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editorial

no exercício do mandato cultural Servos Ordenados está migrando para o meio digital. Essa declaração, sem sentido pouco tempo atrás, significa que a revista poderá ser lida e/ou baixada pelo usuário. E não estará mais disponível a edição em papel.

(2Tm 4.13), cujo advento resultou de uma disputa política entre os Ptolomeus do Egito e Eumenes, rei de Pérgamo. Soluções mundanas para assuntos mundanos.

Poderíamos adicionar à lista de recursos mundanos coisas corriqueiras como arroz, feijão, pizza e outros pratos. E por aí vai. Tomamos ônibus e andamos de metrô como todo mundo. Falamos ao telefone. Usamos em nossas igrejas bancos de madeira do mundo feitos por fabricantes não cristãos também para não cristãos.

Ao nos criar, o Senhor nos conferiu o mandato espiritual (nosso relacionamento com ele), o mandato social (relacionamento em sociedade) e o mandato cultural, que envolve o domínio da criação e o uso de seus recursos, sob Deus e para a sua glória. Começamos equivocados, fazendo um indecente avental de folhas. Mas veio o progresso e chegamos à invenção da roda, uma imbatível revolução tecnológica com efeitos perenes. Agora chegamos aos recursos digitais e aos livros e revistas virtuais.

O rolo de pergaminho ficou em uso até o surgimento Isso me lembra o que ouvi outro dia, a respeito do livro (aprox. 400 dC), o formato atual. Chamou-se códice (do latim codex, ou “livro”, do uso dos recursos digitais pelo “bloco de madeira”) e o texto era cristão, particularmente o uso da gravado em páginas de pergaminho Bíblia acessada em aplicativo no Ao nos criar, o Senhor ou madeira, depois encadernadas. smartphone. Segundo o depoente, nos conferiu o mandato Mais tarde o papel passou a ser isso equivale a trazer recursos espiritual, o mandato social usado. Em 1455, Johannes Gutenberg mundanos para a igreja, o que é e o mandato cultural, que desenvolveu a imprensa de tipos odioso e deve ser rejeitado. Mas envolve o domínio da móveis, outra enorme e histórica convém definir os termos. criação e o uso de seus revolução, continuando a corrida Sempre que a conversa vai por aí recursos, sob Deus e para a tecnológica iniciada milênios antes eu me lembro dos recursos mundanos sua glória. com as placas de pedra ou argila. de que dispomos. O primeiro a me Os livros feitos de papel e ocorrer é a própria língua portuguesa. Flor do Lácio ou Idioma de Camões, poderemos chamá-la encadernados foram sendo aperfeiçoados ao longo dos de muita coisa, menos de língua sagrada dos cristãos. É séculos, mas nada se aproximou da recente criação do uma língua mundana, para a qual traduzimos do hebraico eBook, o livro digital. Outro conceito. Mundano como as e do aramaico o Antigo Testamento, e do grego o Novo propostas anteriores, mas não no sentido de “maligno”. Testamento. Traduções essas que nos informam: as línguas Apenas um outro modo de fazer a mesma coisa, agora originais também não eram sagradas. Recursos mundanos. com recursos da criação antes desconhecidos.

Depois que Moisés desceu do Sinai com a lei gravada em tábuas de pedra, chegou o dia em que aquele recurso foi substituído por rolos de papiro, que existiam desde 2500 aC. Mais tarde (150 aC) vieram os rolos de pergaminho

É o ser humano no pleno exercício do mandato cultural.

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sumário Servos Ordenados Igreja Presbiteriana do Brasil Ano 12 – Nº 61 abril / maio / junho de 2019 ISSN 977-2316-5553-07 Uma publicação da

editorial No exercício do mandato cultural

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vida de pastor Pastores podem se aposentar? por samuel vieira

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teologia reformada Como o homem foi criado por joão calvino

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EDITORA CULTURA CRISTÃ

Rua Miguel Teles Júnior, 394 – Cambuci 01540-040 – São Paulo – SP – Brasil Fone (11) 3207-7099 Fax (11) 3209-1255 www.editoraculturacrista.com.br cep@cep.org.br Superintendente Haveraldo Ferreira Vargas Editor Cláudio Antônio Batista Marra Editor assistente Eduardo Assis Gonçalves Produtora Mariana de Paula dos Anjos Colaboraram nesta edição Revisão Brenda Borges Capa & Editoração Magno Paganelli Conselho de Educação Cristã e Publicações Clodoaldo Waldemar Furlan (Presidente) Domingos da Silva Dias (Vice-presidente) André Luiz Ramos (Secretário) Alexandre H. M. de Almeida, Anízio Alves Borges, José Romeu da Silva, Mauro Fernando Meister Conselho Editorial Antônio Coine Carlos Henrique Machado Cláudio Marra (Presidente) Filipe Fontes Heber Carlos de Campos Jr Marcos André Marques Misael Batista do Nascimento Tarcízio José de Freitas Carvalho

a igreja no mundo Os desafios da ideologia de gênero por donizeti ladeia

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evangelização O privilégio e a responsabilidade dos que pregam (Parte 1) por hermistem maia

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vida de pastor Quanto o pastor comete suicídio por valdeci dos santos

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liderança O que é liderança cristã por misael batista do nascimento

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vida em comunidade Lado a lado por edward welch

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identidade presbiteriana Qual é a nossa identidade, mesmo? por cláudio marra

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vida de pastor | samuel vieira

pastores podem se aposentar?

Aposentadoria pastoral não é algo fácil de discutir, por isso muitas denominações enfrentam problemas nessa área. A discussão assume um caráter pragmático e sacral, afinal, deve-se estabelecer um limite de idade para a ação pastoral? Até quando um pastor deve continuar na sua função? Quem estabelece o limite: a igreja ou o obreiro? Quais são as dificuldades práticas e o impacto da aposentadoria de um pastor na sua comunidade? Em sua última reunião, realizada em Águas de Lindoia em julho de 2018, o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil decidiu que a jubilação pastoral aos 70 anos não terá mais caráter compulsório, como até ali estabelecia a Constituição da Igreja. O impacto dessa decisão será conhecido imediatamente, já que pastores que

estavam para se jubilar agora podem postergar tal decisão. Recentemente planejei um encontro com alguns colegas da minha faixa etária, em torno de 60 anos, queria levantar algumas questões do tipo: 1. A terceira idade está chegando (chegou), qual deve ser nossa atitude? 2. Estamos nos preparando para esse momento: física, emocional, espiritual e financeiramente? 3. Como tem sido a experiência de envelhecer no ministério? 4. Como estamos chegando no ocaso de nossas atividades? 5. Como preparar a próxima geração e passar o bastão? A corrida de 4 x 100 sempre me pareceu interessante, e podemos compará3

Estamos nos preparando para esse momento: física, emocional, espiritual e financeiramente?

la com a transição de liderança, por várias razões: a. O atleta deve passar o bastão em movimento, não pode parar... b. Há um tempo determinado para se passar o bastão. Não pode ser antes da linha, nem depois, senão é desclassificado. c. O bastão não pode cair. Se isso acontece a corrida acaba. d. O atleta que vem em velocidade corre um determinado tempo com o atleta que estava parado, até que tenham a mesma velocidade.


a igreja no mundo Na discussão, queria avaliar como poderemos ser mais objetivos e efetivos na medida em que nos aproximamos da aposentadoria, com mais experiência e menos energia. Já tinha até ideia do local e do tema do encontro: “Proibido para menores de 50 anos”. Já havia conversado com alguns colegas que acharam interessante a proposta, até que convidei um querido colega, por ser ele meu amigo há longo tempo, e pela sua grande formação em psicologia, área na qual ele concluiu seu doutorado. A princípio ele se mostrou receptivo, mas ao retornar para sua casa, fez uma belíssima explanação questionando a agenda proposta. Acho que suas ponderações não devem ser desprezadas e não me senti aborrecido em nenhum momento, pelo contrário, suas teses descritas com cuidado, me pareceram muito razoáveis, embora não tenham sido plenamente resolvidas em minha mente. Leia o seu texto e avalie sua posição: Sobre seu convite para a gente pensar a aposentadoria. Desculpe, amigo, não posso ir. Estive hoje “conversando” com Moisés e, ele disse que com os seus 80 anos está começando o seu ministério e não tinha tempo para conversar com pessoas que estavam desistindo dos desafios para pensar em aposentadoria. Fiquei meio envergonhado, quando fui “conversar” com Calebe, pedindo o conselho dele. Até pensei em parar os afazeres para gastar tempo com esse assunto sobre conforto e descanso no início da terceira idade. Mas, recebi uma mensagem... resposta de Calebe dizendo que também não poderia estar presente,

pois, embora com 85 anos, estaria envolvido com a geração mais jovem no processo de tomada da terra prometida. Foi um tremendo impacto na minha vida com 57 anos, e ele com 85 dizendo que estava pronto para entrar na guerra lutar e sair dela com a força do Senhor. Desculpe, meu amigo, fiquei interessado em gastar tempo com o assunto, pois acho importante investir num plano de aposentadoria possível, e estou fazendo isso, bem como construir algum imóvel para a família, o que também tenho feito. Mas, “me encontrei” com o apóstolo Paulo e ele disse que também não pode ir... embora quisesse participar da doce comunhão de irmãos experientes no ministério, perdeu tudo por amor a Cristo, está preso e pobre, mas animadíssimo com o ministério na sua velhice, e só não continuará o ministério, pois infelizmente, descobriu que está para ser morto pelo império. Já sabe que não terá aposentadoria... Desculpe, amigo, penso que é melhor fazer como você tem feito, servindo ao Senhor, escrevendo seus livros, vivendo a igreja e impactando uma nova geração de líderes na plantação de novas igrejas.

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Nisso sim, estou contigo, vibro pelo privilégio de não me ter agarrado a nenhuma estrutura como se fosse minha até o momento. Quero gastar meu tempo ajudando na pregação do evangelho, fazendo discípulos maduros e capacitados para exercerem liderança de influência na terra, e se o Senhor se agradar, como você mesmo disse, espero deixar, com outros irmãos, algumas igrejas plantadas para a glória do Senhor. Permita-me testemunhar: tem sido privilégio imenso formar líderes nos seminários, participar da renovação de sonhos nos cursos de mestrado nos quais ministro, pastorear pastores por meio do Life on Life... Poderia até achar que não precisaria fazer mais nada... mas quero viver o discipulado, como você disse... dando passos a mais, batizando pessoas e plantando igrejas para futuros pastores cuidarem... sou imensamente grato ao Senhor pelo chamado, diante do qual em nenhum dia sequer pensei em desistir... E você, o que pensa sobre isso? Qual sua visão? Bem, queria ponderar um pouco a esse respeito a partir das Escrituras, e depois trazer alguns insights práticos. Eu me sentiria muito feliz se pudesse


a igreja no mundo receber feedbacks, favoráveis ou não, aos meus arrazoados.

Tempo de ação sacerdotal no Antigo Testamento Estudar a Bíblia é a única forma que temos para nos livrar de pressões socioculturais e extrairmos os princípios bíblicos. Será que a Bíblia diz alguma coisa sobre esse tema? Embora ela não fale das funções legais nem fale de aposentadoria, os levitas tinham seu trabalho no tabernáculo claramente regulamentado por Deus. “Ordenou a Moisés: E falou o Senhor a Moisés, dizendo: Este é o ofício dos levitas: da idade de vinte e cinco anos para cima entrarão, para fazerem o serviço no ministério da tenda da congregação; mas desde a idade de cinquenta anos sairão do serviço deste ministério, e nunca mais servirão; porém, com os seus irmãos servirão na tenda da congregação, para terem cuidado da guarda; mas o ministério não exercerão; assim farás com os levitas quanto aos seus deveres” (Nm 8.23-26) . Os levitas se aposentavam, mas não se retiravam de todo o serviço. Eles ainda podiam voluntariamente “ministrar aos seus irmãos na tenda de reunião, cuidando da obrigação”. Eles provavelmente serviam de conselheiros e ajudavam a cuidar de parte do trabalho mais leve incluído na obrigação dos levitas, mas eram poupados do trabalho mais pesado, que incluía montar e desmontar o tabernáculo, ajudar eventualmente nos sacrifícios, cuidar do templo e de sua manutenção. Ezequiel começou a ter suas visões com cerca de 30 anos (Ez 1.1), idade em que os sacerdotes começavam

suas atividades. Quando teve sua última visão, tinha 50 anos, a idade em que um sacerdote se aposentava. Isso é muito significativo. A Bíblia não declara especificamente a idade para a aposentadoria dos sacerdotes. Há uma inferência que o mesmo critério aplicado ao levita era o do sacerdote. Entretanto, a função do sumo sacerdote era vitalícia (Nm 8.24-25). Arão tinha 83 anos de idade quando compareceu com Moisés perante Faraó (Êx 7.7) e tinha 123 anos quando morreu. Durante todo esse tempo ele serviu, sem se retirar do cargo. (Nm 20.28). Em Números observamos que o homicida, que fosse para as cidades refúgio, só poderia sair de lá quando morresse o sumo sacerdote (Nm 35.25).

Um pastor se aposenta? No sentido estrito do termo, pastor não se aposenta. Ele jubila. A palavra latina emeritus está no dicionário Aurélio e significa simplesmente jubilado. Não se trata de alguém que encerrou as suas atividades, que terminou seu mandato. Não há como se aposentar do ministério, porque aposentar significa parar ou não trabalhar mais. O pastor continua sendo pastor. Numa conversa recente com minha esposa, eu disse que nunca deixaria de ser pastor porque pastorado para mim não é profissão, é chamado. Portanto, posso me afastar das funções eclesiásticas e administrativas, e gostaria de fazer isto aos 65 anos, mas em hipótese alguma cogito me afastar da ação pastoral. Interiormente, creio que serei melhor pastor afastandome das exigências burocráticas e administrativas que desgastam tanto 5

e ocupam tanto minha agenda, e me aplicando mais ao dom pastoral.

Num sentido estrito, o mesmo se aplica aos cristãos. Um crente deveria se aposentar? Todos fazemos planos acerca do futuro, a possibilidade de ter tempo para gastar com aquilo que gostamos, sem bater o ponto, sem ter de estar pensando nas atividades diárias, maçantes e rotineiras. Embora não seja pecado nos prepararmos para a aposentadoria, nossa vida não pode refletir apenas o desejo de bem-estar e conforto, mas de missão, vida de compromisso com o reino de Deus. O salmista afirma: “Louvarei ao Senhor por toda a minha vida; cantarei louvores ao meu Deus enquanto eu viver” (Sl 146.2). Dessa forma, um discípulo de Cristo nunca deve abandonar a obra, mas deve morrer glorificando a Deus em sua vida e compromisso com o reino de Deus, afinal, nossa vida deve ser vivida para a sua obra. Enquanto vivermos devemos prestar-lhe nosso louvor. Nunca devemos pensar que já trabalhamos o suficiente para Deus e agora devemos parar.

Qual a vontade de Deus para a aposentadoria? Devemos seguir aquilo que Deus pede de nós. Uma coisa é nos aposentarmos da vida cotidiana, outra é nos aposentarmos de Deus. O site Got questions traz algumas diretrizes interessantes sobre qual deve ser o ponto de vista cristão a respeito da aposentadoria. 1. Talvez nos aposentemos do ministério “tempo integral”, mas nunca


púlpito devemos nos aposentar de servir a Deus, mesmo que a forma na qual o servimos mude. Há um exemplo das pessoas bem idosas em Lucas 2.2538 (Simeão e Ana) que continuaram a servir ao Senhor fielmente na sua velhice. Essa passagem se refere a uma viúva idosa que ministra ao Senhor no templo diariamente com jejuns e orações. Tito 2 afirma que os homens e mulheres mais velhos, através de seu exemplo, devem ensinar aos mais jovens a como se comportarem. 2. Os anos de aposentadoria não devem ser vividos apenas para divertimento. Paulo diz que uma viúva que vive para prazeres já está morta, apesar de ainda viver (1Tm 5.6). Contrários à instrução bíblica, muitos pensam na aposentadoria como “busca de divertimento”. Ora, os aposentados podem desfrutar do lazer e atividades sociais ou outras atividades, no entanto, esse não deve ser o foco principal de sua vida, qualquer que seja sua idade. 3. Na segunda carta aos Coríntios 12.14, Paulo afirma que os pais devem economizar para os seus filhos. De longe, a coisa mais importante que deve ser “guardada” é a herança espiritual que pode ser passada aos filhos, netos e bisnetos. James Dobson, no seu livro Straight Talk to Men and Their Wives, fala do seu avô que, durante os seus anos de velhice, passava uma hora por dia antes do almoço orando por seus descendentes, tanto os que já viviam quanto os que ainda iam nascer. Um dia ele anunciou à sua família que Deus o informara de que todos os seus descendentes até a quarta geração iriam se tornariam cristãos. James Dobson é dessa quarta geração e realmente todos os que foram das gerações anteriores não só se

converteram, mas foram ministros ou se casaram com ministros da denominação da qual o seu avô tinha sido parte. James Dobson foi o primeiro a não entrar no ministério. Em resumo, quando alguém chega à idade de aposentadoria (qualquer que seja), sua vocação pode mudar, mas o trabalho principal de sua vida não muda. E geralmente são esses “anciãos” que, depois de andarem com Deus por toda a sua vida, podem retratar as verdades da Palavra de Deus ao compartilharem como Deus tem trabalhado neles. A oração do salmista deve ser nossa oração à medida que envelhecemos (Sl 71.18): “Não me desampares, pois, ó Deus, até à minha velhice e às cãs; até que eu tenha declarado à presente geração a tua força e às vindouras o teu poder”. O cristão não pode se aposentar do serviço cristão; ele apenas muda o endereço do seu trabalho.

