Catálogo - Ser Tão Pop

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CAIXA Cultural Rio de Janeiro | 30 de setembro a 12 de outubro de 2014 Av. Almirante Barroso, 25 - Centro www.facebook.com/caixaculturalriodejaneiro Tel: (21) 3980-3815

CAIXA Cultural Fortaleza | 18 a 23 de novembro de 2014 Av. Pessoa Anta, 287 - Praia de Iracema www.facebook.com/caixaculturalfortaleza Tel.: (85) 3453-2770 www.haverfilmes.com.br/sertaopop #vivamaiscultura | Baixe o Aplicativo CAIXA Cultural verifique a classificação indicativa dos filmes na programação


ISBN: 978-85-68521-00-7


A CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos culturais em seus espaços, com o foco atualmente voltado para exposições de artes visuais, peças de teatro, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em todo o território nacional, e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via Programa Seleção Pública de Projetos, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível, a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. O projeto “SER TÃO POP” traz ao público da CAIXA Cultural um cinema de sertão produzido nos últimos quinze anos. Os filmes selecionados têm em comum um novo olhar para o sertão, contemporâneo, globalizado, sem antigos estereótipos, o “sertão pop”. Além dos filmes, a mostra contará com uma mesa de debates, em seguida da exibição do filme “Baile Perfumado”, com a presença dos diretores Lírio Ferreira e Paulo Caldas. A mostra acontece na CAIXA Cultural Rio de Janeiro entre os dias 30 de setembro e 12 de outubro de 2014, e na CAIXA Cultural Fortaleza, do dia 18 a 23 de novembro de 2014. Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura nacional e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 153 anos de atuação no país, e de efetiva parceria no desenvolvimento das nossas cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL


ÍNDICE 07 | Apresentação | Ser Tão Pop 08 | Linha do Tempo 10 | A modernidade, o sertão e a vaidade de Lampião LONGAS-METRAGENS 28 | Baile Perfumado 29 | Baile Perfumado: O Contemporâneo no Cinema Nordestino, por Marise Berta 31 | Eu Tu Eles 32 | “Eu Tu Eles” entroniza desejo feminino no sertão machista, por Inácio Araújo 34 | Narradores de Javé 34 | Invenção e realidade, por Alexandre Werneck 36 | Lisbela e o Prisioneiro 36 | Nordeste Pop, por Érico Borgo 38 | Cinema, Aspirinas e Urubus 39 | Perdendo países, por Aristeu Araújo 41 | Árido Movie 41 | Esse filme é um barato, por Carlos Alberto Mattos 43 | A Máquina 43 | A Máquina simples e mágica, por Pablo Villaça 46 | O Céu de Suely 47 | Corpo valioso, por Paulo Santos Lima 48 | O Fim de o Princípio 48 | Nunca ouvimos tanto a voz de Coutinho, por Cléber Eduardo 50 | Mutum 50 | Filme de Kogut expõe a opacidade da vida, por Inácio Araújo


52 | Baixio das Bestas 52 | Apontando a câmera para baixo, por Aristeu Araújo 56 | Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo 57 | Imagens latentes, por Aristeu Araújo 59 | Estrada Para Ythaca 59 | Enfim, Ythaca, por Carlos Alberto Mattos 61 | Mãe e Filha 61 | Contemporâneo, por Thiago Brito 64 | Girimunho 64 | O sobrenatural no dia a dia e o tempo como companhia, por Marcelo Hessel 66 | O Homem Que Não Dormia 66 | Instigante, referencial, safado, despudorado, por Sérgio Alpendre CURTAS-METRAGENS 69 | Cego Oliveira no Sertão do seu Olhar 69 | Passadouro 70 | Labirinto 70 | Águas de Romanza 71 | O Homem da Mata 71 | A Curva 72 | Câmera Viajante 72 | Tarabatara 73 | Muro 73 | Homens 74 | Sweet Karolynne 74 | Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos 75 | Ensolarado 75 | Acercadacana 76 | O Som do Tempo



Apresentação | Ser Tão Pop Tradicionalmente, o sertão serviu ao cinema, à literatura e às demais expressões artísticas como o ambiente por excelência para se falar e buscar uma identidade nacional. Desde muito cedo, o cinema brasileiro procurou localizar seus personagens no sertão, numa tentativa de construir um sentimento de nação. Cineastas como Humberto Mauro, Lima Barreto, Glauber Rocha, Ruy Guerra – entre outros construíram filmes de repercussão internacional voltando seus olhares para essa região geográfica. A dita força do homem sertanejo, a capacidade de sobreviver em ambiente tão inóspito, a falta de água e o chão seco se tornaram alguns dos ícones que permeiam o imaginário brasileiro. O cangaço é, talvez, o mais forte desdobramento cultural advindo dali. Forte ao ponto de surgir no cinema brasileiro um estilo próprio para representá-los. O Cinema Novo, principalmente, pautou o sertão como arcabouço primordial da nossa cultura. Glauber Rocha, seu principal agente, criou a Estética da Fome e com filmes sujos e feios (como a miséria que impregnava aquele sertão) estendeu os alicerces desse cinema por décadas. O sertão do sertanejo mítico, do cangaço, da miséria, da luta pela terra, do homem em potencial revolução. Mas os tempos mudaram. O sertão continua pobre e a seca continua sendo um problema real. Mas os mercados se globalizaram. Aliado, um novo tipo de distribuição de renda fez com que algum dinheiro movimentasse a economia de localidades tão isoladas. Essa nova configuração geopolítica está agora representada nas telas. A pedra fundamental para esse novo paradigma é o filme “O Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. O filme, que lançou ao mundo uma nova cinematografia pernambucana, também inaugurou (ao menos simbolicamente) um novo jeito de falar sobre o sertão. “O Baile Perfumado” é o manguebit na tela grande, é a revolução cultural iniciada por Chico Science transposta ao cinema. E sintomático é esse exemplo, já que “O Baile Perfumado” é um filme sobre o cangaço, mas é um filme também sobre o cinema, sobre como representar, como se auto-representar. Mesmo sem uma unidade temática, muitos outros filmes se somaram a esse filme primordial. É o caso de “O fim e o princípio”, “Cinemas, aspirinas e Urubus”, “Narradores de Javé”, entre outros. “O Céu de Suely”, dirigido por Karim Aïnouz, é uma peça fundamental desse grupo. Nele, Hermila (Hermila Guedes), volta de São Paulo para sua terra, uma cidadezinha no interior do Ceará. Seu retorno funciona como uma primeira metáfora, desses elementos que vem de fora para “contaminar” o sertão intocado. “O Céu de Suely”, como disse o pesquisador Ismail Xavier, “se insere na nova configuração de um sertão pop nos filmes pernambucanos”. Embora não pernambucano, o filme surge dialogando com as produções do estado de Marcelo Gomes e Claudio Assis. O sertão agora é a terra dos CDs piratas, do forró eletrônico, do cinema, da tecnologia, das drogas, do progresso e do arcaico misturados. O sertão é pop, é sincrético, é o Brasil e é o mundo. A mostra Ser Tão Pop traz um apanhado desses novos filmes de sertão. São 16 longas e 15 curtas-metragens. É uma mostra multi-olhar que, de algum modo, é também uma amostra do que é esse Brasil contemporâneo.

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LINHA DO TEMPO

Curtas-metragens Cego Oliveira no Sertão do Seu Olhar - 1998 Passadouro - 1999 8

Labirinto - 2002 Águas de Romanza - 2002 O Homem da Mata - 2004 A Curva - 2007 Câmera Viajante - 2007 Tarabatara - 2007 Muro - 2008 Homens - 2008 Sweet Karolynne - 2009 Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos - 2009 Ensolarado - 2010 Acercadacana - 2010 O Som do Tempo - 2010


Longas-metragens O Baile Perfumado - 1997 Eu Tu Eles - 2000 Narradores de Javé - 2003 Lisbela e o Prisioneiro - 2003 Cinema, Aspirinas e Urubus - 2004 Árido Movie - 2005 A Máquina - 2005 O Céu de Suely - 2006 O Fim e o Princípio - 2006 Mutum - 2007 Baixio das Bestas - 2007 Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo - 2009 Estrada Para Ythaca - 2010 Mãe e Filha - 2011 Girimunho - 2011 O Homem Que Não Dormia - 2011

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A modernidade, o sertão e a vaidade de Lampião Publicado originalmente na revista Cinemais nº 4, março/abril de 1997. Estrada, caminhão, telégrafo, cinema. A modernidade entrando no sertão nos últimos anos da década de 1930. Paulo Caldas e Lírio Ferreira, em conversa transcrita aqui com a preocupação de guardar a expontaneidade das falas, contam como “O Baile Perfumado” mostra os últimos anos do cangaço através da aventura do libanês Benjamin Abrahão: “Ele é a maior metáfora da chegada da modernidade ao sertão. Entra com o cinema, a coisa super moderna na época, e Lampião, por pura vaidade, deixa-se filmar.” José Carlos Avellar: Comecemos pelo começo mesmo: como surgiu o interesse pela história de Benjamin Abrahão? Paulo Caldas: Ele é um personagem razoavelmente conhecido pelas pessoas que pesquisam cinema brasileiro. Algumas imagens dele já tinham sido exibidas e sempre despertaram muita curiosidade. No filme do Paulo Gil Soares, “Memórias do Cangaço” (1964), o primeiro a apresentar imagens filmadas por Benjamin Abrahão, e “A Musa do Cangaço”, do José Humberto Dias (1983). Além disso, vimos filmes pouco conhecidos, inclusive em cinematecas do Nordeste. O Fernando Spencer, crítico e cineasta pernambucano, que fez entre 40 e 50 documentários, tinha a ideia de um curta-metragem, “Repórter das Arábias”, sobre o Benjamin Abrahão. Ele é muito 10 amigo da gente, participou da ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) desde o começo do movimento de curta-metragem na década de 1980. É de outra geração, mas estava ali, ligado, participando do movimento. E falava sempre do Abrahão. Dizia: “Eu só estou juntando essas coisas”. Peguei também um texto do Zé Humberto, num número do Cadernos de Pesquisa publicado pela Embrafilme, texto que tratava de vários momentos da biografia do Benjamin Abrahão e que chamava a atenção para o fato de que tinha ali um olho melhor. (“Benjamin Abrahão, o mascate que filmou Lampião”, de José Humberto Dias, Cadernos de Pesquisa nº 1, setembro de 1984). E aí foi. Eu estava na Bahia. O Lírio estava viajando. Ele votou, e pronto: resolvemos fazer um filme juntos. Fomos em cima desse tema, começamos a pesquisar com o Frederico Pernambucano e com ele descobrimos o que tinha por trás – sabe? – fizemos as primeiras descobertas. Descobrimos que existia ali uma infinidade de coisas. Lírio Ferreira: Na verdade, a ideia mesmo nasceu num carro, vindo de Candeias pro centro da cidade, trajeto que dura mais ou menos 45 minutos. Eu já tinha essa ideia do Benjamin Abrahão e disse: “Paulo, acho que chegou a hora de a gente fazer um longa-metragem”. E Paulo disse: “A ideia do Benjamin? Do Frederico?...” Geraldo Sarno: Vocês já tinham trabalhado juntos antes? Lírio Ferreira: Fizemos a mesma faculdade de jornalismo... Geraldo Sarno: Mas em filme, trabalharam juntos fazendo filme? Paulo Caldas: Juntos, sim e não. Um trabalhou no filme do outro, mas em codireção, não. Lírio Ferreira: Mas então, basicamente, nesse tajeto de Candeias pro centro a gente sacramentou. E começamos a ter encontros com Frederico Pernambucano, que tem uma visão muito aproximada da gente.


