Dom Quixote reencontra Sancho Pança, Igor Abdalla Medina de Souza

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igor abdalla medina de souza

DOM QUIXOTE REENCONTRA SANCHO PANÇA: Guerra Fria, Relações Internacionais e Direito Internacional


S U M Á R I O

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Prefácio

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Introdução

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CAPÍTULO 1

O início das disciplinas relações internacionais e direito internacional – a proximidade deturpada pelo Primeiro Grande Debate

O início das disciplinas relações internacionais e direito internacional  32 Wilson, Kant e o liberalismo em relações internacionais  44 O Primeiro Grande Debate: deturpações na esteira da obra Vinte anos de crise 56 Conclusão 65 69

CAPÍTULO 2   O afastamento entre as disciplinas – do ceticismo

no direito internacional ao realismo em relações internacionais O ceticismo no direito internacional  70 Do direito internacional para relações internacionais: o realismo  80 Conclusão 97 103

CAPÍTULO 3    Da busca da via media ao afastamento total –

escola inglesa e behaviorismo

Morgenthau e a escola inglesa: busca da via media e defesa dos valores europeus  104 O Segundo Grande Debate e a “decadência” do direito internacional: o ápice do afastamento entre relações internacionais e direito internacional  122 Conclusão 127


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CAPÍTULO 4    O institucionalismo – reaproximação tímida Os regimes internacionais  132 O institucionalismo: desafio ao realismo e reabertura de espaço para o direito internacional  143 Conclusão 154

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CAPÍTULO 5    O liberalismo e o debate interdisciplinar –

a caixa-preta e a caixa de Pandora

O retorno do liberalismo  160 O estudo do conceito de legalização  170 Conclusão 180 183

CAPÍTULO 6    Desconstruindo a anarquia e as normas jurídicas –

o construtivismo e o debate interdisciplinar

O construtivismo: avançando a agenda crítica  185 Friedrich Kratochwil: o direito internacional como processo argumentativo calcado na retórica  189 Alexander Wendt: as normas constituindo a anarquia, os interesses e o poder  196 Nicholas Onuf: o direito internacional constituindo os atores e interagindo com o poder  202 Conclusão 206 209

CAPÍTULO 7    Para além de Dom Quixote e Sancho Pança –

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relações internacionais e direito internacional no início do século xxi

Referências bibliográficas


CAPÍTULO 1

O início das disciplinas relações internacionais e direito internacional – a proximidade deturpada pelo Primeiro Grande Debate

O dictum de George Orwell, segundo o qual quem controla o passado controla o futuro, deve ser levado a sério pelos historiadores disciplinares.1

Iniciamos este capítulo com a descrição do ambiente intelectual dentro do qual direito internacional e relações internacionais emergiram como disciplinas acadêmicas. Em um primeiro momento, as contestações, pelos juristas internacionais, do conceito ortodoxo do Estado, criado no âmbito da então emergente ciência política, abriram as portas para teorizações mais frutíferas sobre as relações internacionais. Esse panorama será descrito com base na historiografia de relações internacionais proposta por Brian Schmidt. Na sequência, argumentamos terem surgido, tanto antes quanto depois da Primeira Grande Guerra, duas formas de teorização sobre o ambiente internacional: os estudos sobre as uniões públicas internacionais – posteriormente, sobre as organizações internacionais – e as propostas liberais de reforma da prática internacional com base em princípios como o primado do direito. Articulamos essas duas correntes, respectivamente, às orientações teóricas grociana e kantiana, em termos semelhantes aos propostos pelo teórico das relações internacionais Martin Wight em sua divisão da literatura sobre teoria internacional. Atendo-nos em maior profundidade à segunda corrente, argumentamos haver convergência entre os teóricos pioneiros da disciplina do direito internacional e as propostas do presidente norte-americano Woodrow Wilson, que marcaram a política internacional no entreguerras. Ao articu31