Repensando a forma de fazer ministério Refletindo sobre esse tema, tenho considerado uma “agenda positiva”, para pastores aposentados ou em processo de se aposentar:

Primeiro, evite transições traumáticas

Muitos pastores fazem um belíssimo trabalho durante décadas em suas igrejas, e saem amargurados, ressentidos do tratamento recebido, simplesmente por não entenderem os sinais de desgaste e não compreenderem a hora de sair. Todo pastor deveria sair com honra de seu ministério, principalmente quando 6

exerceu longa, fiel e produtivamente seu pastoreio. A vida tem ciclos, e não é fácil ser otimista em cada uma dessas etapas. Imagine um funcionário que serviu a mesma empresa por anos e precisa abandonar sua mesa; ou um idoso que precisa morar com seus filhos e deixa a sua casa porque a idade não lhe permite mais morar sozinho, deixando seus velhos móveis que faziam sentido para ele mas não podem ser levados aonde vai morar. Creio que nessas horas, por causa da dificuldade em entender processos, podemos perder a alegria de tudo que fizemos e envelhecer sem celebração na alma. Há um grande risco da amargura e ressentimento dominarem o coração de um velho pastor. Cada um de nós conhece histórias positivas e negativas de pastores que sofreram ou lidaram bem com essa transição.

Segundo, prepare-se financei-ramente para esse tempo

Vivemos num país com um sistema de aposentadoria muito cruel. Durante 38 anos eu contribuí para o INSS, pensando na minha aposentadoria. A maioria dos pastores não pensa em nada disso, sempre dando desculpas de ganhar pouco e responsabilizando a igreja e a missão. Desculpe, mas isso é responsabilidade sua. Você tem de planejar. Não arranje bodes expiatórios. Seja proativo. Infelizmente, depois de 38 anos, vejo que o que recebo de aposentadoria será insuficiente para minhas demandas. Felizmente, tenho outros investimentos que me dão suporte. Então, você que ainda tem tempo, planeje sua vida. Conheço bons profissionais que tratam disso


púlpito e boas empresas nessa área. Fale comigo e eu lhe encaminho contato de pessoas sérias e cristãs para você fazer seu planejamento financeiro. Quanto mais cedo começar, menor será o investimento e melhor será sua aposentadoria.

Terceiro, prepare-se emocionalmente

Não é fácil abrir mão do salário, mas pior ainda é abrir mão do poder. Pastores são líderes, as pessoas nos ouvem, somos “presidentes” do conselho local e de uma igreja, as pessoas nos respeitam pelo cargo. De repente, a liderança não é mais nossa. O novo pastor que chega tem outra visão, e muda tudo o que você planejou, e ninguém quer ouvir sua opinião e, mais ameaçador ainda, todos estão muito felizes, obrigado! Tenho um bom e confortável escritório onde reúno minha equipe, dou as diretrizes, lidero a igreja. Alguns dias atrás olhei para as estantes com aquele tanto de livro e me perguntei como será tirar todos eles da prateleira? Se não nos prepararmos sofreremos demais. Se nos preparamos, sofreremos... menos! Seja como for, não envelheça aborrecido e ranzinza. Não seja um velho pastor chato, criticando a juventude, achando que seu tempo é que era bom e que você era o melhor pastor do mundo. Você sabe que não era... Sua igreja sabe que você não era... Não saia chutando o balde, acusando e brigando com todos. Saia com honra! A igreja provavelmente vai lhe dar uma placa de reconhecimento, uma sala com seu nome, e, se for muito generosa, um complemento salarial ou um plano de saúde... Sua denominação? Fará um

culto de jubilação, lhe dará uma placa, publicará seu nome numa ata e num jornal que ninguém lerá... ria disso! Não transforme isso num pesadelo. Seja sensato...

Um exemplo simples Quero encerrar este artigo falando do meu sogro, Rev. Samuel José de Paula, que exerceu fielmente o ministério pastoral como pastor efetivo da IPB, por 37 anos. Quando completou 65 anos, aposentou-se e interrompeu suas atividades ministeriais para dar apoio aos sogros. Ao chegar em Piracicaba, SP, procurou o pastor da igreja e disse: “Estou me mudando para cá, minha esposa é pianista e regente de coral, queremos servir à igreja, mas não queremos vínculo oficial. Se o Senhor precisar de nós, queremos servir como pessoas que amam a Deus. O pastor local, sabiamente, pediu que ele assumisse o ministério de visitação, o trabalho masculino, a reunião de oração, e eventualmente aulas na Escola Dominical. Um dia, vendo seu amor pela obra, o Conselho, com amor e sensibilidade, decidiu dar-lhe um salário, mas ele recusou: “Não quero vínculos, quero estar livre para visitar meus filhos e sair quando quiser”. Ainda assim, o Conselho resolveu conceder, vitaliciamente, sem qualquer contrapartida oficial, um salário mínimo mensal, que complementava a sua pequena aposentadoria no INSS. Quando já estava com 81 anos, continuava exercendo fielmente o ministério, nos termos que ele mesmo estabelecera. Um dia, foi visitar um casal da igreja que estava ausente, aconselhou e ouviu algumas críticas sobre a comunidade e, depois meu 7

sogro os encorajou a voltarem à comunhão da igreja. No dia seguinte, depois de uma visita médica de rotina, sofreu um AVC hemorrágico, entrou em coma e uma semana depois morreu. Assim, ele produziu fruto, até o último dia de sua vida. O casal visitado por último, comovido, disse posteriormente: “Se o Rev. Samuel foi enviado por Deus para realizar seu último pastoral em nossa casa, é porque Deus estava certamente preocupado com nossa vida”, e assim, os dois retornaram aos seus compromissos como membros daquela igreja local. Sua aposentadoria não significou apatia ou reclusão. Significou mudança de atividades e formas diferentes de realizar seu ministério. Nunca se afastou do presbitério. Ele cuidava da secretaria de ação pastoral e em todos os aniversários dos pastores e esposas de pastores do presbitério, enviava uma carta pessoal de parabéns e encorajamento, e muitas vezes os visitava para orar pelas suas vidas, famílias e ministério.

Post Scriptum Uma advertência bíblica parece ser apropriada. Paulo afirmou: “(...) esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado” (1 Co 9.27). Não dá para chegar no final do segundo tempo, desqualificado, depois de tanto preparo, investimento e sacrifício. Não estamos numa corrida de 100 metros rasos, mas numa maratona. “Aquele que perseverar até o fim, será salvo.” A corrida ainda não acabou! Precisamos avançar olhando firmemente para o Autor e Consumador da nossa fé.


teologia reformada | joão calvino

COMO O HOMEM FOI CRIADO: AS FACULDADES DE SUA ALMA, A IMAGEM DE DEUS, O LIVRE-ARBÍTRIO E A INTEGRIDADE ORIGINAL DE NATUREZA HUMANA As Institutas – Capítulo XV.7–8

7. ENTENDIMENTO E VONTADE: OS CENTROS DAS FACULDADES DA ALMA Somos obrigados a nos afastar um pouco desta maneira de ensinar, uma vez que os filósofos, a quem era desconhecida a corrupção de nossa natureza, que proveio da penalidade da queda, erroneamente confundem dois estados do homem por demais diversos. A divisão que usaremos será considerar duas partes na alma: o entendimento e a vontade. Entretanto, a função do entendimento é discernir entre as coisas que lhe são propostas, para ver qual há de ser aprovada e qual há de ser rejeitada; a função

da vontade, entretanto, é escolher e seguir o que o entendimento ditar como bom, rejeitar e evitar o que ele houver desaprovado. As sutilezas de Aristóteles em nada nos delongam aqui, a saber, de que a mente não tem nenhum movimento de si própria; ao contrário, é a escolha que a move, à qual ele designa de entendimento apetitivo. Para que não nos enredilhemos em questões supérfluas, seja-nos bastante que o entendimento é como que o guia e piloto da alma, que a vontade sempre atenta para seu arbítrio e em seus desejos espera seu juízo. Por isso, de fato ensinou o próprio Aristóteles em 8

As sutilezas de Aristóteles em nada nos delongam aqui, a saber, de que a mente não tem nenhum movimento de si própria; ao contrário, é a escolha que a move, à qual ele designa de entendimento apetitivo. outro lugar: a aversão e a busca do apetite são algo semelhante, que na mente é a afirmação ou a negação. Com efeito se verá em outro lugar quão firme, então, é o governo do entendimento em dirigir a vontade. Aqui desejamos apenas salientar que na alma não se pode achar nenhum poder que não se refira convenientemente a um ou outro destes dois membros. E, desta maneira, incluímos sob o entendimento a sensibilidade, o que outros assim distinguem, dizendo


teologia reformada que a sensibilidade se inclina para o prazer; em contraposição de que o entendimento segue o bem. Daí resulta que o apetite da sensibilidade se converte em concupiscência e lascívia, a inclinação do entendimento se converte em vontade. Além disso, em lugar do termo apetite, que esses preferem, emprego a palavra vontade, que é mais usada.

8. LIVRE-ARBÍTRIO E RESPONSABILIDADE DE ADÃO Portanto, Deus proveu a alma do homem com a mente, mediante a qual pudesse distinguir o bem do mal, o justo do injusto, e, assistindo-a a luz da razão, percebesse o que se deve seguir ou evitar. Razão por que os filósofos chamaram a esta parte diretiva to hegemonikon (o dirigente). A esta mente Deus associa a vontade, em cuja alçada está a escolha. Nestes preclaros dotes avantajou-se a primeira condição do homem, de sorte que a razão, a inteligência, a prudência, o julgamento não só lhes bastaram para a direção da vida terrena, mas ainda por meio destes elementos, os homens pudessem transcender até Deus e à felicidade eterna. Então proveu que se acrescentasse a escolha, que dirigisse os apetites e regulasse a todos os movimentos orgânicos, e assim a vontade fosse inteiramente consentânea à ação moderadora da razão. Nesta integridade, o homem usufruía de livrearbítrio, mercê do qual, caso quisesse, poderia alcançar a vida eterna. Ora, está fora de propósito introduzir aqui a questão da predestinação secreta de Deus, uma vez que não está a tratar-se do que aconteceu ou não pôde acontecer, mas, ao contrário, de qual foi a natureza do homem.

Portanto, Adão podia manter-se, se o quisesse, visto que não caiu senão de sua própria vontade. Entretanto, já que sua perseverança era flexível, por isso veio tão facilmente a cair. Contudo, a escolha do bem e do mal lhe era livre. Não só isso, mas ainda suma retidão havia em sua mente e em sua vontade, e todas as partes orgânicas estavam adequadamente ajustadas à sua obediência, até que, perdendo-se a si próprio, corrompeu todo o bem que nele havia. Daqui a escuridão tão ingente lançada diante dos filósofos, visto que na ruína procuravam um edifício estruturado e na desarticulação desconexa, junturas ajustadas. Sustentavam este princípio: que o homem não havia de ser um animal racional, a não ser que lhe assistisse livre escolha do bem e do mal. Também lhes vinha à mente que, de outra sorte, a não ser que o homem dispusesse a vida, segundo seu próprio entender, a distinção entre virtudes e vícios estaria anulada. Até aqui, sem dúvida estaria tudo bem arrazoado, se nenhuma mudança tivesse havido no homem.Uma vez que esta mudança lhes foi ignorada, não surpreende que misturem o céu à terra! Mas os que professam ser cristãos, e ainda buscam o livre arbítrio no homem perdido e imerso em morte espiritual, corrigindo a doutrina da Palavra de Deus com os ensinos dos filósofos, estes se desviam totalmente do caminho e não estão nem no céu nem na terra, como se verá mais extensamente em outro lugar. Agora, importa levar em conta apenas isto: que em sua condição original o homem foi totalmente diferente de toda sua posteridade, a qual, derivando a origem do corrupto, 9

dele contraiu mácula hereditária. Ora, todas as partes da alma, uma a uma, lhe estavam conformadas à retidão, e firme se estabelecia a sanidade de sua mente, e sua vontade era livre para escolher o bem. Se alguém objeta, dizendo que sua vontade fora posta como que em um resvaladouro, porquanto essa sua faculdade de escolha era fraca, para remover suficientemente toda escusa valeu-lhe aquela condição original, pois não era razoável ser Deus constringido por esta lei, que fizesse um homem que em absoluto, ou não pudesse, ou não quisesse pecar. Uma natureza desse gênero com toda certeza teria sido mais excelente. Entretanto, vai além de iníquo argumentar categoricamente com Deus, como se estivesse na obrigação de conferir isso ao homem, uma vez que estava em sua vontade dar tão pouquinho quanto quisesse.No entanto, por que não quis sustentá-lo com o poder de perseverança, isso está oculto em seu conselho secreto. A nós, realmente nos cabe saber com sobriedade. Com efeito, Adão recebera o poder, se quisesse; não teve, entretanto, o querer, por meio do qual pudesse, porque a perseverança acompanharia este querer. Todavia, não tem escusas quem recebeu tanto que, por seu próprio arbítrio, a si engendrasse a ruína. Aliás, nenhuma necessidade fora imposta a Deus para que não lhe outorgasse uma vontade medial e até passível de cair, para que da queda daquele derivasse matéria para sua glória. Na próxima edição iniciaremos o Capítulo XVI – Deus, por seu poder, sustenta e preserva o mundo por ele criado, e por sua providência rege cada uma de suas partes.


a igreja no mundo | donizeti ladeia

os desafios da ideologia de gênero Escolha de gênero, uma crise existencial pós-moderna

1. Escolha de Gênero, uma crise existencial pós-moderna A chamada “ideologia de gênero” consiste na ideia de que os seres humanos nascem “iguais”, e quanto ao sexo “masculino” ou “feminino” o que temos é apenas um produto históricocultural desenvolvido obscuramente. Os efeitos da ideologia podem ser vistos em reportagens que contam histórias como a do milionário britânico Charles Kane, de 50 anos, que fez cirurgia para mudar de sexo, ou a do homem de negócios, divorciado e pai de dois filhos, mudou de sexo em 1997 e passou a se chamar Samantha Kane, segundo o “Daily Mail”. Mas, em 2004, depois de sete anos vivendo como mulher, Sam descobriu que tinha cometido um “terrível engano”, abalado pelo fim de um casamento e pelo afastamento dos filhos. Ele concluiu que havia enjoado da vida que levava como mulher e que, no fundo, queria continuar sendo homem.1 Soma-se a isso depoimentos como o do jovem palestrante Robert Diego que nasceu homem, mas sempre se sentiu uma mulher. Depois de muita reflexão, decidiu se tornar uma mulher transexual. Ele diz: “A mudança de sexo fiz com 24 anos de idade, depois que eu já havia compreendido muito bem o mundo da travesti e o mundo da transexual”. No

entanto, ele se arrependeu e aconselha: “Tomar a decisão de amputar um membro para poder se encontrar enquanto indivíduo é perigoso, porque você pode se encontrar como indivíduo, depois, em falta”.2 Aumenta o número de estudos e instituições interessados em incluir pessoas que assumiram sua identidade de gênero. Empresas como Carrefour, Microsoft, Google, Nike, Absolut, entre outras.3 Com isso, vemos uma forte propaganda que mostra que a insatisfação com o corpo (sexo biológico) deve ser resolvida com a cirurgia de mudança de sexo (algo bem típico de um mundo tecnológico, mas ao mesmo tempo perdido em suas crises existenciais). A sensação que temos é que estamos em meio a placas tectônicas que se movimentam para formação de uma nova faixa de terra, criando o que parece ser num novo continente. Os que estranham esse novo cenário são chamados de intolerantes, discriminadores, fundamentalistas. Já, os que aceitam, estão no campo de tolerantes, pessoas da paz e mente aberta. No pensamento pós-moderno a “verdade para você não é para mim” e isso tem se materializado cada vez mais em “meu corpo, minhas 10

