Autorretratos

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AUTORRETRATOS


HAVER FILMES 2018





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APRESENTAÇÃO

10 PAISAGENS AFETIVAS - DIÁRIOS DE DAVID PERLOV UM PASSAPORTE HÚNGARO: CINEMA POLÍTICO E INTIMIDADE 28 AS VOZES DE FLAVIA 32 INSÔNIA 38 ENTRE O SABER E A EXPERIÊNCIA 42 RELAÇÃO COM PAI E LEMBRANÇAS DA DITADURA 44 ELENA 48 A CRÍTICA QUESTÃO DO TEMPO 52 A IMAGEM DO EU: DESAFIOS EM TORNO DE UMA PERGUNTA 60 “DESCOBRI QUE NÃO ERA ASSASSINO”

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LONGAS-METRAGENS 80 84 86 88

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UM

76 33 78 CONSTANTINO CONSTRUINDO PONTES 82 DIÁRIO DIÁRIO DE UMA BUSCA E AGORA? LEMBRA-ME ELEGIA DE UM CRIME 90 ELENA 92 HOMEM-CARRO 94 INSÔNIA MATARAM MEU IRMÃO 98 OS DIAS COM ELE 100 SANTIAGO 102 TARNATION PASSAPORTE HÚNGARO

MÉDIA-METRAGEM 108

O ESPELHO DE ANA

CURTAS-METRAGENS 114

FICHA TÉCNICA


APRESENTAÇÃO As artes plásticas e a literatura, há tempos, produzem obras confessionais ou, no mínimo, autobiográficas. São autorretratos, diários, romances, poemas e contos que vêm ao mundo com o seu autor no lugar do protagonista. Para o cinema, no entanto, essa é uma vereda que vem sendo explorada apenas desde a década de 1960. Teóricos da sétima arte são unânimes em apontar o cineasta Jonas Mekas como um dos precursores do cinema documental autorreferencial. Filmes como “Walden: diaries, notes and sketches”, são uma espécie de estopim para um jeito até então novo de filmar. A mostra “Autorretratos” abre uma janela entre cineastas e espectadores. São filmes-diário, filmes-esboço, filmes de uma sinceridade difícil de encontrar por aí. Contudo, essas obras apresentam um mundo que, em geral, é soturno. É que grande parte destes títulos surge para que seus realizadores possam lidar com seus próprios abismos. Em “E Agora? Lembra-me”, o português Joaquim Pinto filma a si por um ano enquanto atravessa um tratamento experimental para HIV. O paulista Cristiano Burlan escancara sua dor no premiado “Mataram meu Irmão” e no recente “Elegia de Um Crime”, sobre o assassinato de sua mãe. Algo semelhante faz Petra Costa com “Elena”, filme em que ela tenta se aproximar da memória de sua irmã, que se suicidou há mais de vinte anos.


Há, ainda, buscas por uma identidade ou um reconhecimento, caso dos filmes “Um Passaporte Húngaro”, de Sandra Kogut, “33”, de Kiko Goifman, “Constantino”, de Otávio Cury, e “Diário de Uma Busca”, de Flavia Castro. Kogut tenta um visto húngaro e, no caminho, descobre a cultura de seus ascendentes. Sua própria cultura, diga-se de passagem. Goifman busca a mãe, em um misto de filme noir e documentário. Ele foi adotado e, aos 33 anos, decide que é hora de encontrar sua genitora. Cury, por sua vez, busca entender o passado de sua família na Síria. Ele descobre que seu bisavô era poeta e inicia o trajeto traduzindo uma obra encontrada. Flavia Castro tenta desvendar um mistério sobre a morte do pai. Ele, jornalista, morreu aos 41 anos de forma suspeita em plena ditadura militar. Em “Insônia”, Alan Berliner também cumpre uma investigação, mas esta para tentar entender como que sua doença está intrinsicamente ligada ao seu modo de vida e sua arte. Outro cineasta que passou muitos anos filmando o seu cotidiano foi o judaico-brasileiro David Perlov. Sua obra “Diários” é composta por seis telefilmes nos quais ele narra suas impressões sobre sua vida em Israel, país que ele adota e passa a viver a partir da década de 1950. A mostra traz ainda outros tantos filmes e outras tantas subjetividades. Cada filme, um universo. Cada filme, um mergulho em si.

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AUTORRETRATOS


PAISAGENS AFETIVAS - DIÁRIOS DE DAVID PERLOV por Ilana Feldman e Cléber Eduardo Publicado originalmente na Revista Cinética

Através da janela do apartamento de sua filha Yael, em Paris, David Perlov observa um grupo de crianças e uma sucessão de pés caminhando. Vemos nessas imagens do quinto capítulo dos “Diários de David Perlov” (Diary, 1973 - 1983) uma beleza simples, cotidiana, revelada por enquadramentos livres e seletivos, que são o princípio formal das seis partes desse memorialístico e metalinguístico caderno de notas audiovisual. Enquanto crianças de diferentes origens brincam em um pátio e, por trás delas, na rua, pés movimentam-se com pressa ou elegância, no plano da narração, Perlov postula seu manifesto estético: um cinema sem trama, sem intrigas, calcado na observação dos espaços, públicos e privados, na observação do movimento de corpos como fluxos no tempo, na captação de fragmentos do cotidiano, de pequenos gestos e expressões de rostos anônimos – situações ou instantes cuja riqueza está tanto nas experiências apreendidas quanto no modo de se olhar para elas. Pode-se dizer que o cinema prenunciado nos “Diários de David Perlov”, revelado à boa parte dos brasileiros com sua exibição nos festivais deste ano, foi um dos grandes destaques da programação destes – tendo ganho, inclusive, exatamente essa menção no Prêmio da Crítica Independente. Esse cinema, que reivindica para o ordinário uma estética que lhe seja própria, começou a ser filmado em 1973 e terminou em 1983, tendo sido organizado durante a montagem em seis capítulos de 55 minutos. No início, usando uma câmera em 16mm, tratava--se de uma experiência sem finalidade específica. Somente quando se tornou série de TV, veiculada pelo Channel 4 inglês, Perlov colocou a narração, construindo, posteriormente à captação, uma memória para as imagens, ou para as suas “anotações” visuais. Assim, Perlov fazia dos “Diários” não apenas um potente espaço de construção e atualização da memória, mas também um território propício à reflexão – muitas vezes sobre sua própria metodologia documental. Este é o segundo turno da obra de David Perlov (19302003), um judeu brasileiro, natural do Rio de Janeiro, criado em Belo Horizonte e São Paulo, cidadão de Israel – e referência maiúscula no documentário deste país escolhido como lar. O primeiro turno foi marcado por trabalhos pouco apreciados 11


pelo status quo israelense, com destaque para “In Jerusalém” (1963), documentário de 33 minutos, em que Perlov filmou mendigos de Tel Aviv, grupo social no seio do qual, segundo uma poetisa ouvida pelo filme, nasceria o Messias. Apesar de ter sido premiado no Festival de Veneza de 1963 e ser considerado um marco do cinema israelense, o filme teve como consequência o isolamento de Perlov pelas autoridades políticas de seu país. Perlov buscava liberdade estética e política em um momento histórico pontuado por legislações e autoridades pouco flexíveis em Israel, que reivindicavam projetos cinematográficos de propaganda ideológica e não valorizavam experiências formais empenhadas em dar espaço ao humano. Segundo sua esposa, Mira Perlov, também produtora dos “Diários” (e que esteve no Brasil acompanhando a exibição dos trabalhos), Perlov “queria fazer filmes sobre pessoas, enquanto eles (o status quo israelense) queriam filmes sobre ideias”. Da Europa e da América do Sul, continentes com os quais o diretor tinha contatos próximos, as experiências e ideias, no campo da imagem, estavam a fervilhar – a Nouvelle Vague, os Cinemas Novos, Jean Rouch, o Cinema Direto norte-americano. Filiado a essa modernidade estética e sob a influência seminal do documentário poético de Joris Ivens (de quem Perlov foi assistente), “Diários” é também fruto de uma crise com as convenções da ficção e do documentário, quase um misto de experiências que vinham sendo praticadas nos anos 60. Assim, ao mesmo tempo em que o filme incorpora a consciência de quem é filmado – como no Cinéma Verité francês –, também se apoia no método observacional de não-interferência do Cinema Direto norte-americano. De todo modo, nos “Diários”, parece haver ainda um retorno às origens, às de Perlov e às do cinema – como as cenas de rua e de família captadas pelos irmãos Lumière. Some-se a essas referências estéticas e estilísticas a presença constante da narração em off, não como voz de um saber onisciente e teleológico, mas como voz subjetiva do autor-narrador expressa em primeira pessoa. A voz de Perlov que tudo narra, não para reiterar imagens ou totalizar o sentido das experiências, mas para buscá-lo incessantemente. Perlov desenvolve um projeto estético no qual a narração não está comprometida com uma verdade de “quem se é”, mas com a própria materialidade sonora das palavras, materialidade que contempla a entonação, a estrutura das sentenças e uma rítmica oral em sintonia com o movimento dos planos e, sobretudo, com o movimento no “interior” dos planos. Dessa AUTORRETRATOS


forma, sua narração deixa de apenas contextualizar os momentos da filmagem para ver nesses momentos pontes com sentimentos e sensações que habitam seu passado. Há, assim, uma paradoxal relação entre imagem e memória, pois, ao mesmo tempo em que as imagens, captadas durante a filmagem, evocam memórias, essas mesmas memórias são também produzidas pela articulação das imagens na montagem. Portanto, não se trata de um projeto proustiano, marcado pela memória involuntária. Em “Diários”, a procura da Madeleine perdida é consciente, almejada e requerida. Também não se trata de um projeto de documentário que se instala na duração temporal, já que sua narração não é contemporânea à captação das imagens. Perlov, de modo diverso, trabalha na lógica do fluxo, evocando e construindo memórias a partir da fragmentação do tempo, dos espaços e das experiências, embora essas experiências estejam organizadas de forma cronológica. Há uma busca empreendida, e constantemente assumida, em “Os Diários”. De início, não sabemos ao certo o que se está a buscar, embora, pela insistência da voz de Perlov em ver algumas imagens como presságios, possamos intuir que essa busca é por algum tipo de revelação. Como quem perscruta os confins da memória à procura de um rosto perdido, de um sorriso doce, de um grito surdo e da música da infância (no caso, uma ária de Bach), Perlov busca uma imagem capaz de nos evidenciar algo só possível de ser apreendido pela sempre atenta câmera-olho do cineasta e só possível de ser captado pela tecnologia do cinema. Logo no início de sua quase onipresente voz off, Perlov explicita sua aversão a artifícios construtores de sentido, propondo um caminho não-ficcional para a “revelação” buscada pelos “Diários”. Haveria, assim, algum segredo na imagem, alguma epifania, aparentemente invisível, a ser revelada. Tal epifania só poderia ser flagrada sem roteiro prévio ou encenação, apenas com a observação insistente dos pormenores da vida. Judeu laico, Perlov, em diversos momentos dos “Diários”, evidencia uma relação religiosa com a capacidade de revelação da imagem, ao reter instantes e ao produzir memória – visão que nos remete a André Bazin, defensor de um cinema vocacionado a sacralizar o ordinário. No sexto e último capítulo dos “Diários”, Perlov nos diz que, desde a infância, é um admirador dos enquadramentos proporcionados pelas janelas do trem que ligava Belo Horizonte 13


a São Paulo, enquanto retém seu olhar em uma janela de um vagão da Estação da Luz, evocando, talvez, a gênese de sua trajetória – que não está longe da imagem-gênese da exibição cinematográfica (o trem dos Lumière). A partir de então, ele olha e enquadra por janelas de bondes, de automóveis e dos apartamentos pelos quais passa. Nesses momentos, temos dois quadros, o do visor da câmera e o da janela, através dos quais o cineasta observa o movimento do mundo, mas sem com isso lhe conferir nenhum sentido prévio, nenhuma finalidade – espécie de testemunha do acaso. Perlov afirma, a partir da imagem das pernas de um homem correndo, que só importa o movimento do homem que corre, e não de onde ele vem ou para onde está indo. “A observação é parte do meu ser”, enfatiza. No entanto, quando mira de suas janelas, Perlov, longe de se abrir inteiramente ao acaso, procura o extraordinário de uma imagem qualquer, não o ordinário de qualquer imagem. As janelas são, ainda, uma forma de propor a convivência entre a vida de dentro (o cotidiano em movimento da família) e a de fora (o movimento diversamente repetitivo da rua). Essa relação também se estabelece com o uso de um mesmo som ambiente de cidade, ruidoso e carregado de buzinas, em ambientes domésticos. Porém, quando filma em Israel, seja de dentro de seu apartamento ou fora dele, salienta que essa convivência entre interioridade e exterioridade assenta-se sobre uma espécie de relação dicotômica. A família e os amigos são sempre filmados em situações de harmonia, em uma espécie de utopia das relações afetivas, enquanto o país, quando mencionado e visualizado, carrega o peso de uma expectativa frustrada. O lar é, assim, o refúgio da distopia nacional. E mulher e filhas são, nesse contexto, seu povo primeiro. No primeiro capítulo dos “Diários”, a Guerra de Yom Kippur, depois de algumas imagens de protesto captadas pela janela, chega-nos pela televisão (uma outra janela explorada por Perlov nos dois primeiros capítulos). Essas imagens da guerra semeiam a incerteza em um espaço de segurança. Nesse caso, há uma fusão pela TV da relação dentro/fora. Já nos capítulos subsequentes (três e quatro, sobretudo), essa relação torna a ser de complementariedade e de oposição. A terceira parte dos “Diários” traz algumas das mais belas imagens da série, primeiro com a dança dos amigos na despojada sala de estar do apartamento dos Perlov em Tel Aviv, depois com a filha Naomi aprendendo francês com o namorado em Paris. Ambas as cenas são realmente fortes enquanto captação de um momento AUTORRETRATOS


íntimo, intimidade que emerge a partir da mediação da câmera e em reação a ela. A câmera de Perlov, por meio da qual expressa seu amor homenageando família e amigos, procura filmá-los de um modo poético e terno, estabelecendo uma relação afetiva não só com os seus, mas com paisagens, imagens e lembranças que o cercam, mesmo as mais duras e tristes. Quanto ao seu método de aproximação, sua câmera ora é indiscreta, roubando imagens sem pedir licença, ora é uma câmera com pudor, fazendo questão de demonstrar sua presença, de solicitar uma performance qualquer (e não qualquer performance), na qual os filmados têm consciência de estarem em quadro e reagem a essa consciência. Nesse sentido, a construção de uma intimidade familiar proposta pelos “Diários” não se dá, de modo algum, na exploração intimizante e intimidante que o termo “primeira pessoa” vem assumindo, seja em documentários (como “Tarnation”, “TV Junkie” ou “Le Filmeur”) ou em toda sorte de dispositivos tecnológicos confessionais (como blogs, fotologs e webcams). Estes dez anos da vida de David Perlov não nos são, assim, apresentados a partir de um prisma confessional, que faz da capitalização das questões do “eu” sua matéria primordial. De modo contrário, sua trajetória biográfica nos é revelada aos fragmentos e sua subjetividade emerge não de uma interioridade essencial, mas da observação da exterioridade do mundo, como seus ritmos, movimentos, suas permanências e mudanças. Isto é, é somente a partir de sua observação do mundo que seu “estar no mundo” pode ser captado, revelado e amalgamado. Os seis capítulos dos “Diários” são, portanto, marcados por uma jornada em constante andamento, e essa jornada tanto diz respeito a questões pessoais da trajetória de Perlov como à sua metodologia de trabalho audiovisual em desenvolvimento. A questão pessoal está diretamente ligada, no sexto capítulo, ao passado e a uma ausência: quando retorna ao Brasil, reencontrando amigos, revisitando paisagens afetivas de São Paulo e ouvindo novamente a ária de Bach de sua juventude, Perlov parece próximo, pela estrutura optada, de encontrar algo. Seria uma imagem perdida da infância? A tensão com a proximidade de Belo Horizonte, cidade carregada de tristes lembranças, de onde saiu ainda criança, é amplificada com a menção à mãe, Ana, figura pouco evocada e envolta em brumas, da qual prefere não falar. E é só depois de visitar o túmulo dela, ainda em Belo Horizonte, que Perlov pode, enfim, voltar para casa, Israel, a casa escolhida – não sem antes passar por Lisboa, onde, en15


quanto nos presenteia com lindas imagens de pés e pernas entrando e saindo de um bonde, preenche a banda sonora com a “Ave Maria” tocada no rádio da cidade, reverenciando algumas das mulheres importantes em sua existência. Reaprender a enxergar – e posteriormente estruturar o que se enxergou na filmagem – é o desafio de Perlov. Se aceitarmos seu convite, de modo a tentarmos também encontrar a revelação por ele buscada, cada fragmento tende a ser um acontecimento, uma grande imagem em potencial, e não apenas o registro de experiências triviais. Cada imagem passa a ser, assim, parte de uma busca romântica, quase metafísica, pelo invisível da visão, imagem invulgar do simultaneamente simples e complexo movimento da vida. E ver essas imagens, articuladas por uma montagem rítmica e narradas pela voz melódica de Perlov, tem algo de ritualístico – e, portanto, de sagrado – no sentido de compartilharmos a memória de sua busca e a memória construída por essa busca. No entanto, não se trata apenas de uma experiência audiovisual amalgamada pela poesia cara aos gestos memorialísticos. Antes, os “Diários” de David Perlov situam-se no território da militância estética, já que, ao olharem para o passado do diretor, encaram o futuro do documentário. Cléber Eduardo é jornalista, formado em Ciências Sociais e crítico de cinema. Foi crítico de cinema da revista Época por oito anos. Escreveu para a revista eletrônica Contracampo e editou a Revista Cinética. Ilana Feldman é pesquisadora e crítica de cinema. Pós-doutoranda no Departamento de Teoria Literária da Unicamp, com pesquisa sobre as escritas de si no cinema e na literatura, a partir dos diários cinematográficos de David Perlov. No doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA/USP), desenvolveu a tese “Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo”. Foi curadora da retrospectiva “David Perlov: epifanias do cotidiano” (Cinemateca Brasileira, SP, e Instituto Moreira Salles, RJ, 2011) e coorganizadora de uma publicação homônima editada pelo Centro da Cultura Judaica de São Paulo (2011).

