Entre imagem e linguagem

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Entre Imagem e Linguagem

Gl贸ria Ferreira e Rosana Ricalde

Rio de Janeiro, 2015

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Conexões intuitivas Em quinze anos de trabalho, Rosana Ricalde tem desenvolvido um modo singular de relacionar linguagem e imagem, criando situações imagéticas de grande potência poética. É desse percurso que tratam as conversas publicadas neste livro, Entre imagem e linguagem, realizadas em 2013. Seu trabalho se inscreve na longa história da relação entre a imagem e a linguagem. Cabe assinalar a expulsão da linguagem da representação pela perspectiva central, tornando-se ela própria representação como os nomes de livros, estabelecimentos ou garrafas de bebidas. No século XVIII, G. E. Lessing – filósofo, dramaturgo e crítico alemão – delimitou o mais nitidamente possível a poesia e a pintura, precisando os objetivos de cada arte através dos signos que lhes servem de meio – e separando, assim, as artes do tempo e as do espaço. A grande influência deste pensador, a quem Goethe agradecia por ter livrado a arte da alegoria, foi longa, apesar da reação de vários artistas como Paul Klee, que lamentava ter perdido tantos anos da sua juventude por uma “ilusão culta”. As vanguardas históricas desde as colagens cubistas, dadaístas e surrealistas, bem como com Duchamp, reintroduzem a linguagem. Uma obra exemplar deste período é, por exemplo, L’œil cacodylate, 1921, de Francis Picabia, composta de fotos e cartões postais e assinada por 56 amigos dadaístas, como Tristan Tzara, Jean Cocteau, Marcel Duchamp e Man Ray, que deixaram mensagens. O trabalho, aliás, acabou recusado no Salão dos Independentes... Essas experiências são negadas por Clement Greenberg, um dos últimos a defender a separação das artes em seu ensaio “Rumo a um mais novo Laocoonte”, de 1940. O crítico norte-americano advogava o imperativo da aceitação das limitações dos meios de cada arte, considerando o modernismo uma empresa de redução e de purificação. Sua grande influência na arte americana se fez, de certa maneira, hegemônica no sistema de arte ocidental, vindo a ser questionada pelos artistas da pop art, do minimalismo etc., mas também, mesmo

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sem referência direta, em outras paragens com movimentos diversos, como no Brasil, pelo neoconcretismo. A partir dos anos 1960, a arte contemporânea é marcada pela reflexão teórica, que se torna instrumento interdependente à gênese da obra. Transformações de linguagem indicam igualmente mudança radical tanto pelo deslocamento da palavra para o interior da obra, que passa a ser constitutiva e parte de sua materialidade, e, em alguns casos, apresentando-se enquanto obra. A presença do signo verbal no campo visual, observada nas colagens e fotomontagens, adquire, assim, nova dimensão, na qual são reatualizadas as questões introduzidas por Duchamp, aceleradas pelo viés conceitual que teve início no final dos anos 1950, com Henry Flynt e o Fluxus. O tempo passa a ser constitutivo das artes visuais e questiona as fronteiras entre as artes. No trabalho de Rosana Ricalde, a temporalidade é sempre presente e ativa. Sua relação com a linguagem já começa quando a artista estudava gravura ou copiava seus cadernos de estudo, buscando algo próximo à escrita, mas se afirma em seu trabalho Alfabeto de Verbos, apresentado em 1999 no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, em Niterói. Alguns de seus trabalhos não deixam de remeter aos caligramas, comuns na vanguarda histórica. Poemas visuais que se expressam por meio de uma original disposição gráfica do texto escrito, formando uma espécie de pictograma e representando um símbolo, objeto real ou figura, que é a própria imagem principal do poema. Seus mares, por exemplo, dão ideias de ondas, quase tsunamis, e não deixam também de remeter a Hokusai. Visando criar um elemento visual, aproximando forma e conteúdo através de recursos gráficos ou tipográficos, é o desenho o seu instrumento, como em suas plantas-mapas. Se há sempre uma afinidade com a narração, instaura-se um novo tipo de ficção, não subordinada à literatura. Como assinala Robert Smithson, “Quando se usa a palavra ‘ficção’, a maioria das pessoas pensa na literatura e praticamente nunca nas ficções em um sentido geral [...] A ficção não se considera parte do mundo”.1