[...] depois de sete anos vivendo como mulher, ele descobriu que tinha cometido um “terrível engano”, abalado pelo fim de um casamento e pelo afastamento dos filhos. regras” o que tem levado pessoas a tomarem atitudes radicais. No embalo da ideologia de gênero, temos visto pessoas tomando caminhos assustadores: cirurgias, remédios de propriedades hormonais e tantas outras ações que nos fazem perguntar: onde isso vai parar? Em sociologia chamamos determinados momentos históricos de ponto de convergência. O que de maneira comum pode ser chamado de divisor de águas. No caso desse nosso pequeno trabalho, chamamos a atenção para a vida humana e sexualidade de uma nova ortodoxia moderna, creio que uma nova forma, um ponto de convergência. Trata-se de uma revolução que avança e atinge as áreas da sexualidade, e que foi cunhada de ideologia de gênero ou transgenerismo. Existe um movimento que se fortalece cada vez mais, tentando trazer essa ideologia para normatização. Como por exemplo o artigo apresentando pela


a igreja no mundo revista americana Times: A Gravidez do meu Irmão e a Criação de Uma Nova Família Americana.4 Esse artigo mostra a cena impactante de um homem amamentando uma criança. Trata-se na verdade de uma moça que não aceitou o seu “gênero” biológico e resolveu assumir uma identidade masculina, mas que depois de passar pela transformação hormonal ainda assim resolveu manter as mamas, e mais tarde, aos 30 anos, conseguiu engravidar. A cena espanta por mostrar um homem de barba e calvo, com o corpo cheio de pêlos, dando de mamar para o seu filho. Na verdade, essa moça, quando mais jovem, teve no lar uma experiência triste de ver o seu pai se separar de sua mãe, depois dele perceber-se como homossexual. Ela, motivada pela homossexualidade do pai, achou pouco ser homossexual e percebeuse como “trans”. A reportagem tinha de fato um fundo de apresentação de uma nova concepção de família por um olhar propagandístico. Uma mulher (biologicamente) se tornando um homem (de forma medicamentosa) dando de mamar ao seu filho, ela casada com um homem, que se vê como mulher. Confuso? Pois bem, é assim que podemos resumir o momento atual: confuso. Essa revolução de uma nova moral secular tem um veículo propagandístico. Seus representantes estão na academia, nas campanhas publicitárias, nos filmes, nas séries e nas corporações privadas. Sua pregação constante é chamada “ideologia de gênero”; que consiste na ideia de que os seres humanos nascem “iguais”. E quanto ao sexo “masculino” ou “feminino”, pensam que o que temos é apenas um produto histórico-cultural desenvolvido obscuramente pelos interesses de quem quer manter uma moralidade sexual, o que para esses

ideólogos não passa de mera construção social, muitas vezes direcionada pelos poderosos que estão na política e na religião. Essa forma de apresentar um novo conceito sobre a sexualidade traz consigo a conclusão de que moralidade não qualifica a verdade. O que temos aqui consiste meramente em sentimentos pessoais e preferencias.5 Na verdade, devemos pensar que pessoas que passam pela disforia6 de gênero precisam de esclarecimento para suas mentes – mesmo que isso para alguns pareça ser tão simples. Podemos até dizer que existem problemas psicológicos dessa ordem e sabemos que o principal fator é o estado de iniquidade dos seres humanos que se encontram sob os efeitos da queda. A igreja, portanto, deve ter um plano de ação e de ajuda para enfrentar os sofismas de nossa época. Devemos estabelecer os conceitos claros que originaram isso, e perceber que os que aceitam e abraçam a ideologia de gênero são produtos de uma mentalidade pós-moderna.

2. Ideologia de Gênero e Fundamentos Pós-Modernos As ideologias movem o mundo e o movimento ideológico de generismo tem base pós-moderna. 7 Nancy Pearcey nos dá uma excelente luz sobre isso ao nos mostrar que esses efeitos que atingem a sexualidade atual são produto da evolução do pensamento – não da evolução biológica, mas da evolução cultural.8 Suas raízes estão no pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, um filósofo do século 19 que ensinou uma forma de evolução panteísta. Quase um século antes de Darwin, Hegel já estava ensinando as pessoas a interpretarem a História por 11

meio de uma lente evolutiva. Nietzsche chegou a dizer: “sem Hegel, não teria havido Darwin”. Os seguidores de Hegel abandonaram seu panteísmo e secularizaram sua filosofia, mas mantiveram seu evolucionismo ou historicismo (Eles não pareciam notar que ele contem uma autocontradição fatal: diz que não há verdades universais – o que é uma reivindicação à verdade universal.) Observe que esse movimento tem como base os resultados do pensamento iluminista dos séculos 18 e 19, algo como a filosofia pessimista de Nietzsche que desenvolveu a ideia de um homem autônomo, absolutamente autônomo (Super-homem), liberado dos vínculos e de coerções impostas pela moral, ou seja, pela religião. Para ele religião é uma invenção dos mais fracos para se defenderem da prepotência dos mais fortes. É querer que todos se visualizem no miserável. Uma forma de autodefesa dos fortes super-homens.9 Outra forma de ver a autonomia é a compreensão de família dos materialistas Marx e Engels: a monogamia não aparece na História, portanto, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história. Para Marx e Engels o primeiro antagonismo de classes que apareceu na História coincide com o antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino.10 Mais adiante no existencialismo de Sartre o seu pessimismo relatava


a igreja no mundo como tudo estava perdido e sem destino, cada homem deveria fazer o seu próprio futuro, por meio da sua livre existência e vontade. Para ele cada homem deve inventar o seu caminho.11 E, por fim, podemos dizer que a ideia central do conceito de gênero nasceu com a escritora francesa Simone de Beauvoir. Essa autora, uma das mais proeminentes feministas da História, foi a precursora do que ficou conhecido como “Segunda Onda” do feminismo. Talvez o ponto mais importante da principal obra de Beauvoir, O Segundo Sexo (1949),12 possa ser resumido com sua afirmação de que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher. Com isso, ela contesta o pensamento determinista do final do século anterior que usava a teologia para explicar a inferiorização do sexo feminino e as desigualdades sociais entre os gêneros. Para esse desenvolvimento da filósofa, o “ser mulher” é uma construção social e cultural, para ampliar isso para o homem foi um pulinho, e dessa forma, hoje, na consciência de autonomia e liberdade a opção de escolher ser “’homem” e “mulher” faz parte da opção do ideal de liberdade. Tudo o que vimos é, portanto, um desenvolvimento da mentalidade moderna já identificado por Francis Schaeffer ao ilustrar pela metáfora dos dois andares: lembre-se de que no andar debaixo temos a ciência empírica com a verdade testada e verificável. Nesse andar temos o que de fato todos podem ter como aceitável independentemente de suas crenças aceitáveis. Já no andar de cima reina a moralidade e a teologia, que devem ser compreendidas como privativas, subjetivas e relativas. Ou seja, uma coisa é o fato, comprovado e verdadeiro, outra coisa é o valor.

Dessa forma, o que pode ser verdade para alguns não precisa ser verdade para todos. Dentro dessa linha, depois do desenvolvimento humano, o que temos é tão somente a questão daquilo que podemos discutir no campo da verdade para todos, comprovada pela ciência e verdade para aquele que se desloca no campo da escolha moral.13 Nancy Pearcey diz: “A chave para entender todas as questões controversas de nossos dias é que o conceito de ser humano também foi fragmentado numa história superior e inferior. O pensamento secular assume hoje uma divisão corpo/pessoa, com o corpo definido no âmbito do “fato” pela ciência empírica (história inferior) e a pessoa definida no âmbito dos “valores” como a base para os direitos (história superior). Esse dualismo criou uma visão fraturada e fragmentada do ser humano, na qual o corpo é tratado como separado do eu autêntico”.14 Para eles a mente define o que o corpo é. E não o corpo que define o pensamento. Há dois entendimentos muito diferentes sobre o que é gênero e como ele é determinado pelos que militam pela ideologia. Dois polos: sexo biológico, sexo de nascimento ou sexo nativo: todos esses termos se referem às características físicas ou fisiológicas que nos ajudam a diferenciar o que é masculino e o feminino: cromossomos, hormônios, gônadas, genitais e características sexuais secundárias – por exemplo, a forma do corpo, tom de voz e distribuição de cabelo. O sexo biológico é muitas vezes referido simplesmente como “sexo”. A identidade de gênero refere-se ao modo como os indivíduos se percebem e desejam se nomear. Quando a identidade de gênero subjetiva de uma pessoa se alinha com seu sexo biológico objetivo, que é o caso da 12

maioria das pessoas, elas são algumas vezes referidas como cisgênero (cis – deste lado de). Quando há um conflito, são comumente referidos como transgênero (trans = do outro lado). Nesse último caso se enquadra a maioria daqueles que estão em conflito com a sociedade e suas imposições quanto ao gênero que querem assumir. São pessoas que estão insatisfeitas com o seu corpo. Outra confusão comum é entre a identidade de gênero e a orientação sexual, sendo a orientação sexual tão somente uma preferência sexual que determinada pessoa possui, e que pode ser dividida em: assexual; homossexual; bissexual e pansexual, por exemplo. Hoje já se fala até da expressão queer do inglês que significa estranho. Nessa forma de pensar tem-se uma crítica a quem faz teorias lésbicas, e teorias gays, pois categorias de identidade tendem a ser instrumentos de regimes regulatórios.15 O que você deve ser não é cabível em um rótulo (gay, lésbica) isso é muito pouco para se ter uma definição. Para a teoria queer gênero é uma coisa em evolução, quanto mais se explora, mais muda. Isso significa o fim da expressão gênero.

3. Heteronormatividade e sofrimento Dessa forma, transgênero é um termo genérico para pessoas que nascem do sexo masculino ou feminino, mas cuja identidade de gênero difere do sexo de nascimento (em graus variados) e que desejam expressar o gênero com o qual se identificam através de travestimento, se não também terapia hormonal de sexo cruzado, se não também cirurgia de redesignação sexual. Perceba que


a igreja no mundo é diferente de Heteronormatividade (visão de que o sexo biológico é masculino ou feminino (binarismo de gênero), que sexo e gênero devem ser combinados (cisnormatividade) e que apenas orientação sexual e relações sexuais com um membro do sexo oposto é normal e natural. C o m o p o d e m o s a d i a n t a r, as ideias transmitidas pelo termo heteronormatividade são centrais para a visão bíblica de sexo e gênero. No entanto, como essas ideias são cada vez mais consideradas intolerantes, opressivas, homofóbicas e transfóbicas (especialmente por ativistas e aliados LGBTQ +), a heteronormatividade é um termo execrado. Isso nos faz entender o que de fato está acontecendo e poderia explicar o sofrimento de muitas famílias. Temos uma linha clara sobre “o que eu penso e o que meu corpo define ser”. Por isso, essa disforia “trans” é a real forma de demonstrar a insatisfação que toma conta de muitas pessoas, potencializada por ideologias. Enquanto a mentalidade estiver caminhando por esse rumo, duas coisas acontecerão: o sofrimento dos indivíduos e apoio inconsequente tal como às reivindicações do PNE (Plano Nacional de Educação). Eles almejavam as seguintes linhas: a) “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. b) Enfatizava, ainda, a necessidade de “implementação de políticas de prevenção, motivada por preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão”. c) O aprofundamento da “democracia”, para a superação da opressão e da

violência, em especial, em relação às mulheres e homossexuais. Ou seja, os debates nessa linha caminham para um campo somente de direitos que pessoas “trans” devem ter, sem expressar os desastres entre confusão mental e os tristes erros do uso de hormônios e de cirurgias para aqueles que sofrem. A questão portanto é mais ampla: é possível que uma pessoa nasça com “o corpo errado” ou ela se sente assim por simplesmente estar confusa mentalmente? Por exemplo, crianças com questões de identidade de gênero devem receber bloqueadores de puberdade, ou elas devem esperar um momento mais adequado quando estiverem passando pela fase adulta?

4. Nossa cosmovisão bíblica sobre o assunto Outro elemento dentre os que devemos saber é que concordamos que o descontentamento com o corpo é algo contraditório quando se fala de uma cosmovisão bíblica. Defendemos a ideia de que o ato de levar alguém à existência determina os pontos naturais de sua realização. Como disse Nancy, em contraste com a cosmovisão secular, ficará claro que uma ética bíblica afirma uma visão integral e holística da pessoa que apoia os direitos humanos e a dignidade.16 Ao se falar da dignidade do corpo, nossa cosmovisão caminha pelo campo teológico da doutrina da encarnação de Cristo. Tal doutrina ressalta os padrões elevados de nossa dignidade. Deus nos livra do descontentamento com o corpo, algo normal do mundo caído, nos dando ideias e padrões mais elevados. O próprio Deus, na pessoa do Filho, é alguém que abriu mão de sua posição em glória para assumir a 13

posição de corpo: “(...) o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). Aceitar a vontade de Deus sobre o seu corpo biológico é na verdade transcendente e digno de valor, pois sabemos que o próprio Cristo aceitou a vontade do Pai ser como um de nós, é claro, sem pecado, mas com o corpo. Como bem disse Andrew T. Walker, não podemos mudar. Se Deus fez homens e mulheres fundamental e compreensivamente diferentes, então a ideia de que um homem poderia se tornar uma mulher (ou vice-versa) é simplesmente uma tentativa infeliz e – claro – impossível de querer mudar o que Deus criou de forma perfeita. As diferenças entre homens e mulheres não podem ser superadas simplesmente porque uma pessoa sente que é do sexo oposto. Sua psicologia (sentimentos-mente) não pode mudar sua ontologia (ser-corpo).17 Os entendimentos precisam de uma filtragem, pois nossas perspectivas e nossos sentimentos estão infestados de elementos da queda. Os que sofrem com esse problema devem ter como lema Provérbios 3: 5-6: “Confia no Senhor de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas”. O conselho bíblico começaria ajudando uma pessoa a aceitar, por mais difícil que pareça, que o seu sexo de nascimento seja um testemunho de sua verdadeira natureza, e que percepções de uma identidade de gênero diferente, embora muitas vezes sinceras, não constituam uma mudança de identidade real, pois tudo o que Deus fez é perfeito.


o mundo na igreja Nossos desejos nunca seriam razoáveis para definições irreais, as nossas percepções e corpos testemunham a desordem de uma criação devastada pelo pecado. Essa informação é bíblica e vem acompanhada de outra importante informação: as Escrituras são diretrizes para o pensar e agir. Tais pessoas estão caindo no erro de confiar em percepções de entendimento que vão para um caminho desastroso, a nossa recomendação é que não confiem nos seus corações! Em suma, a Bíblia ensina que Deus nos fez homem ou mulher, e não importa nossos próprios sentimentos ou confusão, devemos agir de acordo com a realidade biológica do bom desígnio de Deus. 18 A Bíblia não conhece outras categorias de gênero além de homens e mulheres. Você é um ou outro. A anomalia dos indivíduos intersexuais não enfraquece o design criacional, mas dá um outro exemplo de “gemido” criacionista e “não da maneira como se supõe que sejam”, realidades de um mundo caído. A compreensão bíblica de masculino e feminino é mais do que apenas uma suposição escrita nas páginas das Escrituras. Sabemos, a partir de Gênesis 1 e 2, que as categorias de masculino e feminino fazem parte do desígnio de Deus para a humanidade. De fato, quando Deus criou o primeiro par humano à sua imagem, ele os criou macho e fêmea (Gn 1.27). Ele fez a mulher para ser um complemento e ajudar o homem (Gn 2.18-22). Longe de ser um mero constructo cultural, Deus descreve a existência de um homem e uma mulher como essenciais para o seu plano de criação. Os dois não são idênticos nem intercambiáveis. Mas quando a mulher, que foi tirada do homem,

se une novamente ao homem em união sexual, os dois se tornam uma só carne (Gn 2.23-24).19 Como diz DeYoung: “Dividir a raça humana em dois gêneros, masculino e feminino – um ou outro, não os dois, e nem um, mas o outro – não é invenção de puritanos vitorianos ou de patifes patriarcais. Foi ideia de Deus”. Quando pessoas tomam a decisão de tentar mudar isso por meio de atos cirúrgicos, cometem, portanto, um erro grave.