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UM PASSAPORTE HÚNGARO, DE SANDRA KOGUT: CINEMA POLÍTICO E INTIMIDADE por Consuelo Lins

Publicado originalmente na revista acadêmica Galáxia, nº 7, abril de 2004.

“Um Passaporte Húngaro” (2003) tem um dispositivo de filmagem simples e rico. A diretora Sandra Kogut decidiu registrar suas incursões pela burocracia estatal húngara visando obter um passaporte da mesma nacionalidade de seus avós; decidiu solicitar o documento e filmar todo o processo, não importando o que acontecesse. É um filme que revela uma filmagem sem roteiro prévio, sem final predeterminado e “obrigada” a incluir acasos, imprevistos e imponderáveis na sua própria feitura. Portanto, não se trata, como nos documentários mais tradicionais, de uma situação que preexiste ao filme, mas de uma realidade que vai sendo criada no ato de filmar, em função justamente da filmagem1. Uma metodologia que propiciou a realização de um filme sensível, distante de teorias ou pré-conceitos da diretora sobre a questão da identidade, das migrações e das dificuldades de pertencer a uma cultura em um mundo globalizado. O que não quer dizer que não possamos vislumbrar fragmentos disso tudo ao longo do filme, mas de viés, indiretamente, nas entrelinhas das imagens, das conversas, dos ruídos, dos sons. O passaporte em questão no título diz respeito não apenas ao que a diretora tenta conseguir, mas também aos passaportes dos avós, emitidos em 1937 e que circulam de mão em mão durante o filme. Ao lado de outros documentos que Kogut vai descobrindo no percurso, contribuem para dar ao filme uma “concretude” que impede abstrações e generalizações. Uma materialidade que permite à diretora enfrentar o caos dos acontecimentos, impondo limites ao excesso de opções que um filme nesses moldes pode implicar2. A burocracia infinita 1 Jean-Claude Bernardet identifica nesse movimento — em que “a documentação tende a se tornar o registro da busca” — um dos mais estimulantes do documentário recente. O crítico incluiu o filme de Sandra Kogut na Mostra Novos Rumos do Documentário Brasileiro? que organizou dentro das atividades do 7º Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte (28 de novembro a 7 de dezembro de 2003). Essa citação é extraída do texto de apresentação da seleção, incluído no catálogo do festival. 2 “Deixei de lado muita coisa, porque cada estória podia evoluir e virar um filme só sobre aquilo. Aestória da minha avó, dos familiares em Budapeste, o Estado Novo e a situação no Brasil, o quesignifica filmar em lugares como Ministérios e Consulados... Deixei de fora muitos filmes e essasdecisões às vezes são muito duras. Mas esse filme era assim : a estória dele é formada pelas estóriasentre estórias...”. (Sandra Kogut).

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que o filme nos faz entrever e que aparenta ter leis definitivas com as quais governa o mundo vai se revelando frágil, relativa, patética e inoperante. “Um Passaporte Húngaro” tem dois eixos temporais bastante claros. O primeiro deles é ligado ao presente da cineasta e se expressa nas negociações em torno do passaporte, cuja solicitação inicial é feita no consulado da Hungria em Paris, onde então morava Sandra Kogut. As primeiras imagens apontam para esse eixo, que é, na verdade, o fio condutor do filme. Em um ambiente absolutamente prosaico, vemos diferentes telefones e ouvimos diálogos em francês. A questão colocada é clara: é possível obter a nacionalidade húngara sendo neta de húngaros? As respostas nem tanto: expressam perplexidade, são seguidas de novas perguntas e concluídas com uma advertência: será uma empreitada muito difícil. O outro eixo liga-se à memória individual e coletiva e à história; emerge particularmente nas conversas da diretora com a avó, que mora no Rio de Janeiro, com um casal de parentes, residentes em Budapeste — os três principais personagens da narrativa — e também nos diálogos de Kogut com funcionários dos arquivos e registros oficiais no Brasil e na Hungria. O que podia parecer um filme feito em família ganha, portanto, logo de saída, uma outra dimensão. Elementos da vida pessoal da diretora se articulam entre si e, ao mesmo tempo, com a atualidade e a história da Segunda Guerra Mundial. Uma conexão se estabelece entre essa história privada e uma espécie de “história do mundo”, fazendo com que “Um Passaporte Húngaro” não seja um filme caseiro que interesse apenas àqueles que neles estão envolvidos. É um filme em que a memória de uma família torna-se de imediato uma memória-mundo. Um outro tipo de cinema politico? Esse aspecto me parece extremamente importante e marca com precisão a diferença entre esse filme e a exposição da vida privada a que assistimos diariamente na televisão, em que a lógica dominante é a da exibição da intimidade. A TV, nos seus programas de variedades, reality e talk shows, transformou-se em um território ocupado por confissões, troca de revelações e exibicionismos de toda a sorte. Querendo ou não, o documentário faz parte dessa “realidade”, fruto, na verdade, da intensificação de um processo de retração da vida pública cujas origens remontam a meados do século XIX. Trata-se da AUTORRETRATOS


consolidação do que Richard Sennet chamou de “ideologia da intimidade” (2001:317), que tem tido efeitos devastadores na esfera política. Mesmo atuando de forma diferente, uma boa parte da produção contemporânea de documentários não foge à regra: são personagens ou os próprios realizadores falando de si, contando experiências e memórias pessoais. Contudo, na lógica televisiva, as histórias íntimas, na maior parte das vezes, esgotam-se nelas próprias e servem apenas para saciar a curiosidade alheia; as conexões são mínimas e as aberturas para outros universos praticamente não existem. São narrativas que não provocam reflexão e se limitam a confirmar o espírito de uma época, a pensar o pré-pensado e a reciclar os clichês dominantes. No concentrado de problemas privados e assuntos pessoais fornecido pela mídia, são raras as situações com possibilidades de constituir uma memória ou questões a serem resolvidas coletivamente. As histórias são de rápido consumo. Em “Um Passaporte Húngaro”, ao contrário, há uma comunicação constante entre o que é do domínio privado e o que é do domínio público. O filme torna-se um espaço-tempo em que as ideias podem tomar forma como “bem comum”. Pouco a pouco, extrai-se dos sofrimentos particulares de uma família e das questões em torno da identidade contemporânea o que é e deve ser compartilhado para que seja possível a formação de uma memória e de um destino comum. Um filme político, portanto, mas de outro tipo. Não se fala mais em nome de uma classe, em favor dos oprimidos, em prol das massas ou das vítimas. Não há mensagem específica a ser transmitida; tampouco se trata de uma cineasta iluminada a trazer luz a seus personagens ou a espectadores alienados. Sandra Kogut é também personagem do filme, está dos dois lados da câmera, faz parte da história contada. Assim como o espectador, tem muitas dúvidas e não sabe o final da história. É, de fato, um filme “na primeira pessoa”, autobiográfico em certa medida. Mas, também, nesse aspecto, “Um Passaporte Húngaro” desloca-se em relação aos inúmeros diários filmados nos quais um sujeito psicológico, com uma identidade definida, expressa sua interioridade, sua essência, sua forma de ver o mundo. A subjetividade criada à medida que a narrativa avança é depurada dos seus aspectos mais íntimos, que só dizem respeito à própria diretora. As razões exatas pelas quais ela quer esse passaporte, por exemplo, se é que elas exis21


tem, não dizem respeito ao espectador 3. A imagem da diretora é raramente vista, mas a presença dela é sentida por meio dos enquadramentos, do ponto de vista e, particularmente, pela voz. É mais uma forma de chamar atenção para o fato de que não se trata do real acontecendo independente da câmera nos moldes do Cinema Direto americano, mas de situações que só existem em função da câmera e do desejo da cineasta. A problematização da relação com a câmera é, hoje, fundamental no campo do documentário, mas certos procedimentos — tais como filmar a equipe em ação — se banalizaram. “Um Passaporte Húngaro” deixa explícitas as condições de produção do filme quase que “naturalmente”, sem ter de inserir nenhum plano emblemático da situação de filmagem. Além das imagens captadas em vídeo e produzidas nos encontros da diretora com os personagens do filme, há outras que, de várias maneiras, contrastam com essas. São imagens de trens, estações e paisagens de diferentes lugares da Hungria e imagens do Rio de Janeiro e de Recife tomadas do ponto de vista de quem está chegando pelo mar. Possuem duração e granulação distintas e, associadas à trilha sonora, ganham uma atmosfera fortemente poética. Foram filmadas em super-8 nas cidades pelas quais Sandra Kogut passou para fazer o filme, mas nelas não sentimos a presença da diretora e, nesse sentido, adquirem um outro estatuto e uma outra temporalidade: são imagens mais objetivas. Expressam, de fato, uma multiplicidade de tempos a evocar migrações forçadas, partidas sofridas, exílios, chegadas em terras estranhas e também os trens alemães dos campos de concentração. É Recife, é Rio de Janeiro, é Budapeste, mas podia ser Buenos Aires, Nova Iorque e outras tantas cidades que serviram de abrigo a milhares de refugiados de guerras, conflitos, crises, perseguições. A memória individual e coletiva “Foram tempos que vocês não podem imaginar”, diz a avó Mathilde à diretora, em uma das muitas entrevistas que Sandra faz com ela. Trata-se, na verdade, de conversas que acontecem durante as refeições e nas quais há uma efetiva interação entre avó e neta. O relato dessa senhora de mais de 90 anos surpreende pela lucidez. Há um interesse real em narrar o que 3 Contudo, como somos espectadores bastante clássicos e formados também por essa cultura da intimidade, não é raro a diretora ter de responder a essa questão nos debates que se seguem à projeção do filme.

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se passou. Ela sabe que não se trata apenas de contar à neta, mas de deixar registradas suas memórias em um filme. Não há ressentimentos, nem excesso de emoção. Pressentindo a guerra e o agravamento da perseguição aos judeus na Europa, Mathilde e o marido decidem partir. “Não queria ser culpada de ter visto e não ter agido”. Ela estava grávida do primeiro filho e o Brasil mostrou-se a alternativa. “Dava para saber?”, pergunta a neta. E ela precisa: “Saber não, dava para prever. Quem não queria ver não viu”. Mathilde tem senso de humor. Faz uso dele ao contar as dificuldades que viveu ao lado do marido para conseguir chegar ao Brasil e as situações intoleráveis que experimentou. É austríaca de nascimento; tornou-se húngara em função do casamento. Fala português com sotaque, mas com clareza. Sua narrativa é repleta de pequenos detalhes divertidos. Fala pausadamente e imprime ritmo em sua entoação de modo a permitir que o espectador possa refletir sobre o que está ouvindo. Nas pausas e expressões, é possível entrever a marca da violência de inúmeros acontecimentos que viveu. “Um judeu sujo a menos”: foi o que disseram ao marido quando foi buscar os passaportes. Antissemitismo na partida da Hungria e uma chegada nada calorosa nos trópicos. O casal só desembarcou em Recife depois que um parente que os aguardava no porto subornou um funcionário da administração. “Éramos cidadãos de segunda ordem”, diz Mathilde. O antissemitismo do Estado Novo se manifestava de muitas maneiras. Em 1937, o presidente Getúlio Vargas havia enviado uma circular secreta aos consulados brasileiros recomendando não conceder nenhum visto a judeus. Um ano depois, começou a fichar todos os estrangeiros que por aqui chegavam. Essas informações são fornecidas por dois funcionários do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Mais uma vez, o que acontece no filme são conversas e não entrevistas, marcando de vez a diferença entre o que assistimos na maior parte dos documentários atuais e as interações que Sandra Kogut consegue em “Um Passaporte Húngaro”4. Se, com os familiares pode ser mais fácil estabelecer uma relação mais efetiva, Sandra nos mostra a possibilidade de deslocar o tradicional dispositivo de entrevista mesmo em uma situação impessoal. 4 Jean-Claude Bernardet aponta, em um artigo anexado à reedição de “Cineastas e Imagens do Povo”, para a banalização desse procedimento nos documentários brasileiros mais recentes, nos quais “dirigir uma pergunta ao entrevistado é como ligar o piloto automático. Faz-se a pergunta, o entrevistado vai falando e está tudo bem; quando esmorecer, nova pergunta” (2003:286).

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É o que também ocorre no encontro com um amável funcionário dos arquivos de Budapeste, no qual fica claro que o antissemitismo na Hungria não ficou no passado, muito pelo contrário. A diretora pergunta se é difícil procurar documentos na Hungria. Sim, havia restrições, responde-lhe um senhor com ares de bom velhinho, mas acabou, “graças a Deus”: “Primeiro, os comunistas não gostam de pessoas de boas famílias. Depois, muitos líderes eram de origem judaica e queriam omitir isso”. No final da conversa, ele lhe diz, como quem faz um elogio: “Você não parece judia. Seu rosto, sua mãe não era judia, seu pai era meio judeu...”. “Não, sou cem por cento judia”, responde a diretora. “Avô, avó, pai, mãe, todos?... É,” — finaliza, rindo simpaticamente — “você não pode negar.” A relação que Sandra Kogut estabelece com os parentes Gyuri e Eva Fabri, que moram em Budapeste, sofre pequenas transformações ao longo da filmagem. Eles são extremamente ternos e receptivos. Falam do passado, do gueto, dos campos. E também da mudança constante de nomes a que os judeus foram obrigados a se submeter ao longo da história. Inicialmente, solidarizam-se com Sandra diante das dificuldades burocráticas que ela enfrenta, mas, com o tempo, começam a achar que a diretora deveria se esforçar mais e conhecer melhor o país, além de arquivos e túmulos. “Há fitas para se aprender o húngaro na biblioteca, não seja preguiçosa!”, diz Eva, fazendo em seguida um comentário que revela uma certa mágoa: “É muito estranho. As pessoas que deixaram a Hungria não quiseram lembrar seus filhos de onde vieram. É por isso que os filhos dos meus tios não falam húngaro”. A arte, a comida, a língua são traços identitários defendidos por outros familiares húngaros para que Sandra possa ter direito ao passaporte. São diálogos divertidos que, indiretamente, fazem com que o espectador questione as maneiras de representar a cultura de cada país e perceba a inexistência de uma essência nacional e o caráter impuro, construído e “imaginado” de toda e qualquer nacionalidade. O cinema, o tempo e a memória Kogut articula, em “Um Passaporte Húngaro”, elementos da sua já longa experiência artística com vídeo com outros, retirados de uma certa história do cinema — articulação de que as imagens digitais e em super-8 são apenas a expressão mais óbvia. A multiplicidade, apontada por Arlindo Machado como uma das características principais da produção videoAUTORRETRATOS


gráfica contemporânea e de muitos trabalhos de Sandra Kogut, irrompe nesse filme não mais associada ao “movimento vertiginoso” (1997: 238), nem à simultaneidade, mas à duração. E é nesse aspecto especialmente que “Um Passaporte Húngaro” se distancia de vídeos anteriores da diretora, como “Parabolic People” (1991), e se filia com tanto talento à modernidade cinematográfica do pós-guerra, que inventou, em diferentes filmes, uma pluralidade de formas temporais. Tempo aberto, que se contrata e dilata, acelera ou prolonga, para dar conta dos movimentos da vida dos homens. “A essência dos grandes filmes é a invenção do tempo”, escreveu inúmeras vezes o crítico francês Serge Daney (Cf. França et. al. 1999), dimensão da arte cinematográfica que é, no pensamento do filósofo Gilles Deleuze, o grande diferencial entre o cinema clássico, o cinema da imagem-movimento, e o cinema moderno, o da imagem-tempo. “Um Passaporte Húngaro” é esteticamente marcado pelo tempo dos encontros, dos desencontros, das hesitações, das dificuldades. Sandra Kogut levou dois anos para realizar o filme (1999-2001) e essa duração é percebida pelo espectador tanto nos avanços do percurso burocrático quanto na relação com seus familiares. A passagem do tempo conta, produz mudanças, diferentemente do que ocorre, por exemplo, em “Parabolic People”, em que podemos deduzir um longo tempo de feitura, sem que essa dimensão esteja em questão nas imagens — o que diz muito sobre a versatilidade dessa artista, que já atuou em diferentes campos (televisão, clipes, vídeos, instalações, publicidade, curta-metragem, documentário), sem se enraizar em nenhum deles. Da mesma forma que a diretora aponta, em “Um Passaporte Húngaro”, para as dificuldades em definir uma identidade nacional nos dias que correm, ela indica com esse filme as indefinições contemporâneas próprias ao campo das artes audiovisuais. As misturas e impurezas estão em todo o lugar. Sandra Kogut realizou um filme híbrido, ficcional e documental, ensaio fílmico e diário de filmagem, em que a multiplicidade se faz presente não apenas na utilização de diferentes tecnologias5, mas também na sofisticada edição da trilha sonora, nas inúmeras línguas, sotaques e entonações, nos vários nomes próprios, nas cidades e nos personagens que são, cada um deles, frutos de uma rede de relações. Contudo, hibridações e misturas nem sempre ocorrem 5 “Um Passaporte Húngaro” foi filmado em vídeo digital e super-8 e kinescopado para 35mm depois de editado.