Paulo Caldas: É um cangaceirólogo, não é? Ivana Bentes: Tem livro publicado, não? Paulo Caldas: Dois. “Guerreiros do Sol”, um apanhado sobre o cangaço, uma interpretação que serviu de base para o filme, e “Quem foi Lampião?”, que usamos para fazer o perfilm do Lampião. O processo de roteirização (tem um outro roteirista, o Hilton Lacerda, nós dois e mais o Hilton) era assim: passávamos pelo menos uma vez por mês seis horas seguidas ouvindo o Frederico contar histórias. Entrávamos mais numa história que em outra, enveredávamos por um personagem. Às vezes as histórias nem tinham relação com Benjamin Abrahão, eram mais de Lampião mesmo, do cangaço. Ele sabe de muitas histórias da política do interior, de um determinado coronel... E a partir daí, fomos construindo o roteiro. Apresentávamos para ele o que estávamos escrevendo, transformando em ficção, e perguntávamos: “Isto aqui poderia ter acontecido?” E ele dizia: “Bom, isso aí é meio difícil, mas assim, assim...” Geraldo Sarno: Quer dizer, até onde a história do árabe, aquela aventura existencial que está no filme, é ficção? Ou está tudo baseado em fatos reais? Paulo Caldas: O contexto histórico não tem nada de ficção, tiramos da pesquisa com Frederico e mais do que o Zé Humberto já havia pesquisado, e ainda do que reunimos nas várias viagens até os lugares onde realmente aconteceram as coisas. Mas dentro desse contexto histórico, há um pouco de ficção. Até mesmo porque há diferentes versões. Por exemplo, quando a gente pesquisava... Lírio Ferreira: A memória é oral. Chegávamos num lugar, pesquisávamos com duas ou três pessoas ali, mesmo lugar, mesma época, pessoas que viveram o mesmo fato, e cada uma vinha com uma versão diferente. E ainda diziam assim: “Não vai lá não, não fale com fulano não, que ele não sabe da verdade”. Muita intriga... Então a gente via a versão do Frederico e via também o que a gente imaginava a partir do 11 contato direto com as pessoas e os lugares, e a partir daí criamos a narrativa. Paulo Caldas: De certa forma, tivemos um procedimento até meio documental: fomos às locações, entrevistamos cangaceiros, fizemos uma pesquisa (uma coisa muito forte também) iconográfica: as imagens de Benjamin Abrahão e fotos de outros fotógrafos da época. Várias sequencias do filme são inspiradas em fotos que descobrimos. O plano dos três cangaceiros mortos, o volante ao lado do caixão: vimos uma foto idêntica ao que reproduzimos ali. Ivana Bentes: Vocês falaram num ponto de vista do Frederico que vocês tentaram mais ou menos seguir. Lírio Ferreira: O Frederico defende a existência de diferentes maneiras de cangaço: existe o “cangaço meio de vida”, existo o “cangaço vingança”. Uma pessoa de tua família sofreu algum tipo de violência, você não acredita na justiça normal e por isso entra no cangaço, pra vingar. Depois da vingança você moralmente tem que sair do cangaço. Lampião entrou no “cangaço vingança” e quando ele percebe que cangaço dá muito dinheiro pra ele, começa a não querer se vingar das pessoas que maltrataram a família dele. Só finge que busca vingança. E então, essa é a teoria do Frederico Pernambucano, a ideia da vingança cria um tipo de um escudo ético. A população protegia Lampião, dizia: “Ele é uma pessoa que está querendo vingar a família, porque o pai dele foi morto por um tenente, coronel e não-sei-o-quê...” Mas Lampião não se vingava, porque usava esse subterfúgio pra garantir a moral dele dentro do cangaço. Geraldo Sarno: Antônio Silvino também entrou no cangaço porque mataram o pai dele, mas nunca vingou a morte do pai. Ulisses Lins Cavalcanti conta que conheceu o assassino do pai de Silvino, do Batistão (Silvino chamava-se Manuel Batista, o pai dele era conhecido como Batistão). O assassino de Batistão continuou


a transportar produtos e gado na região onde Antônio Silvino vivia como cangaceiro. Silvino era rei naquela região, mandava, desafiava... e o assassino de Batistão dizia algo assim: “Eu é que não tenho medo dele, eu não quero nem saber...” E o Silvino nunca foi pegar o assassino do pai. Paulo Caldas: Não foi justamente para não perde essa justificativa. Ivana Bentes: Entravam no cangaço para fazer justiça e depois ficavam com um meio de ganhar a vida, é isso? Geraldo Sarno: Essa é uma explicação, existem outras. Lírio Ferreira: Na verdade, Lampião acaba virando um coronel sem terras. Paulo Caldas: Os crimes que ele passa a praticar na década de 1930, o filme se passa aí, são crimes de extorsão, sequestro e agiotagem. Não faz mais assaltos. Assaltos ele só fez na década de 1920. Na década de 1930, sequestros e agiotagem. Lampião é imitado até hoje, com bastante sucesso... Lírio Ferreira: Agiotagem... era uma coisa simples: Lampião se tornou uma pessoa extremamente rica. Mas não tinha nada depositado em bancos. Emprestava dinheiro a juros extorsivos, e se você não pagasse... Paulo Caldas: O sistema de cobrança dele era ótimo... Lírio Ferreira: Ele criou também um tipo de um imposto imobiliário na região. Ficava num lugar, dava proteção àquele lugar. Você vendia a terra: a pessoa que comprava tinha que pagar 10% da transação para ele, para ele não interferir, manter a tranquilidade, a segurança. Um tipo de imposto imobiliário. Geraldo Sarno: Nos últimos dez anos de vida, de 1929 a 1938, Lampião ficou na Bahia. Só atravessou o São Francisco uma vez. Paulo Caldas: Ele ficou na região do São Francisco porque de um lado era 12 Alagoas, do outro Sergipe e do outro, Bahia. Na época, pouco antes do Estado Novo, a volante de um estado não podia entrar no outro. Lampião ficava ali, na beira do rio. Volante chegava, ele atravessava. E em Sergipe era amigo do Interventor, pessoa que devia favores a ele. Ivana Bentes: Lampião é um personagem tão sedutor, por que vocês resolveram contar o filme do ponto de vista do Abrahão? Lírio Ferreira: Primeiro porque não queríamos fazer um filme de cangaço. Queríamos contar a história de Benjamin Abrahão. A coisa mais importante é mostrar a modernização entrando no sertão naquela época, mostrar os últimos anos do cangaço, os últimos anos da década de 1930. A modernidade entrando no sertão: isso possibilitou o fim do cangaço. Benjamin Abrahão é a maior metáfora disso. Ele entra com o cinema, a coisa super moderna na época, e Lampião, por pura vaidade, deixa-se filmar. Acho que isso é a grande metáfora do fim do cangaço. Quando o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) vê as imagens de Lampião, diz: “Rapaz! Que negócio é esse? A polícia de sete estados anda atrás desse cara, e o cara está aí, assim?” Porque as imagens mostram um Lampião humanista: Lampião lendo, Lampião escrevendo, Lampião dançando. Nenhuma imagem dele guerreando, dele feroz. Ivana Bentes: Mas existiu toda uma negociação do que poderia ser filmado, não? Lírio Ferreira: Existem suspeita de que Lampião foi quem, na verdade, dirigiu o filme. Ivana Bentes: Grande cineasta! Lírio Ferreira: Sim, foi possivelmente quem dirigiu o filme. Por isso fizemos a sequência em que ele opera a câmera. O que fascinou a gente foi exatamente essa


visão da entrada da modernidade no sertão. A coisa moderna: estrada, caminhão, telégrafo, cinema. Lampião ficou completamente envaidecido com isso. Geraldo Sarno: Aquela cena de Lampião vestindo terno de linho branco, civil, sem a farda para ir ao cinema com Maria Bonita... Lírio Ferreira: Existem pesquisas. Ele tinha um oculista, ia cuidar do olho dele lá em Bom Conselho. Certa vez passou três meses em Bom Conselho, e ia ao cinema. Lampião era uma pessoa que... se tirasse o chapéu e a roupa de cangaceiro, botasse um paletó, penteasse o cabelo... ninguém sabia quem era. Não existiam imagens de Lampião. Paulo Caldas: Tanto que muitos dos crimes atribuídos a Lampião podem não ter sido dele. Porque os cangaceiros eram um uniforme, uma visão. Não era possível dizer assim: “Ah, eu vi Lampião. Lampião esteve em tal cidade.” Podia ser ele ou qualquer outro cangaceiro. Não existe nenhuma imagem dele até Benjamin Abrahão. Tem um lado do Benjamin Abrahão, no filme uma pincelada muito rápida, o conhecimento dele como Padre Cícero, que é fundamental. Ele passou dez anos em companhia do Padre. Talvez tenha sido o responsável – mas isso ninguém tem ainda levantado – pelo fenômeno em que o padre se transformou do ponto de vista de comunicação de massa. Benjamin era correspondente de O Globo. Em 1929, isso sim descobrimos numa das pesquisas que fizemos, em 1929 Benjamin mandou divulgar por todo sertão que o Padre Cícero ia dar sua última benção. O próprio padre chegou a perguntar: “Que ideia maluca foi essa?” E Benjamin respondeu: “Achei que o movimento estava caindo e mandei espalhar essa notícia.” A presença de romeiros dobrou... Geraldo Sarno: Era um homem de marketing. Paulo Caldas: Existe aquela foto imitando cena de filme da época, Lampião de pé com o fuzil. Existem duas fotos muito parecidas. Uma delas foi produzida 13 por Benjamin Abrahão em 1936, já com a intenção de vende-la como imagem de Lampião. Ivana Bentes: Já era a ideia de construir a imagem de um mito. Lírio Ferreira: Um personagem que conviveu intimamente durante quase dez anos com o Padre Cícero e durante dois anos com Lampião, com os dois maiores mitos do Nordeste deste século, um personagem assim qualquer cineasta deseja filmar. Geraldo Sarno: Quanto tempo ele ficou com Lampião? Lírio Ferreira: Uns dois anos. Ele deve ter começado a filmar em 1936, no início do ano. Examinando as imagens, você vê que muda a caatinga, muda a roupa dos cangaceiros – e os cangaceiros não mudavam de roupa com muita frequência. É possível afirmar que ele voltou a entrar em contato com Lampião umas três vezes. Carlos Alberto Mattos: E o que resta dessas imagens? Tudo está no “Memórias do Cangaço”? Lírio Ferreira: O Frederico Pernambucano conseguiu uma caderneta do Benjamin Abrahão, original, onde ele escrevia determinadas coisas. Quando era uma coisa muito séria ele escrevia em árabe. Por exemplo, ele era apanhado pela volante e anotava: “Violência em tal lugar, a volante fez isso assim assim...” Mas escrevia em árabe para não se comprometer. Na caderneta ele faz referência para rolos de filme, onze rolos, e nessa época o rolo tinha um minuto, era rolos de 100 pés. Então a gente acredita que o filme não deve ter passado de 15 minutos... Paulo Caldas: Ele não chegou a montar o filme. Lírio Ferreira: O filme foi proibido ainda sem montagem. O copião e o negativo foram apreendidos.


