O Caminho do Coração
capitulo I O CONHECIMENTO DO CORAÇÃO
I Prefácio “Aprende a discernir o verdadeiro do falso, o efémero do perene. Aprende, acima de tudo, a separar o conhecimento da Cabeça da sabedoria da Alma, a Doutrina do ‘Olho’ da do ‘Coração’.” (H.P. Blavatsky, A Voz do Silêncio)
Sob o título de O Conhecimento do Coração publicamos neste espaço uma série de documentos, compostos sobretudo por extractos de cartas recebidas de indianos amigos. Estas não são transmissoras de alguma “autoridade”, mas expressam pensamentos que alguns de nós consideram importantes partilhar com todos. Verdadeiramente, elas são apenas dirigidas àqueles que procuram viver a Vida Superior, e que por isso sabem que esta vida conduz à entrada na Senda do Discipulado sob a orientação daqueles Grandes Seres que a trilharam no passado, e permanecem na Terra a fim de ajudar outros a trilhá-la. Os pensamentos destas cartas pertencem a todas as religiões, mas a sua forma e o seu sentimento são indianos. A devoção é daquele tipo nobre e intenso conhecido no Oriente como Bhakti (devoção) em que a pessoa se entrega total e incondicionalApeiron Edições
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mente a Deus e ao Homem Divino através de quem Ele se manifesta. A Bhakti não tem expressão mais perfeita do que no hinduísmo, e os autores destas cartas são hindus, acostumados à riqueza luxuriante do sânscrito, esforçando-se em harmonizar o inglês1, mais rude, à suavidade poética da sua língua materna. A fria e reservada dignidade do anglo-saxão, bem como a sua reticência emocional são totalmente estranhas à efusão do sentimento religioso que naturalmente emana do coração oriental como o canto da cotovia. No Ocidente encontramos, aqui e ali, verdadeiros Bhaktas (devotos), como São Tomás, Kempis, Santa Teresa, São João da Cruz, São Francisco de Assis ou Santa Isabel da Hungria. Mas na sua grande maioria, o sentimento religioso no Ocidente, por mais profundo e verdadeiro que seja, tende para o silêncio e procura ocultar-se. Para aqueles que evitam a expressão do sentimento religioso, estas cartas não têm qualquer valor, pelo que não é a eles que elas se dirigem. Passemos agora a considerar um dos mais fortes contrastes da Vida Superior. Todos reconhecem que o Ocultismo faz-nos exigências de carácter que requerem não só uma rígida auto-disciplina como um certo isolamento. Tanto da parte da nossa muito amada e venerada Instrutora, Helena Blavatsky, como da parte das tradições da Vida Oculta, aprendemos que a renúncia e o forte auto-controle são requisitos para aquele que há-de transpor os portões do Templo. O Bhagavad-Gitâ reitera continuamente o ensinamento da indiferença à dor e ao prazer, do perfeito equilíbrio em todas as circunstâncias, sem que, fora isso, nenhum Yoga verda1
Nota do Coordenador – Idioma original do livro.
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deiro é possível. Em teoria, esta faceta da Vida Oculta é reconhecida por todos, e alguns lutam afincadamente para se moldarem a ela; a outra faceta é abordada na Voz do Silêncio2, e exprime-se na simpatia para com tudo o que sente, na resposta rápida às necessidades humanas, na perfeita expressão a que se deu o nome de “Mestres de Compaixão”, Àqueles a quem servimos. É para a componente prática e quotidiana que estas cartas dirigem os nossos pensamentos, e é este aspecto que mais negligenciamos nas nossas vidas, por mais que a sua beleza e a sua perfeição possam tocar os nossos corações. O verdadeiro Ocultista, que é para si próprio o mais severo dos juízes, o mais rígido dos feitores, é para todos o que o rodeiam o mais compreensivo dos amigos, o mais gentil dos auxiliares. Conseguir esta gentileza e poder de simpatia deveria, assim, ser o desejo de cada um de nós, e isso só pode ser alcançado pela incansável prática desta gentileza e simpatia para com tudo o que, sem excepção, nos rodeia. Todo o aspirante a ocultista deveria ser a pessoa, na sua própria casa e círculo, a quem todos mais prontamente acorressem quando mergulhados na tristeza, na ansiedade, no pecado – seguros de que poderiam contar com a sua simpatia e ajuda. A pessoa mais desinteressante, mais bruta, mais estúpida, mais repelente, deveria ver nele pelo menos um amigo. A ânsia de buscar uma vida melhor, o desejo nascente em prol do serviço altruísta, a vontade recém-formada de viver mais nobremente, deveriam encontrar nele alguém disponível para encorajar e fortalecer, de molde a
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N. do C. – De Helena Blavatsky. Apeiron Edições