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sem violências e mal-entendidos, especialmente no que se refere às migrações. Do mesmo modo, nem todos os deslocamentos populacionais se equivalem. As razões pelas quais a diretora Sandra Kogut não mora na sua terra natal são certamente diferentes das de sua avó. O “K” carimbado nos passaportes dos avós não deixa dúvidas: passaportes de imigração, para aqueles que vão “de vez”, válidos apenas para partir. Em “Parabolic People”, o que é essencialmente celebrado é a riqueza da diferença, dos encontros interculturais e dos imaginários multiculturais. “Um Passaporte Húngaro” reconhece o que há de positivo em tudo isso, mas incorpora a memória de muitos conflitos e não perde de vista a dor, o sofrimento, a humilhação, a segregação — e a temporalidade do filme é fundamental para que essa memória possa surgir. Sandra Kogut consegue o passaporte depois de dois anos de espera. Na última cena do filme, um longo plano-sequência, a diretora está na cabine de um trem, voltando para Paris. Um policial lhe pede o passaporte e estranha o fato dela não falar húngaro. “Essa é boa!”, diz. Pergunta se ela não tem um outro documento de identidade. Diante da negativa, ele sai, presumivelmente para se informar. A câmera não corta. Ele retorna, devolve o passaporte e se despede. Um final irônico, fruto de um acaso absolutamente feliz, que retoma de forma concentrada tensões e questões que atravessaram todo o filme. Consuelo Lins é pesquisadora e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou os livros “O Documentário de Eduardo Coutinho: cinema, televisão e vídeo” e “Filmar o Real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo”, ambos pela Jorge Zahar Editor. É também documentarista, tendo dirigido, entre outros, “Lectures” (2005) e “Leituras Cariocas” (2009). O seu curta-metragem “Babás” está em exibição na mostra “Autorretratos”. REFERÊNCIAS BERNADET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. FRANÇA, A.; GERVAISEAU, H.; LINS, C. (). Serge Daney: o cinema como abertura para o mundo. Cinemais: revista de cinema e outras questões audiovisuais, nº 15, jan.-fev, 1999. MACHADO, Arlindo (1977). Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus. SENNET, Richard (2001). O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras.

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AS VOZES DE FLÁVIA por Carlos Alberto Mattos

Texto publicado originalmente no site Críticos.

Flávia Castro abre seu filme com uma foto do pai morto. A partir de então, ela faz um duplo movimento em Diário de uma Busca. Com a ajuda de parentes e amigos, vai reconstruir uma imagem do pai, ou seja, reavivá-lo através do filme. Mas há também uma dura e tranquila consciência de que nenhum filme é capaz disso. Toda morte é uma derrota contra a qual o cinema, na verdade, pode muito pouco. Daí uma certa quietude nessa busca. A voz de Flávia, principal narradora do filme, nos chega com suavidade, em frases cujo tom decresce sempre no final. Uma voz que exprime aceitação e paz interior, mesmo quando se recorda dos anos de exílio em diversos países, da vida familiar atribulada e da investigação policial esquisita que se seguiu à morte do pai. Segundo a polícia, Celso Afonso Gay de Castro, ex-militante comunista, teria matado seu comparsa e depois se suicidado durante a invasão da casa de um ex-cônsul alemão em Porto Alegre, supostamente envolvido com o nazismo. Não é difícil lembrar que Tata Amaral fez há dois anos o doc O Rei do Carimã para provar a inocência do seu pai num caso de acusação de estelionato (leia aqui). Mas as semelhanças com Diário de uma Busca são poucas e superficiais. A certa altura, Flávia Castro explica ao irmão que não está fazendo uma investigação policial, mas um filme. Um filme, aqui, significa uma construção horizontal, em lugar de uma investigação vertical sobre alguma coisa. Embora entreviste policiais e um perito em balística, não há uma intenção de descobrir provas ou fechar conclusões. Mais que isso, Flávia parece-me interessada em inventariar os traços de um mistério que deve permanecer como tal. Essa é a busca. Vejo nisso uma dimensão de respeito, inclusive pelos segredos do pai. A voz (ou as vozes) de Flávia se propagam em vários setores do filme. Está na luz doce das horas em que filmou as externas, na serenidade da câmera diante de rostos ou paisagens, no calor das cordas da discreta trilha sonora, no tom geral de memória que se desdobra entre lembranças divertidas e uma emoção exposta economicamente aqui e ali. Uma voz que não pretende desenterrar os mortos. É interessante ver como ela projeta sua voz também na voz dos outros. É como se todos falassem por ela ao mesmo 29


tempo em que falam por si próprios. Um ponto de relativo atrito está na participação do irmão Joca, que resiste à ideia de juntar sua voz à dela. Ele acaba lendo em off as cartas do pai, em tom semelhante ao que Flávia usa em sua narração em primeira pessoa. Já os risos meio envergonhados da mãe ao recordar certos lances da militância clandestina, assim como as lembranças do ex-padrasto e de ex-militantes do P.O.C. (Partido Operário Comunista) se costuram como um fluxo coerente e contínuo. Por isso a leitura de algumas cartas começa numa voz e termina em outra. Ao fim e ao cabo, são todas “vozes” de Flávia. As vozes com que ela desenha sua busca e sua crônica do exílio. Carlos Alberto Mattos é jornalista, crítico de cinema e autor de biografias. Entre seus livros, destaque para “Eduardo Coutinho - O Homem que Caiu na Real” e “Walter Lima Jr. - Viver Cinema”.

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INSÔNIA (Wide Awake) por Alan Berliner tradução Aristeu Araújo

4 de janeiro de 2006 3h31 da manhã Eu sou uma criatura da noite. A madrugada é meu refúgio especial, quando eu posso fazer aquilo que eu considero realmente importante. Até o momento em que eu finalizar estas notas, elas deverão ser escritas inteiramente à noite. Nenhuma palavra será escrita à luz do dia. Eu também produzo meus filmes no silêncio e na solidão da noite. Quando eu falo em “produzir”, eu quero dizer “editar”, porque é somente quando eu me cercar de milhares de sons e imagens e começar a tecê-los é que meus filmes – e as histórias que eles tentam dizer – vão começar a tomar forma. Voltando às minhas colagens experimentais a partir da década de 1980 e incluindo “The Family Album”, “Intimate Stranger”, “Nobody’s Business” e “The Sweetest Sound”, todos os meus filmes foram montados quando a maior parte de meus conhecidos estavam dormindo. Eu lembro de estar sentado à minha mesa de trabalho, editando o making of de “Nobody’s Business”. Ali, com diversas tiras de película 16mm enroladas em meu pescoço, percebi que – assim como meu avô paterno Benjamin Berliner foi antes de mim – eu sou apenas um alfaiate. No lugar de lã e linha, eu costuro informações. Som e imagem. Luz e sombra. Tempo e espaço. Eu teço os fragmentos de minha vida, minha história, minha memória, meus sonhos. Até meus melhores e piores instintos estão em cada um dos filmes que faço. Mas, quando tudo estiver dito e feito, eu serei simplesmente um alfaiate realizado. Um alfaiate que trabalha à noite. E se eu começasse falando que sempre tive problemas para dormir? Quando eu consigo cair no sono, tenho problemas para voltar a dormir. Aprendi ainda quando criança que eu era um insone. Ao longo de anos, desde o Ensino Fundamental, eu tenho desenvolvido estratégias que me ajudam na vida da forma mais razoável possível. Para ser honesto, eu não sei se eu me tornei um notívago por que eu não consigo dormir à noite ou se a razão de eu não conseguir dormir à noite é que estou 33


de algum modo programado para ser um ser noturno (se eu não consigo dormir de modo algum, por que não sair da cama e fazer algo? Eu deveria atravessar toda a noite me virando na cama?). Antes de realizar “Insônia”, eu já havia costurado os meus problemas de sono na fábrica da minha vida de forma tão profunda que eles se tornaram invisíveis para mim. Ao longo de décadas, eu tenho tentado praticamente todos os remédios conhecidos para dormir: banhos quentes, leite morno, chás medicinais, acupuntura, do-in, troca de colchão, troca de travesseiros, massagem terapêutica, ruído branco, aromaterapia, hipnose, yoga, homeopatia, maconha, valeriana, bebidas alcoólicas e até mesmo muito sexo antes de dormir (eu recomendo este). Mas nunca me ocorreu procurar ajuda ou aconselhamento médico. Sequer sabia que existia algo como “medicina do sono”. Eu simplesmente aceitei minha condição. Eu vivi com ela. Eu fiz o melhor possível. Com o tempo, a noite não só se tornou minha melhor amiga, mas também uma fonte de inspiração. ******* Cada um de nós carrega um tipo de vazio. A maioria de nós, vários. Eu fico me perguntando por que sinto tanta urgência em mergulhar nisso e olhar as sombras que estão atrás dos meus problemas com o sono. Por que eu estava finalmente disposto a correr o risco de revelar os conflitos e as contradições que têm moldado minha vida por tanto tempo? Por que eu me sentia forte o suficiente para admitir que a própria condição que me impede de dormir e me separa de minha família fornece combustível para minha vida criativa noturna (mas também me deixa exausto durante o dia)? Para alguém que se orgulha de explicar as coisas, o motivo de eu ter feito “Insônia”, nesse momento de minha vida, ainda permanece um mistério. Talvez tivesse a ver com a morte de meu pai em 19 de agosto de 2001. Talvez tivesse a ver com os eventos chocantes (justamente três semanas depois) do 11 de setembro de 2001 (eu vivo a menos de um quilômetro do marco zero. O som do primeiro impacto me acordou de um sono profundo. O segundo acidente me fez lembrar do primeiro, o que me fez entender que eu não estava sonhando, o que me fez ligar o rádio, o que me fez perceber que a vida nunca seria a mesma. Menos de uma hora depois, quando eu já havia me vestido e saído para a rua, eu testemunhei as torres indo ao chão com meus próprios AUTORRETRATOS


olhos). Dois eventos abalaram minha alma, tudo em um período de três semanas. Talvez tivesse a ver com estar se divorciando. Ou casar com Shari. Ou a chegada do nosso filho, Eli. Talvez “Insônia” fosse o próximo passo na minha evolução como cineasta, um assunto que conseguiria me levar mais e mais no laboratório de minha vida, em busca de maiores verdades sobre a condição humana. Eu tenho feito filmes suficientes por ora para entender o que eu quero – e preciso – como cineasta: produzir um trabalho pessoal intensamente que transcenda o específico de minha história particular e estimule (gostaria de usar a palavra “encoraje”) você a repensar e refletir sobre as circunstâncias de sua própria vida. Talvez eu quisesse ir para um lugar em minha vida e em meu trabalho que realmente me assustava. Esse é provavelmente um instinto de sobrevivência que artistas têm em alguns momentos de suas vidas. Mas é também um pouco de imprudência, alguma insanidade e um tanto de fé cega para adentrar na escura floresta de seus medos. Mesmo antes de realizar “Insônia”, eu sabia que a decisão de fazer um filme sobre meus problemas com o sono seriam a causa da piora deles. Considere o paradoxo autorreflexivo de fazer um filme sobre sono quando você é o único que não consegue dormir; que se sente exausto todo o tempo; que está cansado demais para se concentrar no filme durante o dia. Eu estou me lembrando das inúmeras vezes que, na cama, tentei me enganar, assistindo a mim mesmo se virando no meio da noite. Incapaz de parar de pensar sobre minha obsessão em produzir um filme sobre o sono, isso se tornou a fonte do que me deixaria acordado. ******* Penso que o que me atrai a filmar algo sobre insônia é que isso fará eu traduzir meus problema de sono, minha obsessão e minhas neuroses para a linguagem do cinema: uma mente que é incapaz desligar à noite é uma mente que não irá se deixar cair na escuridão, que não pode se dissolver em silêncio, que não pode se lançar fora de foco1. Insones são pessoas que não conseguem editar a si mesmos para dormir. Eu continuo

1 O texto original faz referências a termos técnicos muito comuns no universo do cinema e, mais especificamente, à edição cinematográfica: “a mind that is unable to shut down at night is a mind that won’t fade to black; that can’t dissolve into silence; that can’t throw itself out of focus”. Para Alan Berliner, a montagem é o aspecto fundamental do cinema.

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me perguntando: como pode ser que alguém que acredita na edição como elemento estético fundamental (e mais apreciável) do cinema não possa “editar” a si mesmo para dormir. Mas o desafio de inventar um vocabulário de sons e imagens capaz de transmitir as complexas (se dialeticamente opostas) experiências do sono e do não sono também me cativou. Como eu poderia criar uma linguagem cinematográfica única capaz de evocar as metáforas, os símbolos, as ironias, as epifanias e as poesias que melhor levam minha verdadeira experiência de insone? Como eu poderia traduzir minha experiência fútil de tentar dormir, o prazer em dormir, a surrealidade da lógica dos sonhos, o aborrecimento de acordar de madrugada, a frustração de ser incapaz de voltar a dormir e a exaustão por levantar após uma noite não dormida? Tudo isso de um jeito que você possa entender e, ainda mais importante, reconhecer. ******* O cinema é uma máquina de sonhos. A partir das sobreposições mágicas de Georges Meliés, no início do século passado, até muitos dos filmes surrealistas da década de 1920, com suas imagens, seu pensamento e sua lógica implausíveis e inconcebíveis reviravoltas, muito cedo os cineastas exploraram o cinema como um novo (e verdadeiro) portal para aquele terrível lugar sem estrutura que chamamos de inconsciente. Um veículo para o espanto, a surpresa e o desconforto (ou desorientação) que veio junto com a experienciação do “nonsense”. Desde então, milhares de filmes têm usado a montagem para evocar uma mente inquieta, um sonho, um pesadelo, uma embriaguez, uma alucinação – o processo desordenado do pensamento por si só. Inevitavelmente, após décadas, o público aprendeu a decodificar, aceitar e até mesmo esperar pela lógica desarticulada (dos sonhos e afins) como uma das extensões naturais da linguagem cinematográfica. Porque o público está mais sofisticado, visualmente alfabetizado, pós-moderno e, você até poderia dizer, entediado. Os surrealistas podem não gostar de ouvir isso, mas, no que me toca, não há mais lugar para o “nonsense”. Ao menos não no cinema. Mas o que segue dentro de minha cabeça quando eu estou tentando dormir é outra história. A montagem de minhas próprias reflexões noturnas podem ser tão aleatórias como uma partitura para piano de John Cage, tão surreal quanto o “Ghosts Before Breakfast”, de Hans Richter. Ou tão preciso quanto uma equação física – geralmente tudo ao mesmo tempo. Minha AUTORRETRATOS


mente insone, no travesseiro, lança pensamentos como se fosse uma máquina de pinball. ******* Nos últimos 35 anos, eu tenho coletado, aleatoriamente, velhos cinejornais, filmes educacionais, música, efeitos sonoros, artigos de jornal e fotografias, slides de vidro, slides, revistas antigas, fotografias de família de anônimos, álbuns de fotos e cadernos de recortes, filmes domésticos de famílias americanas das décadas de 1920, 1930 e 1940. Tudo bem organizado e codificado por cores nas extensas prateleiras de metal que revestem meu estúdio. Centenas de milhares, quem sabe talvez até milhões de sons e imagens que eu, de alguma forma, tenho registrado na memória. Eu penso que seria totalmente louco se eu não fosse um cineasta. Filmar me permite usar o arquivo que eu montei como uma ferramenta. Ela me dá razões para separar tudo em partes, ver que tipo de mundo (ou mundos, ou quebra-cabeças) podem ser feitos a partir de “re-montagem” (“re-edição”) de pedaços. O grande volume de informação e de material de que me cerquei tem sido o alicerce e uma fonte de inspiração para quase todos meus filmes e instalações. Para o melhor e o pior, eu agora entendo que isso também tem sido o alicerce da minha incapacidade para achar tranquilidade no sono. Eu sou uma miniatura personificada da intensa e excessiva estimulação que me rodeia. As seduções, distrações e intermináveis complexidades de um ambiente saturado de uma mídia que nos bombardeia informação 24 horas por dia, sete dias por semana. Com tanta coisa acontecendo, com tanto para fazer, com tão pouco tempo... é de se espantar que um de nós consiga sequer dormir. Falando nisso… agora são 5h23 da manhã. O caminhão de lixo faz um barulho alto lá fora. Se eu não parar de escrever agora, eu não vou conseguir dormir antes do sol nascer. Eu não tenho certeza de em que hora do dia você está lendo isso, mas eu tenho certeza de que faria mais sentido se fosse à noite. Alan Berliner é cineasta independente norte-americano conhecido, sobretudo, por seus documentários experimentais. No currículo, tem filmes como “First Cousin Once Removed”, “Nobody’s Business” e “Insônia” (presente na mostra “Autorretratos”).

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ENTRE O SABER E A EXPERIÊNCIA por Cezar Migliorin

Publicado originalmente na Revista Cinética.