Geraldo Sarno: Ele foi morto onde? Lírio Ferreira: Ele foi morto numa cidade chamada Pau Ferro, interior de Pernambuco, hoje Taíba... Águas Belas, município de Águas Belas, perto com divisa de Alagoas. Geraldo Sarno: Perto de Delmiro Gouveia. Eu vou contar uma coisa aqui que... é um desvio do que estamos falando, mas... A primeira vez que passei por Águas Belas com o Thomas Farkas, em 1969, fomos à delegacia e encontramos rolos de filme que o delegado atribuía a Benjamin Abrahão. O delegado nos levou à delegacia e nos mostrou as latas com rolos de filmes velados. Uma pilha de latas, tudo aberto, tudo perdido, 35mm. Não tinha câmera, não vi câmera, só as latas. É o que eu guardo na memória – e podiam não ser do Benjamin – eram rolos de mais de um minuto. Foi o que trouxeram com o morto, segundo o delegado... Paulo Caldas: Nós vimos a câmera. O Frederico Pernambucano comprou a câmera de um tio do Benjamin. A câmera, duas cadernetas de anotação, a roupa que ele usava no dia e mais alguns papeis. Era uma câmera suíça, acho. A câmera ABA Filmes, durante muitos anos divulgada como a câmera do Benjamin Abrahão, nunca foi usada por ele. Ele usou essa outra, que reproduzimos no filme, horrorosa de feia, desse tamainho assim, 35mm. Quando abrimos a câmera que o Frederico comprou encontramos um rolo, um resto de rolo Gevaert. Tinha ainda uma ponta de filme dentro. Ivana Bentes: E onde está essa câmera agora? Paulo Caldas: Com o Frederico Pernambucano. Está com ele. No “Corisco e Dadá”, do Rosemberg Cariry, usam a câmera da ABA Filmes, bonita, de madeira, câmera dos anos vinte. Ele usou uma câmera pequenina, de corda, os planos que ele filmou não tem mais de dez segundos. 14 Ivana Bentes: Mas então, o filme de vocês é muito mais um filme sobre cinema... Lírio Ferreira: É mais sobre o Benjamin Abrahão, sobre a aventura dele. Carlos Alberto Mattos: Sobre sobre a aventura dele no cangaço... Paulo Caldas: Também isso, por coincidência a aventura se passa durante um momento do cangaço menos conhecido. Lírio Ferreira: Na verdade, porque é um filme de diretores estreantes, porque o cangaço é um tema super filmado, por tudo isso, procuramos criar determinados diferenciais. Contar a história de outra maneira... Paulo Caldas: Naná Vasconcelos outro dia, falando de Chico Science, disse que importante é “modernizar tradições”. Foi exatamente isso que Chico fez, ao contrário do que fazem as pessoas mais ligadas à coisa folclórica, mais regionalista, que reclamaram muito em relação a Chico Science, à transformação, à mistura que ele fazia. Nunca o maracatu esteve tão bem em Pernambuco quanto agora, depois do Chico. O Chico modernizou uma tradição. Continua o Piaba de Ouro, os maracatus tradicionais continuam existindo, mas essa tradição estava relegada a um espaço de museu. Hoje você vai lá, encontra o Mestre Salú e ele não dá uma entrevista se não for paga, não deixa gravar o maracatu se não for pago, não faz um espetáculo de graça pra ninguém. O maracatu está crescendo. O que eu quero dizer é que tem um lado do filme que é em cima disso: modernizar tradições. Trabalhar uma coisa tradicional numa linguagem que se aproxime mais do público de hoje. Carlos Alberto Mattos: Você acha que crescer como mercado é tudo? Paulo Caldas: Só é tudo se você estiver passando necessidade financeira para a manutenção de uma arte. Mercado é o que acaba com esse problema. Sim, a gente vai criar outros problemas depois desse. Mas esse é um problema grande quando existe.


Enquanto muito das tradições estavam dançando, algumas dançaram definitivamente, porque não existia nenhum tipo de mercado para elas. Quer dizer, não pode ser uma coisa de museu, uma coisa artificial, senão não há nenhum tipo de interesse da própria população, do povo, em preservar uma manifestação cultural. Lírio Ferreira: Eu acho que não existe uma fórmula só. É importante ter o Chico Science, que tem mais a ver com o filme da gente, com essa coisa de misturar estilos, de querer ter uma ideia nova, de querer dinamizar uma coisa relegada a um museu. Mas é super importante também ter o Ariano Suassuna lá, encravado, dizendo: “Não dá pra simplesmente abrir as pernas para todo mundo, senão você pode acabar com toda cultura”... Paulo Caldas: Ariano é outra coisa, outra escola, é mistura também, mistura com a idade média europeia. Se ele pode fazer isso, eu posso fazer uma outra mistura. Geraldo Sarno: O mercado por si só não define integralmente a situação de uma cultura popular. O fato de uma cultura popular forte como, por exemplo, a cultura negra da Bahia, ser vitoriosa no mercado, não fez com que ela mantivesse uma presença crítica no universo cultural brasileiro, nem mesmo como representação da sua base étnica ou social. José Carlos Avellar: Vocês estavam falando de modernizar as tradições, de misturar, de tirar a tradição do museu. O que você acha que renovou ou pode renovar a tradição? Você estava falando do Chico Science e da renovação do Maracatu. Qual seria o ponto de referência para renovar o cinema? Paulo Caldas: É a vontade de fazer uma coisa que você gostaria de ver, essencialmente. Traduzindo a coisa de maneira bem simples: eu gostaria de ver um filme assim do jeito que a gente fez “O Baile Perfumado”, um filme que comunica uma interpretação das manifestações em torno do cangaço de forma diferente. É você se apaixonar, tratar daquilo ali de uma forma apaixonada, para o espectador se sentir 15 também apaixonado pelo que bate na tela, se ver naquilo ali... Lírio Ferreira: E eu vejo assim: tem uma característica da minha geração de curtametragista, uma característica de fragmentação. Essa fragmentação... é porque a gente é bombardeado hoje em dia... os cineastas de quarenta anos atrás, acho, tem uma estrutura mais sólida. Hoje em dia estamos abertos a várias influências, que vem numa velocidade muito grande. Então isso (não quero dizer que não cria uma base sólida, mas) cria uma fragmentação que a gente passa no trabalho que faz. Cada um de nós é bombardeado pelo computador, pela MTV, por uma infinidade de coisas. Tem MTV no filme, mas também tem coisas do cinema Novo. Existe essa mistura e acho que a mistura tem a ver com a fragmentação. Ivana Bentes: Maracatu, Chico Science, Manguebeat, o filme é essa ideia de mistura. Temos um filme de cangaço que não é de cangaço, que é pop, bem pop mesmo. Paulo Caldas: Quando o Chico começou, foi muito surpreendente. Ele tinha uma produtora e eu fiz um clip no comecinho da carreira dele. Incrível a revolução de ideias que surgiu com ele. Os filmes de curta-metragem que Lírio e eu fizemos na década de 1980, tinham uma temática urbana, temas jovens. E a coisa urbana não tinha interesse por maracatu. Logo que o Chico surgiu, começaram a dizer assim: “Chico, se você conseguir botar os jovens pernambucanos para dançar Maracatu, você vai fazer uma revolução.” Porque os jovens pernambucanos começaram a dançar maracatu com o Chico. Outros artistas estão envolvidos nisso, trabalhando em outras áreas – sei lá! – nas artes plásticas, na fotografia, no teatro, no cinema... Lírio Ferreira: A música funciona como gatilho do filme, até porque a música foi feita no momento em que a gente estava fazendo o roteiro. Os cangaceiros costumavam chamar de baile os combates com as volantes. Lampião dizia: “dia tal


vamos ter um baile com a volante”. A gente discutia os temas com o Chico, e quase tudo foi gravado antes de passarmos à montagem. Paulo Caldas: Antes até de filmar. Lírio Ferreira: Porque determinados temas deveriam ser tocados no filme, na filmagem, e tivemos que gravar antes. Os meninos começaram a compor e a gente ia discutindo: esse é o da vaidade, esse outro o tema tal. Quando chegamos para montar, já tínhamos doze temas. Paulo Caldas: Foram, depois, regravados definitivamente, eram estudos. Ivana Bentes: Essa relação da música com o tema do cangaço tem um contraste... Lírio Ferreira: Já tinha nas letras em que o Chico cita o cangaço. Tem uma música dele, “Banditismo”, que fala de Lampião. Acho que existe uma inspiração. A música hoje anda na frente do cinema, tem uma comunicação muito maior, uma divulgação... foi muita sorte esse casamento de ideias entre música e cinema, entre pessoas da mesma geração... Carlos Alberto Mattos: Existe então um casamento, uma identidade nessa cena cultural? Paulo Caldas: Existe essa vontade comum de modernizar as tradições, muito forte na música por exemplo. Estamos no Rio há algum tempo e cada vez que voltamos a Recife encontramos cinco ou seis bandas novas. A mesma coisa no cinema, alguns curtas identificados com essa linha de trabalho com a cultura popular e agora “O Baile”. Na área do audiovisual você já encontra garotos super animados. E um pessoal de fotografia que fez um trabalho na rua. Sem esquecer o trabalho da TV Viva, na década de 1980, que trabalhava com o popular e influenciou muita gente. Lírio Ferreira: Sim, é importante saber que o Chico Science e “O Baile 16 Perfumado” não saíram do nada. Saíram desse trabalho, desse caldo... Paulo Caldas: Você vai a um baile e conversa, vai ao cinema e conversa, vê um outro filme, vê uma música... Lírio Ferreira: Na verdade, Recife é uma cidade provinciana, as pessoas se encontram. É mais fácil criar um movimento desse, disseminar isso através de música, das artes plásticas, do teatro... Paulo Caldas: A contaminação é muito fácil. São poucos bailes, são as mesmas pessoas. Carlos Alberto Mattos: E qual é a relação disso com a cultura americana? A partir dos títulos: “Manguebeat”, “That’s a Lero Lero”, “Chico Science”, “Árido Movie”. Por que esse flerte? É só coisa de mercado, de marketing? Paulo Caldas: É brincadeira. Começou, de certa forma, com o Manguebeat. Tem vários bits, na verdade. Primeiro o bit do computador, foi esse que começou a história. Mas na verdade não existe uma aproximação com a cultura americana. Ivana Bentes: É bem significativo. É o pop no sentido de cultura popular nacional, o pop internacional popular. Carlos Alberto Mattos: Um desejo de ser lido como pop, um desejo de estar na mesma faixa em que a cultura norte-americana é recebida? Lírio Ferreira: Não sei. O “That’s Lero Lero” é uma coincidência. Primeiro porque sou apaixonado por Orson Welles. A frase não é minha, é do Orson Welles quando esteve em Recife, no meio daquele debate “o que é mais importante Mr. Welles, o cinema falado ou o cinema mudo?” Quando ele não entendia uma pergunta, ou estava de saco cheio, falava: “That’s a lero lero”. Foi a expressão que ele usou numa entrevista para o Diário de Pernambuco. O repórter fez uma pergunta sobre