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lar ambos à orientação teórica kantiana, argumentamos que eles compartilhavam, com base nas propostas para a reforma da prática internacional por meio de princípios como o primado do direito, a crença na resolução racional para os conflitos e no progresso social. Desta última, resultava a distinção entre povos “civilizados” e “não civilizados”, baseada na crença de que havia um espectro unidimensional do desenvolvimento dos povos. Como a proximidade entre os teóricos das relações internacionais e do direito internacional foi ditada pela convergência em torno das proposições liberais, procedemos, com a constatação de que o Primeiro Grande Debate da disciplina relações internacionais deturpou a teoria liberal, a uma revisão desta com base na análise das proposições de Wilson e Kant. Além das deturpações provenientes da associação entre o liberalismo e o “idealismo” proposto por E. H. Carr, argumentamos que a concepção do “realismo” proposta pelo autor é inconsistente. O início das disciplinas relações internacionais e direito internacional No início, o Estado. A formação das disciplinas direito internacional e relações internacionais é mais bem compreendida por meio da análise do conceito de Estado desenvolvido na segunda metade do século xix, resultado de desdobramentos intelectuais ocorridos no âmbito da então embrionária ciência política. A ciência política formou-se como disciplina nos Estados Unidos com os trabalhos de teóricos europeus que emigraram para o país, como Francis Lieber, e de acadêmicos estadunidenses, como Theodore Woolsey e John Burgess. Lieber foi o maior responsável pela transferência da discussão acerca do Estado da Alemanha, país onde nasceu, para a América do Norte. Após longo período de profícuo trabalho nos Estados Unidos, ele foi alçado, em 1857, à posição de professor da Universidade de Columbia, onde foi criada a primeira Faculdade de Ciência Política, em 1880, evento demarcador do início da disciplina para alguns historiadores do tema. Em comum, Lieber, Woolsey e Burgess mantinham uma análise conjunta das facetas interna e externa dos Estados, motivo pelo qual sustentavam, ao lado de suas teorias do Estado, análises típicas de teóricos de relações internacionais e do direito internacional – este último era o objeto principal das atenções no 32


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que se refere à faceta externa do Estado, sendo restrito o espaço destinado às relações entre os Estados como objeto de análise específico. É possível afirmar que houve uma virtual ausência de trabalhos destinados exclusivamente às relações internacionais no período correspondente ao final do século xix, com a notável exceção da obra World politics at the end of the nineteenth century (1900), escrita pelo diplomata Paul Reinsch e considerada por diversos historiadores o ponto de partida para a formação da disciplina relações internacionais. O tema principal da obra de Reinsch era o imperialismo, assunto recorrente à época. Apesar de rejeitá-lo com base na ameaça à paz mundial, Reinsch era um defensor do expansionismo e o explicava com base em fatores econômicos. A contraditória defesa do imperialismo, por vezes, recorria a argumentos como o “dever do homem branco”, o que traz à baila a relação próxima entre os primeiros escritos em relações internacionais e os temas ligados à expansão imperialista (Schmidt, 1998: 73). A passagem para o século xx assistiu à construção de uma visão ortodoxa do Estado, consubstanciada na formulação jurídica clássica segundo a qual a soberania consistia na autoridade suprema sobre uma comunidade política definida territorialmente. Essa definição, propugnada por autores como Westel Woodbury Willoughby, da Universidade John Hopkins; Raymond Garfield Gettell, da Universidade da Califórnia; e pelo diplomata David Jayne Hill impunha consequências categóricas para as disciplinas relações internacionais e direito internacional. A noção de soberania era o móbil que unia o conceito jurídico de Estado e a descrição do objeto de estudo da política internacional e de aplicação das normas jurídicas internacionais (Schmidt, 1998: 79). A noção jurídica do Estado impunha para o estudo das relações entre os Estados uma ontologia caracterizada pela multiplicidade de unidades independentes entre si, sem a presença de um comando central, o que as colocava em situação análoga aos indivíduos no estado de natureza hobbesiano. Desde então, a chamada analogia doméstica, criada no rastro da concepção jurídica do Estado, tornou-se uma das concepções mais frequentemente associadas ao ambiente internacional. Para o direito internacional, a concepção jurídica do Estado impunha um questionamento acerca do caráter jurídico das normas entre os Estados soberanos. A formulação mais 33