5. A ação da Igreja Se torna mais difícil lidar com esse problema quando vemos pessoas dentro da igreja com esses complexos disfóricos. Eu creio que muitos pastores poderão concordar comigo que o problema tem alcançado a Igreja. E isso precisa ser tratado. O que sabemos é que nesse sentido o nosso papel, o papel da Igreja, vai além de questionar, recriminar e alertar – papel importante da igreja – porque devemos olhar para tais sentimentos e perceber que além de não serem bíblicos, representam desafios como de saber cuidar e tratar de pessoas que passam por isso. Uma pergunta precisa ser feita. Será que pode existir cristãos transexuais que desejam abraçar o desígnio de Deus, mas mudando o gênero? Cremos que sim, como pode haver outros que façam por uma motivação apenas ideológica, há outros por questões fortes e psicológicas. A questão não é se tais pessoas e sentimentos existem. A questão é se o estado emocional ou mental submete-se a todo o desígnio de Deus. Entendemos que seguir a Cristo significa morrer para nós mesmos (Mt 16.24), renovar as nossas mentes e não mais andar como antes (Ef 4.1718). Não se pode tomar caminhos 14

anticristãos. Contudo, é fundamental o olhar misericordioso de nosso Deus, pois alguns respondem que descartar a legitimidade das experiências de uma pessoa é descartá-las por atacado. Para ser claro, não devemos descartar, mas sentir compaixão por qualquer pessoa que esteja sofrendo de estresse mental em relação a um desalinhamento percebido entre a identidade de gênero e o corpo.20 Essas pessoas estão vivendo uma ilusão. Na verdade, não podemos mudar uma realidade como: homens e mulheres são diferentes nos níveis mais profundos do seu ser. Nossos cromossomos são diferentes, nossos cérebros são diferentes, nossas vozes são diferentes, nossas formas do corpo são diferentes, nossas forças corporais são diferentes, nossos sistemas reprodutivos são diferentes. O design para o qual nossos corpos são estruturados e destinados são diferentes, e isso testemunha as diferenças que refletem a vontade criativa de Deus para a humanidade. Porque homens e mulheres são diferentes, é filosoficamente e estruturalmente impossível para um homem se tornar uma mulher e uma mulher se tornar homem. Como escreve Smith, aqueles que dizem o contrário estão traficando ficção sobre a natureza humana. De fato, não há provas científicas para verificar a alegação de que alguém está preso dentro do corpo errado.21 Pessoas que estão conscientes de sua disforia devem conhecer em primeiro lugar a longanimidade de Deus: Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao


a igreja no mundo arrependimento (2Pe 3.9). Mas, como cristãos, também somos obrigados a confrontar novos desafios com a verdade bíblica. Deus fez homens e mulheres diferentes. Por isso, amem os seus corpos, tais pessoas devem entender isso.

6. Não desagradar a Deus Como já mencionamos acima, qualquer pessoa com disforia de gênero deve desconfiar de seu coração e de seu entendimento. O conselho bíblico começaria ajudando uma pessoa a abraçar, por mais difícil que pareça, que o sexo de nascimento seja um testemunho de sua verdadeira natureza, e que percepções de uma identidade de gênero diferente, embora sinceras, não constituam uma mudança de identidade real. Nossos desejos, percepções e corpos, testemunham a desordem de uma criação devastada pelo pecado. Essa informação é bíblica e vem acompanhada de outra importante informação: as Escrituras são diretrizes para o meu pensar e meu agir: “[...] a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35). Deus fez a identidade biológica como caracterização do que de fato uma pessoa pode ser; por mais que os movimentos LGBT e a academia contemporânea digam o contrário, a Bíblia acredita na unidade orgânica do sexo biológico e da identidade de gênero. É por isso que macho e fêmea são (unicamente) o tipo de par que pode se reproduzir (Gn 1.28; 2.20). É por isso que a homossexualidade (Lv 18.22) está errada. É por isso que o apóstolo Paulo pode falar de parcerias homossexuais como desviando-se das relações naturais ou função natural do intercurso sexual masculino-feminino (Rm 1.26-27). Em cada caso, o argumento só funciona se houver uma

equivalência presumida entre a biologia da diferença sexual e as identidades correspondentes de masculino e feminino. Sendo então o binário (masculino e feminino) a vontade de Deus, um crente abraça esse preceito, pelo desígnio divino. A confusão dessas realidades seria desagradável para Deus. E assim, vemos na Bíblia, que os homens não devem agir sexualmente como mulheres (ver Lv 18.22). Quando alguém se relaciona com a pessoa do mesmo sexo temos na Bíblia uma sentença da reprovação de Deus (ver Rm 1.24, 26–27; 1Co 6.9–10; Dt 22.5; 1Co 11.14–15). Nós pertencemos a Deus e devemos glorificá-lo com nossos corpos19 (1Co 6.19–20). Quem sofre com a disforia deve acreditar em Romanos 8.18-25. Deve saber que há remissão (Is 65.17; Ap. 21.5). Tudo, no futuro, se fará novo. Todos devem enxergar a realidade: estamos em decadência (1Co 15.50-56). Como nosso sexo biológico não mente, e porque nossas mentes são suscetíveis à confusão, o arrependimento e a santificação para o indivíduo disfórico envolve o longo trabalho de trazer de volta sua identidade de gênero percebida em conformidade com seu sexo biológico. Mais importante que a nossa paz interior, é fundamental compreender o querer de Deus: uma pessoa talvez nunca chegue totalmente à paz, mas viver o novo eu, refeito em Cristo, significa abraçar e confiar na autoridade de Deus sobre todas as facetas da nossa existência (Cl 3.111). Sendo assim, a sexualidade terá o propósito de agradar a Deus. Nossa palavra é essa: “levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6.2). 15

Aos que sofrem podemos dizer: “(...) regozijai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, na oração, perseverantes (Rm 12.12). Que eles lutem: “Bem-aventurado o homem que suporta, com perseverança;” a provação; porque, depois de ter sido aprovado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor prometeu aos que o amam” (Tg 1.12). No cuidado para com o disfórico devemos avaliar se a pessoa é cristã ou não cristã, se é espiritualmente madura ou espiritualmente imatura, seu nível de capacidade intelectual e moral e a gravidade e complexidade da disforia. Em muitos casos será importante entender que recomendar a vida como um eunuco seja o melhor caminho para que a paz com Deus seja o melhor caminho. E por fim, devemos entender que as lutas presentes que todos enfrentam – inclusive os que enfrentam a tristeza da disforia de gênero – representam as lutas, e ao mesmo tempo as expectativas, da redenção dos corpos (Rm 8.23). Devemos consolar os que enfrentam a incongruência de gênero para que eles sejam esperançosos na obra de rendenção de Cristo que “já”podemos contemplar, mesmo que “ainda não” tenhamos todos os seus efeitos sobre nossos corpos e mentes (Rm 8.24). Os crentes que lutam contra os desejos homossexuais, a disfora de gênero, devem entender que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós (Rm 8.18).

7. Alguns últimos conselhos a) Devemos ajudar pessoas que estão confusas, para que entendam que a confusão mental, ou seja, a ideia “de corpo errado” é compreendida pela Bíblia como


a igreja no mundo uma insatisfação que pode ser aplacada pela aceitação dos planos de Deus. b) Devemos ter uma palavra, como Igreja, contra tratamentos de bloqueadores de puberdade. As crianças precisam primeiro passar por todas as fases de sua formação para tomar decisões. A Igreja deve ser uma porta voz do entendimento mais antigo (que poderíamos rotular de essencialismo biológico) afirmando que o gênero de uma pessoa é determinado pelo fato objetivo de seu sexo biológico. Onde há um “descompasso”, a subjetividade deve ser ajudada a ceder à objetividade. E ao mesmo tempo, sermos contra o existencialismo psicológico que afirma que os fatos objetivos da biologia não determinam a identidade de gênero. De fato, toda subjetividade deve dar lugar à percepção objetiva de uma pessoa sobre seu gênero. c) Entendendo o plano de Deus para as pessoas devemos ratificar que o sexo biológico, sexo de nascimento ou sexo nativo: que inclui cromossomos, hormônios, gônadas, genitais e características sexuais secundárias – Cf. GUROVITZ, Hélio. http://g1.globo.com/mundo/ noticia/2010/11/milionario-britanico-muda-de-sexose-arrepende-e-muda-de-sexo-de-novo.html. Acesso em 16/11/2018. 2 Veja também a reportagem especial que discute a ideologia de gênero e revela os riscos da mudança de sexo: https://www.youtube.com/watch?v=ZEMfccs7kM Acesso em 16/11/2018. 3 Os transgêneros americanos ganharam maior visibilidade e aceitação, já que estrelas como Caitlyn Jenner e Laverne Cox treinaram um foco da cultura pop em questões trans. [...] E em maio, o governo Obama declarou que todas as escolas públicas devem tratar os estudantes igualmente, independentemente de sua identidade de gênero, classificando os sentimentos internos de masculinidade e feminilidade protegidos pelo governo. Chegamos ao ponto em que o presidente dos Estados Unidos pode discutir de forma franca e confortável a fluidez de gênero. 4 JESSI, Hempel. My Brother’s Pregnancy and the Making of a New American Family in http://time. com/4475634/trans-man-pregnancy-evan/ acesso 12/08/2018. 5 PEARCEY, Nancy R. Love Thy Body: Answering Hard 1

por exemplo, forma do corpo, tom de voz e distribuição de cabelo – é muito importante para a compreensão da vontade de Deus para um indivíduo. d) Devemos ensinar as crianças sobre a importância da Identidade de gênero na compressão de sua sexualidade biológica. Dessa forma, a identidade de gênero subjetiva de uma pessoa deve se alinhar com seu sexo biológico objetivo, que é o caso da maioria das pessoas: cisgênero (cis – deste lado de). e) Nunca foi tão necessário mostrar que a expressão de gênero (aspectos psicológicos e sociais de como a masculinidade e a feminilidade são apresentadas em coisas como vestuário e comportamento, papéis e convenções sociais e outras normas culturais de gênero) faz parte de uma boa formação e educação cristã. f) Nunca foi tão importante delinear os papéis de gênero biologicamente determinados (mais obviamente, gravidez e amamentação) sendo eles características tão importantes para delinear o futuro de uma Questions about Life and Sexuality (p. 12). Baker Publishing Group. Edição do Kindle 6 Este é o último termo diagnóstico para o sofrimento experimentado por aqueles cuja identidade de gênero psicológica ou emocional difere de seu sexo biológico. Substitui o termo anterior, Transtorno da Identidade de Gênero, que viu o descompasso em si como um distúrbio psiquiátrico. 7 PEARCEY, Nancy R.. Love Thy Body: Answering Hard Questions about Life and Sexuality (p. 12). Baker Publishing Group. Edição do Kindle. 8 Ibidem. 9 NIETZSCHE, F. A Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, passim. 10 RIAZANOV, Araújo. A Doutrina Comunista do Casamento. Editora E.C.L., São Paulo, 1945, cap. VI. 11 SARTRE, Jean Paul. A Idade da Razão. Nova Fronteira: Rio de Janeiro. passim. 12 Beauvoir, Simone. O Segundo Sexo. Nova Fronteira: Rio de Janeiro. p.9 13 Boa parte das obras de Schaeffer pode ser encontrada na Editora Cultura Cristã – www.editoraculturacrista. com.br. 14 PEARCEY, Nancy R.. Love Thy Body: Answering Hard

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normatividade heterossexual. Dessa forma, a Educação Cristã, no contexto de nossas Igrejas e famílias, será fundamento básico para determinar o norte do futuro de uma geração de servos e servas de Deus. Que nossas igrejas tenham um olhar solidário para tais pessoas que sofrem com esse terrível dilema (Gl 6.1-2), inclusive em nosso meio, talvez alguns de nossos irmãos, pessoas que sofrem de estresse, amargam infelicidade, vivem isoladas e sentem-se rejeitadas. Valorizemos a Educação Cristã, devemos exaltar projetos que comtemplem uma educação por parte de instituições cristãs de verdade. Valorizemos o testemunho cristão dos casais héteros que são um exemplo de vida para aqueles que querem andar segundos os planos da Palavra de Deus. Devemos nos organizar e atuar com mais afinco no posicionamento político, pois a minoria que é favorável tem agido com muita articulação política. Que Deus nos ajude! O Rev. Donizeti Rodrigues Ladeia é pastor titular da 1ª IP de São Bernardo do Campo, SP. Questions about Life and Sexuality (p. 12). Baker Publishing Group. Edição do Kindle. 15 BUTLER, J. Critically. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012. Butler (p. 17) defende que o gênero não é natural e que não há uma relação necessária entre o corpo de alguém e seu gênero. Tudo isso é mera imposição. 16 PEARCEY, Nancy R.. Love Thy Body: Answering Hard Questions about Life and Sexuality (p. 18). Baker Publishing Group. Edição do Kindle. 17 Cf. WALKER, Andrew T. The Christian Response to Gender Dysphoria, in https://www.thegospelcoalition. org/article/the-christian-response-to-gender-dysphoria/ 18 Cf. DEYOUNG, in https://www.thegospelcoalition.org/ blogs/kevin-deyoung/what-does-the-bible-say-abouttransgenderism/. 19 Ibidem 20 Cf. WALKER, Andrew T. in https://www.thegospelcoalition.org/article/the-christian-response-to-genderdysphoria/ 21 Cf. SMITH , Rob. In https://www.thegospelcoalition. org/article/responding-to-the-transgender-revolution/


evangelização | hermistem maia

O PRIVILÉGIO E A RESPONSABILIDADE DOS QUE PREGAM Parte 1 A doutrina da vocação é o fundamento da teologia da vida cristã. Deus em seu amor eterno, urgencia com a igreja a que compartilhe com todos, de forma “centrífuga”, essa mensagem. Jesus Cristo exerce a sua força centrípeta nos atraindo para si mesmo e, ao mesmo tempo, de forma imperativa, exerce a sua força centrífuga que nos conduz a anunciar a sua pessoa e os seus feitos gloriosos e redentores. Portanto, seguindo Bannerman (1807-1868), “não há dúvida de que as Escrituras apresentam a glória de Deus como o grande objetivo do estabelecimento de uma igreja no mundo, na salvação dos pecadores, por meio da proclamação do evangelho”.1 Mesmo Deus sendo soberano no uso de seus meios para atingir o coração do homem, chamando-o eficazmente, ele opera ordinariamente por intermédio da pregação da Palavra. Calvino resume bem esse ponto: “A pregação externa dos homens é o instrumento pelo qual Deus nos atrai à fé. Segue-se que Deus é, estritamente falando, o Autor da fé e os homens são os ministros por meio de quem cremos, como nos preceitua Paulo [1Co 3.5]”.2

Como pecadores que foram alcançados por essa graça, somos instrumentos externos por meio dos quais Deus age, tornando, pelo Espírito, a Palavra anunciada em algo penetrante e transformador no coração humano. A semente que plantamos só terá vida e crescimento por meio da graça operante de Deus. É isso que Paulo demonstra aos imaturos coríntios que conferiam um valor idólatra e, ao mesmo tempo, discriminatório, aos seus pastores: “Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um. Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento (1Co 3.5-7). É fato que Deus utiliza-se de seus servos, mas, o segredo da vida da Igreja está em Deus. A nossa vocação é para o serviço de Deus entre os homens, contudo, o senhor da vocação é o senhor da vida, o senhor de sua igreja. No livro de Atos, constatamos que, enquanto o povo de Deus pregava a Palavra e vivia o evangelho, o Senhor fortalecia a sua Igreja e chamava eficazmente os seus (At 2.46-47; 6.7; 9.31). Tiago fora martirizado 17

e Pedro miraculosamente liberto; a Igreja continuava perseguida... “Entretanto, a palavra do Senhor crescia e se multiplicava” (At 12.24). “(...) a palavra do Senhor crescia e prevalecia poderosamente” (At 19.20). O livro de Atos, indicando o crescimento da Igreja de Deus, termina assim: “Por dois anos, permaneceu Paulo na sua própria casa, que alugara, onde recebia todos que o procuravam, pregando o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo” (At 28.30-31). Em certa ocasião, Jesus conta esta parábola aos seus discípulos: “O reino de Deus é assim como se um homem lançasse a semente à terra; depois, dormisse e se levantasse, de noite e de dia, e a semente germinasse e crescesse, não sabendo ele como. A terra por si mesma frutifica: primeiro a erva, depois, a espiga, e, por fim, o grão cheio na espiga. E, quando o fruto já está maduro, logo se lhe mete a foice, porque é chegada a ceifa” (Mc 4.26-29). “Dormisse e se levantasse, de noite e de dia (...)” (Mc 4.27). A ideia do texto é de apresentar uma rotina, na qual o homem labuta diariamente fazendo o seu trabalho, dorme, acorda,