Rita Hayworth, ele não entendeu nada e respondeu: “That’s a lero lero”. Nisso tudo tem muito de intuição, acho que a gente faz parte de uma descoberta, temos muito que aprender ainda. A geração da gente tem muito a ver com a intuição, a maneira de querer acertar, querer descobrir coisas e sempre estar caindo em dúvida, e querer descobrir cada vez mais. José Carlos Avellar: A história do plano armado a partir de uma foto da época. A imagem de “O Baile Perfumado” é sofisticada, com elaborados movimentos de câmera, com suaves e quase imperceptíveis passagens de um plano a outro, com cenas que dependem quase exclusivamente da textura da imagem. Como é que essas imagens resultam de um diálogo com as imagens dos anos 1930, com a fotografia e os filmes de Benjamin Abrahão? O tripé que sustenta a câmera está com um pé lá atrás, na tradição, mas os outros dois estão, um no presente e o outro tentando se apoiar no futuro? Paulo Caldas: Na verdade, tem uma coisa importante aí, inventar com apoio na tradição. Éramos dois diretores, vários componentes da equipe, o fotógrafo, o pessoal do som, o pessoal da arte, todos enfrentando o desafio de não deixar, em nenhum momento, o que a gente tinha idealizado cair por conta das condições de produção. Do ponto de vista artístico conseguimos manter o filme vivo por causa da relação que existia dentro do set. Quando as pessoas viam as formas malucas que estávamos usando para filmar determinadas coisas se entregavam ao trabalho, porque havia um fortalecimento interno muito grande. Agora, eu digo que toda essa coisa que a gente procurou, a ousadia que pode resultar de um movimento de câmera ou de um enquadramento que deixa o plano fixo na cara de um personagem contando uma longa história, enfim: vários e vários artefatos de linguagem que usamos no filme, todos eles foram extremamente discutidos. Não queríamos afetar a comunicabilidade do filme, a história que ia ser contada. Toda vez que tínhamos uma ideia, por melhor que fosse, ela caía logo, se chegássemos à conclusão que não ia comunicar nada, que 17 era um subterfúgio de linguagem, que era apenas “moderno”, “diferente”. Brigamos muito internamente para conseguir isso, até na montagem. Brigamos para manter a comunicabilidade. Contar uma história era a primeira coisa que a gente queria. Geraldo Sarno: Essa pergunta eu ia deixar pro filnal, mas já que vocês tocaram no assunto... Como é que vocês dirigiam? Um dirigia os planos ímpares e o outros os planos pares? Lírio Ferreira: Não, eu filmava de noite, Paulo Caldas fazia as dele de dia. Eu fazia as internas, ele as externas... (risos) Falando sério: antes de chegar para filmar, fizemos oito diferentes tratamentos. Fizemos o possível para não improvisar. Se tivéssemos que improvisar na hora, iríamos improvisar sobre uma base muito sólida. Discutimos muito. Foram três meses trocando tapa antes de começar a filmar – porque a gente não podia trocar tapa na frente de sessenta pessoas. Era dois diretores, mas uma direção só. Esse trabalho anterior, quase um ano, fortaleceu a gente e, na hora foi uma coisa natural, por incrível que pareça. Não sei como explicar isso em palavras, mas parecia uma coisa natural. Não houve nenhum momento em que um tivesse escolhido um plano, “bota a câmea aqui”, e o outro discordasse, “não, bota aqui”. Nem momentos em que nos dividíssemos, “faz o teu plano que eu faço o meu”. Cinema é uma coisa fraterna, começou com os irmãos Lumière, acho que tem tudo a ver. Paulo Caldas: Desde o roteiro. Existem sequencias que um escreveu e sequencias escritas pelo outro. Num certo momento alguém tinha mais a ver com alguma coisa e o outro podia cuidar de outro lado. Dividimos as responsabilidades e somamos a criação – entende? Só não se deve dividir a criação. Se você divide a criação, está roubado, saem dois filmes no lugar de um. A responsabilidade de dirigir um filme é um negócio cruel e se você tem com quem dividir os problemas é muito legal.


Lírio Ferreira: Na verdade, a gente utiliza uma cumplicidade para favorecer a dificuldade de sermos diretores estreantes. Existiu uma cumplicidade entre nós dois e acredito que deu certo. Carlos Alberto Matto: Mesmo depois, nenhuma rivalidade maior? Ivana Bentes: Na montagem? Lírio Ferreira: Na montagem... Paulo Caldas: Aí a gente brigou mais. Nós dois e a montadora ali, três pessoas e algum tempo – enquanto a Riofilme não ligasse para pedir o filme pronto... Lírio Ferreira: E a gente estava mais protegido também. Paulo Caldas: Mas protegido do ponto de vista prático mesmo. Durante a filmagem, no set, até poderia ter surgido alguma vontade de discutir, de protelar mais alguma coisa, mas não tínhamos tempo. Era decidir e pronto, acabou. O que estava mais de acordo com a ideia geral ficava. Na montagem, sim, podíamos discutir. Iana Bentes: Discutir o que? O final do filme? Paulo Caldas: Final de filme? Você tem que beber muito pra acabar. Não foi fácil. Agora, a montagem do começo, que é muito legal, o combate, foi a primeira cena montada. Podíamos ter voltado ali umas 200 vezes, ter mexido ali 200 vezes. Mas no primeiro dia montamos o primeiro plano-sequência do combate, aquela coisa toda partida, todos os combates num só, porque não tivemos dinheiro para fazer muitos combates... Lírio Ferreira: A fragmentação está na montagem do filme. Na montagem tivemos tempo de discutir esses pedaços do filme que saíram do lugar previsto no roteiro. A gente percebeu que o filme caminhava de uma maneira, que dava para fazer um final mais duvidoso, mas que as pessoas compreenderiam. 18 Paulo Caldas: Na moviola ficava a montadora. Os dois diretores, um pouco atrás. Então você tem como fazer um truque, uns sinais, uns olhares, não é? Lírio Ferreira: A montagem é um processo altamente criativo. É importante ter um certo atrito para você se sentir mais protegido. Paulo Caldas: Mexer com a estrutura é a discussão mais séria que tem. A montagem, é claro, já estava dada na forma de filmar. Não filmamos para ficar montando uma sequência com 200 diferentes posições de câmera. José Carlos Avellar: A cena do combate por exemplo: essa foi filmada para ser fragmentada e com certeza exigiu um trabalho de montagem. Mas outras cenas feitas em plano sequência, a montagem dentro do plano, guardam também essa ideia de fragmentação a que se refere o Lírio pela colocação dentro da narrativa. Paulo Caldas: Exatamente. Lírio Ferreira: O Avellar viu uma primeira montagem, uma banda dupla, completamente diferente. Daquela primeira solução de montagem para o filme terminado, umas oito sequências mudaram de lugar. José Carlos Avellar: Mas internamente esses blocos não se modificaram. Paulo Caldas: Não. José Carlos Avellar: Quer dizer, a ideia de construir uma narração fragmentada foi resolvida na filmagem. Paulo Caldas: No roteiro, foi resolvida no roteiro. Nós pensávamos assim: o filme deve ser compreendido pelo público. Porque muitas vezes, quando você opta por uma linguagem mais “moderna”, essa opção vem junto com uma incomunicabilidade. A opção aí é quebrar, estourar, detonar a narrativa completamente para criar um


confronto... Eu acho que existe em todo filme uma coisa invisível, que é o tom. Uma coisa invisível. Você sente, mas não pode dizer o que é. É o tom do filme. O mais difícil no cinema é achar o tom do filme. O tom é invisível, é o sentimento. Você sente que as coisas se encaixam numa unidade. Unidade invisível mas que está ali. Já que a gente está falando de coisas modernas: os diálogos do filme, a forma das pessoas falarem, foi uma pesquisa radicalíssima de época. Os diálogos são fundamentais para boa parte do sucesso do filme, para o entendimento da história do filme. Vi numa projeção aqui no Rio as pessoas rindo do sotaque, mas é uma coisa tradicional: “tá mouco” quer dizer “tu tá surdo”, são expressões... Geraldo Sarno: O filme é isso mesmo, uma mistura. Não propõe uma nova linguagem. A direção dos atores, no meu entender, é realista – em alguns momentos chega a ser quase neo-realista, registro quase documental em certos momentos. Ao mesmo tempo, o filme trabalha a montagem com liberdade de uma forma fragmentada, com uma liberdade de linguagem que faz dele o inverso do documental realista. Utiliza um material, digamos, “documental”, “realista”, nua estrutura épica: o cangaceiro lá no alto da montanha, batalhas sem nenhuma referência realista... ao contrário, parece que você está mergulhado numa metáfora de literatura oral, de literatura de cordel (se quisermos falar de tradição) ou numa metáfora de uma linguagem moderna, cinema moderno, de MTV. O filme pega essas coisas e assim cria sua originalidade. O que agrada é a mistura e o equilíbrio de materiais de origens diversas. José Carlos Avellar: Digamos que exista até uma certa tradição na cultura brasileira que vem da antropofagia. Montagem e antropofagia são práticas comuns na expressão brasileira desse século. Geraldo Sarno: Falando de antropofagia, de fragmentação, de aproveitamento de materiais de várias origens... essa é a essência da cultura popular nordestina. Por exemplo, o artesanato nordestino, todo feito com a sucata da indústria. O fifó pode 19 ser feito de uma lâmpada elétrica – a lâmpada vira o depósito do querosene, você põe a bucha e dá o a gente na Bahia chama de fifó, o lampiãozinho. Todos os utilitários – da faca de cozinha ao facão que se faz de resto de amortecedor de carro –, essa capacidade de utilizar a sucata da indústria para fazer uma expressão nova, original... Lírio Ferreira: É o que a gente fala de reciclar o luxo e o lixo. Paulo Caldas: No cinema é reciclar o luxo. Lírio Ferreira: Luxo não porque seja supérfluo... Toda forma da cultura, por mais sofisticada que seja – a música, o verso – é tão necessário quanto qualquer utilitário... Geraldo Sarno: Conscientemente ou não, vocês trabalharam de uma forma que tem tudo a ver com a cultura nordestina. O Chico Science trabalha do mesmo jeito. Lírio Ferreira: Quando se trabalha isso pra dentro, o resultado é uma coisa mais regionalista. Fizemos uma coisa regional, completamente diferente do regionalista. Cinema é regional, é pra fora, conversa com as outras coisas, inclusive com a cultural popular que é a base. O regional é aberto à mistura: O desenho dos punhais de Lampião é uma mistura de desenhos, a música de rabeca é uma coisa árabe... Paulo Caldas: Toda a arte do filme fizemos em cima de artesão da época. Trabalhamos com os filhos de Dona Maria, que fazia as roupas de Lampião, com o filho de não sei quem, que fazia os chapéus e as perneiras. Foi uma trabalheira encontrar alguém que fizesse a alpercata como a dos cangaceiros, porque a que se vende hoje é outro modelo. Há uma coisa que você percebe na casa dos sertanejos: todas as coisas que compõem o visual deles é criação própria, é uma arte feita por eles mesmos. Não existe uma importação de material. O que você tem lá é uma coisa