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célebre nesse sentido foi desenvolvida pelo jurista britânico John Austin (1954), para quem o direito internacional não possuía os caracteres jurídicos essenciais, dado que suas normas não emanam de um poder soberano. A contestação, pelos juristas internacionais, da doutrina propugnada por Austin e seus adeptos abriu as portas para a construção de uma ontologia que liberava as disciplinas relações internacionais e direito internacional das severas amarras impostas pela concepção jurídica ortodoxa do Estado, esta última resultado de uma poderosa confluência entre o hegelianismo, o darwinismo, o nacionalismo romântico e o positivismo no final do século xix e início do século xx. Os juristas internacionais abriram o caminho para o estudo genuíno das relações entre os Estados, ao contestarem a descrição do cenário internacional derivada da concepção jurídica do Estado. Nas palavras do astrofísico norte-americano Brian Schmidt (1998: 123): “De 1900 até a eclosão da Primeira Grande Guerra, em 1914, a área do direito internacional dominou o estudo e a análise das relações internacionais.” Determinados eventos levados a cabo no período, como as Conferências de Haia, de 1899 e 1907, e a fundação da American Society of International Law, em 1906, com a consequente criação do periódico American Journal of International Law (Ajil), ilustram a íntima relação entre as proposições dos juristas internacionais e a formação de um ambiente para o estudo das relações internacionais de forma desvinculada do conceito jurídico ortodoxo do Estado. As contestações à doutrina de Austin, objeto principal das edições inaugurais do primeiro jornal de língua inglesa destinado exclusivamente ao direito internacional, acabaram por representar, nas palavras do professor Francis Boyle (1985: 23), “o evento mais importante no desenvolvimento de uma abordagem positivista jurídica para as relações internacionais nos Estados Unidos”, abordagem essa que era “intencionalmente desvinculada das respectivas abordagens feitas pelos proponentes da teoria do direito natural e dos cientistas políticos” (Schmidt, 1998: 102). Alguns teóricos do período argumentavam que a ontologia traçada de um conjunto de unidades independentes e soberanas não era empiricamente verificável, em virtude do alto grau de interdependência entre os Estados. Outros se engajavam em propostas de cunho reformista. Obser34


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vou-se, à época, um movimento público para a reforma da prática internacional com base no primado do direito. Passemos à análise mais detalhada de cada uma dessas vertentes. O escritor e economista canadense Stephen Leacock (1906) e o cientista político norte-americano Paul Reinsch (1909, 1911) advogaram a tese de que os níveis de interdependência entre os Estados soberanos contrariavam empiricamente a concepção ontológica que primava pela multiplicidade de unidades independentes. Em 1906, em seu Elements of political science, Leacock sustentava que fatores como o comércio internacional e os interesses comuns, no que se refere ao pensamento, à arte e à literatura, faziam com que a frequência de contatos entre os povos e os Estados estivesse em alta, motivo pelo qual a interdependência entre as unidades do sistema internacional deveria ser considerada na análise da política internacional. Estavam lançadas as bases do perene debate que opõe independência e interdependência como traço caracterizador das relações entre as unidades que compõem o sistema internacional. Reinsch, por sua vez, articulou a crescente interdependência à proliferação das uniões públicas internacionais, os embriões das organizações internacionais do século xx. Na obra Public international unions: their work and organization (1911), que se seguiu ao artigo “International unions and their administration”, publicado no Ajil em 1907, ele trocou a truculenta luta pela existência nacional, que caracterizara a world politics, pelo argumento de que o início do século xx era marcado por um profundo senso de internacionalismo. Desde meados do século xix, mais de 40 uniões públicas internacionais foram criadas, como a União Telegráfica Internacional (1865) e a União Postal Universal (1874). Essas entidades abrangiam áreas diversas, como comunicação, comércio, saúde e agricultura. No que se refere à proposta de reformar a prática internacional com base no primado do direito, deve-se destacar que suas raízes remontam à própria criação da disciplina direito internacional. O jurista finlandês Martti Koskenniemi (2002) apresenta os termos em que esse processo de criação da profissão de jurista internacional desenrolou-se em finais do século xix. Historicamente, o uso e a prática do direito internacional ficaram a cargo de um amplo espectro de profissionais, entre embaixadores, representantes diplomáticos das mais diversas categorias, monarcas, ministros, 35


