As Metamorfoses do Espírito

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As Metamorfoses do Espírito

Prelúdio

«Não me compreendem: não sou a voz de que os ouvidos necessitam.» Nietzsche

Nas nossas vidas conhecemos inúmeras fases transmutadoras e imensuráveis processos que mais não são do que a prova dada de que a dialéctica da personna que se aventura pelo eterno devir demanda a transformação constante, que é aquela que visa alcançar a derradeira pacificação da alma. A relatividade da existência, esta vivência na fenomenologia do ser e do corpo, implica a metamorfose, que é a própria Vida de encontros e desencontros, no eterno desespero de perfazer um sentido ou de cumular uma biografia no medo constante de que o Vazio e o esquecimento façam acinzelar o sentimento profundo do Si. Daí que a minha vida pessoal, uma verdadeira aventura filosófica, um sentido de uma Gnose que não poderia deixar de o ser, tem testemunhado preferências e moldes de pensamento de tal forma incomensuráveis entre si (será?) que, sob os olhos dos incautos, mais me faz aparentar com um louco instável ou, no mínimo, uma profunda Contradição per si. Na verdade, após anos de dilecção liberal e positivista – nos quais o meu estudo científico e epistemológico não conseguiu (antes pelo contrário) obliterar o meu antigo (e sempre constante) interesse pela Psicanálise, Psicologia, Psicopatologia, Fisiologia e Neuropsicologia (para além da literatura e da arte) –, acabei por, após uma imersão rápida no marxismo, viver internamente o encontro com o Idealismo e o Pós-modernismo, exApeiron Edições

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periências que não podem deixar de ser contextualizadas no cenário fantasmático que um psicanalista se predisporia a “analisar” no termo das minhas íntimas catacumbas. O meu livro «Corpo e pós-modernidade» (Esfera do Caos Editores, 2012) resulta sobretudo destas últimas experiências reflexivas e do contacto demorado com autores que considero canónicos, se bem que, pela minha formação base de fisioterapeuta, terei sempre sentido a necessidade de fazer a ligação teorética desses elementos conceptuais à temática da corporeidade. Se já nesse livro deixava em aberto a resolução da questão relativa à dualidade Positivismo vs. Idealismo, na obra «O Corpo e o Nada» (Apeiron Edições, 2013) terei mantido a mesma tendência pouco (?) comprometedora de uma dualidade Corpo vs. Espírito, se bem que talvez seja possível notar algum tipo de tendenciosidade unipolar. É que se no primeiro livro que refiro a minha inclinação idealista (mas de um Idealismo fortemente subjectivo) e o compromisso fortemente relativista não podem deixar de ser encarados como mor salientes, em «O Corpo e o Nada» é inegável que, logo nos primeiros textos, se assiste a uma delicada (?) transposição teorética de um Idealismo subjectivo para um Idealismo mais objectivista, que é a âncora de uma boa parte da Espiritualidade racional, com pendor essencialmente determinista – principalmente no que ao Demiurgo diz respeito –, tudo isto para que, no fim, volte a insinuar a possibilidade de que o Idealismo subjectivo e o Idealismo objectivo sejam, de algum modo, “a mesma coisa”. Em «O Corpo e o Nada» contenho, apesar de tudo, um compromisso espiritualista forte, se bem que a contraparte interpretativa materialista assumia já o seu papel. Nesta nova obra – «As Metamorfoses do Espírito» – sinto que, de algum modo, todas as dimensões que terei desenvolvido no meu passado cognitivo estão presentes, pelo que talvez fosse

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injusto reter que o compromisso paradigmático é, agora, essencialmente corpóreo-materialista. Mas, em boa verdade, o lado “manifesto” e “infernal” do Espírito/Substância assume aqui o principal protagonismo, e há até uns pequenos vislumbres de um reabraçar de alguns preceitos liberais e materialistas... Tudo isto para que, a um nível quase póstumo, acabemos por perceber que toda esta variabilidade dialéctica acusa precisamente que sou um homem e não um Super-Homem... se bem que concebo este último como meta a alcançar (mas no formato preferencial – na verdade, o mais sensato – da estética de uma poiesis); é que toda esta relatividade é precisamente aquilo que evidencia a minha vulnerabilidade, não só no sentido de padecer de uma qualquer falta de equilíbrio mental, mas igualmente no sentido em que, face à impossibilidade de chegar ao Absoluto, vou “desfrutando” de forma suspeita de todas (?) as potencialidades paradigmáticas que o pensamento humano tem vindo a conceber. E isto para que, no fim, possamos até perceber que toda esta lógica desconstrutiva (vício meu que tantas inimizades e injustas acusações me têm valido) é a única que interessa, pois que tudo (?) reitera ser Verdade no “face a face” de um critério semiológico preciso. Equivalerá tudo isto a dizer que é sempre possível encontrar o Absoluto num critério e tempo especificados, nas condições precisas de uma ocorrência? Não será o mesmo que dizer que Tudo é Relativo e que o Relativo é feito de múltiplos absolutos? Mas não se mantém de igual maneira a realidade de que tudo é o mesmo, que tudo é continuidade, que tudo é fluxo permanente, no seio de um Uno Absoluto Deus que todas as coisas inclui?... E lá vem sempre a mesma dialéctica que não cessa! A mesma insegurança (?) psicodinâmica, a mesma pluralidade que tem justificado tantas “almas em mim”... Apeiron Edições

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Toda esta multiplicidade, que tanto pode fazer transparecer um tipo de relatividade derridiana como transcrever a simples incapacidade de conhecer o Todo final (serão a mesma coisa?...), justificou em Fernando Pessoa a criação de um universo heteronímico, que, decerto, faria todo o sentido de existir no contexto do seu tempo. A meu ver, actualmente essa lógica é tão dispensável quanto a “lógica interna” de todos os “comuns mortais” que propendem associar a complexidade interna a uma simples falta de coerência, ou à loucura ou deslealdade do portador da “vulnerabilidade”. Este pequeno livro tem um pouco de tudo mas, obviamente, o espírito de Nietzsche constitui o seu nutriente fundamental. E este espírito, tal como a máxima do livro, não ancora necessariamente na ideia do Mal, se bem que, mesmo que assim fosse, este “Mal” não elegeria decerto a noção horrenda que as pessoas geralmente lhe atribuem. Também o mundo da matéria e a tonalidade do Mal fazem parte do Espírito, e aquele mundo de “prazeres” ou de beneficência (do Ego) a que as pessoas atribuem o “bem” nunca poderia sê-lo se não pudesse reificar-se por contraposição relativamente ao seu contrário. As coisas são o que são porque se definem sempre nos termos de uma dualidade; nada pode ser algo sem o pólo oposto, pois se fossem Absolutamente não seriam nada, ou seriam o “Nada”. Daí que uma coisa, para o ser, reitera a lógica do tempo e do devir, um antes e um depois, um movimento, a tal transformação dialéctica permanente, uma aprendizagem constante, que o Absoluto, precisamente por o ser, já não requer. Daí que «Ser» integra sempre uma fenomenologia da existência e a consciência de um (não) sentido, enquanto o Todo é a indiferença, a imanifestação que jamais poderia ser “sentida”, porque o Nada não pode ser consciencializado.

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