Entre 1997 e 2007, João Salles dirigiu 8 documentários, entre eles os brilhantes “Futebol” (1998) e “Nelson Freire” (2003). Em “Santiago” (2007), vencedor do Grande Prêmio do Festival Cinéma du Réel, em Paris, é o aprendizado de sua profissão durante estes anos todos que o documentarista transforma em filme ao retomar as imagens feitas em 1992 para um documentário que, agora, ele finaliza. “Santiago” é o nome do filme e do personagem. Durante 30 anos, Santiago foi mordomo da família de Salles, uma família muito rica, culta e influente, como fica claro no filme. Santiago trabalhou na casa da Gávea, onde João Salles morou até os 20 anos e que, hoje, abriga o Instituto Moreira Salles, um centro de referência para a música e para a fotografia no Rio de Janeiro. Em 1992, o realizador percebeu a singularidade do homem que viria a ser seu personagem no filme. Já aposentado, Santiago mora em um pequeno apartamento do Leblon, no Rio de Janeiro. Ali, leva uma vida solitária entre as 30 mil páginas que escreveu relatando os dramas e as vidas de mais de 500 anos de nobrezas e dinastias de todo o mundo. Santiago se relaciona com esse passado, seu e das nobrezas – ele de certa maneira viveu em uma – com a paixão de quem acompanha um folhetim, uma novela, um melodrama. Como frisado pelo filme, seu universo se estende entre épocas e culturas, entre Hollywood e Versailles, entre Giotto e Beethoven. Apesar do personagem, João Salles abandona o filme em 1992. Quando o retoma, em 2005, é ele próprio que vira personagem. Narrado em primeira pessoa, na voz do irmão, Fernando Moreira Salles (apresentado em inglês no festival em Paris, com narração de Fernando Alves Pinto), o processo do filme passa a fazer parte dele e aparece, sobretudo, como uma autocrítica ao seu modo de conduzir a película em 1992 e ao fato de, na época, não ter percebido a relação de poder ali presente. Ao poder do documentarista, somava-se o poder do filho do patrão. Em uma das cenas mais reveladoras e afirmativas, Salles é chamado de “maravilhoso Joãozinho” por Santiago. Cena que, na época, João Salles pede a Santiago para repetir sem mencionar seu nome e que hoje é parte do filme. Durante as filmagens, a hierarquia deveria ser apagada; hoje, ela é tema do filme. Fundamentalmente, o procedimento do filme, hoje, é este: 39


a claquete está presente, a fala de Salles antes do comando de “ação”, os retakes, o off. Por meio da presença do que normalmente é eliminado na montagem de um filme, reconhecemos os pontos que perturbam Salles hoje; a direção das falas, os textos e gestos e o excesso de zelo estético na composição dos quadros e no trabalho da fotografia. O embate de João com essas imagens do passado é sereno, tranquilo até. O off bem acabado, pensado e meticulosamente armado destoa do filme-problema que Salles parece ter desejado fazer. O filme é um problema bem resolvido. Na única sequência efetivamente montada em 1992 e que, agora, é apresentada ainda com o time-code exposto na tela, indicando que nunca fora finalizada, que nunca deixou de ser uma cópia de trabalho, há uma música que a envolve. A crueza do que ainda estava sendo trabalhado é amenizada pela trilha sonora. Nessa sequência, o próprio processo do filme-processo é excluído, assim como as dúvidas da sala de montagem, as hesitações do texto e do off. “Santiago” é um filme puro sobre a impureza intrínseca ao documentário. Santiago era um ator para o filme e a sua preocupação em atuar de maneira convincente é bonita e emocionante. Por que esse personagem não merece que o quadro seja composto, que sejam feitos retakes? O filme de 1992 era contaminado pela própria forma estética e fabulosa com que Santiago se relacionava com o mundo, e essa dimensão do documentário é possível. É neste filme, neste tipo de documentário, que Salles não acredita mais. Há uma dupla perda que acaba por se consolidar. O filme se mantém na superfície do processo e não efetiva a ponte entre Santiago e o universo da Casa da Gávea e, ao mesmo tempo, é o próprio Santiago que se perde nos excessos presentes nos retakes que a descrença no filme de 1992 nos traz hoje. A constante repetição dos retakes, além de revelar o processo controlado em que João Salles enquadrava seu personagem, é também motivo de riso na sala. Evidentemente, o riso não é a princípio ruim; ele pode ser uma forma de compartilhar o universo do personagem, um riso de quem criou uma conexão, um mundo compartilhado. Mas, o que perturba em “Santiago” é que o riso é provocado por um procedimento singelo e que faz parte da autocrítica de João Salles. Deveríamos então rir de Salles, mas não é o que acontece. Se em 1992 Salles fazia Santiago falar o que ele queria, hoje ele o faz falar essas mesmas coisas várias vezes. AUTORRETRATOS


O problema entre o filme de 1992 e a montagem de agora não está entre duas formas de fazer documentário, duas crenças – ou descrenças – na verdade e na possibilidade de o documentário falar do outro. O problema central é entre saber e experiência. Há algo que não mudou entre 1992 e 2007. João Salles sabe o que é um documentário. Esse saber mudou, suas crenças na imagem e no controle sobre ela se transformaram. Entretanto, o momento de fazer o filme não é a experiência com as imagens, as dúvidas sobre o seu lugar que aparecem e, sim, uma nova e afirmativa certeza. Nesse sentido, o filme aparece como uma síntese desse saber que se transformou. No filme de 2007, João Salles continua sabendo o que ele quer das imagens – nesse sentido, não há transformação entre 1992 e 2007. Uma sequência destoa disso tudo. No meio do filme, em uma imagem de época, provavelmente em super-8, vemos a família de Salles brincando na piscina da Casa da Gávea. Enquanto vemos a banalidade de um domingo em família, o silêncio dessas imagens se faz presente e traz um passado que pertence a João Salles e a Santiago. Nessa cena, sobrevive uma tensão que o filme suaviza. As imagens em super-8 estão ali como que procurando um lugar, parecem ainda não incorporadas ao filme, estão libertas da música e do off que organizam a experiência dessas imagens. Essa imagem de época aparece como a abertura que o filme faz para o seu futuro, ela comporta a potência das perguntas feitas na montagem; o que fazer com essas imagens ricas e problemáticas? É nesse pequeno detalhe que o filme se mantém vivo. É nesse momento silencioso que somos tocados pela vitalidade e coragem de Salles em fazer este filme. Cezar Migliorin é professor-pesquisador, ensaísta e professor do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense. É dele a organização do livro “Ensaios no Real: o documentário brasileiro hoje”.

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RELAÇÃO COM PAI E LEMBRANÇAS DA DITADURA por Pedro Butcher

Publicado originalmente na Folha de S. Paulo.

Ao mesmo tempo em que se filia a algumas tendências do cinema contemporâneo — documentário em primeira pessoa e “autoficção”—, “Os Dias com Ele” se diferencia de outros filmes com os mesmos preceitos graças ao rigor (des)construtivo e à recusa à autoindulgência da diretora. Em seu primeiro longa-metragem, Maria Clara Escobar viajou a Portugal para filmar seu pai, o dramaturgo, filósofo e professor Carlos Henrique Escobar, que vive na cidade de Aveiro desde 2000. Em pouco tempo, fica evidente que ela tem na cabeça um filme de caráter mais livre e confessional, enquanto o pai espera uma espécie de documentário oficial sobre sua obra filosófica e teatral. Ao longo da projeção, muitas outras tensões emergem. Parte da sabedoria da diretora está na decisão de incluir na montagem final vários momentos que, em um documentário tradicional, seriam deixados de fora —boa parte deles envolvendo a negociação em torno do que deve (ou não) ser dito e/ou mostrado. Esse processo de desconstrução da linguagem documental expõe toda a complexidade da relação entre a diretora e seu “objeto” —que, no caso, é também seu pai. As tensões de uma relação familiar problemática também emergem de forma nada óbvia e pungente. A convicção da diretora de arrancar de seu pai uma descrição minuciosa de suas lembranças dos tempos da ditadura militar, incluindo os episódios de prisão e tortura, lança o filme sobre uma linha tênue da ética documental. Às vezes, o espectador se pergunta se a diretora não está impondo ao pai uma exposição dolorosa demais, à qual ele não queria se submeter, e o quanto dessa insistência não poderia estar ligada a questões pessoais, muito mais do que à “importância histórica” do depoimento. Mas são justamente esses momentos de sinceridade e exposição absolutas que retiram “Os Dias com Ele” do campo da banalidade e o transformam em um filme absolutamente corajoso sobre a intricada relação entre a memória pessoal e a coletiva. “Os Dias com Ele” é um filme difícil de ser visto, mas é relevante tanto no campo da investigação da linguagem quanto nas revelações históricas que proporciona. Pedro Butcher é jornalista e crítico de cinema, com passagens pelos jornais O Dia, JB e O Globo, e pela Veja Rio. É autor do livro “Abril Despedaçado – história de um filme”, entre outros. Entre 2001 e 2014, editou o site Filme B.

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ELENA

por Aristeu Araújo

Elena se matou em 1990. Estudante de teatro, amante da dança e com sonhos de sucesso em um meio tão difícil e competitivo, ela não aguentou. A tragédia devastou a família. Abriu feridas que até hoje estão sem cicatrizes possíveis. Sua irmã, Petra, era uma criança. “Elena”, o filme, é um documentário em busca de reconexão, de entendimento e, quiçá, redenção frente à dor. Petra Costa é quem o dirige. Ela não é mais uma criança. Mas é a partir das memórias de sua infância que o filme, em grande parte, irá se sustentar. Lançando mão de um vasto arquivo audiovisual, o longa-metragem tentará construir o perfil de Elena, ao menos da Elena que Petra conheceu. Como em um thriller, o filme vai desvendando aos poucos o transtorno que a levou à morte. Pistas e testemunhas vão desencobrindo o passado, que é um tanto nebuloso para a diretora irmã. Elena foi morar em Nova Iorque em 1990. Ela foi atrás de sonhos. Embora já com uma carreira sendo desenhada no Brasil, ela queria mais. Ela tinha o sonho de ser atriz em Hollywood. De lá, mandava cartas gravadas em fitas-cassete para a família. Trechos dessas fitas vão nos apresentando a personagem em camadas; vão, primeiro, mostrando-nos o ânimo da menina que se descobria cada vez mais apaixonada pela atuação; depois, vão aprofundando os traumas, as angústias. Petra inicia o filme andando por Nova Iorque. A câmera filma a diretora, traçando o início dessa procura pela memória, por Elena. Numa metáfora acerca do terreno pantanoso em que o documentário andará, essa é uma câmera quase cega, que nada enxerga além da própria diretora-personagem. O efeito é conseguido com um foco absoluto e limítrofe. Tudo o que está antes ou depois de seu objeto está desfocado. Ou seja, vemos o caminhar, a busca, mas não o trajeto ou o fim do percurso. E cada passo em diante vai sendo narrado. Petra narra para a irmã como se ela estivesse ao lado, ouvindo a história delas. Petra conta segredos e mostra ao mundo as imagens caseiras que Elena produzia. Ainda criança, Elena já sabia que iria ser atriz. Ela produzia pequenos curtas, domésticos. Mais ao final, temos a presença mais constante da mãe, que entra em cena para cobrir com mais precisão as lacunas que, ou não estão na memória de Petra, ou não estão documentadas. Como é um filme que busca entender e se pacificar 45


com o passado, a presença materna, daquela que carrega a maior das dores, é um ato de extrema coragem e doação. Petra Costa dirigiu um filme que flana entre o documentário, o ensaio poético e a performance. O ato de filmar a própria dor traz consigo um quê de performático. Ela entendeu isso e materializou o ato, não só no filme em si, mas filmando ela e sua mãe boiando à deriva em águas turvas. É uma imagem simples, mas de grande beleza. No filme, a água turva tem relação com a tristeza e a morte. Quando se boia, o corpo fica de fato imerso na água. Só parte dele e o rosto é que estão do lado de fora, em um equilíbrio tênue entre respirar ou afogar. Em outras palavras, é o que Petra fala lá no início, ao narrar um sonho: “Elena, sonhei com você esta noite. Você era suave, andava pelas ruas de Nova Iorque com uma blusa de seda. Procuro chegar perto, encostar, sentir seu cheiro. Mas, quando vejo, você está em cima de um muro, enroscada num emaranhado de fios elétricos. Olho de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro. Eu mexo nos fios arriscando tomar um choque. E caio. Um muro bem alto”. Ou, sendo mais explícita, neste outro trecho, também no início do longa-metragem: “Nossa mãe sempre me disse que eu poderia morar em qualquer lugar do mundo, menos em Nova Iorque. Que eu podia escolher qualquer profissão, menos ser atriz”. Mas, de fato, Petra escolhe estudar teatro na cidade onde a irmã morreu. Aristeu Araújo é o curador da mostra “Autorretratos”. Já fez curadoria para dezenas de mostras cinematográficas, entre elas “Ser Tão Pop – O Novo Cinema de Sertão”, realizado em 2014 nas CAIXA Cultural Rio de Janeiro e CAIXA Cultural Fortaleza. É, ainda, cineasta e crítico de cinema.

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A CRÍTICA QUESTÃO DO TEMPO por Daniel Ribas

Publicado originalmente no site A Cuarta Parede.

Como podemos analisar o tempo? De que forma esse conceito filosófico milenar pode ser incorporado no pensamento humano? O cinema, como arte do tempo, pode fazer alguma coisa por essa busca interminável: pode ajudar-nos a entendermo-nos, ou melhor, a pensarmo-nos enquanto seres duráveis e, sobretudo, findáveis. Talvez seja dessa matéria do pensamento que se faz “E Agora? Lembra-me”. O título, aliás, remete de imediato a essa problemática, jogando com a ideia de presente e de memória. Não por acaso, o filme assume um modelo quase diarístico, confessional, em que o realizador é o narrador. O pretexto é, ele próprio, dramático, temporal: acompanhar um ano de tratamentos clínicos experimentais de Pinto, cuja saúde é degradada pela combinação do HIV e da hepatite C. Para nós, a crítica questão do tempo é abordada, em “E Agora? Lembra-me”, pela intimidade, pela aproximação possível do cinema aos modos de viver diários. Da intimidade Joaquim Pinto é um nome central do cinema português das últimas décadas, sobretudo como operador de som (de mais de meia centena de filmes) e produtor (entre outros, dois filmes da “Trilogia de João de Deus”, assinada por João César Monteiro: “Recordações da Casa Amarela”, 1989, e “A Comédia de Deus”, 1995). No entanto, foi também realizador de alguns filmes, como “Uma Pedra no Bolso” (1988) ou “Onde Bate o Sol” (1989), que marcam uma determinada conjuntura da história do cinema português: um momento de transição entre a geração do “novo cinema português” e uma nova geração que procurava novos caminhos, sobretudo temáticos, mesmo que ainda fossem seguidores do legado dos anos sessenta. Entre outros, Pinto partilha as primeiras experiências de cinema com Pedro Costa, João Canijo, Vítor Gonçalves ou Teresa Villaverde. Com “E Agora? Lembra-me”, o autor regressa à feitura de um longa-metragem quase dez anos depois do seu último trabalho (de curta-metragem) e mais de vinte anos depois da sua estreia auspiciosa com os filmes citados. Aliás, essa filiação é reforçada durante o documentário com passagens biográficas de Pinto que se confundem com a história do cinema português dos anos oitenta e da relação pessoal que manteve com João César Monteiro. 49


Como dissemos, este documentário autobiográfico é uma revelação intimista do dia a dia de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, o seu companheiro desde meados dos anos noventa. Esse quotidiano é afetado pelo tratamento experimental e com efeitos colaterais aos quais Pinto se submete. Como às tantas nos diz, ao tentar fazer um calendário anotando os dias bons e os dias maus, acabou por desistir ao fim de uma semana, porque todos eles eram maus. De facto, a intimidade que o filme revela embate nas sucessivas crises que Pinto tem, originadas pela medicação violenta, que muitas vezes o desorientam. No entanto, se há um evidente destaque à força dessas crises – e à sua, digamos, presentificação, através de monólogos do realizador – o filme transforma esses momentos numa narrativa mais larga, criando ruturas com outras imagens e outros momentos. Em certo sentido, Pinto partilha as experiências intimistas próximas da prática de Pedro Costa e a sua presença no quarto de Vanda, em que a câmara serve como testemunha de algo que acontece à sua frente. Há uma evidente diferença: Pinto –e também Leonel – filmam-se a si próprios, ao seu tempo, ao seu quotidiano. E, nisso, é também radicalmente importante a voz em off que narra e intervém sobre as imagens (muito haveria a dizer sobre esta voz em off, que sabe bem quando é necessário o silêncio e que nunca é redundante com a imagem), ordenando-as e dando-lhes uma coerência por vezes desconhecida do espectador. O cinema português também já viu disso, recentemente, sobretudo nas explorações de Gonçalo Tocha e o seu já “clássico” documentário “É na Terra não é na Lua” (2011). O que se ressalta dessas estratégias narrativas é a constante necessidade de pensar as imagens, de integrá-las numa narrativa filosófica ampla que detalhe diferentes preocupações de Pinto (de facto, a sua voz é a voz do filme, da autoria). Podemos dizer que, nesse discurso que o filme forma, procura-se um sentido de vida, num gesto largo e filosófico, que procura um saber canônico (por exemplo, a Bíblia), mas também outros saberes obscuros e iconoclastas, como um livro ilustrado do século XVI, de Francisco da Holanda, e que Pinto filma em umas mãos com luvas de uma bibliotecária de Madrid. Mesmo a Bíblia, como perceberemos, é usada como um livro radical do pensamento humano. Entre esses saberes milenares e os científicos atuais, o filme tece uma abordagem sobre o sentido da vida, procurando viver a sua plenitude. Essa relação entre os livros é também transportada da relação entre Pinto e Leonel, já que o segundo é cristão e continuamente reforça a radicaliAUTORRETRATOS


dade da Bíblia. Pinto usa o filme também como ponto de ligação entre as diferentes mundividências e a experiência-limite de vida que está a viver. No entanto, o que “E Agora? Lembra-me” mais sublinha é precisamente o quotidiano da vida: a casa de aldeia, o campo cultivado, o acordar, o relacionamento com os cães, os gestos diários que culminam numa cena de sexo. Tudo faz parte dessa intimidade desarmante, difícil de agarrar, ou só possível pela insistência em filmar e em construir um discurso (a montagem) sobre essas filmagens. O olhar de Joaquim Pinto e Nuno Leonel (os dois são “operadores da câmara”) é gracioso, muitas vezes chegando a uma certa nostalgia de home movie, comparável às experiências de autores do cinema de vanguarda, como Jonas Mekas. Essa nostalgia, presente nas imagens serenas do campo crepuscular e das brincadeiras com os cães, é testada em contraste com o discurso mais sofisticado da voz em off. É dessa ambivalência que o filme ganha a sua espessura, a sua beleza e a sua profundidade. Por outro lado, há uma sensação de que o filme obedece a um ritmo particular, sentido, por exemplo, na sua trilha sonora, que vai marcando os diferentes “capítulos” da narrativa. Por vezes, esse som quase consegue ser excessivo, embora o silêncio impere em vários momentos, como em um dos clímax violentos do filme, quando acompanhamos Pinto e Leonel em uma exaustiva corrida contra o fogo. Nessa situação, acentua-se uma certa fragilidade diante da violência do mundo e não poderiam haver “melhores” imagens para caracterizar o inominável como as chamas infernais que destroem tudo pelas mãos do homem (ouvimos Leonel a declarar ser “fogo posto”). Como filme diarístico, filosófico e complexo que é, “E Agora? Lembra-me” exige vários visionamentos para ser possível um diálogo mais denso com a sua exigente bibliografia (Freud e Marx são diversas vezes subliminarmente citados). Aliás, a sua duração (em alguns momentos concretos, admita-se, excessiva ou redundante) também exige esse olhar aprofundado. No entanto, o filme ecoa como um documento dos interstícios do quotidiano e as suas imagens – sobretudo aqueles olhares selfie que documentam a luta de Pinto e de Leonel – demonstram que o presente continua a ser um lugar filmável, em que se procuram entender as contradições da imparável continuidade da vida. Daniel Ribas é doutor em Estudos Culturais pelas Universidade de Aveiro e Universidade do Minho, em Portugal. É programador do Curtas Vila do Conde e do Porto/Post/Doc – Film & Media Festiva.

