Duas Mãos Direitas

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Duas Mãos Direitas

Epitáfio I

No dia que morrer Quero ser enterrado debaixo do teu céu Tu, que apesar de tudo, és a verdade das coisas inteiras.

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Epitáfio II

Quando eu morrer Não quero o meu nome gravado na pedra fria Não quero que me incendeiem num corredor de aço Não quero as cinzas da minha carne largadas no oceano Quero sete palmos de terra sobre o peito Do calor da minha terra.

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Alentejo, ou a memória um do outro O cheiro a aço dos canos A madeira do queixo num coice A lã gasta de abraços A cheirar a pinheiros A água brava com o cheiro da casa Os cães perdidos no mato Os tordos no eucaliptal A tarde a cair... O verde dos olhos do meu pai Sempre raiados de sangue O silêncio que ensina A caça A neblina e a terra Sempre a terra debaixo das botas A resvalar nas trincheiras Sempre perto da ternura E cantarmos de noite o triunfo sobre os pássaros E desenharmos de noite A cara dos outros Num papel de uma mesa A carvão como a pólvora E a taberna cheia de moscas E a luz escassa das vozes Com as armas caladas Num canto desarmadas

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E o Alentejo a dormir devagar como o sangue E os cães na entrada a babarem a encosta A morrerem de sede por mais um estampido E o mundo lá dentro Ao pé do meu pai.

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Duas Mãos Direitas

Diário De Lisboa Ou A Forma Triste De Te Escrever Cheira a rio aqui perto veis na ponte janela... por entre dois telhados No vidro de uma portada De uma casa quase sempre velha e abandonada Ve-se o lencol do rio... Deste rio que eternamente nos acompanha bito nos desarma... gua... Mas isto tu sabes de cor... Sabes os nomes das ruas Dos atalhos Dos becos que desaguam irremediavelmente em ti... ter do corpo Na saudade viral que me contamina... Que me envenena o sangue e as horas... tão adormecida o docemente sinistra … m morresse de amor Ou chorasse os dias perdidos nimo dos cantores brio dos poetas... Estou cansado... Apeiron Edições

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Deste meu corpo fatal e lapidar... Que sem tua presenca apodrece o gosto de te ver na rua o gosto que te gostem tanto Que perguntem por ti... tu que foste apenas minha Q ’ í s que alguma vez aqui estiveste... o sabes por dentro que vou morrendo Que vou definhando Aqui neste lugar doente o vazio... O gume da folha da navalha Que nem os pulsos corta o vazio... o sabes ainda... que as portas se fecham ao vento Q o sozinhas... eternamente sozinhas E que nas escadas os teus passos permanecem intactos o apagada o sabes ainda... gosta de ti.

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