muito forte, única. O cangaço, o cangaceiro: é uma moda praticamente lançada por Lampião, é um figurino incrível. Não se trata de um figurino determinado por nenhuma necessidade de guerra, do combate. Ao contrário, existia ali muito mais orgulho do guerreiro, de se identificar como um objeto de arte, ele como um objeto cultural forte – foi o que fez aquela coisa toda quase carnavalesca. Quando entravam numa cidade, era quase um bloco de carnaval: tudo dourado, tudo cheio de moeda, uma maluquice! Inventaram esses enfeites pouco apropriados para os combates. A maioria dos enfeitas servia mesmo é para embelezar, enfeitar o corpo, coisa de índio, muito de índio. Lírio Ferreira: Imagine que um cangaceiro carregava 25 quilos nas costas. Não tinha essa coisa de luta corporal, porque se um deles caísse no chão, era como uma tartaruga. Paulo Caldas: Uma tartaruga cheia de joias que eles iam adquirindo nos assaltos... Lírio Ferreira: Quisemos passar isso para a direção de arte do filme, as roupas, o ouro, passar essa visão de coisa abastada que existia no cangaço naquela época. No final o cangaço se tornou muito burguês: uísque escocês, perfume francês, lenço inglês, seda inglesa. Paulo Caldas: Um aspecto importante de levantar aqui: o da fotografia. Quando recebemos o Prêmio Resgate para diretor estreante, optamos por trabalhar com pessoas que eram todas estreantes em longa-metragem, que vinham do curtametragem. Na equipe técnica e no elenco também. E eu acho que a fotografia é muito importante para o resultado do filme. Ela rompe com uma certa fotografia já estabelecida. Por exemplo, nós usamos um filme de 500 ASA. O fotógrafo escolheu o filme, eu encomendei o filme, e a Kodak me ligaram: “Eu acho que tem alguma coisa 20 errada, seu não é no sertão?” Eu disse: “É.” E o cara da Kodak: “Então como é que é? 500 ASA?” ea isso mesmo. Queríamos utilizar um filme muito sensível no limite. Levamos até filtro para corrigir um possível excesso de luz. Filmamos no inverno, um inverno totalmente nublado – em grande parte das filmagens estava chovendo. Não tínhamos gerador, não tínhamos luz em determinadas locações, e o filme mais sensível permitia um dia maior. Conseguimos filmar até mais tarde. Tudo isso deu uma radicalidade na fotografia do filme que é muito importante. Algumas pessoas chegaram a comentar que o filme é muito escuro em relação à luz que estamos acostumados a ver. A ideia era explorar coisas assim como, digamos, a “sujeira”, o “riscado” – o combate e a vaquejada totalmente “riscados” –, o “chicote”. São planos que a gente privilegiou não por conta de ter uma imagem sofisticada para a “crítica”. Tudo tem a ver com o filme. Depende do projeto que você quer fazer, mas existe hoje o vício da fotografia de publicidade. Ivana Bentes: Muito fria. Paulo Caldas: Tudo Iluminado, todo mundo bem iluminado. A gente também procurou... Lírio Ferreira: O jogo do claro e escuro. A ousadia de escurecer o personagem principal do filme... Carlos Alberto Mattos: Não é só o jogo do claro/escuro. Tem pontos de vista completamente inesperados e que num primeiro julgamento parecem desproporcionais à narração. Como a cena em que o Benjamin Abrahão chega para conversar com alguém, põe a mala no chão e o plano seguinte é feito com a câmera no chão. Eu penseiassim: “Esse é o ponto de vista da mala?” José Carlos Avellar: Imagens inesperadas: na primeira versão da montagem o plano de chegada de Benjamin Abrahão ao bando do Lampião era bem longo – um


movimento em que a câmera na mão avança como que do ponto de vista do Benjamin pelo meio da caatinga. Não tem nada, só a caatinga. De repente, passa um cangaceiro pela direita. De novo o vazio. Passa outro pela esquerda. De novo o vazio. E um terceiro cangaceiro entra em quadro e olha diretamente para a câmera. Na montagem definitiva o plano começa nesse momento, mas o inesperado do plano inteiro tinha uma força muito grande, visto isolado ou dentro da sequência. Lírio Ferreira: Eu gosto de coisas meio cheias, meio sujas e que causam estranheza, acho que talvez seja um pouco over, mas eu gosto. Acho que vai em oposição à coisa publicitária, muito limpa. Lampião no cinema. Colocar Lampião no cinema, à paisana, o que por si só causa surpresa, porque aquela imagem nunca se mostrou uma história de Lampião. Você já está surpreso e de repente entra “A Filha do Advogado” (de Jota Soares, 1926) que te remete a uma outra coisa... e aí você faz a ponte a ligação do que a gente estava imaginando fazer. Carlos Alberto Mattos: Essas atitudes, você não acha que elas possam ser lidas como um excesso de retórica? Ou uma tentação indisciplinada? Lírio Ferreira: Acho que essas ousadias, esse transbordamento, essa coisa over do filme talvez venha do fato de sermos diretores estreantes. Paulo Caldas: O Inácio Araújo depois de ver o filme disse: “Só tem um plano do filme que não me convence, aquele travelling que passa e volta pela parede”. Isso é muito interessante, porque ele falou desse plano, e a gente adora esse plano. Numa exibição em Vitória uma pessoa apontou esse plano como a melhor coisa do filme. Trabalhar no limite é perigosíssimo, tudo pode ficar gratuito, mas trabalhar no limite também faz parte do filme... Geraldo Sarno: Mas de onde vem esse plano? Por que esse plano? Qual é a razão? Qual é o significado dele? Lírio Ferreira: A primeira razão é colocar um espectador numa posição em que 21 ele jamais imaginaria estar, incomodar um pouco. Causar uma certa estranheza... Paulo Caldas: No momento da filmagem, filmar esse plano teve um pouco a ver também com a necessidade de ser ágil. Nós teríamos que contar aquela cena em pouco tempo, daí o travelling... Geraldo Sarno: Tempo de produção? Paulo Caldas: Tempo de filmagem. Geraldo Sarno: Eu só tenho tanto de tempo para filmar e tenho que... Paulo Caldas: ...resolver essa situação. A linguagem utilizada no filme permitiu que, nesse momento, conseguíssemos resolver a situação fazendo essa escolha. Mas fora isso, o plano é super apropriado, se encaixa como uma luva naquela confusão de um personagem que dorme todo tempo, o marido da dona da pensão (inclusive o marido de verdade estava dormindo mesmo nesse dia; ficou lá tão esquecido que a gente teve que cortar um plano porque ele, dormindo no meio do diálogo, estava roncando firme). E tem a moça que sai, que é amante do Benjamin Abrahão. Tudo muito incompleto, como costuma ser no sertão. No sertão você vê coisas pela janela, você vê coisas de fora das casas. Esse plano tem a ver com todas as coisas, com a agilidade necessária naquele momento para resolver um problema e com a criação de uma imagem coerente com a linguagem do filme. José Carlos Avellar: Também essa imagem parece provocada pela preocupação de fragmentar a visão. Quando o filme não fragmenta a ação, fragmenta o ponto de vista. Por isso a câmera do lado de fora em que se dá a conversa filmada: temos só a parede e os fragmentos entrevistos pela janela. O espectador só pode ver um pedaço da ação, nunca a ação inteira. Esse plano em que a câmera está se movimentando


do lado de fora é igual àquele em que a câmera avança na caatinga. Na verdade, o espectador não sabe o que está vendo: vê um fragmento que se esclarece na medida em que entramos no tom da narrativa ou entramos na história narrada. Porque a própria história que o filme está contando, a de Lampião, a de Benjamin Abrahão, é uma história fragmentada. Nós não conhecemos nada por inteiro. Temos uns pedaços dessas histórias. Se quisermos saber mesmo quem foi Lampião, quem foi Benjamin Abrahão, vamos ter de trabalhar sobre framentos. Paulo Caldas: Isso faz parte da primeira premissa do projeto: contar a história fragmentada desses personagens, Lampião, Benjamin e o Tenente Lindalvo. O primeiro tratamento, o que ganhou o prêmio Resgate, estava perto de um documentário. Uma câmera ali, você não sabe quem é, e alguém contando histórias para ela. Ali já existia a ideia de fragmentar, de criar uma relação entre três histórias fragmentadas. Na montagem isso foi melhor resolvido. A ideia de fragmentar se resolveu melhor nas mudanças de blocos de montagem. Lírio Ferreira: As primeiras versões do roteiro eram mais soltas, um trabalho sobre os três personagens, e ao mesmo tempo mais amarradas, de certa forma por insegurança. Tínhamos uma tendência a esclarecer coisas que não precisavam ser esclarecidas. Além disso, quando escrevemos o primeiro roteiro ainda não tínhamos ido para o sertão. Ivana Bentes: O roteiro premiado foi o que vocês escreveram antes de ir pro sertão? Paulo Caldas: Exatamente. E quando a gente foi ao sertão – os hábitos, a maneira de falar, o lugar, o lugar onde Lampião morreu – mudou tudo. Essa pesquisa contribuiu para criar a narrativa. Deu a costura que faltava no primeiro roteiro. Ivana Bentes: Eu acho que vocês usaram muito bem um certo distanciamento 22 do Benjamin Abrahão, que aparece como um personagem discreto, olhando de longe, como um ponto meio neutro, aquele homem com a câmera ali, meio... Paulo Caldas: Meio fora de lugar, não é? Ivana Bentes: Exatamente, e esse deslocamento cria um clima diferente. Ele não é como Lampião, não é um personagem dentro do conflito, está ali mas não está... Ainda não falamos dos atores. Lírio Ferreira: Primeiro o Duda Mamberti, o Benjamin. Cinco meses antes de a gente começar a trabalhar ele já vinha trabalhando. Trabalhou com outros atores que já tinham feito personagens libaneses e mandou um pedido para o Itamarati, queria ter contato com o Líbano, enfim... Paulo Caldas: ...não conseguiu tirar dinheiro dos libaneses, mas conseguiu um cineasta libanês casado com uma diplomata brasileira que trabalhava lá. Então veio a Recife e quando se encontraram e ele começou a falar o Duda disse: “É assim que eu quero falar”. Trabalharam juntos um mês e meio. Trabalho não só de linguagem, mas de expressão: discutiram a história do Líbano na época em que se passa o filme. E descobriu-se – uma descoberta histórica nossa – o verdadeiro nome do Benjamin Abrahão. Nem mesmo Frederico Pernambucano sabia: é Jamil Ibrahim, em árabe estava lá escrito. Ele ou alguém aportuguesou, e virou Benjamin Abrahão. Mas o cara começou a ler tudo o que tinha do Benjamin Abrahão em árabe e nos fornecia as informações, e dava pro Duda. Ele inclusive chamou atenção para o que significava o libanês dentro do filme. Desse modo passou a ter uma força maior o fato de Benjamin falar em árabe. É ele que fala, em Libanês perfeito. Ele faz a dublagem do Duda. As traduções ajudaram muito, foi uma sorte essa figura ter pintado para auxiliar o Duda – o Duda e o filme inteiro. Carlos Alberto Mattos: Por que vocês não traduziram a primeira fala do Benjamin?