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generais, marinheiros etc. Ocorre que essas pessoas, apesar de envolvidas no uso e na prática do direito internacional, não concebiam a si mesmas como juristas internacionais, sendo o conhecimento da matéria um dos atributos requeridos para o pleno exercício de suas funções. Mesmo Henry Wheaton, autor do laureado Elements of international law: with a sketch of the history of the science (1836), era um diplomata (Simpson, 2002: 996). Seguindo Koskenniemi (2002), é possível argumentar que, apenas no final do século xix, a profissão de jurista internacional afirmou-se como um grupo de pessoas que concebiam a si mesmas como pertencentes a um nicho profissional específico e distinto dos demais, unidas por sua disposição em expor, desenvolver e, em certo sentido, envolver-se na consecução prática de um corpo de conhecimento considerado minimamente coeso (Simpson, 2002: 995). Passemos à investigação do conjunto de ideias que permeou a formação da comunidade epistêmica responsável pela consolidação da profissão de jurista internacional. Em 1862, três jovens juristas, o belga Gustave Rolin-Jaequemyns, o holandês Tobias Asser e o britânico John Westlake, estavam entre os fundadores da Association Internationale pour le Progrès des Sciences Sociales, uma instituição voltada para a difusão de ideias de cunho liberal. Posteriormente, Rolin, Asser e Westlake reuniram-se com o intuito de criar um jornal encarregado de realizar estudos científicos sobre o direito internacional, seguindo o mesmo viés liberal e reformista. Em 1868, surgia a Revue de Droit International et Législation Comparée, o primeiro jornal de direito internacional. O manifesto que acompanhava a primeira edição apresentava o jornal como um fórum de profissionais para uma reforma liberal legislativa na Europa; com respeito às questões de direito internacional propriamente ditas, Rolin apontava para a crescente influência dos ideais humanitários na limitação do estado de guerra, na esteira da Convenção de Genebra de 1864, que estabelecera provisões sobre o tratamento a ser dispensado a soldados doentes e feridos. Durante os primeiros 20 anos, o jornal – que se tornaria um órgão do Institute de Droit International, criado em 1873 – destinou-se primordialmente a propostas para intensificar a utilização da arbitragem e a realização de encontros para a promoção da paz. Os ideais sustentados pelos responsáveis pela formação da profissão de jurista internacional são descritos por Koskenniemi com base na expressão 36