evangelização trabalha durante o dia, dorme de noite. Os verbos para dormir e acordar estão no tempo presente, indicando uma ação progressiva: dormindo e acordando. Kistemaker (1930-2017) comenta: “Não devemos pensar que o fazendeiro passe seu dia ociosamente. Naturalmente que não; ele tem trabalho pesado para ser feito. Lavrar a terra, fertilizá-la e limpá-la das ervas daninhas toma muito do seu tempo. Além das tarefas diárias, ele tem que cuidar das compras e das vendas, planejar e preparar a colheita. Tudo isso está subentendido e dado como certo na parábola. Observamos, também, que Deus providenciará a chuva necessária. Ele controla os elementos da natureza”.3 A ênfase no texto original é no “como” (Mc 4.27): “como, ele não sabe”. A nossa ignorância não obstrui, não interrompe o processo de crescimento da semente. Podemos descrever o processo de germinação, mas não sabemos explicá-lo. O semeador “é apenas um trabalhador que no tempo certo semeia e colhe. Deus guarda o segredo da vida. Deus mantém o controle”.4 Agostinho (354-430 d.C.) explora a figura: “Um agricultor humano cultiva a sua vinha até esse ponto: ara, limpa, emprega outros meios pertencentes ao trabalho agrícola; mas fazer chover sobre sua vinha, ele não pode. E se pode irrigar, pelo poder de quem o pode? Ele, com efeito, abre o canal para o rio, mas é Deus que enche a fonte. Enfim não pode fazer crescer os sarmentos em sua vinha, não pode formar os frutos, não pode modificar as sementes, não pode determinar o

tempo do nascimento. Deus, porém, que pode tudo isso, é nosso agricultor; fiquemos tranquilos”.5 Portanto, em uma época em que se privilegiam estratégias, metodologias e estatísticas – não que elas sejam más em si – podemos dizer de passagem, que todo pacote fechado a respeito de fundação e crescimento de Igreja, em geral recheado de vídeos e experiências pessoais, culturais e transculturais, deve ser olhado com a máxima desconfiança. Em qualquer método e estratégia deve haver sempre o sentimento de “ignorância”. No que se refere ao Reino: a ignorância é douta e o total conhecimento é loucura. Portanto, Stott (1921-2011) parece-me correto em sua ênfase ao afirmar que “o segredo essencial não é dominar certas técnicas, mas ser dominados por determinadas convicções. A teologia é mais importante do que a metodologia”.6 A obra é de Deus: não podemos apressá-la; há um crescimento natural fruto da providência de Deus. Por isso, a semente germina, cresce, frutifica, dando a erva, depois a espiga e finalmente o grão cheio de espiga (Mc 4.27-29). O texto diz que “a terra por si mesma frutifica” (28). A ideia do texto é de mostrar que a “semente” tem uma maneira própria, peculiar, que precisamos respeitar e aguardar.7 O Reino se faz presente tanto na semente como na colheita. É preciso aprender a ver o Reino em suas etapas próprias nos alegrando nelas. Dessa forma, podemos dizer que os homens podem receber o reino (Mc 10.15; Lc 18.17); mas, não podem estabelecê-lo. O Reino não é criação 18

humana, é de Deus. Os homens podem recusar-se a entrar nele (Mt 23.13); porém, não podem destruí-lo. Podem esperá-lo, orar por sua vinda e buscá-lo (Lc 23.51; Mt 6.10, 33); contudo, não podem trazê-lo. Deus não é somente o autor do Reino é também aquele que lhe dá crescimento: “Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma cousa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento” (1Co 3.6-7). “O reino é de todo obra de Deus ainda quando opera em e através dos homens,” conclui Ladd.8 Percebamos então a grandeza do evangelho, a responsabilidade e a necessidade de humildade daquele que o proclama. Portanto, exorta Calvino: “Quando subimos ao púlpito, não é para trazer nossos sonhos e fantasias”.9 Deus, como Autor do evangelho e da pregação, deseja falar e ser ouvido por intermédio de seus servos. Ele amorosamente fala nos atraindo para si. A igreja deve ter sensibilidade para com isso. Por intermédio da pregação fiel, é Deus mesmo quem fala, conforme enfatiza Calvino em lugares diferentes: “Isso deve acrescer em grande medida o nosso respeito pelo evangelho, visto que devemos pensar dele não tanto em virtude dos homens, propriamente ditos, mas de Cristo mesmo, falando por meio dos lábios deles. Ao mesmo tempo quando prometeu que declararia o Nome de Deus aos homens, havia deixado de estar no mundo; e, todavia, não se desincumbira desse ofício em vão. E na verdade Ele o tem cumprido através de Seus discípulos”.10 “Assim que


evangelização ouvimos o evangelho pregado pelos homens, devemos considerar que não é propriamente eles quem falam, mas é Cristo quem fala por meio deles. E essa é uma vantagem singular, a saber, que Cristo amorosamente nos atrai para si por meio de sua própria voz, para que de forma alguma duvidemos da majestade de seu reino.11 Deste modo, rejeitar a mensagem é o mesmo que rejeitar a Deus, o seu Autor (1Ts 2.13-14; 4.8); ela deve ser entendida como a Palavra de Deus para nós. O pregador, portanto, leal ao seu Senhor, torna-se servo do texto, sem nada acrescentar ou diminuir. Não podemos tornar o texto em mero pretexto para expor nossas opiniões e conceitos, valendo-nos do texto apenas para conferir certa autoridade às nossas ideias. A convocação é de Deus, não nossa. A autoridade de quem prega é decorrente da Palavra de Deus. “Sendo verdadeiro para com a Palavra pura, ele [Ministro] é tudo; sem ela, é nada. Essa é a responsabilidade do pregador”.12 Lawson enfatiza: “É importante reconhecer que, em última análise, a resposta dos ouvintes a uma mensagem reflete a atitude deles para com aquele que enviou a mensagem e não para com o próprio mensageiro. Sob nenhuma circunstância, um arauto pode mudar a sua mensagem para conseguir uma resposta melhor. Ele também não pode negociar a mensagem para torná-la mais agradável.13 A igreja é alimentada pela Palavra. As nossas teorias, por mais em moda que estejam e por mais bem aceitas que sejam em nosso grupo social ou clube de amigos devotos, jamais poderão ocupar o lugar da Palavra. Esta

prática, infelizmente não rara, denota, com frequência, a perda de confiança na autoridade e suficiência bíblica. “Quando um pregador deixa de pregar as Escrituras, perde sua autoridade. Já não confronta seus ouvintes com uma palavra da parte de Deus, mas meramente com outra palavra, da parte dos homens. Logo, a maior parte da pregação moderna evoca pouco mais do que bocejos profundos, Deus não está nela, interpreta Robinson”.14 Por isso, insistimos, nos valendo das palavras de Mohler: “Se somos servos da Palavra, nossa pregação deve ser verdadeiramente expositiva”.15 O pregador proclama a Palavra de Deus. Para que isso seja feito com fidelidade, é necessária uma interpretação cuidadosa do texto bíblico, considerando o seu contexto e uma exegese bem feita, a fim de que ensinemos com fidelidade o que o texto diz. O texto não pode ser um “passaporte” para as nossas ideias ou um estranho ao qual fomos apresentados e que, talvez, em algum momento nos encontremos durante a nossa pregação. Ao contrário disso, o sermão parte do texto. É preciso cultivar a honestidade para com o texto respeitando-o dentro do seu contexto. Portanto, devemos permanecer fiéis a ele. Somos servos do texto, “ministros da Palavra”,16 não o seu senhor. Por mais brilhantes, emocionantes e persuasivos que sejam nossos discursos, eles continuam sendo palavra de homem. O critério de avaliação do que ensinamos deve ser sempre a poderosa e viva Palavra de Deus. Isso nos basta. Deus transforma pecadores por meio de sua Palavra, não por intermédio 19

de nosso discurso. “O pregador deve servir ao texto, pois se a Palavra é a presença mediadora de Cristo, o serviço é devido”.17 O pregador só será relevante para a igreja sendo seu servo. Mas, só se pode ser servo da igreja, enquanto pregador, quando nos tornamos servos do texto. O Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa é membro do CECEP, do Conselho Editorial do Brasil Presbiteriano, leciona Teologia Sistemática no JMC e integra a equipe de pastores da 1ª IP de São Bernardo do Campo, SP. James Bannerman. A Igreja de Cristo – Um tratado sobre a natureza, poderes, ordenanças, disciplina e governo da Igreja Cristã. Recife: Editora os Puritanos, 2014, p. 77. 2 João Calvino. Evangelho segundo João. São José dos Campos: Fiel, 2015, v. 2, (Jo 17.20), p. 199. 3 S. J. Kistemaker. As Parábolas de Jesus. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 54. 4 S. J. Kistemaker. As Parábolas de Jesus, p. 54. 5 Agostinho. Comentário aos Salmos. São Paulo: Paulus, 1997, v. 1, (Sl (65) 66.1), p. 362. 6 John Stott. Eu Creio na Pregação. São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 97. 7 Alexander B. Bruce. The Synoptic Gospels: In: W. Robertson Nicoll, ed. The Expositor’s Greek Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 1, in loc. p. 368. 8 G.E. Ladd. Reino de Deus: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Michigan: TELL., 1985, p. 450. 9 John Calvin. Sermon Dt 1.16-18 (Sermão 4): In: Herman J. Selderhuis, org. Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 25), p. 646. 10 João Calvino. Exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.11), p. 68. 11 João Calvino. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 2.7), p. 67. 12 Abraham Kuyper. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 357. 13 Steven J. Lawson. O tipo de pregação que Deus abençoa. São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 70. 14 Haddon W. Robinson. A pregação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 14-15. 15 R. Albert Mohler, Jr. A Primazia da Pregação: In: R. Albert Mohler, Jr., et. al. Apascenta o meu rebanho: um apaixonado apelo em favor da pregação. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 31. 16 Sidney Greidanus. O pregador contemporâneo e o texto antigo: interpretando e pregando literatura bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 28. 17 Bryan Chapell. Pregação Cristocêntrica. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 20. 1


vida de pastor | valdeci santos

quando o pastor comete suicídio

Mais um pastor cometeu suicídio! Frases e notícias como essa, a respeito de pastores que optaram pelo autoextermínio, têm veiculado com certa frequência na mídia social. Nos meses de novembro-dezembro de 2018 e janeiro de 2019, nada menos do que seis casos foram divulgados, o que é um dado alarmante. Entre essas pessoas, estavam homens e mulheres, obreiros de diferentes denominações, com experiências ministeriais variadas e servindo em contextos sociais distintos. Todavia, o fator mais comum entre eles foi o fato de cada um deixar para trás familiares quebrantados, congregações e amigos confusos e inquietos quanto aos motivos que os levaram a tomar tão radical decisão. Verdadeiramente, suicídio é um assunto complexo. Ninguém deveria discutí-lo de maneira simplista, sob o risco de ser considerado tacanho ou reducionista. Quando se trata do suicídio de pastores e pregadores do evangelho, então, a questão se torna bem mais inquietante. Geralmente o que se espera é que esses santos saibam onde encontrar esperança em situações que favorecem o desespero.

Ao menos esse foi o exemplo deixado pelo apóstolo Paulo quando relatou aos Coríntios: “não queremos, irmãos, que ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida. Contudo, já em nós mesmos, tivemos a sentença de morte, para que não confiemos em nós, e sim no Deus que ressuscita os mortos” (2Co 1.8-9). Contudo, os últimos acontecimentos provam que nem sempre isso acontece. Alguns ministros do evangelho não conseguem suportar o fardo da existência e colocam um fim na própria vida. Antes de qualquer comentário sobre o suicídio de pastores é necessário considerar quatro fatores básicos. Em primeiro lugar, o fato de que num mundo caído e quebrado como o que vivemos, sofrimento e dor, sejam eles físicos, psíquicos, emocionais ou espirituais, não poupam qualquer classe social, nem mesmo os ministros do evangelho. Logo, a fragilidade da cultura pastoral não deveria surpreender nem causar espanto desse nosso lado da eternidade. Em segundo lugar, suicídio 20

[...] o fator mais comum entre eles foi o fato de cada um deixar para trás familiares quebrantados, congregações e amigos confusos e inquietos quanto aos motivos que os levaram a tomar tão radical decisão. é uma forma de morte que geralmente é prenunciada.1 Nesse sentido, Kay Warren, esposa do pastor Rick Warren e mãe do jovem Mateus Warren, que em abril de 2013 tirou sua própria vida, lembra que os Centros de Prevenção à Vida continuamente informam que para cada suicídio consumada são feitas, no mínimo, 25 tentativas. 2 Assim, o problema é que a cultura do descaso é um panorama fértil para essa calamidade e para combatê-la é importante ser sensível à dor do próximo, inclusive a dos pastores. Em terceiro lugar, mais agravante do que as pressões ou a depressão no ministério é a insegurança e o medo que o pastor normalmente tem de se expor, compartilhar sua dor e pedir ajuda. Muitos receiam se abrir e, em seguida, não serem compreendidos, mas julgados e condenados. Infelizmente, o resultado


vida de pastor imediato dessa atitude tem sido o isolamento e o agravamento da aflição de alguns. É fato que os pastores necessitam aprender a expressar suas angústias e buscar ajuda para suas lutas pessoais. Em quarto lugar, devese ponderar que as divulgações de casos de suicídio na mídia social nem sempre trazem o resultado esperado de remediar esse fenômeno trágico. Em um artigo sobre esse assunto, os estudiosos David D. Luxton, Jennifer D. June e Jonathan M. Fairall afirmam que há evidências crescentes de que a Internet e a mídia podem influenciar negativamente alguns comportamentos associados ao suicídio.3 Isso deveria desencorajar qualquer banalização dos tristes eventos relacionados aos casos de pastores que optaram pelo autoextermínio. Além disso, as transmissões relâmpagos de notícias envolvendo o suicídio de pastores deveriam ser ponderadas, pois ao invés de alimentar temor, elas podem ser sugestivas para outros que flertam com essa possibilidade. Tendo considerado essas questões preliminares, ainda permanece a dificuldade sobre o que pensar, o que dizer e como agir propriamente quando um pastor comete suicídio. Quais fatores deveriam ser analisados diante de tão trágicos eventos? A resposta pode variar, mas há certamente alguns elementos a serem notados, conforme sugestão abaixo. 1. A ação de Satanás deve ser ponderada. Não é mero jargão afirmar que Satanás está vivo e ativo no planeta terra. A Bíblia ensina claramente que o “diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar” (1Pe 5.8). Além do mais, os líderes eclesiásticos parecem ser os principais alvos do inimigo, pois há um princípio bíblico de que se o

pastor for ferido, as ovelhas ficarão confusas e dispersas (cf. Nm 27.17, 1Re 22.17, Ez 34.5, Zc 13.7). Dessa maneira, quem mais se beneficia com o desespero e o suicídio de um obreiro é o próprio Satanás. A confusão, o falatório e o enfraquecimento da fé de muitos, atitudes comuns nessas ocasiões, acabam prestando serviço aos intentos do inimigo. Todavia, saber que Satanás e o principado das trevas estão envolvidos nos casos de derrotas dos pregadores do evangelho não equivale a ser simplista e dizer que o diabo fez isso. Tal constatação implica em reconhecer a realidade da guerra espiritual, a ação destrutiva das trevas e até a falha de alguns cristãos em discernir e resistir aos ataques malignos. Ignorar a realidade da ação satânica nessas questões alimenta conclusões míopes e não corresponde ao ensino bíblico. 2. A liderança da igreja deve rever a maneira como tem tratado seus pastores. Há líderes de igrejas locais (presbíteros, diáconos e outros obreiros) que tratam seus pastores de modo totalmente anticristão. Eles parecem compreender a proibição bíblica para não serem dominadores do rebanho (cf. 1Pe 5.1-4), mas não se importam em agirem como “patrões” e “mandantes” de seus pastores. Ao fazerem isso, menosprezam o princípio sagrado de tratar com dobrada honra os que se dedicam à pregação e ao ensino (cf. 1Tm 5.17). Por desprezarem o princípio bíblico, esses líderes acabam não se importando de maltratar os ministros de Deus. Eles também não entendem que Deus não abençoa uma igreja cuja liderança despreza sua Palavra. Na verdade, alguns líderes agem como se tivessem recebido a missão 21

divina de manter seus pastores humildes e, por isso, os tratam de maneira miserável! Esse tratamento pode envolver remunerações baixas, rígido policiamento e ofensas verbais, maltratos emocionais, descasos relacionais e desvalorização profissional. Para agravar a situação, a família do ministro também recebe os efeitos traumáticos desse tratamento. Por isso, diante de notícias de que pastores têm chegado ao fundo do poço do desespero a ponto de cometer suicídio, alguns líderes eclesiásticos deveriam rever seus conceitos e avaliar se não são cúmplices de algumas dessas mortes. 3. Os pastores devem resistir à armadilha da vitimização. Diante das notícias trágicas envolvendo pastores e outros obreiros do evangelho, é tentador pensar que esses santos são apenas vítimas de injustiças e malvadezas. Vários têm usado os mesmos canais da mídia social que noticia os suicídios de pastores para protestar que os ministros do evangelho estão sendo esquecidos, execrados, vilipendiados e desprezados. Em nenhum momento deve-se duvidar que isso, de fato, ocorre em alguns arraiais evangélicos, mas não é correto justificar a opção pelo suicídio por causa dos maltratos recebidos. Diferente disso, o pastor que sofre deveria se lembrar que isso o identifica com Cristo, o Servo Sofredor, e com os santos apóstolos do passado (cf. Jo 15.20 e 1Co 4.913). Se qualquer crente, não apenas pastores, analisar sua sorte apenas horizontalmente, poderá sucumbir ao desespero proveniente do sofrimento experimentado. Infelizmente, a cultura pastoral não é formada apenas de pessoas maduras, equilibradas e totalmente devotas ao Senhor. A verdade é que existem