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33, de Kiko Goifman

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A IMAGEM DO EU: DESAFIOS EM TORNO DE UMA PERGUNTA por Juliana Cardoso Franco

“Uma folha em branco: o verdadeiro espelho do homem” - Jean-Luc Godard em “JLG por JLG”

Cinema e autobiografia. A relação entre esses dois mundos poderia ser introduzida por meio de uma reflexão que buscasse definições para uma relação que parece cada vez mais presente na arte contemporânea. É assim, por exemplo, que grande parte da teoria acadêmica vem pensando o filme autobiográfico, quando assim ele é chamado, já que há várias nomenclaturas possíveis para ele hoje: “escrita de si”; “filme em primeira pessoa”, “filme-memória”, “autoficção”; “filme-ensaio”, entre outras categorias que se lancem ao desafio de lidar com obras em que o seu realizador, ao mesmo tempo em que quer falar de si de forma mais ou menos admitida, muitas vezes negará tal significação do “eu” para a sua obra. É curioso perceber que, apesar de recentes, algumas dessas classificações parecem já dotadas de data de validade, como de algum modo acontece com a primeira proposta conceitual elaborada para pensar tais filmes, a de “filme performático”. O termo, última categoria cunhada por um dos teóricos mais conhecidos da área do documentário, Bill Nichols, foi proposto para que fosse possível dar conta de uma produção em que ele próprio foi pioneiro ao perceber um movimento particular do modo de fazer documentários. Por mais operacional que os modos de representação de Nichols possam ser, como é a essência da crítica sobre eles, não deixa de ser fundamental que o mais conhecido teórico do campo do “real” em movimento tenha criado uma nova categoria para dar conta desse movimento. Só esse indício já nos atrairia a refletir sobre o que faz desses filmes um processo representativo nas formulações das imagens contemporâneas. Alguns cineastas brasileiros pioneiros nesse movimento optaram por denominar seus trabalhos mais pessoais como “filmes de busca”, como pode-se perceber em obras que inauguram a “prática de si” no documentário brasileiro contemporâneo, como o “33”, de Kiko Goifman (2004), e o “Um Passaporte Húngaro”, de Sandra Kogut (2003). Diante de tantas possibilidades de definições que o termo “autobiográfico” indica, ele se apresenta, sobretudo, como uma nomenclatura que contém uma possível unidade do que possa ser buscado entre esses 53


diferentes nomes e práticas. Mas tão importante quanto retornar ao princípio desse jogo do “eu” para compreender o que é essencial à sua natureza é reconhecer que a sua questão de base possivelmente não é, hoje, a mesma de quando a autobiografia começou a ser pensada em sua teoria, já que a dimensão autobiográfica nas artes não parece ser mais a do “pacto” que Phillipe Lejeune enunciou, manifestado por meio de uma noção de verdade que seria compartilhada entre o autor e o espectador diante da narrativa do eu apresentada. Com a profusão das imagens no mundo contemporâneo, a prática autorreferente ganha dimensões que ultrapassam as condições e os efeitos que essa prática teve em áreas que lhes são caras e até mesmo tradicionais, como a literatura e também as artes plásticas. No caso destas, por meio dos autorretratos, que, por sua vez, apresentam uma teoria muito menos presente que a da autobiografia literária e, até mesmo, cinematográfica, o que não deixa de ser significativo. Mas, então, como compreender essa diferença, quando essa imagem passa a ser pensada de forma recorrente junto às imagens em movimento? O que isso significa tanto em termos estéticos e o que isso diz sobre esse sujeito contemporâneo que está aí em evidência? Se, para alguns, a autobiografia no cinema ainda pode ser identificada por meio do alter-ego de um cineasta, como foi significativo a partir dos anos 1960 graças a diretores como Federico Felllini e, principalmente, François Truffaut – entre outros que ficaram conhecidos por obras que refletiam sua própria história de vida – esse cinema de autor, que se torna hoje um cinema do “eu”, traz uma dimensão autorreferente que está dentro da própria imagem e nas suas entranhas, e não fora ou ao redor dela, como era no caso daqueles cineastas. Reflexo mais direto da Teoria da Política dos Autores e da discussão mais ampla em torno da sua “morte”, proposta por pensadores como Michel Foucault e Roland Barthes, esse autor que clamava ser entendido para além da sua assinatura certamente é, hoje, essencial para o cinema do “eu”. Talvez a obra mais significativa da ponte entre esses dois momentos seja a da francesa Agnès Varda (“Tio Yanco”, “Os catadores e Eu”, “As praias de Agnès”), que redimensiona esse autor dos anos 1960 em planos que se manifestam na própria superfície da imagem do eu contemporâneo, capaz de se mostrar até mesmo por meio de traumas que se impõem, seja o realizador reconhecido como cineasta ou homem anônimo. Em um tempo em que as imagens ganham vida própria de tão atreladas que estão ao nosso cotidiano, poAUTORRETRATOS


dendo ser – ou não – “quase-sinônimos” de nossa íntima realidade, a autorreferência sai de sua condição de extracampo, ou do “fora” de construção de uma imagem e ganha sua superfície mais essencial. Somos convidados a perceber a autorreferência no espaço próprio e interno dessas imagens e não mais em um terreno que a “explica” ou a fundamenta “por trás” da narrativa. Paralelamente, é importante lembrar que essa prática é extremamente recente, se comparada às imagens produzidas na literatura e nas artes plásticas. Considerando que o movimento autorreferente já era quase milenar nas artes quando o cinema surgiu no fim do século XIX, por que será que a sétima arte demorou quase um século para incorporar o filme autobiográfico em sua trajetória? Há uma dimensão mais certeira e óbvia, porque ela trata de uma certa lei de ação e reação: com a democratização das imagens provenientes do digital, toda uma ampla rede de possibilidades de formas e métodos se abriu a esse homem que deseja se pensar por meio de uma imagem; o homem pode, seja ao acaso, seja de forma mais planejada, voltar a câmera para si e, mesmo sem se dar conta, dar início ao que perceberá depois como desejo de uma obra autobiográfica ou de investigação de si com um teor estético e, quem sabe, uma obra que será fruto de uma intenção artística. Muitos desses filmes se originaram ao acaso e o maior exemplo no cinema brasileiro talvez seja “Santiago” (2007), de João Moreira Salles. Se, no princípio, tratava-se apenas de um registro de um encontro, ou, ainda, de imagens amadoras feitas ao acaso, hoje é cada vez maior a presença de realizadores que sentem necessidade de falar de si em torno dessa imagem confessional. O confessional, aqui, como obra estética, o que, claro, também pode ser um resultado e reflexo de toda uma cultura midiática do Eu. Mas todos esses cineastas que se lançam a essa busca por si, diante da tentativa de elaboração de uma condição ou história de vida por meio dessas imagens, terão o desafio de fazer uma obra audiovisual, ainda que assuma fabulações e a condição inevitável da ficção, quase como uma condição humana diante da arte. Ele estará expondo seus desejos, seus sonhos, suas memórias, suas feridas e até mesmo seus traumas, como demonstra de forma muito particular “Elena”, de Petra Costa (2012). O substrato do cineasta, portanto, aqui, é outro. E essa nova “câmera na mão”, muito mais íntima de cada poro desse cineasta, não deve ser percebida apenas por meio de um movimento decorrente de uma nova tecnologia, pois, se as novas 55


tecnologias permitem que qualquer um de nós tomemos uma câmera na mão, nem sempre a ideia de fazer do “eu” uma obra estética estará na cabeça ou conseguirá sair do papel. O que faz então com que essas obras existam de modo tão substancial? Teóricos e cineastas vêm tentando compreender esse movimento, seja por meio de teorias, seja por meio de filmes. No caso dos cineastas, vários dos que vêm conseguindo dar boas respostas a esse desafio – porque, sim, o filme autobiográfico é um desafio e em certo sentido abissal (o cineasta terá que lidar com o distanciamento e a aproximação de si mesmo como personagem marcado pelo complexo pronome “Eu”) – tentam compreender a prática autorreferente e não a justificam pela banalidade com que a prática já se encontra permeada hoje. “Tarnation” (Jonathan Caouette, 2003) é um filme singular para se pensar o equilíbrio, ou a falta deste, diante da própria banalidade do que Paula Sibília chamou de “o show do eu”. Uma história de um realizador que expõe sua relação de crise com sua mãe e avó, assim como sua condição sexual diante do mundo e que não esconde uma condição íntima e até mesmo infantil diante da construção de sua autoimagem, cuja força e vetor fundamental vem justamente da sua coragem e falta de pudor em parecer ridículo ao expor sua intimidade ou seu quase inconfessável Eu a todos nós. No caso da teoria, além de Nichols, há nomes relevantes, como Michael Renov, Roger Odin (num sentido mais tangente, o do cineasta amador do “filme de família”) e Raymond Bellour, que, no clássico “Entre-imagens”, investiga a relação deste cineasta com um cinema experimental proveniente do diálogo entre o cinema e a vídeo-arte. Há, ainda, teóricos das terras latino-americanas, como Consuelo Lins, Andrea Molfetta, Illana Feldman, Cézar Migliorin, Roberta Veiga, Patricia Rebello, entre outros. Destacamos aqui o trabalho de Renov, porque ele propõe uma dimensão do filme autobiográfico que, no fim das contas, é hoje base para diversas dessas discussões, principalmente pela Academia. Ao destacar que tais filmes são dotados de uma “subjetividade social” que vai além do “eu” e que aponta para uma dimensão coletiva, Renov reflete todo um grupo de pensadores que muitas vezes defende a relevância desses filmes por meio de uma “alteridade”. Ela se expressa como uma espécie de termômetro para que eles não sejam classificados simplesmente como uma “estética do narcisismo”, usando a expressão de Rosalind Krauss. Obras como a dos AUTORRETRATOS


cineastas Jonas Mekas (“Walden”, de 1969, “Lost, lost, lost”, de 1976) e David Perlov (“Diários”, de 1973-1983) são importantes exemplos da manifestação dessa alteridade. Nesse sentido, é curioso perceber como a afirmação clássica de Rimbaud, que nos lembra que o “eu é um outro”, ganha hoje papel de julgamento diante desses filmes: neles, a tal alteridade chega a assumir até mesmo um papel de justificar que tais obras existam com pertinência. Mas o que será dos filmes autobiográficos se eles não tiverem essa alteridade? O que seria, por exemplo, de uma obra essencialmente narcísica, como uma parte relevante da obra documental da cineasta Naomi Kawase ou de Margreth Olin (“Meu Corpo”), ou de muitos outros cineastas que não fazem essa ponte entre si e um coletivo? Estariam eles condenados e perdidos ou associados a um Narciso acusado em sua superficialidade? Os filmes autobiográficos colocam, como nenhum outro, uma indistinção entre o espaço ficcional e o documental – já que aqui o espaço do personagem coincide com o do realizador, sendo que, por mais que se assuma a fabulação, não haverá um distanciamento como se teria ao abordar outro personagem. Nesse sentido, não há distanciamento possível, ao menos em um terreno extremamente indefinido ou ilusório; estamos diante de sujeitos cineastas que lidam, sobretudo, com suas fabulações a respeito de um acontecimento pessoal e por vezes coletivo, muitas vezes associado a diferentes memórias, como traz o curta “O chapéu do meu Avô” (2004), de Julia Zakia. As definições e respostas em torno desses filmes sempre se darão num terreno movediço, essencialmente escorregadio. Por isso é que Renov evidencia o que poderia ser apenas um detalhe: para ele, seu objeto de estudo deveria ser acompanhado, especialmente, por uma pergunta – “autobiografia em cinema e vídeo. (...) a frase não deveria ser imbuída de uma pergunta ao invés de uma afirmação?”. Assim, ele também aponta para o próprio aspecto formal dessas obras, que é seu diálogo com uma vertente tanto psicanalítica quanto de uma filosofia do eu. A simples e, ao mesmo tempo, complexa natureza de esfinge que esses filmes possuem parece colocar que a questão aqui talvez não seja a de pensar o pacto de uma possível “condição real” do realizador, mas que estamos diante de imagens que nos permitem ver, por meio da força, da fragilidade, das incertezas e das bricolages do eu, que a imagem autobiográfica não se sustenta em uma discussão em torno da “verdade”. O que significa também deixar que elas possam existir narcísicas, 57


apesar desse risco, para que não se aposte na construção de um “eu” politicamente correto, como acontece na forma do fundo sem fundo do eu psicanalítico e do ser pensante. Talvez por se constituírem de base movediça é que a forma autobiográfica possui tão poucos casos de filmes criados enquanto ficção, como Nanni Moretti talvez seja o mais significativo exemplo. Seus “Caro Diário” (1993), “Aprile” (1998) e o recente e ainda inédito no Brasil, “Mia Madre” (2015), lembram como a autobiografia elaborada enquanto linguagem (ou seja, como “ficção pura”) ainda é rara. Por esses mistérios e essas ciladas que rondam a imagem autorreferente, o encontro com elas é um desafio no mínimo atraente. Estamos diante de filmes que nos fazem pensar como podemos ser imagens, expressar nosso eu através de um espelho particular, passível de reflexos que um espelho-objeto clássico não nos daria, mas que a arte pode, quem sabe, proporcionar. Desconfiemos, portanto, daqueles que dizem que o Eu é uma ficção como todas as outras. O Eu é uma ficção, mas uma muito particular, cuja única afirmação possível, em princípio, parece ser essa. Como sugere Renov quando aponta para a necessidade que ele tem em ver a autobiografia enquanto pergunta, ele indica, mais profundamente, uma possível imagem que possa sintetizar essa prática. Tal imagem não consegue sequer ser a de uma palavra, mas, sim, de um signo que se expressa enquanto interrogação sem resposta, ponto que não pontua nada, mas aponta para a própria ausência do Eu: cineasta que seria como “uma página em branco”, como disse Godard. Porque, se houver alguma verdade em torno desse Eu, é em outro lugar que ela se encontrará, nas entrelinhas, verdade que não pode ser dita ou identificada. Juliana Cardoso Franco é produtora cultural, pesquisadora e militante da área de preservação audiovisual. Mestre pela UFRJ, é autora da dissertação “Eu sou uma Imagem” (UFRJ, 2010) e da monografia “Filmes Autobiográficos: entre-linguagens” (UFF, 2007).

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Tarnation, de Jonathan Caouette



“DESCOBRI QUE NÃO ERA ASSASSINO” Entrevista com Cristiano Burlan por Jean-Claude Bernardet

Publicado originalmente no Blog do Jean-Claude.