Paulo Caldas: Porque a gente considerou aquilo ali uma fala musical. Naquele plano de introdução não quisemos colocar nem letreiro. Num determinado momento estudamos a possibilidade de botar ali nome de atores e técnicos, mas não quisemos sujar a imagem. Fizemos algumas experiências e achamos que sujava o plano. Legendas também iriam sujar... Lírio Ferreira: Ele fala o que a gente já viu. Que o padre morreu, que ele vai procurar vida nova. Para colocar legenda ali, teríamos que contratipar o material, teríamos perda de qualidade, várias coisas. Mas para a decisão mesmo... primeiro vem a emoção, depois a razão. Paulo Caldas: Chegamos a pensar em tirar a fala, deixar todos os outros sons, os ruídos. Mas sentimos que a fala estava entrando ali como música e não como texto. A voz dele como música. Ele interpreta de uma forma meio literária. É um libanês diferente do coloquial, é como se ele tivesse lendo um texto. Carlos Alberto Mattos: Voltemos aos atores, os outros dois atores principais. Paulo Caldas: O Luiz Carlos Vasconcelos, que faz o Lampião, é paraibano, diretor de teatro e ator. Fomos assistir a uma peça dele, “O Vau da Sarapalha”, uma das melhores peças nordestinas dos últimos tempos. Fomos assistir a peça em busca de um ator e quando no final do espetáculo o Luiz Carlos, o diretor da peça, subiu no palco, aí, sem saber se ele já tinha sido ator, bateu a identificação na hora: “olha ali o Lampião!” Começamos a conversar com ele, um diretor e um ator que trabalha muito com laboratório. Para você ter uma ideia, quando a gente foi pro sertão. Ele só tinha que filmar na segunda semana. Mas desde o início acordava na hora da equipe, vestia a roupa de Lampião, botava o fuzil, e saía correndo para fazer laboratório na caatinga. Passava o dia todinho correndo, só nos encontrávamos à noite... Paulo Caldas: Passou a conhecer a região melhor que muita gente da região. 23 Sabia onde tinha um cemitério, uma cachoeira, e não-sei-o-quê. Saía andando. Ivana Bentes: Onde foram as filmagens? Lírio Ferreira: Em Piranhas. A base no sertão era em Piranhas, a cidade do plano inicial do “Bye Bye Brasil”, do Diegues. Interior de Alagoas. Do outro lado é Sergipe e pertinho dali é a Bahia. Filmamos ali, em Recife e em Olinda. A cena da praia é no Cabo de Santo Agostinho. O terceiro ator, Aramis, o que faz o Tenente Lindalvo, é talvez o mais parecido com os atores do Cinema Novo. Não estudava nada, não faz laboratório, mas na hora incorpora o personagem, se transforma com a câmera. Completamente intuitivo. É uma pessoa que nasceu no sertão, tem todos aqueles sotaques, você não precisa ensinar nada disso para ele... Paulo Caldas: O problema é que ele virou o Tenente Lindalvo e às vezes era difícil controlar a coisa fora das filmagens. Dentro do filme tudo bem... Lírio Ferreira: O personagem entra em Aramis e ele não sabe como tirar. Acaba a filmagem, todo mundo dormindo e ele continua Tenente Lindalvo, tratando as pessoas daquela maneira. Em determinados momentos foi até agressivo. “Mas Aramis, você não está filmando agora”. E além dos três, como precisávamos de um elenco de apoio capaz de chegar e com dois dias fazer um coronel e voltar, um elenco experimentado, entraram, Chico Diaz, Cláudio Mamberti, Jofre Soares, Giovanna Gold. Paulo Caldas: Tem um elenco local também, regional, atores que fazem vários papeis secundários, participações especialíssimas: o cara que faz o telefrafista, a mulher que faz a dona da pensão... Ivana Bentes: São todos atores? Paulo Caldas: São. A Geninha da Rosa Borges é a Fernanda Montenegro do


teatro pernambucano, foi do teatro de amadores por milhões de anos, é maravilhosa. Tem o Ademar Albuquerque que faz o cara da ABA Filmes, o produtor. Ele é um empresário, tem uma rede de lojas. Foi ator de teatro há muito tempo e está ótimo, você nem acredita que ele esteja tão distante da profissão de ator. Queríamos naquele momento caras menos televisivas. Nada contra os grandes atores que trabalham na televisão. Mas existe uma coisa que às vezes influencia mal um filme: um elenco de televisão, muito conhecido, muitas vezes não apropriado para os personagens, não deixa o público acreditar no personagem. Ele não vê o personagem, vê o ator. Lírio Ferreira: E também tem essa coisa do sotaque mesmo. É como construir um cenário aqui para fazer uma cidade do interior do Nordeste em lugar de filmar lá em cenários naturais. A diferença dos modos de falar é igual. Você precisa de pelo menos de cinco semanas no sertão para incorporar o linguajar. Paulo Caldas: Os atores mexeram no texto com frequência, para incorporar o modo de falar do sertão. Muitas vezes mexemos em diálogos porque não estavam escritos assim como se fala no sertão. Carlos Alberto Mattos: Como foi passar a proposta de vocês para os atores sem experiência no cinema? Paulo Caldas: A dificuldade foi com os atores que faziam participações menores e que chegavam no dia da filmagem. Às vezes não tínhamos muito tempo para trabalhar um ator. E então ele se batia com o Dudu, se batia com Aramis, com Lampião, com os atores que já estavam completamente dentro do filme. Aí sim, surgia uma dificuldade maior. Era só um tempinho para um ensaio na noite anterior da filmagem, estudar o texto, coisa assim. Ivana Bentes: Vocês ensaiavam muito? Paulo Caldas: Tinha uma pessoa de elenco, um diretor de elenco. Ele preparava 24 as pessoas assim que elas chegavam, preparava muito. De noitinha, depois da filmagem íamos ver: “Fulano chegou, vamos passar o texto com ele”. Passávamos o texto, discutíamos alguma coisa... Lírio Ferreira: Mas com os atores principais conversávamos muito. Não ensaiamos exaustivamente com todo mundo. Mas conversávamos muito sobre os personagens. E essas conversas renderam tanto que quando chegávamos lá, na hora mesmo, era só marcar. Paulo Caldas: Tivemos uma ajuda muito forte do Luiz Carlos, pelo fato de ele ser diretor de teatro. Filmávamos por safras. Vinha uma safra de volante, chegavam os caras da volante, e a gente tinha filmar tudo da volante. Vinha a safra de cangaceiro: “Chegou um bocado de cangaceiro aí” – fácil de ver porque ficavam na cidade jogando sinuca. E o Luiz Carlos começava a trabalhar os cangaceiros. Ele também incorporou o personagem. Quando estava incorporado como Lampião era mais difícil de ser tratado do que quando era só o Luiz Carlos. Às vezes incorporava demais e ficava difícil. Eu me lembro de uma cena da chacina: ele sangra várias pessoas. Aquele foi o último plano que filmamos, o último do último, estava caindo a luz. É um close. Fizemos só um take, ele tirando a faca, uma, duas, várias vezes, o sangue espirrando na cara dele. Luz caindo, e na hora de rodar o pano, cadê o cara? Ele tinha saído com todos os cangaceiros, dar uma volta na cidade para voltar ofegante na hora de filmar. Aquele som maravilhoso da voz dele, o cansaço da cara dele... Ele pegava as peças. De vez em quando comandava o bando contra a gente, contra a direção... Isso contribuiu muito, conseguimos filmar os cangaceiros muito tranquilos porque ele trabalhava os outros atores. Ele exercitava, fazia oficinas, e no set mesmo, ficava andando, nego fazendo fogueira, nego preparando barraca, e ele ali como pessoal da arte inventando história, um contando história um pro outro.


Ivana Bentes: Criou uma unidade, digamos assim, um bando de cangaceiros. Paulo Caldas: Porque às vezes você se preocupa só com Lampião, só com o personagem principal, e na hora ele está cercado de pessoas que não existem, que não são os cangaceiros. Luiz Carlos é muito responsável como ator e como assistente de direção. Ele tinha um orgulho enorme. Por exemplo: a cachorra, o cachorro Lampião. Era uma cadela, ele adotou esse cachorro. Era um problema porque, às vezes mudávamos a locação, tinha um carro, e a cachorra tinha que ir no carro. Todo mundo ia na caçamba da caminhonete, mas a cachorra não... Carlos Alberto Mattos: Tem uma frase do Lampião para o Benjamin mais ou menos assim: “Eu não me lembro de sua cara, mas da sua fala eu nunca vou esquecer”. Isso é documentado ou é uma coisa que vocês queriam dizer? Paulo Caldas: As pessoas do bando que entrevistamos, como o Silas, os cangaceiros ouvidos pelo Frederico anos atrás quando ainda estavam vivos, essas pessoas se lembram de Benjamin Abrahão: ele era um falastrão, gostava de se aproximar das pessoas, gostava de contar histórias – e a fala dele era uma coisa engraçada para todos eles, era o que mais surpreendia. Geraldo Sarno: Uma curiosidade, a última: o plano filmado por Benjamin Abrahão em que Lampião se aproxima da câmera com o punhal na mão, falando. Na época em que esse material foi encontrado pelo Paulo Gil ele mostrou a imagem a um surdo-mudo para leitura labial, para saber o que Lampião estava falando. E eu me recordo do Paulo Gil contando que Lampião estava dizendo: “Esse punhal aqui é para furar macaco”, algo assim. Paulo Caldas: É verdade. A gente tinha a ideia de fazer a cena bem assim quando o Benjamin filma Lampião avançando com o punhal, mas na hora da filmagem decidimos mudar o texto. Lírio Ferreira: Lampião, essa era uma característica dele, era um sujeito imprevisível. Essa fala de brincadeira sobre o sotaque de Abrahão: ninguém sabia quando ele estava brincando ou falando a verdade. Aquela coisa de puxar um punhal pro Benjamin Abrahão, de repente, num rompante – ele tinha essas atitudes imprevisíveis. Diziam que nas sextas-feiras ele não falava com ninguém, era dia santo. Ele ficava deprimido na sexta-feira inteira, mas no sábado estava diferente. O último ponto que eu queria levantar: a última cena do filme, ela é completamente adaptada à realidade da gente. Acho que uma das coisas que se expressa na fragmentação – aqui também estamos falando de maneira fragmentada – é a inquietude a que o Benjamin se refere no final: o mundo será dos inquietos. Acho que o Benjamin Abrahão, um cinegrafista, um cineasta, tem a ver comigo e com o Paulo. O primeiro filme dele foi um ato de coragem. Essa inquietação que a gente coloca no filme se resume nessa frase final, que tem a ver com a gente. Carlos Alberto Mattos: E vocês vão continuar dirigindo juntos? Lírio Ferreira: Juntos... separados... Paulo Caldas: É assim mesmo, juntos... separados... vamos continuar dirigindo.