vida de pastor muitos que se encontram no ministério, mas não possuem mais o zelo pastoral dentro de si nem a dedicação diária ao Senhor. Dessa maneira, a armadilha da vitimização não ajuda nesses momentos de confusão pelos últimos acontecimentos. Portanto, o melhor que o servo devoto pode fazer, diante desse quadro completo, é buscar graça do misericordioso Senhor para viver sob o lema da oração do salmista que disse: “Não sejam envergonhados por minha causa os que esperam em ti, ó Senhor, Deus dos Exércitos; nem por minha causa sofram vexame os que te buscam, ó Deus de Israel” (Sl 69.6). 4. A realidade do pecado não deve ser facilmente descartada. Temendo responder com insensibilidade ao suicídio de santos, nem sempre se considera a possibilidade de que o sofrimento, o desespero e a morte tenham raízes no pecado do suicida. Todavia, há alguns poucos casos nos quais os pastores que cometeram suicídio estavam comprometidos com algum procedimento pecaminoso e o medo ou a angústia de serem descobertos resultou em sua morte. O pecado pode se expressar na forma de um relacionamento indevido, um procedimento imoral e impuro, uma compulsividade desenfreada ou alguma outra maneira. Nesses casos, o suicídio pode ser uma proposta atrativa de fuga ou autoexpiação. Ou seja, por não suportar mais as consequências do pecado, o sofredor-pecador pode tentar colocar um ponto final em sua existência. É necessário esclarecer que nem todo caso de suicídio foi resultado do pecado do suicida. Como já foi afirmado aqui, suicídio é um caso extremamente complexo. Todavia, não se pode descartar a verdade de

que algumas vezes, o pecado, com sua culpa e vergonha, pode ser o fator dominante. Talvez esse ponto fique mais claro se considerarmos que cinco das ocorrências de suicídio mais comuns na Bíblia estão associadas ao procedimento pecaminoso do suicida: Abimeleque (Jz 9.54), Saul (1Sm 31.4), Aitofel (2Sm 17.23), Zimri (1Re 16.18) e Judas (Mt 27.5). Assim, esse é um elemento que não pode ser prontamente descartado. 5. Fatores psíquicos devem ser considerados. Por mais lamentável que seja, há pessoas no ministério pastoral em profunda necessidade de acompanhamento e tratamento psíquico. Nem todos tiveram a oportunidade de obter cuidados antes de chegar ao ministério e alguns sintomas não se mostraram tão evidentes até a pessoa envelhecer e/ou ser submetida às pressões ministeriais. Para piorar a situação, alguns medicamentos para tratar outros males físicos podem interferir na saúde mental de seus usuários. Assim, desequilíbrio emocional, enfermidades psíquicas e outros agentes que interferem no equilíbrio mental da pessoa também devem ser analisados nos casos envolvendo tentativas ou consumação do suicídio. Como é comum que muitas pessoas sejam ordenadas ao ministério pastoral sem a devida avaliação mental prévia, o fato de encontrar muitos enfermos entre os que pregam a cura não deveria ser uma surpresa. Nesses casos, a melhor maneira de cuidar de um irmão sofrendo por algum mal mental é afastá-lo do pastorado, encaminhálo para tratamento e expressar o zelo fraternal cuidando de seus familiares enquanto o obreiro recebe cuidado. 22

Devido à intricada natureza do assunto, outros fatores certamente poderiam ser listados acima. Mas conforme foi estabelecido no início, os tópicos mencionados apenas cobrem a categoria básica daqueles que devem ser considerados quando um pastor comete suicídio. Finalmente, uma palavra pastoral aos colegas de ministério. A morte pelo suicídio nunca põe um ponto final ao sofrimento. Ela apenas transfere a dor insuportável de uma pessoa para sua família, seus amigos, e, nos casos dos pastores, para sua congregação. Além do mais, é necessário notar que quando os servos de Deus no passado experimentaram desespero, frustração e desgosto com a realidade, eles não tomaram sobre si o direito de acabar com a vida, mas oraram pedindo a Deus que a tirasse deles (cf. Nm 11.15, Ex 32.32, 1Re 19.4, Jó 6.8-9 e Jn 4.3). Somente o Autor da vida possui o direito de pôr um término no dom que ele concedeu. Além do mais, é necessário lembrar que há sempre graça e misericórdia para socorro daqueles que se chegam ao trono de Deus (cf. Hb 4.16). Assim, é necessário que, a despeito da mais terrível dor, aprendamos a buscar ajuda e expor nossa situação na busca de solução e auxílio. O suicídio não é a resposta! O Rev. Valdeci dos Santos Silva é o Secretário de Apoio Pastoral da IPB. 1

RAMOS, Edith. Anatomia do suicídio. Arq. Brasileiro de Psicologia Aplicada 26: 2 (abril/junho 1974): p. 79-98.

2

WARREN, Kay. Who pastors the pastor? Even ministers suffer from suicidal thoughts. The Washington Post, 17 de abril de 2017.

3

LUXTON, David D.; JUNE, Jennifer D. e FAIRALL, Jonathan M. Social Media and Suicide: A Public Health Perspective. American Journal of Public Health (Maio de 2012). Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih. gov/pmc/articles/PMC3477910/. Acesso em: 12 de novembro de 2017.


liderança | misael batista do nascimento

o que é liderança cristã

A Bíblia não nos fornece um conceito de liderança. A literatura atual sobre liderança revela duas vertentes. Uma delas afirma que “uma definição explícita [de liderança] não é necessária”.1 Outra reúne dezenas de autores, cada um sugerindo seu próprio significado. Um autor respeitado sugere, por exemplo, que liderança é o “processo pelo qual um indivíduo influencia um grupo de indivíduos a atingirem um objetivo comum”.2 Para Blanchard e outros, liderança “é a capacidade de influenciar outros a liberar seu poder e potencial de forma a impactar o bem maior”.3 Essa consideração diferenciase das demais por sua ênfase na liberação do “poder e potencial” dos liderados e pela incorporação da ideia de “bem maior” que abrange não apenas os resultados da organização, mas “aquilo que é o melhor para todos os envolvidos”.4 Distancia-se da noção ultrapassada de uso das pessoas para alcançar objetivos meramente institucionais e financeiros e abre um espaço para a realização do pleno potencial humano. O ponto a questionar é se tal conceito é, de fato, bíblico e, por conseguinte, cristão.

Primeiro, o que vem a ser o “bem maior”? Os cristãos podem responder afirmando que o “bem maior” é o próprio Deus. Essa identificação do “bem maior” com Deus seria bonita, mas inadequada à presente frase, pois significaria que liderança seria “influenciar outros a liberar seu poder e potencial de forma a impactar” Deus. Isso não coaduna com a perspectiva ortodoxa. O melhor é compreender o “bem maior” como o propósito de Deus. Deus tem uma deliberação bíblica para a sua igreja, de modo que liderança seria “a capacidade de influenciar outros a liberar seu poder e potencial de forma a impactar” ou alcançar ou realizar esse propósito. Surge, porém, um segundo problema, agora relacionado aos termos “poder” e “potencial”. Do ponto de vista da Escritura, por causa da queda, o “poder” e “potencial” do homem nem sempre são construtivos. Temos uma capacidade inata de deformar, deteriorar e piorar as coisas. Deixados às nossas próprias inclinações, produzimos dano (cf. as “obras da carne” em Gl 5.19-21). Sendo assim, o mais recomendado é 23

O ponto a destacar é que a Bíblia nos informa de que a origem de todo bom fruto cristão é Deus. É o Espírito Santo quem motiva, revitaliza e concede impulso duradouro que prossegue até a glorificação. pensar em “poder” e “potencial” como aquilo que podemos realizar pela graça de Deus — o que Deus permite e até exige que os cristãos regenerados façam antes da glorificação. Temos ainda de compreender melhor em que sentido a liderança cristã é capaz de “influenciar ”. Biblicamente, “Deus é quem efetua em vós tanto o querer quanto o realizar” (Fp 2.13). Do ponto de vista secular, homens e mulheres se destacam por sua capacidade inata de influenciar, logicamente sob a égide da providência e da graça comum. O ponto a destacar é que a Bíblia nos informa de que a origem de todo bom fruto cristão é Deus. É o Espírito Santo quem motiva, revitaliza e concede impulso duradouro que prossegue até a glorificação. É Deus mesmo quem concede influência ao líder, como lemos em Salmos 144.1-


liderança 2: “Bendito seja o Senhor […] quem me submete o meu povo” (Sl 144.1-2 — grifo nosso). Não há líder cristão que consiga isso, pelo menos não produzindo fruto espiritual duradouro (cf. Jo 15.16). A obra é de Deus, as iniciativas são dele e é ele quem produz na igreja tanto o despertamento quanto o entorpecimento (Is 51.17, 22). Então, o quem ver a ser liderança bíblica ou espiritual? Observemos os exemplos da Escritura. Nós temos um líder que não tem nada de carismático, Moisés (Êx 3.11); um menino, Jeremias, que admite que não passa de “uma criança” (Jr 1.6); um Isaías que sabe ser um homem impuro, desqualificado para sequer permanecer diante do Senhor dos Exércitos (Is 6.5). Esses são modelos bíblicos — e outros poderiam ser citados. Deus escolhe pessoas que se sentem inadequadas, ele chama aos humildes e aparentemente incapazes. Sendo assim, o modelo bíblico de liderança parece divergir do modelo secular. A diferença não está, como temos ouvido nas últimas décadas, na ideia cristã de serviço (cf. Mc 10.4245). Atualmente, o modelo do líder que serve é apresentado em qualquer seminário empresarial. O ponto em que a liderança cristã diverge radicalmente da secular é na insistência da primeira em afirmar que é impossível produzir resultados à parte da intervenção divina; é impossível liderar biblicamente com base na carne; a igreja é conduzida pelo Espírito. Se eu influenciar um membro da igreja a ser santo, pobre homem! Buscará a santidade a partir da influência de Misael, outro miserável pecador; se o Conselho influenciar a igreja a abraçar uma visão ou declaração de missão, isso não será diferente de um Estado motivar seus cidadãos a abraçar determinada ideologia. Almejamos ser instrumentos em uma obra divina, oramos por um

avivamento autêntico e desejamos que graça celestial transborde a partir de nossa liderança. Quando isso não ocorre é o fim — ou talvez, a evidência de que até o começo foi comprometido. Isso deve nos fazer pensar se, em nossos ideais de liderança, não estamos assumindo definições influenciadas pela cultura circundante. Nosso Senhor nos convoca a pensar a liderança biblicamente: “Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade. Mas entre vós não é assim” (Mc 10.42-43a; grifo nosso). Eis minha proposta de conceito bíblico de liderança: Liderança cristã é a capacidade de caminhar com as pessoas fazendo o que Deus quer e, no poder do Espírito, segundo o mistério da providência, auxiliá-las e guiá-las a amadurecer espiritualmente, a cumprir os mandatos da criação e a servir ao Senhor com os seus dons. Tal conceito exige do líder o atendimento de pelo menos cinco requisitos.

A. Gostar de gente Se “liderança cristã é a capacidade de CAMINHAR COM AS PESSOAS”, o líder deve gostar de gente. Jesus nos deixou um exemplo; ele dedicou tempo e atenção às pessoas (Mc 10.21, 4652; Jo 1.14;). O líder cristão tem de interessar-se e demonstrar compaixão por gente de carne e osso (Mt 14.1416; cf. Mc 6.34; Ef 5.2). Isso implica, necessariamente, amar a igreja assim como Cristo a ama (1Co 13.1-3; Ef 5.25-27; 2Co 11.28). Líderes amargurados ou cínicos, que falam mal da igreja, não seguem o padrão de liderança de Jesus. 24

B. Andar com Deus Se “liderança cristã é a capacidade de caminhar com as pessoas FAZENDO O QUE DEUS QUER”, o líder deve andar com Deus (Gn 5.24; 6.9; 17.1; cf. 7.5; 12.4). O Senhor Jesus cavava tempo em sua agenda para dedicar-se à oração (Mc 1.32-39; Lc 6.12). Ele chamou seus apóstolos não apenas para fazer — pregar e exorcizar —, mas antes de tudo, para comparecer e ser — virem para “junto dele” e “estarem com ele” (Mc 3.13-15). O discernimento da vontade de Deus para o trabalho exige comunhão com ele (Is 30.21; Jr 33.3). Moisés, Josué, Filipe e o apóstolo Paulo são exemplos disso. Moisés entendeu que tinha de voltar ao Egito e libertar o povo de Israel (Êx 3.10, 16-18). Josué foi animado e guiado pelo Senhor para conquistar Canaã (Js 1.1-9). Deus orientou Filipe na evangelização (At 8.26). Paulo, por sua vez, não começou a pregar imediatamente após a sua conversão, como pode nos levar a crer Atos 9.18-20. Entre Atos 9.19 e 9.20 passaram-se três anos, nos quais o apóstolo retirou-se na Arábia, recebendo instruções de Deus sobre o evangelho (Gl 1.10-24). Ele foi conduzido por Deus; quis pregar na Ásia e, em seguida, tentou ir até a Bitínia, mas foi impedido pelo “Espírito de Jesus” e dirigiu-se à Macedônia (At 16.6-10). Atos 13.2 é outro exemplo disso. A igreja em Antioquia buscou ao Senhor em jejum e oração. Então o Espírito Santo ordenou aos irmãos que enviassem Paulo e Barnabé para uma viagem. Aquela importante iniciativa missionária não decorreu do ímpeto humano, mas de uma instrução específica de Deus. Qual é a vontade de Deus para o trabalho? Se não tivermos resposta clara a essa questão, a obra está em


liderança apuros. Líderes bíblicos guiam a igreja nos caminhos do Senhor. Isso exige que eles andem com Deus.

C. Ser cheio do Espírito Santo Se a liderança cristã tem relação com “o PODER DO ESPÍRITO”, o líder deve ser cheio do Espírito Santo. Esse era um requisito básico para a escolha de líderes da igreja do NT (At 6.3). Voltando ao que eu disse na introdução, a maioria dos livros sobre liderança afirma que não existe liderança sem influência. Deve ser reafirmado que a influência da liderança vem de Deus. Ele é o principal agente da obra (Zc 4.6; 
At 1.8; 9.31; 
1Co 2.1-5). É Deus quem produz amadurecimento (santificação), motivação para a obediência, os dons e as condições contextuais e circunstanciais para seu uso. D. Descansar na providência Se a liderança cristã é “a capacidade de caminhar com as pessoas fazendo o que Deus quer e, no poder do Espírito, SEGUNDO O MISTÉRIO DA PROVIDÊNCIA”, o líder deve descansar na providência. Dito de outro modo, Deus é soberano sobre a obra. Ele envia sobre a igreja períodos de luz e trevas, discernimento claro e confusão (Is 45.5-7; cf. Is 6.913; 2Ts 2.11-12). O que Deus determina inevitavelmente ocorrerá (Is 46.8-11). Ele envia tanto o avivamento quanto o “atordoamento” (Hc 3.2; Is 51.17, 22). Esta é a aplicação, no âmbito da liderança, da doutrina da providência. Quais são as obras da providência de Deus? As obras da providência de Deus são a sua maneira muito santa, sábia e poderosa de preservar e governar todas as suas criaturas e todas as ações delas (Sl 145.17; 104.10-24; Hb 1.3; Mt 10.29-30; Os 2.6). Breve Catecismo de Westminster, pergunta 11; grifo nosso. Que são os decretos de Deus? Resposta: Os decretos de Deus são

os atos sábios, livres e santos do conselho de sua vontade, pelos quais, desde toda a eternidade, ele, para a sua própria glória, imutavelmente predestinou tudo o que acontece, em especial com referência aos anjos e os homens. Referências bíblicas: Is 45.67; Ef 1.11; Rm 11.33; Sl 33.11; Ef 1.45; Rm 9.22-23. Catecismo Maior de Westminster, pergunta 12; grifo nosso. Isso não anula a responsabilidade humana. Os maus líderes são responsabilizados por seus erros (Zc 11.17). No entanto, a perspectiva da providência lança por terra o mito da liderança que guia para o sucesso. Moisés não entrou na Terra Prometida (Dt 32.48-52). Josué não conquistou todas as terras de Canaã (Js 13.1). Jeremias não foi ouvido por sua geração (Jr 1.18-19; 8.18-22; 18.18; 20.1-2). Se a tradição estiver correta, Isaías foi cerrado ao meio e Jeremias morto a pedradas (Hb 11.17-38). Paulo tentou visitar os tessalonicenses, mas foi “barrado” por Satanás (1Ts 2.18). Davi levantou um censo em Israel sob a influência do diabo que, por sua vez, correspondia a um decreto de Deus (1Cr 21.1, 14; 2Sm 24.1-9). Líderes precisam descansar na providência, entender que mesmo os momentos mais improdutivos e trevosos da igreja ocorrem para que se cumpra um propósito divino (Mt 10.28-31; Rm 8.28). Líderes bíblicos descansam sabendo que estão guardados — eles e a igreja — nas mãos poderosas do Redentor (Jo 10.27-30; Ap 1.20).