Você nasceu onde, em que família? Nasci em Porto Alegre, em 1975, no dia 21 de agosto, em uma família de proletários da zona norte em um bairro chamado Sarandi. Sou primogênito de uma família de cinco filhos. Meu pai já faleceu, minha mãe também e um dos meus irmãos, Rafael, também morreu. Minha mãe era empregada doméstica e meu pai pedreiro, fazia serviços gerais. Muito cedo foi vitimado pelo alcoolismo e isso o tornou uma pessoa violenta e dura. Você ia à escola? Ia. Sempre fui bom aluno, mas tive maus professores, pouco interessantes. Em Porto Alegre, a escola era melhor. Em São Paulo, estudei em uma escola pública no Capão Redondo, o nível era bem baixo. Terminei o primeiro grau; o segundo, não terminei. Como você passa de Porto Alegre ao Capão Redondo? Meu pai batia na minha mãe. Ela reagia, porque ele era baixinho e ela uma mulher alta. Então, a porrada comia solta em casa, desde muito jovem. Depois de muita violência, minha mãe fugiu para São Paulo. Meu pai vendeu nossa casa, casou com outra mulher, que era alcoólatra também. Fomos morar em Santa Catarina. Éramos três irmãos: eu, Rafael e Ricardo. Em São Paulo, nasceram a Kelly, a menina, e o Tiago, meu irmão que hoje está preso. Essa nova esposa era violenta, batia muito na gente. Eu e meus irmãos passamos um ano apanhando. Minha mãe ficou sabendo. Ela voltou, meu pai mandou a mulher embora, eles se casaram de novo e viemos para São Paulo. Fomos morar na Vila Joaniza, onde morava meu tio. Passamos um mês lá, quinze pessoas dentro desse quarto-e-cozinha. Depois, meu pai arranjou um trabalho de eletricista na USP e lá ele conheceu um engenheiro que trabalhava na Cohab e conseguiu um apartamento no Capão Redondo. Ele bebia ainda? Sempre bebeu, a vida inteira. Parava quando entrava no AA (Alcoólicos Anônimos), mas era alguns meses só. Quando tinha recaída, voltava a beber com mais voracidade e ficava mais violento. Mas o problema do meu pai não era o álcool. Era uma tristeza profunda, frustração de não ter realizado as coisas que ele desejava, de que ele nunca me falou, mas estavam no rosto dele. Aquela amargura das pessoas que não têm saída. Desejo talvez de ter sido um pai melhor, ter tido outra profissão. 61


Os homens da minha família são… são borderline, não sou especialista para definir isso, mas eles são sonhadores, têm aptidões, aprendem as coisas rápido, têm uma memória de elefante, uma sensibilidade extremada e são todos loucos. Ou morrem de tristeza, por morte matada ou morte morrida! É a sina dos homens da minha família. Às vezes, sinto que meu fim também é trágico, uma morte bem bizarra. É um pensamento que me acompanha. Voltemos ao Capão, os amigos, você tinha que idade? Cheguei com 9 para 10 anos, saí de lá com 17. Éramos uma turma de doze – dez morreram assassinados. Turma da escola? Da escola e de futebol ali do bairro. Dez morreram assassinados. Destes dez, dois se tornaram bandidos e os outros oito morreram por estar no lugar errado na hora errada… Quem mata? A polícia. A polícia. Todos morreram pela arma da polícia e por uma polícia que deve ser uma das mais violentas do mundo, a Rota. É um esquadrão de extermínio com legitimidade para matar. Os números aparecem, mas ficou normal saber que as pessoas são assassinadas pela Rota na periferia. São Paulo é uma cidade estranha pra mim, porque depois que eu atravessei o rio parece que… Que rio? O rio Pinheiros, o rio Tietê. As pessoas burguesas vivem dentro desse quadrilátero cercado por esses dois rios. E toda a sujeira está fora desses rios. Na verdade, acho que é o contrário, ela está aqui dentro. Algumas pessoas dizem que você tem que ir pro trabalho de bicicleta. Como você vai falar para alguém que mora a 45 km do centro da cidade, uma cidade cheia de morros, que tem que deixar o carro ou o transporte público e ir trabalhar de bicicleta? É uma falta de consciência da geografia da cidade… Foi uma infância muito violenta. Mesmo abordando a violência em alguns trabalhos meus, gostaria de não ter passado por isso. Deixa uma marca indelével. Qual é essa marca? Quando você tem contato com a morte, sua perspectiva de vida muda. Eu tinha 11 anos, estava jogando futebol com amigos em uma quadra da escola e a Rota chegou. Tinha um garoto fumando baseado e eles já chegaram agressivos e, porque alguém falou alguma coisa, eles sacaram as armas e mataram três garotos na minha frente. Um deles era meu amigo e deram um tiro na AUTORRETRATOS


cabeça. Extermínio. A primeira vez que presenciei um assassinato. Parte do cérebro deles ficou na minha camiseta. Quando você nasce nesse lugar, dá uma raiva das coisas. Está sempre prestes a explodir. Você vê a vida, parece que está tranquilo, mas as coisas por dentro estão podres, estão fora do eixo. É difícil encontrar beleza nessas coisas, no feio. Tem que ter um olhar generoso para encontrar poesia e beleza nessa sujeira toda. Acho que as pessoas que se suicidam são verdadeiros heróis, mas sou muito covarde para me suicidar. E para matar também. No filme que fiz sobre meu irmão, tem um momento que até editei, mas nunca usei. Tentei matar os assassinos do meu irmão. Quando tinha 21 anos, fui para a Legião Estrangeira. Meus tios do sul me ensinaram; mesmo odiando e tendo paúra de violência, sei atirar com as duas mãos, sou bidestro, uma incongruência que tenho na minha personalidade. Quando meu irmão foi assassinado, um amigo meu era traficante, ele me deu cocaína. Passei duas semanas cheirando, com duas armas na cintura e duas caixas de balas – atrás dos caras. Descobri onde morava um deles. Eram três, cupinchas de um policial da Rota que comandava o tráfico da região. Foi ele que mandou matar meu irmão. Meu irmão tinha roubado um carro pra ele e queria receber pelo carro. Em vez de pagar, eles o mataram. Passei uma noite inteira na frente da casa esperando que ele saísse. Eu sei fazer coquetel molotov e outros explosivos caseiros. Tinha feito quatro. É tática de guerrilha urbana, você joga fogo na casa, as pessoas saem com medo e você as mata. Fiquei a noite inteira cheirando. Estava escondido no matagal e não tive coragem de meter fogo na casa. Lá pelas 5 da manhã, sai uma senhora com três crianças, indo para creche, assim meio piegas. Naquele momento, descobri que não teria coragem de matar nem o cara, nem a mãe dele, nem as crianças ou qualquer coisa que rastejasse por ali. Aí voltei para casa, devolvi as armas e descobri que não era assassino. Volte ao Capão, essa história da escola, como foi? As escolas na periferia têm sempre muitas grades e muitos portões. Quando você entra, as portas vão se fechando atrás de você. Quando, pela primeira vez, eu fui visitar meu irmão numa cadeia em São Paulo, tive a mesma sensação de quando entrava na escola. Uma escola na periferia é sempre cinza, concreto. Não tem biblioteca nas escolas públicas, tem alguns livros ali, restos que chegam, pelo menos na minha época. Os professores não tinham interesse pelos alunos. Os alunos também não tinham interesse 63


pelos professores. Pouca gente consegue se interessar pelos estudos. Muito cedo comecei a me interessar por literatura, música, teatro, cinema. Por cinema principalmente, aí comecei a atravessar o rio para ir a Santo Amaro. Isso revela que você tem energia, isso não vem do seu meio, nem da escola. Como você foi se encaminhar para a literatura? Muita influência de um amigo, meu último amigo de infância, o único que sobreviveu. Ele cresceu numa família burguesa… a família empobreceu e foi morar no Capão. Mas o avô deixou toda a biblioteca pra ele, os grandes livros: Dostoievski, Guimarães Rosa… em casa havia poucos livros, tinha era gibi. Minha mãe era viciada em ler gibi no banheiro, então meu hábito pela leitura se inicia aí. Depois, esse meu amigo começa a emprestar os livros dele, primeiro livros bobos e depois os grandes clássicos da literatura. Pode parecer piegas, mas era o que me afagava um pouco no meio de tanta violência, tristeza, solidão, uma maneira de sair daquele lugar. Lia o tempo todo, em casa, no ônibus – desenvolvi uma técnica para ler em pé, esmagado no ônibus, não sei como não descolei a retina! Porque, na época em que morava no Capão Redondo, o transporte era pior do que hoje – demorava duas, três horas para ir de casa ao Centro, para o trabalho. Quando você começou a trabalhar? Com 12 anos já trabalhava. Trabalhei muito em obras, na feira, vendi churrasquinho, vendi doces na USP. Estudava de manhã e à tarde ia pra USP. Meu pai conseguiu autorização e eu andava na Politécnica com uma caixinha de doces, daí fui para a FEA, atravessei a praça e acabei chegando na ECA, um novo mundo. Comecei a frequentar o Centro Acadêmico. Tinha mesa de sinuca. Na periferia, aprendi a jogar sinuca muito bem. Com 13 anos, jogava a dinheiro com os alunos da Poli. Um dia estava na ECA e descobri uma Sala Preta, onde alunos de teatro mostravam experimentos de encenação. Entrei. Tinha uma loira maravilhosa amarrada, pelada, perto da plateia. Achei aquilo impressionante. Você falou de um Centro Cultural que passou a frequentar. Perto da Biblioteca Robert Kennedy. Como você ia do Capão Redondo a Santo Amaro? Sempre sem dinheiro para o ônibus, tinha que passar por baixo. O que é passar por baixo dessa catraca? Uma humilhação. Aos 13 anos, eu já tinha uma estatura e o ônibus sempre lotado, o cobrador deixava passar por baixo, uma catraca muito baixa, e é humilhante rastejar ali debaixo da catraca. Ele deixava, mas gritava bem alto: “como um homem deste


tamanho não tem dinheiro para pagar a passagem?” E o ônibus inteiro olhava para você. Depois você desenvolve uma maneira de burlar isso: quando a porta do ônibus abre na frente, você sai correndo. Mas os motoristas são sempre os mesmos e você acaba sendo visado. Eu e meu amigo Thiago íamos até essa biblioteca, ela é muito vazia, tem um pé-direito altíssimo. É um lugar fresco, agradável para se estar no meio daquela cacofonia toda da região sul, aquela violência toda. Eu me sentia quase numa igreja gótica. Ali, tive contato com as grandes obras da literatura mundial. Revoltava-me quando me deparava com um livro e percebia que havia 10 anos que ninguém o retirava, então eu o roubava e, depois de ler, passava para outra pessoa. Não só na biblioteca, nas livrarias também, roubei muito livro, sentia-me o próprio Robin Hood. Achava que roubar livro não era crime. Não sei se li a biblioteca inteira, mas boa parte, pelo menos o que era importante, não só uma vez, mas duas: tenho hábito de reler, com filmes também. Hoje em dia tenho mais prazer em rever um filme do que conhecer novos. Do outro lado da biblioteca tem a Casa de Cultura Santo Amaro. Fica tudo na João Dias. É um antigo mercado. Comecei a fazer todos os cursos possíveis, principalmente de teatro. Dali acabei vindo para o Centro, comecei a frequentar o Teatro Municipal, pedia ingresso quando sobrava, assisti a algumas óperas, ouvi música clássica. Lembro-me de “Minhas Universidades”, do Gorki: ele diz que a universidade dele foi a rua, a vida. A minha foi um pouco isso também, eu me formei, me deformei na rua. Sempre me lembro dos personagens do Dickens, principalmente os de “As Grandes Esperanças”. Sempre me senti um excluído, à parte, mas isso nunca me limitou, me congelou, me impediu de fazer o que eu queria, de ir ao teatro e ao cinema. Entrei escondido em muitos casamentos. Comprei um terninho num brechó e todo sábado à noite eu e meu amigo íamos para a porta de um bufê. Conseguíamos entrar em quase todos. A gente bebia, se empolgava, beijávamos a noiva, cumprimentávamos o noivo… aí descobriam que não éramos convidados. Fui expulso muitas vezes. Mas sábado à noite era o clássico, furar uma festa de casamento, comer e beber. No Municipal, o que você viu? Vi grandes óperas, pela primeira vez assisti à “Madame Butterfly” e Wagner. Tenho uma relação forte com Wagner. Fiquei impactado com “Tannhäuser”, assisti à trilogia há alguns anos. Acho que percebi em Wagner quase o cinema do século 19, como se fosse arte total. Depois fui estudar a obra dele. Como espectador, impressionou-me esse domínio da mise en scène, a música faz parte do todo, mais o corpo, a voz, a conjunção das coisas, o ápi65


ce do drama… pra mim é cinematográfico, quase. Como Bergman dizia, o teatro é minha morada, minha esposa. O cinema é minha amante. Meu grande desejo é dirigir ópera. E no teatro, quando conseguia entrar, sentava onde? Ah! De vez em quando conseguia lugar bom. Os porteiros do Municipal que me conheciam me deixavam entrar no foyer, dava uma tremenda dor no pescoço olhar lá de cima, mas eu sempre achei muito bonito. O prédio do Teatro Municipal me atraía, acho um lugar mágico até hoje. Fui assistir este ano à Cavalaria Rusticana, não gosto da ópera inteira, gosto do intermezzo. A ária da abertura de “Touro Indomável” do Scorsese é uma das mais bonitas. E na Kennedy, você chegou a ler sobre cinema? Sim, encontrei até livros seus… lembro-me de ter ficado muito curioso ao ler a biografia de Jean Vigo de Paulo Emílio (Sales Gomes). “Notas Cinematográficas” (Bresson), a primeira vez que li foi na Kennedy! Mas não existe uma bibliografia potente de cinema, você tem que garimpar… “O que é cinema”, de Bazin. Encontrei críticas da Cahiers du Cinéma. Teve uma época em que até pensei em ser crítico de cinema. Os textos da Cahiers parecem alta literatura, deveriam ser escritores e não escrever sobre o filme dos outros. Tinha traduções, alguns textos do Truffaut – uma certa tendência do cinema francês –, se não me engano, é quase o início da Nouvelle Vague. Li em português, mas tenho muitos livros em francês. Estudei na Aliança Francesa aqui no Centro. Como você conseguiu, sem ter formação escolar? Fiz o curso livre, um curso de férias, pago. Já estava trabalhando, comecei a fazer teatro profissional na Companhia Arte Degenerada. Conheci alguns restaurantes que aceitavam atores como garçons, o Spot, o Ritz. Comecei a ganhar um pouco de dinheiro, morar melhor, pagar as contas, comecei a me arranjar muito com o teatro. Meu début profissional foi aos 17 anos com Osmar Prado, eu era contrarregra. Fiquei impactado porque era um monólogo do Dario Fó, direção do Roberto Vignati, tinha dezoito personagens e o Osmar fazia os dezoito. Lembro que ele sofria antes de entrar em cena, um ator stanislavisquiano, à la Jardel Filho. Até o terceiro sinal ele estava na coxia suando e, quando entrava na luz, era um ator magnífico. Quando saía, sofria, quando voltava para a luz, parecia quase um deus. Acabei viajando quase o país inteiro com essa peça, conheci tudo quanto é teatro. A prática foi a minha escola. Por que você não virou bandido? Porque acho que sou muito romântico. Tive várias possibiliAUTORRETRATOS


dades, amigos meus viraram traficantes, bandidos. Que possibilidades? É assim: você está sempre nos botequins jogando sinuca, tomando cerveja, dando um tiro no barzinho, cheirando. Na época o crack não estava ainda em voga, era cocaína, álcool e maconha. Aí chega alguém e fala: tem uma fita numa boutique no Itaim, ou vamos assaltar um banco, precisa de um olheiro. E o que eles te oferecem, em grana, é muito alto. Mas você pode morrer. Eu tinha um forte apego pela vida – alguns amigos morreram nessas situações – acho que talvez medo. Nenhuma vez você aceitou? Não. Roubei só chocolate no mercado! Cometi alguns delitos, mas é apavorante quando você tem uma arma na mão e vê o pavor no rosto de uma pessoa. Você chegou a essa situação? Cheguei, me senti um lixo. Outra vez foi quando agredi um garoto na escola, ele quebrou o nariz, saiu sangue, isso me machucou muito. Outra vez, ver uma pessoa congelada, apavorada, quando você aponta a arma para ela. Acho que é um clic, você tem medo de matar alguém, não tem coragem e de repente você mata e isso vira um hábito. Várias vezes eu quase morri, isso pra não dizer que vi o Diabo três vezes na minha frente e mandei um dedão pra ele. Mas eu não tenho orgulho disso, eu queria não ter passado por essas histórias. É tão pesado, tão trágico e dolorido o que aconteceu comigo, com minha família e com meus amigos que para mim parece que é uma ficção, barata até, muito inventada. Se eu fizesse um documentário contando minha história realmente, as pessoas iam achar que sou louco, que parece um romance. Dá um exemplo. Uma vez a gente estava num lugar, a Rota chegou e matou todo mundo. Acertaram-me de raspão e me fingi de morto para não ser assassinado também, no meio de cinco ou seis corpos. As pessoas não acreditam nisso, acham que é mentira. Então começo a achar que é mentira, que foi inventado. Sou um pouco hiperbólico, um pouquinho exagerado. Você tem tendência a fantasiar? Acontece, mas, ao contrário, se realmente fosse dar vazão a isso, ia parecer mentira, tenho que diminuir a veracidade da história. Tem um filme bobo: “Peixe Grande”, do Tim Burton. Esse personagem passou por muita coisa e, quando ele morre, aparecem no enterro todos os personagens que ele falou durante a vida e as 67


pessoas achavam que era mentira. Quando você conta uma história e diminui, isso não gera uma grande solidão? Onde li isso? São duas frases que não me saem da cabeça: “você nasce, vive e morre sozinho, quanto mais cedo aceitar isso, menos vai sofrer”. A outra é de Ivan Turguêniev, em “Pai e Filho”: um homem fala para outro: “seu sobrinho é um niilista”. Eu não sabia o que significava e fui descobrir e me impactou. Como você vê esse niilismo? Para mim funciona assim: na periferia, você deixa de ser ingênuo muito rápido, quando tem contato com essa bandidagem toda, essa violência. Aí eu perdi uma coisa que estou tentando resgatar, uma certa inocência. Sem ela, você se torna um cínico. Hoje, quando estou bêbado no boteco, para parecer inteligente com a turma do cinema, falo que sou niilista, iconoclasta, agnóstico e corintiano. Na verdade, o que queria é ter fé nas coisas, não sei em quê, voltar a ter uma certa inocência. É uma das grandes agressões que se faz a uma criança. Quando perde a inocência, ela deixa de viver boa parte da vida dela e aquilo cria um vazio dentro. Pode ser psicologismo barato, mas parece que está sempre faltando alguma coisa, no trabalho ou nas relações pessoais. Não sei me relacionar, reajo muito mal. Sei reagir à violência, a situações limítrofes, não me dá medo nenhum. Agora, com carinho, amor, reajo mal. Mas aparentemente você se relaciona bem. Em público! No privado é outra questão. No boteco todo mundo é legal, o álcool deixa todo mundo mais interessante. Por que de vez em quando você diz que suas explicações são de um psicologismo barato? A palavra limita as coisas. Não consigo dar forma ao que sinto, essa sensação mais primitiva. No papel, a palavra pode ter essa potência maior, mas, quando brota da boca, ela encerra, não abre, não é rizomática. Como você vive o fato de “Mataram meu irmão” ter um indiscutível sucesso? Você ganhou o prêmio É Tudo Verdade e agora o Governador do Estado. Como reage ao sucesso do filme baseado na morte de seu irmão? Tem um outro filme sobre uma moça realizado pela irmã dela. O filme é muito criticado e eu não consigo me excluir disso. Usei a morte de meu irmão para fazer um filme. Preferia não ter feito. Estou pagando um preço alto por isso. As coisas mais profundas do ser humano, o que te move, o que te congela, parece AUTORRETRATOS


