CONDUTA MÉDICA FRENTE A FAMiLIA DA CRIANºA ATÍPICA Salvador A.
H. Celia *
Atípica, nos dicionários, é conceituada como anomalia, e as referencias estáo ligadas a Medicina, especialmente a patologia, e em nosso caso, as atividades mentais. A crianga atípica é a que muitas vezes nasce, desenvolve-se diferente, ou entáo, a partir de um determinado momento de sua vida, por urna acorrencia ambiental, torna-se atípica. E urna crianga com certo grau de incapacidade, muitas vezes chamada de "crianga diminuída", que necessitará de cuidados especiais em seu ambiente, das pessoas que a cercam, e de urna estrutura sócio-cultural adequada para que possa desenvolver seus recursos, geralmente rudimentares e escassos. Urna crianga atípica, nos seus vários estágios de desenvolvimento e "performance", é urna crianga vulnerável, porque está submetida a vários riscos internos e externos. Um ecologista, Jacques May, elaborou urna interessante analogia entre a relagáo dos riscos e das vulnerabilidades. Imaginemos tres bonecas: urna feita de vidro, a outra de plástico e a terceira de ago, cada urna exporta a urna mesma batida de um martelo. Como resultado, teremos que a primeira boneca quebrou totalmente; a segunda, ficou com marcas ou sequelas; e a terceira, deu apenas como resposta um fino som metálico. A conclusáo é de que a boneca estava sob riscos de forgas externas, por causa de sua constituigáo. Em adic;áo, poderíamos dizer, também, que ela fora mal cuidada por seus donos, por' negligencia ou outros fatores, acarretando como conseqtiencia seu desmantelamento. Nos seres humanos, também encontramos o mesmo fenómeno. Há c"riangas,mais ou menos resistentes, muitas •
Diretor da Escala Terapéutica Leo Kanner --< Porto Alegre Professor do Curso de Pós-Graduac;áo em Psiquiatría Infantil da FMPA Presidente do CapítUlo Gaúcho da ABENEPI
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vezes submetidas aos mesmos estímulos ou riscos, e que apresentam como resultado, diversas respostas. A ruptura total ou parcial, do equilíbrio mental em que vivemos, dá como resultado a doenga mental que guarda estreita relagáo entre o estado de vulnerabilidade maior ou menor, com os riscos a que a crianga é submetida. A crianga atípica, geralmente, vive num acúmulo de riscos internos e externos que a levam a um consta!lte estág'o de suscetibilidade ou vulnerabilidade. A solugáo seria fazermos urna "capa protetora" e tentarmos, além disto, protege-la dos riscos externos. A eficácia de nosso atendimento, somente poderá ser avaliado com o passar do tempo. Urna crianga, com desenvolvimento mental atípico, sofre no seu desenvolvimento vital os mesmos efeitos de urna bola de neve, rolando de urna alta montanha. E difícil avaliarmos se foi a falta de condigoes emocionais ambiental que deixou a crianga piorar, falhando nas tentativas de inculcar seguranQa e confianQa, necessidades básicas para o desenvolvimento, ou se foram as deficiencias constitucionais da crianga que mais agravaram o quadro. Parece que os dois fatores se conjugam, formando urna ou mais estruturas, que sáo rigorosamente interdependentes . Quando essa estrutura relacional está perturbada, ternos a ruptura do equilíbrio, e como conseqiiÉ~ncia,o agravamento dos distúrbios de conduta da crianQa e dos familiares. Acrescentando vivencias culturais, ambiente social, muitas vezes pobre e carente, temos com isto o agravamento dos riscos e o aumento das vulnerabilídades. Quase sempre náo pensamos em "estado de cura", e sim em "estados de melhoria", compensagáo, apoio e guía frente aos problemas. Há necessidade de crianga e fami!iares aprenderem a viver num estágio de "disfun<;áo", 2dap:aaO e determinado, necessitando para :.stD '-;-eis,descobrindo o grau das ooren.ciali( e cada sir~o, para Cf. ~I