DONS”, isso equivale a dizer que o líder deve conduzir os liderados para o alcance de metas bíblicas. Metas bíblicas são alvos de qualidade e não meramente de quantidade. Líderes espirituais conduzem seus liderados a fazer três coisas: Crescer em santidade como fruto da graça, ou seja, a amadurecer em Cristo (Ef 4.11-16; 2Pe 3.18). Cumprir as ordenanças divinas (os mandatos espiritual, social e cultural, estabelecidos na criação — Gn 1.2628; 2.15-25). Servir a Deus servindo aos irmãos e ao próximo, com os dons recebidos de Deus (Rm 12.3-8; 1Pe 4.10). Em suma, além de focalizar o fazer, os líderes bíblicos também destacam o ser.

Concluindo… O conceito bíblico de liderança é diferente do conceito secular. Exige-se do líder cristão que ele ame as pessoas, ande com Deus, seja cheio do Espírito Santo, descanse na providência e guie seus liderados em metas bíblicas. Seria este um conceito definitivo? Trata-se, certamente, de uma aproximação. Sugestões de aprimoramento, provindas dos leitores, serão muito bem-vindas. O Rev. Misael Batista do Nascimento é pastor da IP São José do Rio Preto, SP e membro do CECEP. LORSCH, Jay. A Contingency Theory of Leadership. In: NOHRIA, Nitin; KHURANA, Rakesh. (org.). Handbook of Leadership Theory and Practice: An HBS Centennial Colloquium on Advancing Leadership. Boston: Harvard Business Press, 2010, p. 413.

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E. Conduzir em metas bíblicas Se a liderança cristã é “a capacidade de caminhar com as pessoas fazendo o que Deus quer e, no poder do Espírito, segundo o mistério da providência, AUXILIÁ-LAS E GUIÁ-LAS A AMADURECER ESPIRITUALMENTE CUMPRINDO OS MANDATOS DA CRIAÇÃO E SERVINDO COM OS SEUS 25

2

NORTHOUSE, Peter G. Leadership: Theory and Practice. 3ª ed. Thousand Oaks: Sage Publications, Inc., 2004, p. 3.

BLANCHARD, Ken et al. Liderança de Alto Nível: Como Criar e Liderar Organizações de Alto Desempenho. Reimpressão. Porto Alegre: Bookman, 2007, p. 15.

3

4

BLANCHARD, op. cit., loc. cit. Grifo nosso.


vida em comunidade | edward welch

lado a lado

Introdução Algumas pessoas precisam de ajuda; algumas pessoas ajudam. Vemos isso todos os dias. Há os necessitados e os necessários. A verdade, no entanto, é que esses dois grupos são, de fato, um. Uma comunidade saudável depende de todos nós sermos ambos. Todos nós precisamos de ajuda – isso é simplesmente parte do ser humano. A ajuda de que precisamos vai além de coisas como encontrar um bom mecânico ou uma pintura em nossas casas. É mais profundo do que isso. Precisamos de ajuda para as nossas almas, especialmente quando estamos passando por dificuldades. A ajuda pode ser tão simples como conectarse com alguém que entenda ou com alguém que realmente diz: “Eu sinto muito”. Nós não fomos projetados para

passar por momentos difíceis sozinhos. Mas não é fácil pedir ajuda. Gastamos muito tempo escondendo nossa carência, porque temos medo do que as pessoas vão pensar. Pessoalmente, na maioria dos dias eu fico feliz em ajudar e relutante em pedir ajuda. Para mim, ser necessitado é um sinal de fraqueza, e, se puder escolher, prefiro parecer forte, ou pelo menos competente. Todavia, fraqueza – ou carência – é um recurso valioso na comunidade de Deus. Jesus introduziu uma nova era na qual a fraqueza é a nova força. Qualquer coisa que nos faça lembrar que somos dependentes de Deus e das 26

outras pessoas é uma coisa boa. Caso contrário, nos enganamos pensando que somos autossuficientes e, assim, certamente nos tornamos arrogantes. Nós precisamos de ajuda, e Deus nos deu o seu Espírito e uns aos outros para fornecê-la. Todos nós somos auxiliares – isso também é parte de sermos humanos. As crianças ficam extremamente satisfeitas quando ajudam os pais a cozinhar ou limpar. Elas se deleitam em contribuir para o lar. Dessa forma, elas ilustram como Deus deu dons para todas as pessoas, “visando a um fim proveitoso” (1Co 12.7), e todos os dons são necessários. Não existe algo como uma pessoa desnecessária.

Na verdade, nós oferecemos ajuda com tanta frequência que podemos até nem estar cientes disso. Ouvimos nosso vizinho ou cônjuge falando


vida em comunidade sobre obstáculos no trabalho, nos solidarizamos com um amigo que está cheio de medos, damos conselhos para o membro do nosso pequeno grupo que está passando por um relacionamento instável, perguntamos como podemos orar. Nós fomos feitos para viver dessa maneira. Fomos feitos para andar lado a lado, um corpo interdependente de pessoas fracas. Deus tem prazer em cultivar-nos e mudar-nos através da ajuda de pessoas que têm sido recriadas em Cristo e capacitadas pelo Espírito. É assim que funciona a vida na igreja. E mesmo assim o medo vem. Temos medo de entrar nas complexidades da vida de alguém. Quem somos nós para ajudar outra pessoa? Temos problemas em abundância. Nosso passado faz do presente uma bagunça. O pecado sempre ameaça nos dominar. E quem não tem um distúrbio psicológico? Sentimo-nos quebrados e tememos que apenas vamos piorar as coisas para os outros. Sentimo-nos desqualificados. Hoje em dia, consultamos especialistas e profissionais, mas quando você olha para o seu próprio histórico de ter sido ajudado, é provável que veja pouquíssimos destes entre aqueles que o ajudaram. Quem eram seus ajudantes? Eram conselheiros profissionais ou especialistas? Provavelmente não. Na maioria das vezes, eles eram amigos – as pessoas normais do seu dia a dia. Amigos vêm pré-embalados com compaixão e amor. Tudo o que precisam é sabedoria, e isso está disponível para todos. Os amigos são os melhores ajudadores. Deus tem prazer em usar pessoas comuns, conversas comuns e amor extraordinário e sábio para fazer

a maior parte do trabalho pesado em seu reino. É o sistema perfeito. Se Deus usasse apenas especialistas e pessoas de renome, alguns poderiam se orgulhar de sua própria sabedoria, mas Deus age de maneira diferente da nossa. Nós, pessoas comuns, obtivemos poder e sabedoria através do Espírito Santo e fomos chamados para amar aos outros (Jo 13.34). A partir desse início, somos compelidos a nos aproximarmos dos outros, em vez de permanecermos distantes. Então, se você se sente um tanto fraco e comum – se você se sente como uma bagunça, mas tem o Espírito – você tem as credenciais certas. Você é uma das pessoas comuns que Deus usa para ajudar aos outros. Estou escrevendo para pessoas como eu, aquelas que estão dispostas a se mover em direção a outras pessoas em dificuldades, mas que não estão confiantes de que podem dizer ou fazer qualquer coisa útil. Eu quero desmistificar alguns equívocos sobre o que pensamos ser cuidado eficaz e substituí-los por verdades simples e bíblicas.

1. Nós somos necessitados Sua necessidade o qualifica para ajudar os outros. Sua necessidade, bem oferecida a outra pessoa, pode até ser um dos grandes dons que você dá para sua igreja. Você vai inspirar outros a pedirem ajuda. Pense em um momento em que estava em um grupo e alguém falou abertamente sobre uma luta do dia a dia. O que aconteceu em seguida? Na maioria dos casos, o grupo repentinamente tornou-se mais parecido com uma família. Outras pessoas revelaram mais sobre suas vidas, e as orações do grupo pareciam mais e mais como os Salmos. Quando 27

algo assim acontece, o mito de que todos nós já desvendamos a vida é exposto, e começamos a partilhar o fardo uns dos outros, cumprindo assim o propósito divino. Nós gastamos muito tempo disfarçando a nossa necessidade. Precisamos parar de nos esconder. Ser necessitado é o nosso estado básico. Não há vergonha nisso – é simplesmente assim que as coisas são. Compreender, aceitar e praticar este fato vai fazer de você um ajudante melhor.

A. A vida é difícil É muito difícil administrar a vida sozinho. É por isso que estamos necessitados. A vida também é boa, mas é difícil. Não existe um dia no qual nós temos imunidade a situações difíceis. Admitir isso não é reclamar. É apenas a verdade. Jesus disse: “No mundo, passais por aflições” (Jo 16.33). E, se pararmos para pensar sobre essas tribulações, percebemos que elas são intermináveis. Por que nos preocupamos em identificar tais dificuldades? Nós as identificamos porque os seres humanos se saem melhor quando tornam as suas dificuldades públicas para Deus e para pelo menos uma outra pessoa. Quando examinamos os Salmos descobrimos ser este o desejo de Deus para nós: “Por ti, S enhor , clamei, ao Senhor implorei” (Sl 30.8).

1. Nós somos necessitados Por meio de salmos como esse, o Senhor essencialmente nos diz: “Vinde a mim com suas dificuldades. Isso é o que as crianças fazem com o seu pai”. As coisas difíceis da vida são importantes para Deus e, sendo assim, são importantes para nós, e trabalharemos para colocá-las em pauta.


vida em comunidade 2. Vida organizada Por onde começaremos? Já que abrange tanto, pode ser útil organizar as circunstâncias de nossa vida. Primeiro, considere algumas das circunstâncias que moldam nossa vida.

Nosso corpo

Nosso corpo é parte integrante de nós mesmos, mas também é um tipo de circunstância que nos afeta. Ele nos abençoa com saúde e traz dificuldades como dores, desconfortos diários, insônia, dores de cabeça e toda uma gama de diagnósticos médicos. O corpo, incluindo o cérebro, contribui para diagnósticos psiquiátricos. Se você está enfrentando obsessão, certas características de depressão, ou déficit de atenção – a lista pode ser longa –, problemas físicos ainda indefinidos podem estar se aproximando.

Nossos relacionamentos

Os relacionamentos são onde encontramos o melhor e o pior da vida. Aqui está o prazer de relacionamentos crescentes e pacíficos, e é aqui que as esperanças são frustradas e o amor é perdido. É aqui que experimentamos solidão, vitimização e rejeição. Gostando ou não, nós precisamos de pessoas, mas elas podem tornar a vida difícil.

Nosso trabalho

Trabalho inclui o emprego que temos ou gostaríamos de ter, a futilidade de algum trabalho e o dinheiro que ganhamos. Particularmente, o dinheiro pode ter uma influência significativa sobre as nossas vidas. Tanto a pobreza quanto a riqueza nos deixam vulneráveis. Pobreza sugere que Deus não está conosco, então

confiamos em nós mesmos, e riqueza sugere que temos o que precisamos, então confiamos no nosso dinheiro. Trabalho e dinheiro moldam nossa vida mais do que imaginamos.

Seres espirituais e o mundo

Seres espirituais estão nos bastidores, mas eles dispõem de bastante poder. Os anjos nos protegem, enquanto seres espirituais aliados a Satanás se opõem a nós. Esses seres espirituais têm poder para nos afligir fisicamente, como vemos na história de Jó, mas suas principais armas são mentiras, meias-verdades e tentações, táticas que são muito mais poderosas do que qualquer sofrimento físico. O mundo está incluído nessas influências. A Bíblia emprega a palavra “mundo” de duas maneiras diferentes. Às vezes, significa a criação habitada, ou seja, o planeta Terra. Outras vezes – e é nesse sentido que eu estou usando aqui – refere-se a Satanás e àqueles que acompanham seus caminhos de rebeldia contra Deus. Juntos, eles criam um coro de vozes que sussurram poderosamente contra o caráter de Deus e anunciam que o pecado é totalmente aceitável. Você pode ouvir o mundo, especialmente no refrão cultural atual sobre liberdades sexuais. Isso significa que somos, de fato, as pessoas vulneráveis ​​que necessitam do poder e da proteção divinos (Ef 6.10-12).

O Trino Deus e o seu Reino

O círculo que envolve tudo é o próprio Deus. Vivemos, de todas as formas e em todos os momentos, perante Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – e em seu mundo (At 17.28). Deus está acima de todas as coisas e 28

cerca todas as nossas circunstâncias. Ele é soberano e está sempre ativo, nunca dorme. Deus está nos detalhes do dia a dia; ele está presente em meio às linhas gerais da História, ao guiar todas as coisas a um clímax, e nós precisamos dele para ter vida e em abundância (Jo 10.10). Ele não é apenas um espectador, observando em silêncio os nossos problemas – embora possamos facilmente pensar isso. Ao contrário, ele criou todas as coisas, então é dono de todas elas. Poderíamos acrescentar mais círculos. A herança étnica e religiosa é a principal circunstância de vida para muitas pessoas. Também poderíamos acrescentar nosso ambiente geográfico e político, mas os listados acima já são um bom começo. A vida inclui tantas influências e dificuldades, e Deus tem um objetivo em todas elas. Pense no que você anotaria nesses círculos. O que vem à mente? O que é bom e, principalmente, o que é difícil? Nossa tarefa agora é reconhecer alguns detalhes sobre a fragilidade e a incerteza de nossa vida e as situações difíceis que enfrentamos e, em seguida, falar sobre isso com Deus. Basta falar. Esse é o desejo dele – que falemos honestamente, do fundo dos nossos corações. Não temos que adicionar pedidos. Basta falar. B. Nossos corações estão ocupados As circunstâncias da vida são fáceis de entender, mas é no centro dos nossos corações que as coisas ficam complicadas. Eles estão sempre agitados com energia. Guiam os nossos pensamentos e nossas ações enquanto interagimos com todas as circunstâncias: o nosso corpo, nossos relacionamentos, nosso trabalho,


vida em comunidade os seres espirituais, e o mundo e Deus. No coração encontramos a verdadeira essência de quem somos. Nossos corações são revelados mais facilmente através de nossas emoções, mas também são expressos através do bem – e do mal – que fazemos. E a nossa conexão com Deus reside aqui. Sim, nossos corações estão ocupados. Já que a própria Escritura é tão interessada em nossos corações, ela usa um vocabulário rico e variado para identificar esse centro de controle da vida. Espírito, alma, coração, mente, interior e consciência são os termos mais familiares. Cada uma dessas palavras tem uma ênfase particular, mas todas possuem algo em comum. Elas identificam o nosso centro espiritual, ou seja, a forma pela qual estamos conectados com Deus, em todos os momentos, quer saibamos ou não. É difícil imaginar algo que você não pode ver, e você não pode ver o coração real, mas a Escritura fornece imagens e analogias, como um manancial, um poço, uma árvore e um baú de tesouros.

Um manancial é a verdadeira fonte dos rios que depois se tornam mais visíveis (Pv 4.23), e um poço tem águas profundas que devem ser extraídas (Pv 20.5). Ele pode produzir água fétida ou água viva (Jo 7.38). Uma árvore tem raízes que procuram uma fonte de vida (Jr 17.58). Ou essas raízes encontrarão seu descanso em outras pessoas, o que a Escritura compara a um arbusto murchando no deserto, ou elas não se contentarão com absolutamente nada além do Senhor, caso em que serão sustentadas através dos tempos mais difíceis. Um baú de tesouros é onde colocamos os nossos objetos de valor (Mt 6.19-21). Isso é o que realmente

amamos. Alguns tesouros estão sujeitos à ferrugem e à corrupção – nós podemos ter certeza de que nossos medos acompanhariam tal tesouro. Outro tesouro está guardado em Jesus e está seguro. Essas imagens refletem como os nossos corações trabalham nos bastidores, determinando silenciosamente o curso de nossa vida e têm muito mais a ver com Deus do que podemos perceber. Elas também podem ser trazidas à luz e examinadas. Uma maneira de fazer isso é seguindo nossas emoções.