que, quanto mais você tenta se aproximar, mais se afasta. Não fui fazer terapia, não é uma resiliência, não é uma sublimação freudiana. Realmente eu quis fazer um filme, por acaso uma coisa que estava próxima de mim, assassinaram meu irmão, uma coisa forte. Tive que me distanciar durante o processo de realização, mas, ao mesmo tempo, quanto mais me distanciava, mais próximo dele eu me tornava. Você viu o filme uma semana antes de ele ser projetado publicamente pela primeira vez, no Rio de Janeiro. Até então eu estava assombrado pelo final do filme e você me falou uma coisa que me marcou. Eu tinha dúvidas se deveria ter colocado fotos do meu irmão extraídas dos autos do processo e você falou: “aquele é o momento mais poético, seu irmão parece um Cristo crucificado, você o purifica naquelas fotos”. Suas palavras me suscitaram uma serenidade tremenda, consegui lidar melhor com isso. Ao mesmo tempo, como cineasta, entrei num lugar a que não estava acostumado, nem sei lidar com isso. Tudo o que realizei até hoje foi mal recebido, primeiro pela indiferença, que é muito cruel, e depois por ataques ferozes de alguns críticos. Mas os ataques não me abalaram tanto, o que mais me abala é a indiferença. Porque num país onde boa parte da produção cinematográfica depende de fomento público, não só eu como mais algumas pessoas conseguem, com seus últimos tostões, por paixão, realizar filmes. Claro, isso não deveria ser analisado, o que importa são os filmes. Deve ser analisado SIM! Temos que pensar as formas de produção Está falando que os meios que você tem para produzir afetam diretamente a obra? Claro. A mentalidade de um cineasta que produz com dinheiro incentivado é diferente da daquele que produz sem dinheiro incentivado, é outra cabeça. Isso nunca foi citado pelos críticos. “Mataram” tem dinheiro incentivado? O “Sinfonia”? Não têm. Fiz quinze filmes, vou fazer o sexto longa. Só fiz um curta com dinheiro público, há dois anos, do Edson Loduque. Todos os outros foi dinheiro do próprio bolso e trabalho voluntário dos amigos que acreditam nas minhas ideias. Você está com raiva de estar aqui neste momento, no centro da cidade, neste puta prédio (Copan)? Às vezes. Quando estou jantando no Dona Onça, eu me lembro de pessoas próximas, como meu irmão que está preso na cela com quarenta, às vezes com comida estragada e é torturado lá dentro. Sempre me passa pela cabeça. Como conviver com isso? Ele me liga lá de dentro. De vez em quando, mando dinheiro.

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Ele foi preso onde? Em São Paulo. Dos 14 aos 18 ficou na Febem – 18 e uma semana foi pro primeiro presídio. Aí ele conseguiu um advogado e foi solto. Chegou em Uberlândia, foi preso de novo, na casa da minha mãe. Foi solto e um dia me ligou, falou: estou preso aqui em Cuiabá. Quando recebo uma mensagem ou ligação de lá, minha sensação é que vão me avisar que ele morreu. É o meu maior medo, não sei se consigo… outra morte, isso me assombra. Como sua mãe foi para Uberlândia? Morávamos no Capão Redondo, meu pai batia muito nela, bebia, mal sustentava a casa. Tinha um borracheiro em frente, onde eu fazia bicos. Fiquei amigo dele. Ele tinha um parente em Uberlândia. Ele e minha mãe começaram a ter um caso e ela fugiu com ele, me avisou, nunca julguei minha mãe por isso, ele a tratava muito bem e ela acabou indo para Uberlândia. Bom, meu pai foi atrás e voltou a casar com ela. Ele morreu em Uberlândia, está enterrado lá. Minha mãe tinha um namorado, uma pessoa estranha. Em 2010, passei o Natal com ela. Voltei, fiz o “Sinfonia” (de um homem só). Uma semana depois de terminar o filme, minha irmã me liga dizendo que ela foi assassinada pelo namorado, um homem soturno, ciumento. Ele a enforcou com um fio. Minha grande crise agora é se faço um filme sobre isso ou não. E a coisa mais sinistra é que talvez faça e com dinheiro público, ainda, pela primeira vez. Fico me perguntando: depois de falar de todas as mortes da minha família, vou falar sobre o quê? Fiz o “Amador” porque precisava me afastar. Agora, vou fazer o “Hamlet”. Talvez eu queira falar sobre coisas não tão duras para mim. Falar sobre o próprio cinema ou sobre o teatro, sobre minhas paixões. Elas são mais tranquilas. Ao mesmo tempo, está sendo um aprendizado. Será que é possível realizar alguma coisa em que você não se coloca na primeira pessoa, será que é possível fazer cinema se sua câmera não for uma via de mão dupla? É possível filmar um rosto se ele não te comove? Ou uma paisagem, ou uma parede branca que seja? Acho que estou em crise com o cinema, mas que essa crise é boa. Minha mãe foi a pessoa mais importante que tive na vida, mesmo sabendo que sou adotivo, mas isso não me importa mais. Era uma mulher lindíssima, um ser humano incrível, o pouco de amor e carinho que tenho pelas pessoas, pelas coisas, foi ela que plantou em mim. Se estou vivo aqui hoje, devo a ela. Nunca briguei com minha mãe, nunca tive um atrito, nunca. Ela era minha amiga. Quando vinha a São Paulo, a gente saía para jantar, ia ao cinema, ela adorava essas coisas. No Copan (Cristiano morou um tempo no Copan), ela me visitou em 2010. Sinto falta AUTORRETRATOS


dela. Ela sofreu muito. Por mais que tenha tido uma morte violenta, percebo a morte dela como um alívio, porque nenhum ser humano merece ter uma vida tão miserável como ela teve. E aí, este silêncio sepulcral? Vamos acabar aqui? Não falei da Legião Estrangeira! Verdade, continuemos. Eu trabalhei em um restaurante durante um ano em dois períodos. Estava decidido a ir pra Europa. Queria ser ator na Europa. Não fazia nada na vida, só trabalhava e guardava dinheiro e consegui. Em Barcelona, apaixonei-me por uma marroquina maravilhosa de cintura fina e bunda grande, melhor amante que tive na vida. Ela fugiu de mim e foi para Tânger. Fui atrás dela e fiquei um pouco lá. A família dela era meio bandida e me convidou a me retirar do Marrocos. Precisei fugir. Com essas viagens todas, minhas economias acabaram. Fui para Madri, dormi uma semana na rua, passei fome, mas eu passei fome também em São Paulo. Voltei para Barcelona. Consegui um trabalhinho e conheci um brasileiro que estava indo para a Legião Estrangeira. Ele me falou que lá tinha comida e moradia. Pegamos um ônibus para Perpignan, nos Pirineus e me alistei. De lá me levaram para Aubagne, a 15 km de Marselha. Fiquei dois meses. Foi difícil sair de lá porque, se eles te mandavam embora, você recebia 100 francos e, se pedisse para sair, eram 50 francos. Recebi treinamento militar, mas não me tornei legionário, são seis meses para se tornar legionário. O que é a Legião Estrangeira? É parte do exército francês que contrata mercenários, muita gente da Europa e do mundo vai para lá. A primeira pergunta que te fazem: já matou alguém? Porque aqui não tem problema, a gente aceita você, só tem que informar, senão a gente descobre pela Interpol. Tinha aquela aura romântica da Legião. Lembro-me de ter lido “Diário de um Ladrão” de Jean Genet, em que ele conta a experiência dele na Legião. Foi para Djibuti na África. Mas a Legião não é tão romântica. Descobri quando cheguei lá. Você estuda francês, leva porrada, acorda às 3 da manhã num frio danado. Bom, recebi treinamento de soldado, foi uma experiência interessante, bizarra, parece que foi um pesadelo. Mas fui legionário, fui soldado na França. Isso foi em 97. Quando saí da Legião, eles me deixaram em Marselha com dinheiro. Fiquei três noites na noite de Marselha, que é maravilhosa, gastei meu dinheiro com mulheres, drogas e bebidas. Foi uma experiência estranha, no mínimo bizarra. Quando eu conto, as pessoas acham que é mentira. 71


E não é mentira? Não é mentira, tenho documentação de que fui legionário… Quando eu tinha 21 anos, era insuportável, arrogante, queria engolir o mundo. Se falassem “não” para mim, era “sim”. Tudo o que tinha vontade eu fazia. Diferentemente dos meus amigos do Capão, que entravam na bandidagem e usavam a força, tinha uma lábia tremenda. Só para você ter uma ideia, quando voltei a Barcelona, decidi ser jogador de futebol. Fui até o Atlético de Madri, ofereci meu passe para o presidente – consegui uma reunião com o presidente – fui até Maiorca, o que não deu certo, fui para Palma, peguei um navio, lá arranjei um trabalho. Trabalhei no porto, limpando cascos de iates. Depois, descobri que talvez a Europa não fosse meu lugar e voltei a Barcelona, comprei uma passagem de volta e retornei ao Brasil. Você consegue dinheiro com facilidade. Sou trabalhador, trabalho bem, dedicado, obsessivo, aí consigo pagar as contas. Volte um pouco para trás, você tinha 21 anos e não suportava um “não”. Acho que grande parte da violência juvenil da periferia é de jovens que não suportam o “não” e por um “não” qualquer podem matar. Ou morrer. Ou morrer. Fale do “não”. Primeiro você tem a sensação que já é um “não”. Você não tem direito a uma boa alimentação, não tem direito a uma roupa bonita, a uma boa educação, a uma casa confortável. Então o “não” faz parte de sua personalidade. E vivendo essas situações limítrofes, contato com violência e morte, isso te deixa um pouco audacioso. Tua família já está fodida, tua família já morreu, você acha que não vai chegar a lugar algum, não tem mais nada a perder, foda-se! Então não me venha com “não”. Se eu acho que é “sim”, vou lá e faço! Você perde o medo das coisas, isso é perigoso. Meu irmão era assim, muito mais do que eu. Aí você tem contato com essas situações perigosas, fica inconsequente, mas essa inconsequência vem dessa relação – foda-se, não tenho mais nada a perder. E, como parece que sempre te roubaram alguma coisa, o roubo tem um pouco a ver com isso. Eu aproximo o cinema do crime, fazer filmes é um ato criminoso, sinto-me no direito de pegar o que é meu, o que me foi tirado. Uma falha de caráter? Talvez seja, mas você nasce com isso. O que é uma falha de caráter?


Isso de subtrair alguma coisa que não é sua, é de outra pessoa! Mas a primeira coisa óbvia neste país são as diferenças sociais. É um país em que pouca gente tem muito e muita gente tem pouco e essa conta não bate. Uma hora, o morro vai descer no asfalto e isso já está acontecendo, as pessoas não falam disso, mas estamos à beira de uma guerra civil. As pessoas não querem perceber, os sintomas são fortes, é possível que essa eclosão venha. É só o nosso governador do PSDB, neonazista, liberar a polícia para meter bala, isso vai acontecer. Em uma manifestação destas, se a polícia de choque tem a ordem do governador: “reaja à bala porque eles estão batendo em vocês” –, vai morrer muita gente e, quando morre muita gente, precisa-se de um mártir, entendeu? Estou sendo radical, mas falta um mártir! Vivemos uma pré-guerra civil. Percebo isso nas ruas, não ando de carro, estou incluído na corrente sanguínea da cidade pelos dois lados, daqui e do outro lado do rio. A insatisfação é geral. Quando a massa se junta, você não tem controle. Cada vez mais, estas pessoas estão nos shoppings, nestas casas neoclássicas cercadas por muros e câmeras de segurança, como se isso segurasse alguma coisa. Não segura. A hora em que o morro descer, vem como uma onda, não tem líder, isso é o pior. Pode ter até pensamentos políticos e ideológicos, mas na hora em que a histeria toma conta, não tem líder, aí é barbárie. Agora foi! Falei muita bobagem? Jean-Claude Bernardet atuou como roteirista em diversos filmes. Como crítico de cinema, escreveu obras de grande importância, como “Brasil em Tempo de Cinema” (1967) e “Cineastas e Imagens do Povo” (1985). Foi ainda professor dos cursos de Cinema da Universidade de Brasília (UNB) e da Universidade de São Paulo (USP). Em 2014, atuou na adaptação de “Hamlet” para o cinema, dirigida por Cristiano Burlan.

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LONGAS-METRAGENS

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Dir.: Kiko Goifman, 2002, Brasil, 74’

Roteiro: Kiko Goifman e Claudia Priscilla | Montagem: Diego Gozze | Música: Tetine | Produção Executiva: Claudia Priscilla Sinopse: Kiko Goifman é filho adotivo e, no ano em que completou 33 anos, decidiu procurar sua mãe biológica. A partir de pistas dadas por detetives de São Paulo e Belo Horizonte, o cineasta parte nessa jornada, documentando com humor e ironia todo o seu trajeto em um diário on-line que foi transformado em material para seu filme. Kiko Goifman é documentarista e diretor de diversos filmes, entre eles “FilmeFobia” e “33”. É sócio da produtora PaleoTV.

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AUTORRETRATOS


CONSTANTINO

Dir.: Otavio Cury, 2012, Brasil, 80’

Roteiro e Montagem: Otavio Cury | Direção de Fotografia e Câmera: Raquel Brust & Otavio Cury | Som Direto: Marcio Farah | Música Original: Benjamim Taubkin | Produção: Otavio Cury & Leonardo Kehdi Jr. | Empresas Produtoras: Outros Filmes & In Brasil Cultural Sinopse: Quando o diretor Otavio Cury viaja à Síria, ele descobre um livro escrito por seu bisavô, Daud Constantino Al-Khoury, no fim do século XIX. Por meio dessas páginas, contendo peças de teatro, o diretor traça sua trajetória pessoal. Otavio Cury dirigiu vários filmes, entre eles os longas-metragens “Constantino” e “Expedicionários”. Ele é sócio da produtora Outros Filmes.

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AUTORRETRATOS


CONSTRUINDO PONTES

Dir.: Heloisa Passos, 2016, Brasil, 72’

Roteiro: Stefanie Kremser, Heloísa Passos e Letícia Simões | Produção: Tina Hardy e Heloísa Passos | Direção de Fotografia: Heloísa Passos | Montagem: Tina Hardy e Isabela Monteiro de Castro Sinopse: Heloisa Passos, a cineasta, é filha de Álvaro, um engenheiro civil que viveu seu auge na carreira durante a ditatura militar no Brasil. No entanto, o momento que para ele foi uma oportunidade de mostrar seu trabalho, para outros, como para sua própria filha, foi um tempo marcado pelo autoritarismo. Agora, entre memórias do passado e um futuro incerto diante da atual instabilidade política no País, pai e filha procuram outras formas de enxergar o mundo. Heloisa Passos tem uma larga carreira como diretora de fotografia, tais como os longas “Viajo porque preciso volto porque te amo”, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, “Meninas”, de Sandra Werneck, e “O amor segundo B. Schianberg”, de Beto Brant. “Construindo Pontes” é sua primeira direção de longa-metragem.

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DIÁRIO

(Diary) Dir.: David Perlov, 1973 – 1983, Israel, 6 episódios de 55’

Roteiro: David Perlov | Elenco: David Perlov, Klaus Kinski, Mira Perlov, Neomi Perlov e Yael Perlov | Direção de Fotografia: Gadi Danzig, Yahin Hirsch, David Perlov e Joseph Zicherman | Montagem: Dan Arav, Noga Darevski, Jacques Ehrlich, Boaz Leon, Yael Perlov e Shalev Vines | Música: Shem-Tov Levy | Produção: Mira Perlov Sinopse: Nascido no Rio de Janeiro, em 1930, David Perlov foi para Paris em 1952 para estudar pintura, mas decidiu fazer cinema. Em 1958, muda-se para Israel. Em Tel Aviv, a partir de 1973, durante dez anos, registra o seu cotidiano em um filme dividido em 6 partes de cerca de 55 minutos cada. David Perlov, embora nascido no Brasil, ficou conhecido como um cineasta israelense. Ele migrou para Israel em 1958, aos 28 anos, onde desenvolveu quase que a totalidade de seus filmes. “Diários” foi realizado entre os anos de 1973 e 1983, levando em conta sua pulsão pelo cinema não industrial. David Perlov morreu em 2003.

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DIÁRIO DE UMA BUSCA

Dir.: Flavia Castro, 2011, Brasil, 107’

Roteiro: Flavia Castro | Produção: Flavia Castro e Flávio R. Tambellini | Montagem: Flavia Castro e Jordana Berg | Montagem de som: Waldir Xavier Sinopse: Sinopse: O jornalista Celso Afonso Gay de Castro morreu aos 41 anos, na cidade de Porto Alegre, em circunstâncias suspeitas. O militante político de esquerda foi exilado durante a ditadura militar brasileira. Durante esse período, ele percorreu diversos países, como Argentina, Venezuela, Chile e França, sempre carregando consigo sua família. Uma vida marcada pela história da luta armada, exílio e ausência. Sua repentina morte deixou seus familiares com um vazio e um mistério, que a filha Flavia tenta desvendar. Flavia Castro é diretora, produtora e roteirista. Seu filme “Diário de Uma Busca” ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio de 2010. Ela também dirigiu o filme “Deslembro” e roteirizou o longa “Nise - O Coração da Loucura”, de Roberto Berliner.