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LONGAS METRAGENS

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O Baile Perfumado Ano de produção: 1997 | Duração: 93’ | Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira Roteiro: Hilton Lacerda, Lírio Ferreira e Paulo Caldas | Direção de fotografia: Paulo Jacinto dos Reis | Elenco: Aramis Trindade, Cláudio Mamberti, Chico Díaz, Duda Mamberti, Joffre Soares e Luiz Carlos Vasconcelos | Produção: Aramis Trindade, Germano Coelho Filho, Lírio Ferreira, Marcelo Pinheiro e Paulo Caldas Direção de arte: Adão Pinheiro | Montagem: Vânia Debs | Som: Valéria Ferro Música: Chico Science, Fred 04, Lúcio Maia, Paulo Rafael e Siba | Principais prêmios: Melhor Filme no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (1996) e no Festival de Havana (1997). Sinopse: Amigo íntimo do Padre Cícero (Jofre Soares), o mascate libanês Benjamin 28 Abrahão (Duda Mamberti) decide filmar Lampião (Luís Carlos Vasconcelos) e todo seu bando, pois acredita que este filme o deixará muito rico. Após alguns contatos iniciais ele conversa diretamente com o famoso cangaceiro e expõe sua idéia, mas os sonhos do mascate são prejudicados pela ditadura do Estado Novo. Paulo Caldas - Embora natural de João Pessoa, Paulo Caldas desenvolveu sua carreira em Pernambuco realizando curtas-metragens. Em 1981, dirigiu “Frustrações, isto é um super-8”, seu primeiro filme. Dirigiu ainda outros sete curtas, entre eles: “Morte no Capibaribe” (1983), “Nem tudo são flores” (1985), “Chá” (1987) e “Ópera cólera” (1992). “Baile Perfumado” é o seu primeiro longa-metragem, dirigido em parceria com Lírio Ferreira. O filme foi vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro no ano de 1996, levando ainda os troféus de Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Direção de Arte. Ao todo, Paulo Caldas dirigiu quatro longas, incluindo “O Rap do Pequeno Príncipe contras as Almas Sebosas” (2000), outra obra de grande relevo da cinematografia brasileira. Destaque também para “Cinema, Aspirinas e Urubus”, filme que ele coroteirizou ao lado de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. Principais filmes: País do Desejo - 2012; Deserto Feliz - 2007; O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas - 2000; Baile Perfumado - 1997 Lírio Ferreira - Antes de iniciar sua carreira em longas-metragens também com o filme “Baile Perfumado”, Lírio Ferreira foi diretor de curtas e videoclipes, trabalhando junto a diversos artistas. Lançou ao todo cinco longas-metragens, com destaque para os filmes “Cartola – Música para os Olhos”, codirigido com Hilton Lacerda, e “Árido Movie”, que levou seis troféus do CinePE Festival Audiovisual, entre eles os de Melhor Filme e Melhor Diretor. Neste ano de 2014, está lançando seu novo trabalho, “Sangue Azul”. Principais filmes: Sangue Azul - 2014; O Homem que Engarrafava Nuvens - 2009; Cartola - Música Para os Olhos - 2007; Árido Movie - 2005; Baile Perfumado – 1997


Baile Perfumado: O Contemporâneo no Cinema Nordestino por Marise Berta

Mais de 50 títulos de filmes de cangaço são listados em “Cangaço – o Nordestern no Cinema Brasileiro”1, números que comprovam o interesse e a presença marcante do tema no nosso cinema. O Cangaço foi abordado no cinema brasileiro em diferentes momentos e de várias perspectivas. O tema também mobilizou o interesse de outras formas da criação cultural. A literatura, o teatro, a música, as artes plásticas, a história e as ciências sociais incursionaram neste território por meio de investigação estética e de pesquisa. A saga dos cangaceiros fertilizou um rico acervo de obras e reproduziu a história dos seus feitos sob planos diversos e representações que o imaginário popular e a sociologia ajudaram a conformar. No cinema, décadas de exercício em filmes de curtas, médias e longas-metragens, ficções e documentários, instauraram o cangaço como a nossa mais fiel tradução do western, consolidado gênero cinematográfico americano. Em meados da década de 90, temas anteriormente tratados pelo cinema brasileiro passam por um momento de revisão. Nesse período, a produção audiovisual retoma o seu rumo configurando-se um processo de continuidade de realização. Busca-se a originalidade através do domínio da linguagem, da qualidade técnica e do bom nível estético. “Baile Perfumado” (1996) está inserido nessa nova configuração do cinema brasileiro. Primeiro longa-metragem de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, realizado em Pernambuco, redireciona o olhar do país para o cinema produzido na região, que não empresta apenas o seu cenário, mas assina a autoria da sua expressão visual. Este filme, junto a outros longas e curtas metragens realizados nos anos 1990 no Nordeste, permite cotejar um conjunto de obras que estabelecem um novo eixo de produção e delimitam o seu espaço simbólico na cinematografia nacional. Sob a égide das novas formas que instauram o contemporâneo como lugar de experimentação e concepção da linguagem favorecendo o trânsito entre imagens 29 híbridas e múltiplas, Baile Perfumado aponta para a estética da fragmentação, que denota uma certa tendência a compor a estrutura narrativa em segmentos sucessivos ou simultâneos. Filme de dupla direção, concebido em sintonia com o seu tempo, em diálogo aberto com a ruptura da linguagem, declara a opção de seus diretores pela não-linearidade na constituição da sua estrutura narrativa logo na primeira sequência. O filme inicia-se com um plano-sequência, que explorando a agilidade da câmara na mão, sai do rosto de Padre Cícero e movimentando-se para trás, coloca no quadro, de um lado o médico e, do outro, Benjamin Abrahão e algumas beatas que acompanham a agonia do padre em seu leito de morte. A câmara acompanha Benjamin que deixa o quarto do padre, e segue pelo corredor descrevendo o ambiente até chegar em um quarto em que duas mulheres acendem velas. Neste momento há uma mudança, toda a movimentação, aparentemente em perfeita unidade de tempo e espaço, revela um salto no tempo. Ao sair do quarto o padre ainda estava vivo. Ao entrar no quarto as mulheres guardam luto. Passando pelo corredor a câmera invade o quarto do libanês, que faz anotações em seu diário. A tarja preta em seu braço também indica o luto. Até aquele momento o som não é identificado, Benjamin está sussurrando interiormente em voz alta, pensa em árabe. Ao fechar o seu diário a voz off também silencia marcando o encontro da voz com o corpo. Percebe-se que Abrahão é o narrador. Saindo do quarto, a câmara o acompanha até chegar ao velório para despedir-se de Padre Cícero. Abrahão sai do quadro e a câmara percorre o quarto enquadrando carpideiras que velam o morto e retorna ao seu ponto de partida: o close no rosto do padre. A descrição deste virtuoso plano-sequência inicial, onde nenhum corte se faz perceptível e em que tempos e espaços diferentes são apresentados no mesmo plano, 1 | Coletânea de textos organizada pela jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano que propõe uma reflexão sobre o filme de cangaço.


é ilustrativa para indicar a constituição da narrativa do filme em que a continuidade composta de fragmentos se articula em possibilidades alternativas à visão clássica e introduz o olhar do espectador para o inusitado, advertindo-o para as cenas seguintes que serão reiteradas em todo o filme. Em uma composição em que planos de curta duração com intensa movimentação interna articulam-se entre si, a sequência seguinte mostra a perseguição da volante do Tenente Lindalvo Rosa a Lampião e seu bando. A música sincopada de Chico Science, atualiza a tradição na fusão que promove entre os ritmos tradicionais e o pop. A câmara vertiginosa se precipita, persegue a ação, não espera a cena ser decantada. Caleidoscópica, espraia a diversidade de planos. A fotografia acompanha essa construção e joga com os claros e escuros que ajudam a dar o tom à estrutura narrativa urdida por Paulo Caldas e Lírio Ferreira ao revisitarem o Cangaço e o Nordeste para dar conta da aventura de Benjamin Abrahão ao filmar Lampião. A ficção funde-se ao documentário para contar a história do libanês que acreditava na máxima: “os inquietos vão conquistar o mundo”. Essa inquietação o conduz na direção de importantes acontecimentos da cena política nordestina da República Velha. Estava em Juazeiro do Norte quando Lampião recebeu a patente de Capitão e armas para lutar contra a Coluna Prestes, não cumprindo o compromisso, por perceber tratar-se de uma armadilha. Abrahão impressionado com a saga de Lampião insiste em desvendar aquele mito para o país e para o mundo, e o veículo escolhido é novo: o cinema. A imagem atualizada é oferecida pela presença do cinema no sertão, junto a tantos outros signos que configuram o mundo moderno: fotografia, imprensa, telégrafo, automóvel. Com boa conversa, o mascate tornou-se produtor de imagens, conseguiu equipamentos, efetuou acordos com chefes políticos da região e contatos com coiteiros que garantiram o acesso a Lampião. Isso tudo resulta no que assistimos: Lampião com o olho na câmera, assume e protagoniza o filme. Encantado com a possibilidade de construção da própria representação que o cinema oferece permite 30 que seja imortalizado pela lente da câmara de Benjamin Abrahão, que em movimento livre mostra Lampião, Maria Bonita e seus seguidores no exercício do ritual cotidiano da vida no cangaço, exibindo anéis, armas, chapéus, medalhas, perfumes e bebidas. Filmou-os no flagrante da vida, focalizando os mínimos detalhes do grupo, mostrando pouco a pouco a sua sociabilidade: rezando, dançando, conversando, brincando em franco diálogo com a câmera. A dimensão da preciosidade das imagens dessa parte da história do Nordeste brasileiro é dada pelo próprio material produzido tanto como pelo risco da empreitada, que resultou no cerco da polícia a Lampião, proibição e apreensão do filme e na morte de Benjamin Abrahão, eventos apresentados em ações paralelas estruturadas em vários núcleos narrativos que vão conduzindo o filme para esse desfecho. Os cineastas pernambucanos ao atualizarem o registro das imagens do Cangaço, produzidas por Benjamin Abrahão, reinventam a cena simbólica de um passado mítico. Distantes do imobilismo de uma estratificação histórica, presente em algumas representações anteriores perpetradas pelo cinema brasileiro, os personagens do mito reaparecem em uma nova dinâmica de significações, em que a marca do contemporâneo está expressa. E o próprio pensamento do homem inquieto do passado (Abrahão) orienta o movimento das imagens dos homens inquietos do presente (Caldas e Ferreira). *** Marise Berta é Mestre em Artes Visuais e Doutora em Artes Cênicas. Professora Adjunta do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia – IHAC/UFBA. Coordenadora de TV e Mídias Digitais da PROEXT/UFBA e do Mestrado Profissional em Artes PROFARTES/ UFBA.


Eu Tu Eles Ano de produção: 2000 | Duração: 104’ | Direção: Andrucha Waddington | Roteiro: Elena Soarez | Direção de fotografia: Breno Silveira | Elenco: Regina Casé, Lima Duarte, Stênio Garcia, Luiz Carlos Vasconcelos, Nilda Spencer, Diogo Lopes, Helena Araújo, Iami Rebouças, Lucien Paulo, Borges Cunha, Plácido Alves Neto e D. Dinorah | Produção: Pedro Buarque de Hollanda, Leonardo Monteiro de Barros, Flávio R. Tambellini e Andrucha Waddington | Direção de arte: Toni Vanzolini | Montagem: Vicente Kubrusly | Som: Mark A. Van Der Willigen | Música: Gilberto Gil | Principais prêmios: Menção especial na mostra Um Certo 31 Olhar e Melhor Filme no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2001 Sinopse: Darlene (Regina Casé), grávida e solteira, vai embora da sua região e retorna três anos depois ao trabalho pesado dos canaviais no nordeste brasileiro com Dimas, seu filho. Logo que Osias (Lima Duarte), um homem mais velho e orgulhoso de sua casa ter sido construída por ele, lhe propõe casamento Darlene aceita. Ele se aposenta, enquanto ela continua trabalhando duro nos canaviais e em poucos anos nasce um segundo filho, muito mais escuro que Osias. Então ele leva Zezinho (Stênio Garcia), seu primo que é quase da sua idade além de ser um bom cozinheiro, para morar com ele. Darlene fica feliz com a chegada de Zezinho e logo nasce outra criança, esta bastante parecida com Zezinho. Pouco tempo depois Darlene convida Ciro (Luiz Carlos Vasconcelos), que trabalha com ela nos canaviais e não tem onde dormir, para jantar. Zezinho é contra, mas Osias diz que a casa é dele e que o recémchegado é bem vindo e pode dormir lá. Ciro acaba morando lá, mas a chegada de outro filho, desta vez parecido com Ciro, obriga Osias em tomar uma decisão. Andrucha Waddington - Sócio de uma das principais produtoras nacionais, a Conspiração Filmes, Andrucha Waddington já dirigiu seis longas-metragens. “Eu, Tu Eles”, seu segundo filme, ganhou vinte troféus, entre eles uma menção especial da mostra Um Certo Olhar, dentro do festival de Cannes. Outro longa seu de grande destaque é o “Casa de Areia”, de 2005. Waddington também é reconhecido por sua carreira como diretor de comerciais, documentários de músicos brasileiros e videoclipes. Iniciou sua carreira como estagiário de direção no filme “Dias Melhores Virão”, de Carlos Diegues. Principais filmes: Lope - 2010; Casa de Areia - 2005; Eu Tu Eles - 2000; Gêmeas – 1999