1. Emoções vêm do coração Nossas emoções são a nossa primeira reação ao mundo que nos rodeia. Elas aparecem sem que tenhamos um determinado pensamento. Todavia, são muito mais do que meras respostas, pois falam mais sobre nós do que sobre nossas circunstâncias. Ao que parece, as emoções revelam o que é mais precioso para nós (Sl 25.17; 45.1). É por esse motivo que as nossas emoções nos identificam. Elas são nós. Reconhecemos nossos amigos por suas paixões e respostas emocionais. Quando as emoções dos nossos amigos estão confusas por conta de dano cerebral ou intensificadas por efeitos colaterais de medicação, dizemos que eles não são eles mesmos. As emoções salientam as coisas que são mais importantes para nós. Quando estamos felizes, possuímos algo que amamos; quando ansiosos, algo que amamos está em risco; quando nos sentimos desanimados, algo que amamos foi perdido; quando irritados, algo que amamos está sendo retido ou roubado de nós. Ou olhe para a culpa e a vergonha. Podemos dizer que elas não revelam o que amamos, mas certamente revelam 29

o que nos é querido. Quando temos vergonha, sentimos como se alguém tivesse retirado a nossa vestimenta humana e nos deixado nus. Ela nos dissocia de relacionamentos, mas os relacionamentos são importantes para nós. Quando culpados, sentimos que o nosso relacionamento com Deus pode estar em risco, e essa relação chega a questões de vida e morte. O que é mais importante para nós? O que nós amamos? O que é mais precioso para nós?2 Não deveríamos nos surpreender com o fato de essas questões tocarem o âmago de nosso ser. Elas também apontam para onde estamos indo. Por fim, tudo nos leva à nossa relação com Deus. Amamos o que ele ama? Ele é precioso para nós? Então rastreie esses sentimentos fortes, primeiro em si mesmo e depois, em outros. Quando você percebe que fica animado? Quais são as suas alegrias? Suas tristezas? Veja os olhos dos seus amigos brilharem quando eles falam sobre um filho, um cônjuge, um grupo musical, Jesus, trabalho ou um esporte. Perceberemos seu tom de voz mudar e sua velocidade diminuir ao tocar em um assunto difícil, como se de repente eles estivessem carregando um peso. Podemos notar uma descarga de raiva: “Eu nunca serei como meu pai”. Se somos confiáveis, podemos ouvir falar de medos, mágoas escondidas e vergonha – assuntos que preferimos manter privados. É possível resumir nossas emoções desta maneira: elas têm início em nossos corações, são moldadas pelos nossos corpos, refletem a qualidade de nossos relacionamentos, carregam as marcas da bondade e da inutilidade do trabalho, proporcionam um vislumbre de como nós estamos nos saindo nas batalhas espirituais e identificam o que realmente acreditamos sobre Deus.


vida em comunidade Uma qualificação: poderíamos dizer que as emoções geralmente refletem o que está acontecendo em nossos corações. Ocasionalmente, uma vez que as emoções são moldadas por nossos corpos, elas podem ser ataques imprevisíveis provenientes de corpos desordenados e cérebros descontrolados. A depressão, por exemplo, pode dizer que algo querido agora está perdido, que a vida perdeu o significado e o propósito, ou que algo desejado nunca será possuído. Mas a depressão também pode dizer: “Algo não está certo no meu corpo ou meu cérebro”. Em outras palavras, emoções fortes são oportunidades para perguntar: “O que é que o meu coração está realmente dizendo? Para o que é que eu vivo, mas não possuo?” Mas talvez não obtenhamos respostas claras para essas perguntas. Às vezes, a depressão é simplesmente sofrimento físico. Ela diz: “Eu me sinto entorpecido por dentro.” De qualquer maneira – e isso é importante – emoções difíceis revelam o momento para obter ajuda e para orar com fé por paciência e resistência. Uma pessoa deprimida está sofrendo, e o sofrimento nos deixa espiritualmente vulneráveis. Isto levanta indagações sobre a bondade e o cuidado de Deus, e sussurra que provavelmente fizemos algo mau para merecer tal sofrimento. Sofrimento emocional precisa de encorajamento espiritual.

2. O bem vem do coração Agora vamos um pouco mais fundo. Nossas emoções podem estar bem aparentes e serem óbvias para nós. Mas, mais profundamente, está tudo que chamaríamos de “bom”. Esse bom, assim como as nossas emoções, ainda expressa o que nós amamos e desejamos. Mas aponta

ainda mais obviamente para Deus. Por exemplo, os pais amam seus filhos. Esse amor, quer os pais saibam disso quer não, reflete o amor de Deus para com os seus filhos, e isso é bom. Existe bem em cada ser humano. Até mesmo o mais gritante narcisista tem um lado mais suave e bom, se olharmos de perto o suficiente. Tendo em vista que Deus nos criou e que as criaturas sempre carregam alguma qualidade de seu criador, nós somos capazes de ver coisas boas uns nos outros. Isso acontece de diversas formas: vizinhos ajudam uns aos outros; desconhecidos devolvem carteiras perdidas; empregados trabalham duro, mesmo quando o chefe está de férias; cônjuges reconhecem quando estão errados; mecânicos de carro são honestos. Quando a bondade é a nossa resposta a Jesus – quando fazemos o bem por causa dele – ela também pode ser chamada de “obediência”, “fé”, ou “expressão de nosso amor a Deus”. Essa bondade é especialmente bonita quando as dificuldades parecem chover sobre nós e, em resposta, voltamo-nos para o Senhor, em vez de nos afastarmos dele. O bem brilha mais forte na fraqueza. Essa é a essência da fé, e isso atrai a nossa admiração. Tudo o que fazemos por causa de Jesus – amar, trabalhar, suportar, esperar – é muito bom. Nosso olhar para a bondade refletida de Deus é importante para a forma como ajudamos, e nós vamos voltar nisso várias vezes. Ajudar inclui ver o que é bom em outra pessoa.

3. O mal vem do coração Claro, nem tudo é bom. Nossos corações podem ser bons, mas também podem ser muito ruins. São ambos ao mesmo tempo. Embora nos seja preferível manter essa realidade em segredo, há pouca 30

discordância sobre a maldade que reside em cada coração. Nós todos sabemos o que fazemos de errado. Nós nos amamos mais do que amamos os outros. O egoísmo e o orgulho são parte da vida cotidiana: pais rebaixam e humilham seus filhos; vizinhos fazem fofocas; empregados fraudam empregadores; homens amam a pornografia mais do que amam suas esposas; empresas cobram por trabalho desnecessário. Contudo, enquanto reconhecemos o mal dentro de nós, não estamos tão dispostos a reconhecer que é pecado. Pecado significa que a nossa maldade é direcionada principalmente contra Deus, e a maior parte das pessoas não está conscientemente o desafiando. Em vez disso, nós simplesmente não pensamos nele. Então, como o mau comportamento pode ser pecado? Aqui é onde as coisas ficam obscuras e precisamos da luz que as Escrituras trazem. Apesar de vivermos diante de Deus, não estamos sempre conscientes de Deus. Quando um adolescente quebra as regras de seu pai, nem sempre isso é encarado como um ato de rebelião contra o pai. Normalmente é mais simples que isso – o adolescente só deseja fazer o que quer. A desobediência não é “nada pessoal”, mas é pessoal. Também funciona assim conosco. Quando pecamos, é contra Deus, mesmo que não pareça assim. Depois, há um comportamento ruim mais consciente. Um homem teve de escolher entre a cocaína e sua esposa: “Estava claro para mim que não havia escolha. Eu amo minha esposa, mas eu não escolheria nada em lugar da cocaína”. Aqui está o coração em ação. Esse homem ama mais os seus desejos do que sua esposa. Isso está claro. Você sabe disso, ele sabe disso e


vida em comunidade é ruim. Agora, se observamos um pouco mais a fundo, descobriremos que ele ama seus desejos acima do Senhor – ele está comprometido a levar sua vida do seu próprio jeito, ao invés de se submeter ao Senhor. Ele não tem consciência disso, mas talvez reconheça se lhe disserem. Somos, de fato, pessoas necessitadas.

4. As alianças espirituais vêm do coração No centro de nossos corações está a nossa conexão com Deus. Aqui estão as raízes da árvore, a fonte no interior do poço. Quer saibamos, quer não, somos inteiramente religiosos. Poderíamos chamar de “adoração” – isso é o que está acontecendo em nosso coração. Quem nós amamos sobre todas as demais coisas é quem nós adoramos, e quem adoramos nos controla. Independentemente de percebermos, nosso coração sabe muito sobre o verdadeiro Deus, e temos nossa posição a favor ou contra ele. Este conhecimento não é sempre óbvio para nós, mas está lá. É como se guardássemos uma vaga consciência das canções de amor que Deus cantou para nós antes de seguirmos nosso próprio caminho, e quando as ouvimos de novo, elas evocam algo familiar e certo. Ele é nosso Pai; nós somos seus filhos. Nós vivemos coram Deo, perante a face de Deus. Não existe tal coisa como a independência. Mesmo se fugirmos, ele é nosso Pai. Ainda que busquemos a emancipação legal, não podemos escapar. Aqui estão apenas algumas maneiras pelas quais sabemos disso: – Nosso coração reconhece a sua voz. Conhecemos o amor porque ele é amor. Queremos justiça, porque ele é o justo juiz. Somos atraídos à

compaixão e à misericórdia porque ele é o Deus compassivo e misericordioso (Êx 34.6). – Nosso coração tem a “norma da lei” gravada sobre ele (Rm 2.15) e esta lei reflete o caráter de Deus. Nós temos uma consciência que condena o errado e aprova o correto. – Nosso coração nunca pode repousar de verdade até que descansemos nele. – Nosso coração está em sua melhor forma quando amamos e adoramos o trino Deus sobre todas as coisas, e quando seguimos seus mandamentos. O que confunde a questão é que os pecados dos outros, as mentiras do maligno e nossos próprios pecados podem distorcer esse conhecimento. Pessoas temerosas conhecem a Deus, mas veem primeiramente as máscaras daqueles que as machucaram. Aqueles que se sentem culpados podem supor que Deus é como um simples ser humano que perdoa a contragosto e com condicionalismos. Os que odeiam alguém têm deixado de lado a verdade de que Deus estende o seu amor até mesmo aos inimigos.

Aqueles que sempre querem mais da vida conhecem a Deus, mas acreditam na mentira de que há satisfação fora de Deus. Misturadas com o conhecimento do verdadeiro Deus estão as mentiras que trazemos e as mentiras que nos são contadas. O resultado é que ninguém possui um conhecimento completamente imparcial e preciso do Senhor. Ninguém. Os mitos que moram em nós são revelados através dos nossos medos, passado, emoções conturbadas e pecados. 31

Diante desse quadro da humanidade, um conhecimento exato de Deus é a coisa mais importante – a coisa mais saudável e que mais gera alegrias – que podemos ter. E é exatamente o que nosso Pai tem prazer em nos dar. Note como o apóstolo Paulo ora por nós em Efésios 1.16-17; 3.14-19. Ele compreende que a maior necessidade do nosso coração é Deus – é conhecêlo com precisão e segui-lo. Significa que, se quisermos tanto ser ajudados quanto verdadeiramente ajudar os outros, estaremos sempre visando isso. E já que o próprio Jesus é a nossa imagem mais completa de Deus, vamos sempre mirar nele. De alguma forma, à medida que crescemos em nosso conhecimento e adoração de Jesus, ele incentiva o bom, regenera o mau e traz paz a um coração atribulado. Ele é a fonte de toda sabedoria, todo amor e toda esperança. Independentemente de mencionarmos ou não o nome de Jesus a um amigo necessitado, nós sempre apontamos para Jesus. Então, de posse de um conhecimento cada vez maior de Jesus, respondemos crendo e seguindo-o. O coração está ocupado. É o nosso centro espiritual. A prova de sua atividade pode ser vista todos os dias na combinação humana de bom, mau, medos, frustrações, alegrias e tristezas. Ligue estes sentimentos com a própria essência do coração e chegamos cara a cara com o verdadeiro Deus e com a condição na qual está o nosso relacionamento com ele. Estamos tentando encontrar uma existência sozinhos no deserto ou estamos ativamente alastrando raízes pela água? Adaptado de Lado a Lado, de Edward Welch, Cultura Cristã. Na próxima edição: C. Circunstâncias difíceis encontram corações ocupados.


identidade presbiteriana | cláudio marra

qual é a nossa identidade, mesmo? Esta é a edição nº 61 de Servos Ordenados e desde o começo tenho redigido esta seção Identidade Presbiteriana. São 15 anos insistindo nesse tema, mas a pergunta ainda não quer calar: qual é a nossa identidade, mesmo? Entre as igrejas que pastoreei nestes 46 anos de ministério, algumas tinham pouca coisa bem presbiteriana além da placa com esse nome. Pelo menos no começo. E por falar em nome, de um tempo para cá surgiu nova moda: cada igreja local chamar-se Igreja Presbiteriana do Brasil e acrescentar a localização ou algum sobrenome. Porém, segundo nossa Constituição, Art. 1º, “A Igreja Presbiteriana do Brasil é uma federação de igrejas locais”, ou seja, IPB é a federação, não cada igreja local. Pode se tratar apenas de uma metonímia, ou modismo mesmo, e modismos são resistentes, porque não resultam de reflexão à luz da Escritura, de nossa Constituição ou de decisões do Supremo Concílio, nem de mero bom senso, como é o caso dos interrogativos améns ou dos incongruentes momentos de louvor que vieram para ficar. Hoje alguns modismos têm a aprovação silenciosa mesmo de nomes respeitados. Seguindo a apresentação encontrada no art. 1º de sua Constituição, “A Igreja Presbiteriana do Brasil (...) adota como única regra de fé e prática as Escrituras Sagradas do Velho e Novo Testamentos (...)”. Somos o povo da Bíblia e na minha infância era assim que eu ouvia os não-crentes nos identificarem.

A informal designação povo da Bíblia surgiu sem preocupação com a coerência entre Escritura e vida. Bastava alguém portar a Bíblia nas frequentes idas à igreja e lá vinha o apelido. O povo da Bíblia, porém, sabe que é preciso mais do que carregála, de papel ou como aplicativo em um smartphone. Ser povo da Bíblia implica – em favor das Escrituras – rejeitar as tendências contemporâneas, não apenas certos costumes que de pronto os crentes identificam como mundanos, mas visões de mundo que trafegam entre nós travestidas de pensamento cristão. Nesta época narcisista doutrinada por mensagens de autoajuda e pela menos-do-querasa filosofia do FaceBook, o crente revela sua identidade cristã-reformada seguindo só a Escritura. Não é o que vemos, por exemplo – para nossa profunda consternação –, nas letras de hinos e cânticos usados entre nós. Alguns pastores não andam revisando letras que são anunciadas como de louvor, louvor que deveria ser dirigido a Deus, mas que fala principalmente dos que estão cantando, só acidentalmente de Deus, e sempre escalando-o a nosso serviço. É verdade que os refrões se repetem à exaustão, para ver se alguém nota o que está sendo cantado, mas isso não ocorre, provavelmente devido ao efeito soporífero de melodias nada criativas. Esse triste quadro é alterado às vezes por bons hinos e cânticos, que expressam o ensinamento bíblico e são cantados com melodias bem compostas, que falam ao coração, e harmonias que falam à mente. Aí 32

está uma característica centenária da música cristã e de nossa identidade que deve ser resgatada. Segundo o art. 1º de nossa Constituição, a IPB adota “(...) como sistema expositivo de doutrina e prática a sua Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve (...)”. Isso é o que nos torna uma denominação confessional. Ou seja, honrando nossa herança reformada e nossas históricas raízes presbiterianas, empregamos as lentes dos símbolos de fé de Westminster na leitura da Bíblia, nos âmbitos comunitário e individual. Isso vale para “doutrina e prática”: o que cremos e o que fazemos. Certamente, o sermos confessionais não elimina entre nós todos os desentendimentos doutrinários, porque o próprio significado de sermos confessionais e a leitura dos símbolos de fé sofrem alguma variação. Entre os confessionais encontramos quem ensine teologia reformada com mais ou menos pontos aqui e ali, juntamente com algumas interpretações particulares, alguns exigindo abstinência das liberdades cristãs – e mesmo criando amplas listas do pode-não-pode –, outros ensinando em alguns casos apenas a moderação. Tudo isso requer diálogo constante e a necessária humildade para aprendermos com os irmãos no estudo da Escritura, em um ambiente de oração e submissão à soberana vontade de Deus. Nesse passo, vamos tornando clara para nós uma identidade que é definida pela Escritura somente, nossa única regra de fé e prática.


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