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l’esprit d’internationalité, “um novo espírito que ensinava as nações e raças a seguir certos princípios comuns, não apenas em suas relações mútuas, mas também em suas legislações domésticas” (Koskenniemi, 2002: 13). Subsistia entre os primeiros juristas internacionais a crença na razão e no progresso social; esta última crença implicava a consideração de que o mundo se encontrava dividido entre “civilizados” e “não civilizados”, com base na constatação de que os povos se encontravam em pontos distintos da escala unidimensional do progresso social. Isso permitia que os pioneiros do direito internacional como disciplina acadêmica se considerassem “a consciência jurídica do mundo civilizado” (Koskenniemi 2002). Apesar de inaceitável para os padrões intelectuais hodiernos, a distinção entre povos “civilizados” e “não civilizados” foi um traço comum na formação das disciplinas direito internacional e relações internacionais, reforçando o senso missionário da primeira e a associação entre anarquia e barbárie típica da última. As regiões colonizadas do globo eram tidas como alienígenas à sociedade de Estados e, como tais, desprovidas das benesses advindas da matização da anarquia provocada pelo senso de que os Estados formam uma sociedade. Nesse sentido, as relações com as regiões colonizadas, desprovidas de soberania, eram tornadas mais próximas da concepção bárbara tipicamente associada ao modelo do estado de natureza hobbesiano. Em seus primórdios, a disciplina relações internacionais comportava grande quantidade de estudos acerca de temas como administração colonial. A consideração de que essa disciplina somente surgiu após a Primeira Grande Guerra acabou por ocultar o forte caráter discriminatório presente na divisão entre “civilizados” e “não civilizados”, divisão essa constitutiva da disciplina desde sua formação e que se manifesta claramente nos escritos do início do século xx. Prova de que a divisão entre “civilizados” e “não civilizados” é perene no discurso de relações internacionais e do direito internacional, e de que, como tal, transcende o período de gestação delas, é a provisão que consta do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, que, vigente até os dias de hoje, é considerado de fundamental importância por elencar as fontes do direito internacional – entre elas, encontram-se “os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas”. O conteúdo exato dos ideais que motivaram os pioneiros da disciplina acadêmica direito internacional deve ser apreendido com a distinção entre 37


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a expressão de língua francesa internationalité e a expressão de língua inglesa internationalism: O conceito de internationalité foi além do conceito de internationalism, que significava um processo de crescente cooperação e desenvolvimento de interesses comuns entre Estados, processo este que era guiado pela maior interdependência entre os últimos. O primeiro conceito também significava a humanização das políticas nacionais e o desenvolvimento de um espírito liberal.2

O conceito de internationalism associa-se a uma forma de pensar que pode ser identificada com o pensamento do jurista holandês Hugo Grocius, convencionalmente considerado o pai do direito internacional e fonte basilar da proposta de direito entre os Estados que vigorou durante séculos na Europa. Característica dessa concepção do direito internacional é o respeito à soberania dos Estados, acompanhado do reconhecimento de que eles podem cooperar com base na existência de certos interesses comuns. A pedra de toque da descrição feita por Koskenniemi da formação do direito internacional consiste precisamente no argumento de que a disciplina acadêmica destinada ao estudo do direito entre os Estados somente adquiriu traços próprios e distintos das demais atividades profissionais, relacionadas com o ambiente internacional, quando as ideias grocianas foram substituídas por uma proposta de reforma mais profunda da prática entre os Estados, sob princípios liberais, entre eles o primado do direito. Seguindo essa perspectiva, “nenhum dos homens por detrás da Revue comungava da tradição de Grocius, ou da escola do ‘direito público europeu’, que dominou os escritos em direito internacional desde Vattel até meados do século xix” (Koskenniemi, 2002: 17). A associação comum entre os primórdios da disciplina direito internacional e o pensamento grociano dá lugar à constatação de que subsistia um verniz kantiano na mente dos homens responsáveis pela consolidação do estudo do direito entre os Estados como disciplina acadêmica autônoma. A distinção entre o pensamento grociano e o pensamento kantiano, implícita na apreensão exata do significado dos termos internationalism e internationalité, remonta à divisão do conhecimento em teoria internacional levada a cabo pelo inglês Martin Wight, divisão essa que é particularmente familiar aos estudantes de relações internacionais. Wight (1991) 38