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que todo o germe do bem começasse a crescer sob a calorosa e estimulante presença da sua natureza amorosa. Atingir um tal poder de servir é uma questão de auto-formação na vida diária. Primeiro precisamos reconhecer que o EU em todos nós é um só, de modo que quando entramos em contacto com uma pessoa devemos ignorar tudo o que é desagradável da camada exterior, e reconhecer o EU entronizado no coração. O próximo passo é realizar em sentimento, e não apenas em teoria, pois o EU está a tentar expressar-se através dos invólucros que o envolvem e o obstruem, ficando assim distorcido para nós – a natureza interna é linda. Assim, deveríamos identificar-nos com o EU, que na verdade somos nós próprios na sua essência, e cooperar na luta contra os elementos inferiores que sufocam a sua expressão. E já que temos de trabalhar a nossa própria natureza inferior no contacto com o nosso irmão, a única maneira eficaz de o ajudar é ver as coisas como ele as vê, com as suas limitações, os seus preconceitos, a sua visão distorcida; e vendo-as assim, e sendo a nossa natureza inferior afectada por elas, ajudá-lo no seu caminho e não no nosso, pois só desta maneira podemos, de facto, prestar um real auxílio. É aqui que se enquadra o treino Oculto. Aprendemos a afastar-nos da nossa natureza inferior para a estudar, para sentir os seus sentimentos, e então, enquanto emocionalmente experimentamos, julgamos intelectualmente. Devemos usar este método para ajudar o nosso irmão e enquanto sentimos o que ele sente, tal como um diapasão vibrando na mesma onda, devemos usar o nosso “eu” desapegado para julgar, para aconselhar, para estimular, mas só o utilizar sempre que ele esteja consciente de que é a sua própria natureza superior
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que se expressa através dos nossos lábios. Temos de desejar partilhar o nosso melhor; a vida do Espírito não é guardar, mas dar. Não raras vezes, o nosso “melhor” é indesejável para aquele a quem procuramos ajudar, tal como a poesia refinada não é atraente para a criança pequena; então devemos dar o melhor que ele possa assimilar, guardando o resto, não porque sejamos ciumentos, mas porque ele ainda não o quer. É exactamente assim que os Mestres de Compaixão nos ajudam, pois para Eles somos como crianças; de forma semelhante devemos procurar ajudar aqueles que são mais jovens do que nós na vida do Espírito. Não esqueçamos que a pessoa que está connosco num determinado momento é a pessoa que o Mestre nos deu para servirmos naquele momento. Se por descuido, por impaciência, por indiferença, falhamos em ajudar, falhamos no nosso trabalho para com o Mestre. Muitas vezes, ao esquecermo-nos do nosso dever imediato, para nos dedicarmos a outro trabalho, falhamos em compreender que ajudar a alma humana enviada a nós é, naquele momento, o nosso trabalho; temos de nos lembrar deste perigo, que é o mais subtil, porque aqui o dever é usado para mascarar o dever, e uma falha de percepção é uma falha na realização. Não nos devemos prender a nenhum trabalho específico; devemos trabalhar sempre, mas com a alma livre e “atenta”, pronta a captar o mais leve sussurro d’Ele, que pode precisar de nós para socorrer algum desvalido que Ele, através de nós, quer ajudar. A severidade para com o eu inferior, acima mencionada, é um requisito para esta ajuda, pois só aquele que se esquece de si próprio – indiferente à dor ou ao prazer – é suficientemente livre para dispensar ajuda e simpatia aos Apeiron Edições
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outros. Não precisando de nada, pode dar tudo. Sem apego a si próprio, torna-se a encarnação do amor para com os outros. No Ocultismo, o livro da vida é o único que chama a nossa atenção. Estudamos outros livros apenas por que precisamos de viver. O estudo, mesmo das obras Ocultas, é apenas um meio de espiritualidade se nos esforçarmos em viver a Vida Oculta; é a Vida e não o conhecimento, é o coração purificado e não uma cabeça bem arrumada, que nos leva aos pés do Mestre. A palavra “devoção” é a chave para todo o verdadeiro progresso na vida espiritual. Se no trabalho procuramos não o sucesso gratificante mas o crescimento do movimento espiritual, o serviço dos Mestres e não a nossa auto-satisfação, não podemos desanimar com as falhas temporárias, nem com as nuvens que pairam sobre a mortalidade que possamos experimentar na nossa vida interior. Servir por amor ao serviço, e não pelo prazer que temos em servir, é decididamente um passo à frente, pois começamos a ganhar o equilíbrio, esse equilíbrio que nos potencia a servir com alegria, tanto no fracasso como no sucesso, tanto na escuridão como na luz interior. Quando dominamos com sucesso a personalidade e sentimos um real prazer em trabalhar para o Mestre, mesmo que seja doloroso para a natureza inferior, o próximo passo é fazê-lo de forma plena e amorosa, mesmo quando o prazer desaparece e toda a alegria e luz estão obscurecidas; por outro lado, ao servir os Grandes Seres, podemos estar a aproveitar-nos do serviço para obter algo d’Eles, em vez de o fazer por puro amor. Ao prevalecer essa forma subtil de egoísmo – se as trevas continuarem a cercar-nos e nos sentirmos mortos e sem espe-
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