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serem modificadas em face a conduta determinada por um nava elemento dentro do campo de agao: o terapeuta. Tal como as criangas e os familiares, tem ele também de ter condig6es pessoais em nível informativo e compreensivo, para que possa atingir as condig6es de adaptabilidade funcional, a fim de poder intervir no atendimento das relag6es estruturais acima citadas. Para melhor desempenhar sua fungao, o terapeuta deve ser uma pessoa com formagao psicodimlmica, preparado para passar pelas várias vicissitudes nas evolug6es que ocorrem na terapia dos familiares. Dentro desta dinamica relacional, que acarreta a formagao de uma estrutura na qual o terapeuta está voltado para agir, existem longos estudos de Anthony, informando que geralmente as criangas vulneráveis vivem em ambientes vulneráveis. Normalmente, todos nós estamos submetidos aos "stresses" da vida, tais como a perda de amigos, familiares, acidentes, etc ... , acontecimentos estes que só quebram a "homeostase" ambiental, quando já existem fato res predisponentes no meio ambiente como falta de comunicagao e organizagao interfamiliar, ausencia de qualquer perspectiva de melhora futura, e geralmente a existencia de urna rotina. No caso da crianga atípica, ela funcionará como fator desgastante que terá sua influencia em meios ambientais já carentes. Vejamos na prática, uma série de exemplos que possam ilustrar a interagao crianga-família, e o manejo terapeutico de algumas situag6es que sao muito individuais. Maria, sete anos de idade, em seus primeiros anos de vida teve um desenvolvimento próximo ao normal, segundo o relato de saus pais. Após o nascimento de seu irmao, é que alguns síntomas foram "percebidos". Com o passar do tempo, suas "fragilidades egóicas" intensificaram-se, sofrendo impactos com acontecimentos corriqueiros do dia-a-dia, como por exemplo, mudanga de estaQ6es, chegada dos fins-de-semana, aniversários em sua casa, etc ... Suas reaQ6es sao agudas, sofrendo as vezes crises de despersonalizagao em seu funcionamento que normalmente já apresenta defeitos de personalidade. María exige constante atengao de seus "cuidadores", terapeutas e familiares que
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precisam est,ar em con~tante estado de alerta para verificar os pontos crHico.s que atingem o baixo limiar de sua sensibilidade. Urna das características de funcionamento do meio ambiente em que vive é o nível de exigencias e perfeccionismo que em seu caso foi fator agravante da situaQáo ambiental, impedindo as possibilida.des de uma melhor adaptagáo. Inclusive a doenQa de ]\IarÍa trouxe urna sobrecarga a seu irmao rna:.s '\elho que nascera e se desenvolvera com urna imarur:daá.e ne-~o!ógica (ct.:sfunQáocerebral) e que após a áoe::¡;;a áe ".r~....• ..a passou a receber a carga de ex:ga~"':::;. "~~:-;:::J=>e.:.::oG essa sobrecarga descompenSOi.l e =="'~~-rr~ se :::.:.?"""'ñ'cio em psicoterapia individual. =-~~=o~-;-o con...~do entre o terapeuta elhor percebidos as inte. entos que transtomam a o'\e anos de idade, nasceu com probleque acarretaram sofrimento cerebral. Seu :=~.\ou:~enw foi mais lento, e algu¡mas vezes, certas :::::cóes foram adquiridas com certo atraso. Somente aos :inéo anos, foi eñcaminhada para um atendimento psicoógico, após sua primeira professora ter notadp que a menina era esquisita, pela sua timidez e reaQoes de paruco a cada situagáo nava .. Foi ela criada num meio em que a comunicagáo entre os famj.liares é pobre, OC9rr!3ndosomente em nível superficial, tendo o prOblema sua origem no relacionamento do casal. Sua rpáe a protegeu sempre, fazendo tudo por ela, impedindo-a assim de desenvolver seus hábitos primários, tais como vestir-se, b~ar-se só, etc ... Normalmente, ~uísa seria urna menina com urna conduta atípica, mas pela falta de estímulos soc!~lizal1tes, decorrentes das atitudes superprotetor~s, teve l?1Jª, condiQáo agravada. Recebeu ela um atendimento ambientoterápico baseado em técnícas psicopedagógicas, e seus pais, atendimento em nível de orientagao, no sentido de buscar a socializagáo da menina. Durante um certo tempo, Luísa esteve acompanhada de "uma amiga qualificada" que trabalhava com ela diariamente, visando a mudanga. de seus hábitos, no sentido de reforgar sua independizagáo.