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dividiu o pensamento em teoria internacional em três tradições: o realismo, o racionalismo e o revolucionismo.3 Apesar das diversas críticas de que é passível tal categorização, deve ser resguardado a Wight o mérito de ter compreendido a diferenciação entre o grocianismo e o kantianismo; Grocius e Kant encabeçam, respectivamente, as tradições racionalista e revolucionista. A diferenciação coincide com as supramencionadas vertentes do pensamento internacionalista até 1914 – grosso modo, os teóricos que argumentavam haver maior interdependência e cooperação entre os Estados eram informados por uma descrição grociana da realidade internacional, ao passo que aqueles que propugnavam uma reforma mais profunda da prática internacional associavam-se a uma proposta kantiana para a relação entre os Estados. Os grocianos tendem a recair para a ênfase na cooperação intergovernamental típica das organizações internacionais, enquanto os kantianos tendem à ênfase cosmopolita, realçando a prevalência de uma civitas maxima sobre a sociedade formada pelos Estados nacionais. Após essa divisão, observada entre os teóricos anteriores à Primeira Grande Guerra, é possível compreender o cenário do pensamento em relações internacionais no período entreguerras, particularmente a distinção entre os estudiosos das organizações internacionais e o wilsonianismo. Em linhas gerais, os estudiosos das organizações internacionais alinham-se aos estudiosos das uniões públicas internacionais, com seu enfoque intergovernamental típico dos teóricos de orientação grociana, ao passo que a doutrina internacionalista associada ao presidente norte-americano Woodrow Wilson alinha-se às propostas reformistas liberais sustentadas pelos teóricos pioneiros da disciplina direito internacional. Associa-se, convencionalmente, o início da disciplina relações internacionais ao final da Primeira Grande Guerra. Conforme sugere a discussão desenvolvida no início deste capítulo, contudo, a análise das raízes da disciplina deve ser estendida ao período anterior à Primeira Grande Guerra, pois, se foi possível observar maior institucionalização do estudo da política internacional após 1919, deve-se ressalvar que a larga quantidade de trabalhos produzida nas décadas de 1920 e 1930 seria impossível sem as fundações construídas pelos teóricos anteriores ao período da conflagração de 1914. Como afirmou o astrofísico norte-americano Brian Schmidt (1998: 39


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155): “O que a guerra fez, do ponto de vista do desenvolvimento disciplinar de relações internacionais, foi popularizar a matéria.” A primeira cátedra de política internacional, criada pela University College of Wales em 1919, é frequentemente apontada como o vínculo que une o fim da Primeira Grande Guerra à criação da disciplina relações internacionais. O crescimento institucional foi acompanhado da proliferação de livros introdutórios: Diplomacy and the Study of International Relations (David Heatley, 1919), International Politics (C. Delisle Burns, 1920), International Relations (Steven Allen, 1920) e International Relations (James Bryce, 1922). Além disso, foi publicada, na Inglaterra, a primeira edição da International Affairs, em 1922, e, nos Estados Unidos, o jornal Foreign Affairs começou a ser publicado no mesmo ano. A concentração dos teóricos do entreguerras em temas como as organizações internacionais e a reforma da prática internacional com base em proposições liberais evidencia a continuidade existente entre os acadêmicos separados entre si pela Primeira Grande Guerra. Há de se ressaltar, entretanto, que a mudança na concepção do Estado propugnada pela ciência política abriu as portas, no entreguerras, para teorizações mais profícuas sobre o ambiente internacional que liberaram as disciplinas relações internacionais e direito internacional das amarras impostas pela concepção jurídica ortodoxa do Estado que marcou os primórdios da ciência política do final do século xix. Após a Primeira Grande Guerra, argumentou-se que as teorias políticas metafísicas do Estado, típicas de pensadores alemães como Hegel, contribuíram para a irresponsabilidade e a falta de restrições observadas com relação à postura da Alemanha no conflito. Willoughby (1918), por exemplo, acusava a teoria política germânica de dotar o Estado de um caráter divino e místico; ele associava a teoria do Estado germânica à eclosão do conflito de 1914, com base em duas características primordiais do pensamento político metafísico típico dos teóricos alemães: em primeiro lugar, não havia limites à autoridade do Estado; em segundo, propugnava-se a ideia de que os interesses dos Estados eram separados e distintos dos interesses dos indivíduos que os compõem. Segue-se que o período entreguerras observou a proliferação de teorias políticas que criticavam o caráter irrestrito da soberania dos Estados. 40


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