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Dica do Filme “O que ficou para trás” / Pedro Víctor Santos .................. 14 e Homenagem a Luiz Carlos Mabilde
from JA - Julho/2021
by APRS
DICA DE FILME
Transcendendo Fronteiras: Migração e Saúde Mental“O que ficou para trás”*Pedro Víctor Santos
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Em 2020 a Netflix lançou o filme de produção inglesa “O que ficou para trás” (His House, dir. Remi Weekes). O longa-metragem tem como mote acompanhar um casal de refugiados do Sudão do Sul se adaptando à nova vida que lhes é dada na Inglaterra. Com uma premissa de assombração, que traz fantasmas e sustos ao espectador, seria esperado um filme para comer pipoca e não se preocupar muito com tramas. No entanto, o espectador se depara com reflexões que podem assustar ainda mais, causando sentimentos inquietantes.
Ao trazer o tema da adaptação a uma nova realidade de vida, nos vemos ao lado dos protagonistas, descobrindo aos poucos aquilo que ocorre com eles e, conforme avançam e tomam coragem
de revisitar suas lembranças, dão a nós, que os acompanhamos, a possibilidade de compreender que aquilo que fica para trás não vai embora.
Ao longo do filme nos deparamos com questões sobre ser arrancado de sua casa, do horror que é não ter um lar, e de como não existe a possibilidade de esquecer. Nas paredes da casa se escondem os fantasmas. Estão lá, por trás das aparências, e são parte fundamental da estrutura, aquilo que sustenta tudo. Basta o buraco na parede para nos mostrar o fio que puxa as lembranças mais dolorosas e que não se desejaria ter.
Para que o casal possa viver sua vida onde estão, é necessário se adaptar à nova realidade em uma terra desconhecida e que fecha os olhos às tradições daqueles que chegam. O ambiente se mostra hostil e até mesmo aqueles com quem se poderia identificar - os jovens negros da cidade - se mostram não acolhedores e reproduzem violências típicas do Ocidente diante de culturas desconhecidas. “Volta para a África” diz um dos jovens negros à personagem protagonista.
O XV Congresso Gaúcho de Psiquiatria tem como tema central “Transcendendo Fronteiras: Novos Horizontes em Saúde Mental”, para nos convidar a expandir nossa mente em busca de soluções para a realidade na qual vivemos, onde as culturas são ao mesmo tempo globais e locais, e que a história, diferente da tipicamente ocidental, traz o desconforto àqueles que recebem os imigrantes. Apesar de sermos uma sociedade conectada, cujas fronteiras são cada vez mais fáceis de serem cruzadas e de pessoas transitarem entre elas de forma nunca antes vista - vide a disseminação do coronavírus globalmente -, é possível enxergar que há uma parcela da população que conhece bem o que é ter portas fechadas para si, enquanto assistem a outras pessoas tendo as portas escancaradas para elas.
E é claro desde o início o incômodo que o filme quer causar lançando questões sobre cidadania. A frieza do outro com os diferentes faz com que sintamos o desconforto que é não ser reconhecido como uma pessoa. “Não como cidadãos”, diz um dos personagens que entrevista o casal, ao explicar que eles serão recebidos na Inglaterra. Uma condição para desumanizar.
Um indivíduo mergulhado em desumanização tenta, a todo custo, mostrar que é humano. O conflito entre o casal se dá através da dinâmica entre o marido que tenta abraçar os comportamentos ocidentais sem questionar e a esposa que se agarra às tradições de berço. Dentro da
casa, a briga se dá através da língua falada: a língua estrangeira falada por um, que tenta desesperadamente dizer aos ingleses que ele pode se encaixar, e a língua nativa dita por outra. Um reflexo da maneira como os personagens tendem a lidar com os conflitos que os levaram até o momento em que os conhecemos. O sofrimento sem nome que ambos carregam e tentam lidar, individualmente, leva ao aumento do isolamento. A dificuldade para enxergar o esforço do outro aumenta o espaço entre ambos. Sozinhos nas ruínas da memória, isolados de seus parceiros, ficam expostos às assombrações e aos ataques dos fantasmas. Vem a real ameaça: a ameaça à vida. Mas há salvação na luz.
Assistir a “O que ficou para trás” me remeteu à boa safra do cinema de horror da última década, com obras carregadas de significado como “O Babadook”, “Corra!”, “Nós” e “Hereditário”, filmes que usam o horror para expressar experiências dolorosas ao ser humano. Uma maneira de enxergarmos as dores que não conseguimos facilmente expressar, mas que sabemos que estão lá, escondidas nas paredes, e que por vezes nos assustamos em buscar sabê-las, mas são partes estruturais de nós mesmos. “O que ficou para trás” é um filme sobre a tentativa de esquecer e a descoberta do elaborar e de lidar com os fantasmas que existem em nós.
O horror pode passar e virar esperança.
* Pedro Víctor Santos Médico pela Faculdade Pernambucana de Saúde. Residência em Psiquiatria e Psiquiatria da infância e adolescência pelo HCPA.