que sejam fortemente ancoradas na nossa realidade, e não como casos “fora” da explicação dominante. Na perspectiva da interpretação dominante seremos sempre casos periféricos, para os quais falta algo para “chegarem lá”, ou seja, na globalização central, ou em qualquer outra referência central que seja tomada como modelo. Ao assim fazer, apenas alimentamos com dados uma explicação hegemônica. A outra atitude, é pensarmos nas diferenças ou nas múltiplas narrativas. Para isso, a pesquisa histórica, assim como a pesquisa de campo, é fundamental. Como alguns pesquisadores vêm chamando a atenção, as descrições novas e contra hegemônicas precisam percorrer esse segundo caminho.
REAPCBH pergunta: Quando Belo Horizonte foi inaugurada, o seu projeto baseava-se em ideais de modernidade. Passados 120 anos, como a capital mineira pode ser entendida no contexto brasileiro, considerando tal projeto de construção? Luciana Teixeira de Andrade responde: Essa questão pode ser abordada de diferentes perspectivas. Vou tratar aqui da dimensão socioespacial. Belo Horizonte, cidade planejada no final do século XIX, sob os ideais da modernidade e cujo principal modelo à época era Paris, antecipou as reformas urbanas pelas quais passariam outras capitais brasileiras mais antigas. Tais reformas tiveram como foco principal a mudança urbanística e social do centro histórico, recuperando-o para as classes de mais alto status, com a consequente expulsão dos mais pobres para as favelas ou periferias. O planejamento de Belo Horizonte destinou diferentes espaços para os diversos grupos sociais. Se alguns foram privilegiados com a garantia de ocupação de um espaço dotado REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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de infraestrutura e tiveram até mesmo as suas casas construídas, como foi o caso dos funcionários públicos, outros, como os construtores da cidade, não tiveram a mesma sorte. Restaram-lhes as favelas, que surgiram antes mesmo da cidade ser inaugurada, ou a ocupação da zona suburbana, ainda carente de infraestrutura. O que se percebe aí é o tratamento diferenciado dos grupos sociais, com a exclusão da política habitacional justamente dos que dela mais precisavam. Aliado à questão da moradia, houve também um maior controle dos usos dos espaços públicos centrais da cidade. Várias medidas, como os códigos de posturas, reprimiam o comportamento tido como “não civilizado” nas áreas centrais da cidade, constrangendo e mesmo criminalizando os usos dos espaços públicos para o trabalho e o lazer dos mais pobres. Já os cronistas da época convidavam os habitantes da cidade (apesar do tom geral do convite, ele se dirigia apenas àquela parcela que lia os jornais) para ocuparem as ruas largas e vazias da cidade com atividades como o footing e a frequência aos cinemas, teatros, lanchonetes e restaurantes. Ou seja, alguns comportamentos eram identificados como próprios à cidade moderna e, portanto, legitimados, enquanto outros eram criminalizados com os rótulos de vadiagem, desordem e mendicância. O planejamento de Belo Horizonte não produziu uma cidade mais igualitária e justa. Algumas parcelas da população puderam usufruir dos seus benefícios e outras não, o que mostra que, nesse aspecto, da ordem socioespacial, a Belo Horizonte planejada não difere de várias outras capitais brasileiras. Passados 120 anos, não é possível dizer que a cidade tenha se tornado mais igualitária. Tomando mais uma vez o aspecto socioespacial, o que as pesquisas mostram é a contínua expulsão dos mais pobres para as áreas mais distantes do centro, seja para as bordas da cidade, seja para os municípios da região metropolitana. Isso não significa dizer que nada mudou. Belo Horizonte se modificou imensamente, seja em termos populacionais, superando em muito as expectativas de seus planejadores, seja na forma de ocupação do espaço, na sua paisagem e nas formas de sociabilidade. Indicadores sociais de acesso aos serviços urbanos como água, luz, serviços sanitários, urbanização, entre outros, melhoraram significativamente, como de resto em todo o país. A verticalização excessiva alterou a paisagem da cidade, sua qualidade de vida e as formas de sociabilidade. Some-se a isso a ocupação das ruas pelos carros, o que transformou as tão faladas ruas largas e vazias, em espaços claustrofóbicos. A partir dos anos 1980, a violência vem alterando as formas de sociabilidade nos espaços residenciais e nos espaços REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de 2017‐ ISSN: 2357‐8513
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públicos. Casas se fecham para as ruas, com a construção de muros, colocação de cercas elétricas e concertinas. Uma paisagem de guerra com a qual vamos aos poucos nos acostumando. Crescem as formas de controle privado nos espaços públicos e semipúblicos com a utilização de seguranças privados cuja “proteção” é continuamente questionada. Ou seja, a continuidade das políticas públicas repressivas e focalizadas em determinados grupos sociais, com a complementação dos controles privados, produz uma cidade ao mesmo tempo mais vigiada e mais insegura. Essas mudanças são fruto de muitas tensões e conflitos entre os diferentes interesses dos grupos que vivem e atuam na cidade. As mudanças na infraestrutura das periferias são produtos de lutas sociais, muitas vezes trocadas por votos. A verticalização e a destruição de espaços públicos e de áreas verdes encontraram resistências que culminaram ora em vitórias dos preservacionistas, ora dos interesses imobiliários. O mesmo se pode dizer em relação ao patrimônio histórico, uma política que se construiu com derrotas e vitórias e muitas tensões entre os diferentes interesses. Uma parte positiva dessas tensões foi ter resultado em uma ampliação considerável do seu escopo inicial, seja em relação aos espaços da cidade, seja em relação aos tipos de bens protegidos, materiais e imateriais. Se em seus primórdios BH foi representada como uma cidade ambivalente, moderna no plano urbanístico, mas tradicional nos costumes de seus moradores, hoje suas tensões se amplificaram e suas representações se tornaram mais complexas com a emergência de novos atores e novas reivindicações de direito.
Mas se entendemos o
tradicionalismo como uma força contrária ao ideal moderno da democracia e dos direitos da cidadania, Belo Horizonte, como outras cidades do país, vive a tensão que parece não ter fim, entre uma certa modernidade e um imenso atraso social. 2017, ano que Belo Horizonte completou 120 anos, foi um ano difícil para o país e para a cidade. Tempos de perdas de direitos, de desmobilização e de acirramento sociais, de abusos autoritários e de intensificação da mercantilização da vida, de retrocessos nos valores democráticos, morais e culturais. Como é comum às comemorações, as falas sobre o seu aniversário, revelaram um grande afeto dos moradores pela cidade. A esperança é que esse afeto, elemento importante nas lutas sociais, se converta em um aliado às lutas por uma cidade mais igualitária, mais justa e plural.
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