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Julian Perelman e as mudanças necessárias no SNS
from Revista "O Hospital" | Nº 32
by APDH
Julian Perelman é professor Associado com Agregação, em Economia, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e conversou com a revista O Hospital sobre temas que estão na ordem do dia e que têm sido abordados em várias publicações e estudos sobre o setor da saúde, particularmente no último Relatório de Primavera.
A questão do futuro do serviço público, da falta dos profissionais no setor e a sentida fuga para o privado, assim como a baixa produtividade no Serviço Nacional de Saúde deram o mote para a conversa.
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No capítulo dedicado aos RH é referido no Relatório de Primavera que o aumento de profissionais de saúde, entre 2016 e 2022 é real, mas não se tem traduzido num aumento proporcional dos serviços prestados, aumentando em paralelo os custos dos mesmos. Alias, acrescenta ainda que “se a situação se deteriorou mais durante a pandemia, a tendência negativa já era observada anteriormente”.
É indispensável criar um corpo de profissionais, para o SNS, mais restrito do que o atual, mas plenamente dedicado ao serviço público, e altamente motivado. Este objetivo poderá ser conseguido através de uma indispensável gestão de proximidade, da parte dos gestores hospitalares e diretores de ACES, junto dos profissionais. Esta gestão de proximidade implica envolver os profissionais na definição da missão da instituição; reconhecimento do trabalho de forma financeira, através de remunerações mais atrativas e possibilidades de progressão; reconhecimento não financeiro, através de autonomia, flexibilidade e atenção aos interesses profissionais; e responsabilização, com possibilidade de penalização em caso de contributo insuficiente para a missão da instituição. O futuro do serviço público já está muito comprometido, e dificilmente poderá ser salvaguardado sem uma mudança radical na gestão dos recursos humanos.
A questão da baixa produtividade está relacionada com que fatores?
São precisos estudos para identificar estes fatores, pelo que a minha resposta apenas decorre do que é transmitido pelos profissionais do terreno. Podemos apontar para medidas tomadas ao longo dos últimos anos que, apesar de muito positivas, não foram geridas da melhor forma para garantir a continuidade das equipas e dos cuidados (passagem para as 35 horas, possibilidade de não realizar urgências ou de diminuir as horas de urgência para os médicos mais velhos). Podemos apontar, também, para as inúmeras saídas do SNS para o privado ou para o estrangeiro, de médicos experientes que foram substituídos por especialistas mais jovens, menos experientes e pouco enquadrados. De forma mais genérica, a falta de autonomia, responsabilização e reconhecimento dos gestores, assim como a desadequação dos orçamentos, tem levado gradualmente a uma falta de acompanhamento das equipas no terreno, a uma gestão do dia a dia com dificuldades em desenhar estratégias a mais longo prazo, e a uma desmotivação a todos os níveis do serviço. Isto era o quadro antes da pandemia – aliás a produtividade já estava a piorar antes de 2020 – sendo que a pandemia agravou esta situação de forma dramática.
A fuga de profissionais de saúde para o setor privado é também acentuada no Relatório. Qual o impacto que este fenómeno tem tido nos dois setores (publico e privado)?
Durante muitos anos, o setor privado não foi muito problemático para o SNS. Permitia ao SNS manter profissionais altamente qualificados, que completavam a sua remuneração através do trabalho em consultórios privados. Também o privado captava utentes que estavam dispostos a pagar cuidados de menor valor não disponíveis no público.
A situação se altera com a crise de 2009, com uma forte consolidação e crescimento do setor privado, concentrado em 3 ou 4 grandes grupos com uma importante capacidade de investimento. O setor privado ganha capacidade para atrair equipas em tempo completo, com condições de trabalho atrativas, e possibilidade de tratamentos mais diferenciados e complexos. Assim, o setor privado passa a ser um verdadeiro concorrente do SNS, que concorre por recursos humanos limitados. O SNS, perdendo a capacidade em atrair e manter equipas, vê-se obrigado a comprar serviços ao privado (às instituições ou às pessoas individualmente), por vezes a preços muito elevados.
O SNS está agora numa encruzilhada. Ou assume que está em concorrência com o privado, e faz a tal revolução na gestão dos recursos humanos para ser concorrencial
Julian Perelman é doutorado em Economia da Université catholique de Louvain.
Autor de mais de 60 publicações em revistas científicas indexadas, os seus principais interesses de investigação são as desigualdades em saúde e nos cuidados de saúde, o financiamento da saúde e as modalidades de pagamento dos prestadores, e a avaliação económica em saúde.
É vice-presidente da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde, foi coordenador da Estrutura de Missão para o Programa Orçamental da Saúde entre março 2018 e julho 2020.
- isto implica forte vontade política e aumento da despesa, pelo menos no curto prazo - ou assume que não poderá concorrer com o privado, a quem passa a comprar serviços, mudando radicalmente a estrutura do sistema de saúde. Isto implica negociar com os privados para que ofereçam todos os serviços, incluindo os mais complexos e mais caros, que ainda não fornece por não serem rentáveis. Exige uma forte capacidade de negociação e regulação por parte do Estado, além de também levar certamente a um aumento da despesa.
O Privado tem beneficiado com a incapacidade do Público e em que áreas? Quais as consequências para o futuro?
O privado tem beneficiado tradicionalmente nas áreas mais rentáveis, nas quais pode cobrar preços elevados para intervenções de menor complexidade, incluindo por vezes de pouco valor, como as consultas e as pequenas cirurgias (oferecendo principalmente tempos de espera inferiores ao do SNS). Ora vemos que neste momento o privado tem desenvolvido a sua atuação em áreas de maior complexidade, como por exemplo a oncologia ou as doenças cardiovasculares, embora ainda não tenha interesse em áreas particularmente caras e pouco rentáveis (cancros em fases mais avançados, doenças raras, traumas de maior gravidade).
As consequências foram elencadas na resposta à pergunta anterior.