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A perspetiva da farmácia comunitária em contexto de escassez de medicamentos
from Revista "O Hospital" | Nº 32
by APDH
EMA PAULINO Presidente da Associação Nacional de Farmácias
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A escassez e as ruturas de medicamentos são um problema global complexo, que cria dificuldades para as pessoas no acesso aos seus tratamentos, e aos profissionais de saúde na implementação dos seus planos terapêuticos.
As causas destas faltas são multidimensionais, no contexto de uma complexa cadeia de abastecimento global, cujos impactos foram tornados mais visíveis, e mesmo amplificados, pela pandemia de COVID-19 e o atual contexto geopolítico.
Na grande maioria dos casos, existem alternativas às indisponibilidades verificadas. A principal questão prende-se com o transtorno causado na vida das pessoas e dos próprios profissionais de saúde, que em alguns casos têm de repetidamente ver a mesma pessoa para dar resposta a uma necessidade que se mantém.
De acordo com um estudo realizado em 2019 nas farmácias comunitárias a mais de vinte mil pessoas, mais de 50% das pessoas experienciaram situações de escassez de medicamentos, cerca de 21,5% tiveram de consultar um médico para alterar a prescrição e 5,7% declaram a interrupção do tratamento devido à falta do medicamento. O impacto económico estimado da escassez relacionada com consultas médicas adicionais variou entre 2,1 e 4,4 milhões de euros para os utentes e 35,3 a 43,8 milhões de euros para o Serviço Nacional de Saúde1.
Os farmacêuticos, intervindo na etapa final do circuito, assumem um papel importante na gestão da procura de medicamentos em risco de escassez. E, deviam poder assumir ainda mais responsabilidades na garantia da continuidade das terapêuticas.
Foi neste sentido que a Agência Europeia do Medicamento publicou uma orientação para organizações de pessoas que vivem com doença e profissionais de saúde, com princípios-chave e exemplos de boas práticas para apoiá-los na prevenção e gestão da escassez de medicamentos humanos, na qual defende um alargamento das competências do farmacêutico, entre outras medidas2.
A rede de farmácias em Portugal possui, atualmente, uma média de 3,9 farmacêuticos que, através da sua competência técnico-científica, intervêm junto das pessoas aquando da falta ou rutura de determinado medicamento, procurando mitigar as consequências nos tratamentos em curso.
Contudo, ainda subsistem limitações legais, regulamentares e/ou tecnológicas que obstam à adoção de medidas mais eficazes que permitam responder às necessidades das pessoas e evitar deslocações desnecessárias aos serviços de saúde, provocadas pela inexistência das terapêuticas prescritas.
Quando existem alternativas dentro da mesma substância ativa, a prescrição por Denominação Comum Internacional (DCI) permite ao farmacêutico comunitário identificar e sugerir à pessoa um medicamento dentro do mesmo grupo homogéneo, não perdendo o direito à comparticipação. Noutras circunstâncias, podem existir alternativas terapêuticas para o mesmo fim, mas ser necessária uma nova prescrição.
A consolidação das competências dos farmacêuticos comunitários para lidar com as falhas no momento da dispensa, através da possibilidade de, por exemplo, alterar a forma farmacêutica, a dose ou o tamanho da embalagem prescrita em caso de indisponibilidade, em nada fere o princípio da prescrição, e deveria ser tornado possível através do atual sistema de dispensa das prescrições eletrónicas, devidamente justificado.
Outra medida passa por possibilitar a substituição terapêutica por um princípio ativo similar ao prescrito, em condições devidamente estabelecidas. Esta possibilidade tem sido implementada com sucesso noutros países, como o Reino Unido, a Austrália e a Nova Zelândia.
No Reino Unido, por exemplo, encontra-se implementado um mecanismo denominado Serious Shortage Protocol (SSP) para gerir e mitigar a escassez de medicamentos e dispositivos médicos em circunstâncias excecionais. Um SSP permite aos farmacêuticos comunitários dispensar um determinado medicamento ou dispositivo médico de acordo com um protocolo aprovado, com o consentimento da pessoa e sem necessidade de obter autorização prévia do prescritor. Os protocolos são desenvolvidos por médicos e farmacêuticos especialistas, e são ouvidas as instituições que representam as duas profissões, assim como sociedades médicas e associações de pessoas que vivem com doença relevantes para o protocolo em causa. A elaboração dos protocolos é feita em prazos muito curtos, para facilitar a emissão atempada dos SSPs para garantir o acesso das pessoas ao tratamento. Cada protocolo define claramente que ação pode ser tomada pelo farmacêutico comunitário, descrevendo as circunstâncias, pessoas a quem se dirige, período definido e região geográfica, se aplicável. Um SSP pode abranger a dispensa de uma quantidade alternativa, uma forma farmacêutica alternativa, uma dose diferente, um equivalente genérico ou uma alternativa terapêutica do medicamento prescrito. No caso de dispositivos médicos, pode ser dispensado um produto diferente.
Nestas circunstâncias, os farmacêuticos podem exercer a sua avaliação profissional para determinar se é apropriado aplicar o protocolo, sendo que se houver preocupações com base no histórico clínico ou circunstâncias individuais, as pessoas devem ser encaminhadas para o médico.
Mecanismos como o aqui descrito podem permitir ao farmacêutico expandir as situações a que consegue dar resposta, sem que a pessoa tenha de se deslocar novamente ao médico para a emissão de uma nova prescrição.
Neste sentido, as farmácias portuguesas reafirmam o seu compromisso em colaborar com os outros profissionais e instituições de saúde na procura de soluções para a mitigação dos impactos da escassez do medicamento, que protejam os cidadãos e o interesse público, reforçando a disponibilidade para uma intervenção profissional mais alargada neste âmbito.
1 Romano, S., Guerreiro, J. P., & Teixeira Rodrigues, A. (2022). Drug shortages in community pharmacies: Impact on patients and on the health system. Journal of the American Pharmacists Association, 62(3), 791-799.e2.
2 EMA/HMA (2022). Good practice guidance for patient and healthcare professional organisations on the prevention of shortages of medicines for human use.