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Renato, com oito anos de idade, teve um desenvolvimento atípico logo após o seu nascimento. Era descrito como um "anjo", pois nunca incomodava. E o segundo filho de uma familia de cinco irmáos. Aos quatro anos de idade, foram notados os sintomas que já estavam em desenvolvimento, caracterizados por sua passividade, retraimento social, e um viver na fantasia. Passou Renato, desde entáo, a receber atendimento especializado, ficando todas as tardes na Escola Terapéutica. 8ua conduta, agora, é oposta; na escola, sua socializagáo está em desenvolvimento, enquanto que em casa encontra-se extremamente agressivo, dando a entender que necessita ateng6es. O mesmo se passa, porém em nível diferente, com seus irmáos, demonstrando ser necessário a presenga de alguém mais em casa, para ajudar aos pais, principalmente a máe, nas tarefas caseiras. Há, nesses casos, um ciúme constante por parte dos irmaos, uma vez que a tendencia natural é acorrer urna superprotegao. Face a isso, o próprio casal passou a retrairse nos sendo evidente que já havia urna situagáo prévia de falta de comunicagáo, tanto social como pessoal entre eles, sendo necessário se clarificar o estudo destas condutas. NGste caso, era intensa a necessidade da máe em assumir todas as responsabilidades da casa, sendo clara sua atitude em nao aceitar a entrada de urna pessoa qualificada para lhe auxiliar nas tarefas domésticas, fato este que lhe ajudaria a desempenhar melhor suas tarefas de máe e esposa. 80b o aspecto didático, para simplificar as vivéncias que ocorrem nas abordagens com os familiares das criangas atípicas, pOdendo resumir os vários estágios da conduta terapéutica. Inicialmente, há urna fase exploratória e informativa para o tenipel.1tae os pais. O terapeuta deve estar voltado para conhecer a profundidade do problema da crianga e da intensidade da estrutura funcional resultante da interagáo entre ela e os pais. Igualmente, o nível de sensibilidade deve ser avaliado, para ser transmitido o diagnóstico e o plano de atendimento. Os pais vivem essa fase, sob urna atitude de desconÚanga, medo, inseguranga, defendendo-se de possíveis acusag6es de responsabilidade pelo estado da crianga, que
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pOderao trazer, como conseqtiéncia, o aumento do sentimento de culpa.
o segundo estágio é, por nós, denominado de intermediário (I) permanecendo com as características funcionais exploratórias e compreensivas. Nos pais existem os sentimentos de esperanQa e de idealizaQao acentuada do tratamento, depositadas no terapeuta. O terceiro estágio, intermediário( II), permanece no terapeuta as atitudes exploratórias e compreensivas, enquanto que nos pais predominam os sentimentos de revolta pela perda da idealizaQao. Isto é sentido nas atitudes com a crianQa, como desleixo nos cuidados com a mesma (vestimentas, brinquedos, falta de reposiQao de material usado na terapia, etc ... ) e com o terapeuta, no atraso do pagamento, falta ou pequenos atrasos nas entrevistas com o casal, e na vinda da crianQa a escola. (falta, atraso, etc ... ).
Na fase final, quando a alcanQamos, há urna colaborac;ao nítida dos familiares para com os terapeutas, funcionando como verdadeiros agentes terapéuticos. Em outras palavras, dizemos que atingimos um coeficiente de adaptabilidade satisfatório, sendo essa uma de nossas metas ao iniciarmos o tratamento. Em resumo, posso dizer, que no campo de aQao formado pelos elementos "terapeuta-crianQa-família" há necessidade de se estar atento primeiro, para a relaQao estrutural decorrente da interaQao do binomio crianQa-família e, em seguida, para a situaQao estrutural decorrente da presenQa do terapeuta, formando assim um trinomio. O terapeuta deve estar voltado para decifrar os códigos e os obstáculos que impedem a comunicaQao familiar com a crianQa e com ele próprio visando com isto melhorar o relacionamento e conseguir a adaptaQao a realidade.
Uma visao parcial do terapeuta, colocando as responsabilidades somente de um lado do bin6mio, geraImente o dos familiares, levará o mesmo a um insucesso na abo~agem do caso. ente, urna crianga
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atip:
ecessitará de
atendimento especializado, podendo se incluir como inerente a ela o atendimento a seus pais, que para nós o preferido é o psicodinámico, em nivel de orientaQao, e cuja meta principal é conseguir-se a adaptagao a realidade, situaQao que é melhor atingida sempre que os pais conseguem se tornar "agentes terapéuticos". BIBLlOGRAFIA
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