Alterando significados e significantes de diversos materiais, como mecanismo de suas obras, os livros se tornam seu material de base. São desfeitos e refeitos, transformando-se, por exemplo, em plantas-mapas de cidades e labirintos. As das cidades do Rio de Janeiro, Veneza, Berlim, entre outras, foram realizadas a partir de Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Além de o livro ser por ela capturado, podemos pensar também na ideia do próprio atlas do Grande Khan, em que todas as cidades de seu império e dos reinos vizinhos são desenhadas. De certa maneira, as palavras de Marco Polo, “O que comanda a narração não é a voz: é a orelha”, não deixam tampouco de ressoar em seus trabalhos feitos a partir das frases desse livro: a leitura se faz meio aleatória, percebendo-se uma palavra aqui e outra ali, como uma história dentro da história pelas frases lidas pelas pessoas. É, portanto, a recepção que constrói a história. Ou como diz a artista: “Esse livro me fez pensar sobre como poderíamos encontrar essas mesmas cidades fantásticas dentro de qualquer cidade”.2 As Mil e Uma Noites, material de vários trabalhos, como a instalação de mesmo nome, na qual podemos ler o final de cada capítulo – onde Sherazade consegue um sursis com as belas histórias que conta – e ver muitas tiras do livro que indicam narrativas meio vagas, a serem construídas pelo espectador. Fio de Ariadne é um grande novelo feito com frases desse livro; assim como Labirinto, um desenho de emaranhado dessas sentenças. O trabalho realizado com As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault, traz frases do livro trançadas, formando pequenos cubos, como a relacionar, de fato, as palavras e as coisas; e com As Viagens de Marco Polo, a artista transforma o relato de viagens pelo Oriente Médio e Ásia Central em seu caminho para a China ou, ainda, as descrições das regiões costeiras do Japão, Índia, Sudeste Asiático, a costa leste da África com desenhos de rotas imaginárias feitas com frases do livro. São operações que fazem aparecer o não verbal no próprio verbal, não mais constituem parte do discurso, da autoridade da discursividade ou da narração. Como observa Marisa Flórido, “Rosana Ricalde solicita das formas visuais, sonoras e

1 Smithson, Robert. “Um museo de lenguage en la proximidad del arte”. In: Robert Smithson. IVAM Centre Julio González (catálogo), 1993.

2 Rosana Ricalde In: “Entre imagem e linguagem”. Glória Ferreira entrevista Rosana Ricalde. Publicada neste livro.

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verbais que atravessam o campo das visibilidades e dos enunciados seus encontros e combinações incontáveis. Permiti-los é destruir a palavra do seu poder de designação unívoca. E, por que não, localizar no interior da construção dos discursos o intraduzível, este indizível que se aloja em ‘algum lugar’ entre a palavra e a imagem. A devorar-se mutuamente”.3 Ou, ainda, como assinala Paulo Reis, “Rosana Ricalde apresenta o mundo”.4 Em seu trabalho com os manifestos modernistas, a artista explora, segundo ainda Marisa Flórido, “a inaptidão da arte e de seus manifestos em afirmar uma verdade para si”.5 Como posição ou justificativa da posição, o manifesto, de origem política, não se endereça apenas aos artistas ou amateurs esclarecidos, mas a um público amplo: a “todo o mundo”, em uma comunicação direta, sem intermediário. É nesse sistema que Rosana Ricalde interfere ao, de certa maneira, desconstruí-lo. A atenção às palavras, isolando-as e evidenciando suas transformações ou congelamentos é a questão em Liberdade. Em uma mesa, setenta dicionários de várias épocas e autores dos quais foi retirada a palavra “liberdade”; todas as ocorrências do termo foram fixadas em uma parede ao lado, indicando o congelamento dos significados que os dicionários operam. De modo semelhante, A Invenção da Solidão reúne diversos livros de autores diferentes e assinala quando eles se referem à solidão. As palavras também aparecem independentemente dos livros, como em Máquinas de Escrever Poemas (2013), em que um mesmo papel corre entre duas máquinas de escrever que produzem um texto contínuo, ou ainda na pulseira que traz, impressa em alto-relevo em prata e ouro, a frase “A Palavra é Prata, o Silêncio é Ouro”. O processo por que passam os livros é, de certa maneira, revisto em Lápis-Lazúli, em que os desenhos de um tapete persa são transcritos como fragmentos em desenhos que, montados juntos, formam uma nova espécie de tapete. Para Rosana Ricalde, cada parte do tapete constitui um signo, conta uma história que pode ser replicada em seu desenho. Os motivos mais comuns nesses tapetes são arabescos, ramos de videira, folhas de pal-