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E AGORA? LEMBRA-ME

Dir.: Joaquim Pinto, 2014, Portugal, 164’

Roteiro: Joaquim Pinto | Elenco: Joaquim Pinto, Nuno Leonel, Serge Daney e Raoul Ruiz | Direção de Fotografia: Nuno Leonel e Joaquim Pinto | Montagem: Nuno Leonel e Joaquim Pinto | Som: Olivier Dô Hùu, Nuno Leonel e Joaquim Pinto | Produção: Joana Ferreira Sinopse: Portador do HIV há 20 anos, o cineasta Joaquim Pinto testa drogas clandestinas durante um ano e relata sua experiência cinematograficamente. Um filme sobre memória, perda, globalização, epidemia, esperança e vida. Joaquim Pinto é um dos cineastas contemporâneos mais importantes e prolíficos de Portugal. Sua carreira contempla – entre longas e curtas – quatorze filmes dirigidos por ele, além de mais de sessenta em que atuou como técnico de som. Ainda esteve presente na produção de outros dezoitos títulos. Como diretor, seus filmes mais importantes são “Uma Pedra no Bolso” (1988), “Onde Bate o Sol” e “E Agora? Lembra-me”.

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ELEGIA DE UM CRIME

Dir.: Cristiano Burlan, 2018, Brasil, 92’

Roteiro: Cristiano Burlan e Ana Carolina Marinho | Produção: Henrique Zanoni e Cristiano Burlan | Direção de fotografia: Renato Maia e Henrique Zanoni | Montagem: Renato Maia e Cristiano Burlan | Assistência de direção: Emily Hozokawa Sinopse: Em fevereiro de 2011, a mãe do diretor Cristiano Burlan foi assassinada em Uberlândia pelo parceiro. Isabel Burlan da Silva teve sua trajetória marcada pela violência e pela pobreza, assim como todo o resto da família. Este é o terceiro filme da série “Trilogia do Luto”, os anteriores abordavam a morte do pai e do irmão de Burlan. Aqui, ele busca reconstruir a imagem e a vida da mãe. Cristiano Burlan é diretor de cinema e teatro. Na década de noventa, morou em Barcelona, onde dirigiu o grupo de cinema experimental Super-8. Em São Paulo, esteve à frente do grupo de teatro A Fúria. É autor de mais de quinze filmes. Seu documentário “Mataram meu Irmão” foi o grande vencedor do É Tudo Verdade 2013, angariando os prêmios de Melhor Filme do Júri Oficial e da Crítica. Em 2014 realizou o longa-metragem “Hamlet”. Em 2019 irá estrear nos cinemas o filme “Elegia de Um Crime”.

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ELENA

Dir.: Petra Costa, 2013, Brasil, 88’

Roteiro: Petra Costa e Carolina Ziskind | Elenco: Elena Andrade, Li An e Petra Costa | Direção de Fotografia: Janice D’Avila, Will Etchebehere e Miguel Vassy | Direção de Arte: Martha Kiss Perrone, Alonso Pafyese e Lorena Ortiz | Montagem: Marilia Moraes e Tina Baz | Primeira Montagem: Idê Lacreta | Assistente de Direção e Montagem Adicional: Virginia Primo | Desenho de Som: Olivier Goinard e Guile Martins | Mixagem: Olivier Goinard | Som Direto: Edson Secco | Trilha Sonora Original: Vitor Araújo, Fil Pinheiro, Maggie Hastings Clifford e Gustavo Ruiz | Produção: Busca Vida Filmes | Produção Executiva: Julia Bock e Daniela Santos | Doctoring de Roteiro: Aleksei Abib | Preparação de Elenco: Martha Kiss Perrone Sinopse: Ao viajar para Nova York, Elena segue o sonho de se tornar atriz de cinema e deixa no Brasil uma infância vivida na clandestinidade, devido à ditadura militar implantada no país, e também a irmã mais nova, Petra, de apenas sete anos. Duas décadas depois, Petra, já atriz, embarca para Nova York atrás da irmã. Em sua busca, Petra apenas tem algumas pistas, como cartas, diários e filmes caseiros. Ela acaba percorrendo os passos da irmã até encontrá-la em um lugar inesperado. Petra Costa é diretora e atriz. Além de “Elena”, dirigiu e produziu o curta “Olhos de Ressaca” e o longa ”Olmos e a Gaivota”, filmes que receberam diversos prêmios. 91


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HOMEM-CARRO

Dir. Raquel Valadares, 2014, 73’

Roteiro: Raquel Valadares | Produção: Alexandre Sivolella | Direção de Fotografia: Flora Dias | Trilha Sonora: Rafael Bordalo e André Colares | Montagem: Julia Bernstein | Som: Bernardo Gebara | Elenco Principal: Anísio Campos, Raquel Valadares, Toni Bianco, Rodrigo Junqueira e Paulo Toledo | Empresa Produtora: Anima Lucis Produções Sinopse: Anísio Campos é o designer responsável pela criação de mais de quinze automóveis. As mãos de Anísio fizeram maravilhas sobre rodas. Sua filha, Raquel, o conduz em diversas viagens em busca de suas memórias. Ela promove o encontro de um artista com suas obras. E ao fazê-lo, Raquel passa a conhecer histórias sobre a vida e os carros de seu pai. Histórias que merecem ser contadas, em uma experiência tocante e atemporal, que nos remete aos nossos próprios sonhos. Raquel Valadares é formada em cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Dirigiu o documentário rodado na Índia “Corpo de bollywood, o povo quer cinema” (Anima Lucis 2007). Dirigiu o “Making of de Faroeste Caboclo” (Gávea Filmes, 2011) e a série documental “Globo Educação” (Futura, 2013).

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INSÔNIA

(Wide Awake) Dir.: Alan Berliner, 2007, EUA, 79’

Roteiro: Alan Berliner | Direção de Fotografia: Ian Vollmer | Montagem: Alan Berliner | Som Direto: Steve Beganyi, John Haptas, Steve Kashuk e Chris Ward | Mixagem: Bill Seery | Produção Executiva: Sheila Nevins Sinopse: Vítima de insônia, Alan Berliner faz neste documentário uma reflexão sobre a natureza humana e como e quanto ela é afetada pela falta de sono. E usa a si próprio como exemplo. Alan Berliner é cineasta independente norte-americano conhecido, sobretudo, por seus documentários experimentais. No currículo, tem filmes como “First Cousin Once Removed”, “Nobody’s Business” e “Insônia”.

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MATARAM MEU IRMÃO

Dir.: Cristiano Burlan, 2013, Brasil, 77’

Fotografia e Câmera: Rafael Nobre | Som Direto: Elionai Dias | Montagem: Lincoln Péricles e Cristiano Burlan | Trilha Original: Guilherme Garbato e Gustavo Garbato | Desenho de Som e Mixagem: Casa Da Sogra Soluçoes Sonoras | Técnicos de Som e Mixagem: Guilherme Garbato e Gustavo Garbato | Câmera Adicional: Marina Vaz e Cristiano Burlan | Finalização de Imagem: Daniel Manzini | Produção e Produção Executiva: Natália Reis Sinopse: Doze anos atrás, Rafael Burlan, o irmão do diretor Cristiano Burlan, foi assassinado com sete tiros. O cineasta decide relembrar os fatos, investigando o envolvimento do irmão com as drogas e compondo um retrato da violência dos bairros do subúrbio de São Paulo. Cristiano Burlan é diretor de cinema e teatro. Na década de noventa, morou em Barcelona, onde dirigiu o grupo de cinema experimental Super-8. Em São Paulo, esteve à frente do grupo de teatro A Fúria. É autor de mais de quinze filmes. Seu documentário “Mataram meu Irmão” foi o grande vencedor do É Tudo Verdade 2013, angariando os prêmios de Melhor Filme do Júri Oficial e da Crítica. Em 2014 realizou o longa-metragem “Hamlet”. Em 2019 irá estrear nos cinemas o filme “Elegia de Um Crime”.

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OS DIAS COM ELE

Dir.: Maria Clara Escobar, 2012, Brasil, 107’

Direção de Fotografia: Maria Clara Escobar | Montagem: Juliana Rojas e Julia Murat | Sonoplastia: Maria Clara Escobar | Pesquisador: Remier Lion | Elenco: Carlos Henrique Escobar, Ana Sachetti Escobar, Emilio Sachetti e Maria Clara Escobar Sinopse: Maria Clara mergulha no passado quase desconhecido de seu pai, Carlos Henrique Escobar. As descobertas e frustrações de acessar a memória de um homem e de um período da história brasileira cheio de lacunas. Ele, um intelectual preso e torturado durante a ditadura militar, não fala sobre isso desde aquele tempo. Maria Clara Escobar é diretora e roteirista. Graduada na Escola de Cinema Darci Ribeiro, sua primeira experiência é no curta-metragem “Domingo”, que escreveu e co-dirigiu. Foi também co-roteirista do filme “Histórias que só Existem Quando Lembradas”, de Júlia Murat. “Os Dias com Ele” é o seu primeiro longa-metragem como diretora.

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SANTIAGO

Dir.: João Moreira Salles, 2007, Brasil, 80’

Roteiro: João Moreira Salles | Direção de Fotografia: Walter Carvalho | Entrevistas: João Moreira Salles e Márcia Ramalho| Montagem: Eduardo Escorel e Lívia Serpa | Trilha Sonora e Som: Jorge Saldanha | Coordenação de Produção: Raquel Zangrandi | Direção de Produção: Beto Bruno | Produção: Maurício Andrade Ramos Sinopse: Em 1992, o diretor João Moreira Salles planejou o documentário “Santiago”, baseado na vida do mordomo da casa de sua família. Devido à sua incapacidade em editar as cenas filmadas, o longa-metragem nunca foi concluído. Em 2005, o diretor voltou a trabalhar sobre as cenas gravadas, encontrando outro foco no material rodado. João Moreira Salles é diretor de importantes documentários, tais como “Santiago”, “Futebol” e “Notícias de uma Guerra Particular”. Ficou a cargo dele a incumbência de finalizar o filme inacabado de Eduardo Coutinho, “Últimas Conversas”, após sua trágica morte. Ele é, ainda, sócio da produtora Videofilmes e fundador da Revista Piauí.

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TARNATION

Dir.: Jonathan Caouette, 2004, EUA, 88’

Roteiro, Direção de Fotografia e Som: Jonathan Caouette | Elenco: Renee Leblanc, Jonathan Caouette, Adolph Davis, Rosemary Davis, David Sanin Paz, Joshua Williams, Michael Cox, David Leblanc, Stacey Mowery, Michael Mouton, Greg Ayres, Vanda Stovall, Dagon James, Vivian Kalinov e Steve Caouette | Montagem: Jonathan Caouette e Brian A. Kates | Música: John Califra, Max Avery e Lichtenstein | Produção: Jonathan Caouette e Stephen Winter Sinopse: Sinônimo de condenação, expulsão, “Tarnation” remete-nos para um universo maldito. Foi esse o título escolhido para o primeiro filme documentário de Jonathan Caouette. Trata-se de um documentário em autorretrato, que apresenta a cronologia do seu crescimento no seio de uma família caótica e disfuncional e relata o inesperado relacionamento com a sua mãe doente, Renée. Jonathan Caouette é diretor de seis filmes, entre longas e curtas-metragens. “Tarnation” foi ganhador de diversos prêmios, entre eles o do British Film Institute e o da San Diego Film Critics Society.

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AUTORRETRATOS


UM PASSAPORTE HÚNGARO

Dir.: Sandra Kogut, 2003, Brasil, 71’

Roteiro: Sandra Kogut | Direção de Fotografia: Florent Jullien, Florian Bouchet e Sandra Kogut | Montagem: Mônica Almeida e Sandra Kogut | Trilha Sonora: Papir Iz Dorkh Vais e Yah Riboh | Produção Executiva: Marcello Maia | Co-produção: Arte France, Hunniafilm Studia (Hungria), Cobra Films (Bélgica), RTBF (Bélgica), CICV Pierre Schaeffer (França), Republica Pureza Films (Brasil) Sinopse: Através do pedido de um passaporte, o documentário parte em busca da história de uma família dividida entre dois mundos e dois exílios: aqueles que se foram e aqueles que permaneceram onde estavam. Sandra Kogut é cineasta e videomaker. Embora o seu primeiro longa-metragem, “Um Passaporte Húngaro”, seja apenas de 2003, sua carreira teve início bem antes, com trabalhos em diversos formatos. Sandra Kogut já passou pelo videoclipe, pela televisão, por vídeos experimentais e instalações. É dela, também, o filme “Mutum”, adaptado da obra de Guimarães Rosa.

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MEDIA-METRAGEM

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O ESPELHO DE ANA

Dir.: Jessica Candal, 2011, Brasil, 43’

Participantes: Alciony Smaniotto Candal, Rosana Smaniotto Candal Sato, Andrea Nobre Viana, Caetano Nobre Viana Silvestrin, Tainá Andere, Lila Andere Cidral, Helison Herz Girardelo, Flora Girardelo, Miriam Magami, Hélio Villela, Jonas Prates, Maicoll Dapiáz, Bruno Freddi Mancuso | Assistente de Direção: Camila Macedo | Produção Executiva: Gladys Mariotto | Pesquisadoras: Andrea Viana, Denise Rogenski e Elisa Carvalho | Operação de Câmera: Jessica Candal, Camila Macedo, Bruno Mancuso e Rica Saito | Operação de Câmera Adicional: Rogério Cathala, Hélio Villela e Milton Sato | Edição: Jessica Candal e Rica Saito | Edição de Som: Bruno Mancuso | Design Gráfico: lucaspereiranery.com.br | Argumento Original: Juliana Luz e Jessica Candal Sinopse: O filme relata a investigação da diretora-personagem a respeito da sua condição enquanto mulher. Por meio do espelhamento em pessoas íntimas, como a avó, a mãe, o marido, as amigas e a filha de uma delas, sua própria identidade é ao mesmo tempo forjada e revelada. Jessica Candal é roteirista e diretora de filmes. São dela os roteiros do curta-metragem “Em Cartaz”, dos longas-metragem “Horizonte”, “Êxtimo”, “Helena na Janela e Outras Histórias”, e do premiado “Ferrugem”, com direção de Aly Muritiba. Jessica também dirigiu os filmes “Kino-Clown – Sob o Risco do Ridículo”, “O Espelho de AnA” e “Teia”. Ela ministra cursos livres de roteiro, tendo participado como orientadora do Núcleo de Dramaturgia Audiovisual Sesi em Londrina (2013) e Ponta Grossa (2014 e 2015).

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C U R TA S - M E T R A G E N S

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ARIEL

Dir.: Mauro Baptista Vedia e Claudia Jaguaribe, 2006, Brasil, 13’ Roteiro: Mauro Baptista Vedia | Direção de Fotografia: Cláudia Jaguaribe | Montagem: Cláudia Jaguaribe e Mauro Baptista Vedia | Som: Michael Ruman | Edição de Som e Música: Michael Ruman | Produção: Cláudia Jaguaribe e Mauro Baptista Vedia Sinopse: Documentário em que o realizador, Mauro, conta a história de seu pai, Ariel, a partir da notícia da morte dele por suicídio, no Uruguai, e a relação entre pai e filho durante décadas de emigração, entre Brasil, Espanha e Uruguai.

BABÁS

Dir.: Consuelo Lins, 2010, Brasil, 20’ Roteiro: Consuelo Lins | Depoentes: Andréia Sabino, Denise Tavares da Silva, Doralice Santos de Abreu (Dora), Esther Simões Santos da Silva e Iraci Campigotto | Direção de Fotografia: Pedro Urano | Montagem: Daniel Garcia | Trilha Sonora: Waldir Xavier | Produção: Consuelo Lins e Flávia Castro Sinopse: Fotografias, filmes de família e anúncios de jornais do século XX constroem uma narrativa pessoal sobre a presença das babás no cotidiano de inúmeras famílias brasileiras, mostrando uma situação em que o afeto é genuíno, mas não dissolve a violência.

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CANOA QUEBRADA

Dir.: Guile Martins, 2009, Brasil, 13’ Roteiro, Direção de Fotografia e Som Direto: Guile Martins | Montagem: Julia Zakia | Empresas Produtoras: Gato do Parque | Produção Executiva: Julia Zakia Sinopse: Entre o apertado quarto de hotel e a igreja evangélica, uma visita surpresa feita a um parente desconhecido: o próprio pai.

O CHAPÉU DO MEU AVÔ

Dir.: Julia Zakia, 2004, Brasil, 28’ Roteiro: Julia Zakia | Direção de Fotografia: Francisca San Martins e Julia Zakia | Montagem: Hélio Nunes, Julia Zakia e Pedro Granato | Som Direto: Guile Martins | Produção: Gato do Parque e Universidade de São Paulo Sinopse: O Chapéu do meu Avô mostra a aproximação entre a documentarista e seu avô, dono da última fábrica de chapéus do Brasil.

OMA

Dir.: Michael Wahrmann, 2011, Brasil, 22’ Roteiro, Direção de Fotografia, Montagem e Edição de Som: Michael Wahrmann | Produção: Sancho Filmes | Produção Executiva: Gustavo Beck, Michael Wahrmann e Renata Moura Sinopse: Ela fala alemão. Eu falo espanhol. Ela não escuta. Eu não entendo.

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FICHA TÉCNICA

Produção de cópias Aristeu Araújo Christiane Spode

Textos Alan Berliner Aristeu Araújo Carlos Alberto Mattos Cezar Migliorin Cléber Eduardo Consuelo Lins Daniel Ribas Ilana Feldman Jean-Claude Bernardet Juliana Cardoso Franco Pedro Butcher

Produtora Gráfica Janaina Spode

Revisão de textos Filippo Mandarino

Produção Local – Rio de Janeiro Yaminaah Abayomi

Programação Visual e Webdesigner Aristeu Araújo

Assessoria de Imprensa Alexandre Aquino

Vinheta Aristeu Araújo

Organização do Catálogo e Edição Aristeu Araújo

Projeção Digital Em Quadro Projeção Digital

Produção Haver Filmes Curadoria e Concepção Aristeu Araújo Produção Christiane Spode

Gerenciamento de Mídias Sociais Janaina Spode Impressão Gráfica Nacional Gráfica

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