meiras, medalhões com a sobreposição de padrões geométricos. É a partir daí, como descoberta, que parte o desenho, processado pela repetição. Em colaboração com Felipe Barbosa, Rosana tem uma longa trajetória de ações e trabalhos de arte pública. Entre outros, Muro de Sabão Rio (2000), por exemplo, parte do Prêmio Interferências Urbanas do Rio de Janeiro; Exatidão (2003) é uma partida de damas disputada em um cruzamento nas ruas de Madri; em Changing The Flow (2005) criavam um fluxo de doações de garrafas d’água a partir de uma estação de trem em Rotterdam, na Holanda; e em Trocas de Cartões (2006), realizada numa praça de Fortaleza, produziam e imprimiam cartões para pessoas à procura de emprego. Ou ainda Hospitalidad – Hospitality, realizado em Tijuana, em 2005, no contexto do Projeto InSite 05. São ações que tendem a se servir de materiais do cotidiano, simples, que geram empatia com os passantes, quer seja para pegar um pão ou uma garrafa d’água, ou ter o nome escrito, como em Hospitalidad – Hospitality. Essas intervenções urbanas são situações que apontam, segundo Guilherme Bueno, “dois elementos que parecem absorvidos da cidade: o ‘anonimato’ e a ‘surpresa’”.6 O anonimato, ainda segundo o autor, é uma espécie de trabalho de confluências, de um “terceiro autor”. “Estas incursões contêm a descoberta de outras surpresas que não seus marcos ou personagens, mas o fato dela requerer para sua sobrevivência a determinação de non-sites, de pontos cegos, de que sua ordem se assegura na pontuação de pequenos momentos caóticos.”7 O casal de artistas, Rosana e Felipe, deixou a cidade do Rio de Janeiro em busca de mais espaço: construíram uma casa-ateliê num terreno de mais de mil metros quadrados em Rio das Ostras. Lá, intensificaram sua produção, além de ampliar a escala de suas obras. A solidão, bem, a solidão é compensada por suas conversas sobre os trabalhos.

Glória Ferreira [Crítica de arte, curadora, professora colaboradora da EAV e da Escola de Belas-Artes da UFRJ]

3 Cesar, Marisa Flórido. “Exercício da Possibilidade”. In: Rosana Ricalde. Santiago de Compostela: Artedardo S.L., 2008. 4 Reis, Paulo. “As Palavras Compartilhadas de Rosana Ricalde”. In: Rosana Ricalde, op. cit. 5 Cesar, Marisa Flórido. “Exercício da Possibilidade”. Rosana Ricalde. Disponível em http:// www.rosanaricalde.com/pdfs/MarisaFloridoPORT.pdf

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6 Bueno, Guilherme. “Poéticas Compartilhadas / Poéticas Expandidas”. Rosana Ricalde. Disponível em http://www.rosanaricalde.com/pdfs/GuillermeBuenoPORT.pdf 7 Idem.

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Fio de Ariadne 2011 / Novelo feito com o livro As Mil e Uma Noites recortado em linha / 30 cm de di창metro

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As Mil e Uma Noites

(detalhe)

2012 / Instalação feita com o livro As Mil e Uma Noites recortado, onde fica em destaque a última frase de cada amanhecer / Dimensões variáveis

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As Mil e Uma Noites 2012 / Instalação feita com o livro As Mil e Uma Noites recortado, onde fica em destaque a última frase de cada amanhecer / Dimensões variáveis

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A Palavra é Prata o Silêncio é Ouro 2012 / Pulseira metade feita em ouro e metade em prata com as palavras Silêncio e Palavra em alto relevo/ 10 cm de diâmetro / Realização em parceria com Alessandra Schiper – Atelier Schiper

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Histórias da Palma da Mão 2012 / Desenhos inspirados nos Mehendis – sobre papel vegetal e vidro / 46 x 37 cm

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Histórias da Palma da Mão 2012 / Desenhos inspirados nos Mehendis – sobre papel vegetal e vidro / 46 x 37 cm

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Histórias da Palma da Mão

Histórias da Palma da Mão

2012 / Desenhos inspirados nos Mehendis – sobre papel vegetal e vidro / 46 x 37 cm

2012 / Desenhos inspirados nos Mehendis – sobre papel vegetal e vidro / 46 x 37 cm

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Histórias da Palma da Mão 2012 / Desenhos inspirados nos Mehendis – sobre papel vegetal e vidro / 46 x 37 cm

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Histórias da Palma da Mão 2012 / Desenhos inspirados nos Mehendis – sobre papel vegetal e vidro / 46 x 37 cm

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