“Eu Tu Eles” entroniza desejo feminino no sertão machista por Inácio Araújo

Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 18/08/2000 A boa recepção de “Eu Tu Eles” em Cannes, a perspectiva de ser indicado para o Oscar etc. criaram a expectativa de que este será o grande sucesso brasileiro do ano. A sorte e o marketing adequado projetaram-no além dos limites usuais (exemplo: uma de suas canções tornou-se sucesso no rádio). Tudo isso torna “Eu Tu Eles” um evento e, dada sua complexidade, mais vale tentar destrinchá-lo em tópicos. 1) De “Gêmeas”, seu filme de estreia, para “Eu Tu Eles”, a evolução de Andrucha Waddington é visível. Ao trocar o universo diabólico de Nelson Rodrigues por uma trama de costumes, simplifica os elementos com que trabalha -e ganha muito com isso. 2) A história tem empatia imediata com o público -sobretudo o feminino. A trama gira em torno de uma bóia-fria pobre que realiza a proeza de ter três maridos convivendo simultaneamente sob o mesmo teto. O reconhecimento e mesmo a entronização do desejo feminino é, do ponto de vista do roteiro, o grande achado. 3) O roteiro tem o bom senso de tratar com respeito e pudor a situação, evitando a armadilhas do achincalhe e da comédia à italiana (histórias de corno etc.). O que propõem Darlene (Regina Casé) e seus consortes é uma ordem familiar insólita, mas à qual sempre será preciso reagir com um “por que não?”. 4) Na direção de atores, Waddington confirma as promessas de “Gêmeas”. Aqui, 32 tratava-se de dirigir três atores (Casé, Lima Duarte, Stênio Garcia) que costumam colocar seus personagens em surdina e relevar suas próprias personalidades. Aqui, sentimos os personagens e raramente o espectador percebe a presença de atores. 5) De todas as falsas questões que pode suscitar “Eu Tu Eles”, a mais insidiosa diz respeito à representação do Nordeste. Seria justo condená-lo por não apresentar um “Nordeste verdadeiro”, por evitar qualquer ênfase no miserabilismo? Certamente, não. Este não é um filme sobre o Nordeste. A história poderia se passar ali, no Pantanal, no Jardim Ângela ou na Patagônia. Mas o sertão nordestino não é também um lugar aleatório. Nós o associamos facilmente a um certo primitivismo, que torna a situação mais paradoxal: naquilo que imaginamos como um paraíso machista e pouco cultivado, a façanha da protagonista, ao impor o desejo feminino sobre o masculino, tem algo de épico. 6) O que se pode questionar no Nordeste proposto não é sua eventual distância de um filme como “Vidas Secas”, por exemplo, e sim, o pesado investimento em imagens tipo cartão-postal: pôr-do-sol, contraluz, a locação principal de beleza irretocável. Em poucas palavras, a representação proposta sofre de retórica e de certa cafonice, que só servem para atravancar a narrativa. Apenas a um olhar incauto são demonstrações de “competência”. 7) O desenvolvimento da trama não existe sem problemas. O diretor parece nutrir uma profunda antipatia pelo personagem de Lima Duarte: feio, autoritário, preguiçoso, impotente. Isso torna fria a parte dedicada ao primeiro casamento -não por acaso a mais estetizante delas. O filme cresce muito quando aborda o segundo marido (Garcia), quando não só


se percebe um investimento afetivo maior (da personagem feminina, mas também do diretor), como um belo trabalho no relacionamento entre os dois homens. A entrada em cena do terceiro marido (Luiz Carlos Vasconcelos) é um tanto problemática, já que o diretor custa a definir uma atitude forte dos dois primeiros em relação ao intruso. 8) Se as virtudes deste filme são mais teatrais (atores) e literárias (roteiro, diálogos) do que cinematográficas, isso não se deve a uma deficiência, mas a uma escolha: “Eu Tu Eles” pende mais para o lado da indústria cultural do que para o do cinema. Falta-lhe o horizonte da angústia, “o único do cinema”, segundo Rossellini. Essa ausência será provavelmente uma mão na roda para que “Eu Tu Eles” se torne um sucesso. Não se pode ter tudo. *** Inácio Araújo é um dos principais críticos de cinema do país. Escreve para a Folha de S. Paulo desde a década de 1980. É autor de romances e de uma coletânea de críticas.

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Narradores de Javé Ano de produção: 2003 | Duração: 100’ | Direção: Eliane Caffé | Roteiro: Luis Alberto de Abreu e Eliane Caffé | Direção de fotografia: Hugo Kovensky | Elenco: José Dumont, Nelson Xavier, Matheus Nachtergaele, Rui Resende, Gero Camilo, Luci Pereira, Nelson Dantas, Alessandro Azevedo, Maurício Tizumba, Benê Silva e Altair Lima | Produção: Vânia Catani | Direção de arte: Carla Caffé | Montagem: Daniel Rezende | Som direto: Romeu Quinto | Edição de som: Miriam Biderman | Música: DJ Dolores | Prêmios: Melhor filme no Bogotá Film Festival, melhor filme e melhor roteiro original no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e melhor filme pelo júri popular no Festival internacional do Rio de Janeiro. Sinopse: Somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes do pequeno vilarejo de Javé. É aí que eles se deparam com o anúncio de que a cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidrelétrica. Em 34 resposta à notícia devastadora, a comunidade adota uma ousada estratégia: decide preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos heróicos de sua história, para que Javé possa escapar da destruição. Como a maioria dos moradores são analfabetos, a primeira tarefa é encontrar alguém que possa escrever as histórias. Eliane Caffé - A cineasta, uma das mais reconhecidas autoras do cinema brasileiro contemporâneo, deu início à sua carreira com o curta-metragem “O Nariz”, em 1987, adaptando um texto de Luiz Fernando Veríssimo. Sua estreia em longas-metragens acontece em 1998 com o “Kenoma”, premiado em festivais como Biarritz, Brasília e Miami. “Narradores de Javé”, seu segundo longa, alcança a marca de 17 prêmios. Em 2010 a cineasta lançou “O Sol ao meio-dia”. Principais filmes: O Sol do Meio Dia 2010; Narradores de Javé - 2003; Kenoma – 1998

Invenção e realidade, por Alexandre Werneck Originalmente publicado na Revista Contracampo em 2004 “Narradores de Javé” é um filme sobre muita coisa. Literalmente. É um filme sobre ser sobre muita coisa. Sobre o muito e sobre a multiplicidade de seres. É quase uma taxonomia de verdades, das possibilidades de real de uma mesma história. Há algo de irremediavelmente grego em Eliane Caffé. Kenoma já trazia no ventre essa associação entre palavra lúdica e palavra lembrada que agora explode neste filme. Mas “Narradores” é, mais que isso, um filme importante para o cinema brasileiro, por jogar de maneira (raramente) inteligente com alguns clichês de nosso cinema contemporâneo, sobretudo com um dos maiores deles, o filmar o Nordeste. Mas como todo grande filme, suas várias importâncias se tornam menores diante da importância principal dele, como filme e ponto (o que alimenta todas as outras e


que serve como a grande síntese delas todas). Vamos, então, a “Narradores de Javé”: um filme sobre o muito, dizíamos. A começar, é um filme irremediavelmente marcado pela memória. Tudo do filme deve a ela. As verdades produzidas pelos moradores do vilarejo são compostas de memória. De uma memória mítica, é verdade, na qual a obra se encontra com seu segundo assunto, a fala. A memória é feita na fala, é produzida pela narração. E ambas são ficções aparentes. Afinal, são versões várias que passam diante do ouvinte. Mas são todas, no final das contas, um sistema de influências. E eis o terceiro assunto, aquele do qual o filme faz mais fortemente seu cinema: as memórias do passado são, no fundo, profecias. É no futuro que elas se realizarão, que se realizam. Nesse sentido, todo arcabouço de narrativa se presta a fazer do tempo (epicamente construído) uma massa de modelar, como mesmo a fala é barro nas mãos do povo tagarela e do tagarela-mor, justamente o ouvinte, o carteiro escrevinhador. Javé é ao mesmo tempo um deslugar, no sentido em que se faz fora do tempo e do espaço (como uma Tróia ou uma Atenas míticas, como seu nome bíblico ancestral aponta) quanto é também o lugar de onde se constrói uma noção muito real de verdade. Afinal, é na história que a cidade será inundada e é de sobrevivência real de um povo que se trata. Daí outra ligação com um clichê com que o filme joga ironicamente: o da cidade pequena cheia de tipos. E eis outro assunto do filme: a dramaturgia. O desejo de um discurso sobre o próprio discurso e sobre a dramaturgia desse discurso no cinema é forte ali. As falas são faladas com um tom quase documental, ainda que recorra à ladainha para isso. Em vez de celebrar a verdade com uma dramaturgia realista, o filme se faz verdade por discursar um discurso de mentira com formato quase documental. Nesse sentido, não só a cumplicidade antológica de José Dumont – mais do que apenas um ator, obviamente um artesão do próprio filme –, mas a de todo o elenco, que se escraviza na própria palavra mais do que em qualquer outra expressão. Mas o que talvez mais chame a atenção em “Narradores de Javé” é seu desejo 35 de eternidade. Ao se esgueirar por ali por fora do histórico, pelo campo do mítico, quase do fabular, do fabuloso, o filme joga com passado e futuro não só na narrativa (como já dissemos), mas também em suas próprias ferramentas expressivas. Poucos filmes atuais (não apenas brasileiros) fazem esse trânsito tão bem. Nisso, compõemse bem o Nordeste de Graciliano que pulsa como fantasma nos tipos e no chão árido do filme com o experimentalismo sonoro de um DJ Patife; a fotografia discreta, quase anti-retomadística, clássica mesmo, com a edição cheia de idas e vindas; a estrutura que se dobra sobre si mesma, fazendo com que aquilo que era lenda se torne a própria história com o sistema de falas quase improvisadas e que são ditas como metralhadora giratória. Um salto é necessário: logo no começo, fica-se sabendo que a história de “Narradores de Javé” é, toda ela, uma narração. Narração daquelas que se ouviu de um parente ou vizinho, e que será agora repetida, como uma história que se perde em pedaços, como uma brincadeira de telefone sem fio. E nessa história que teremos que depositar nosso crédito. E essa história mesma será composta a começar pela saga de um mentiroso, de um carteiro banido por ter inventado mentiras e que perambula pela cidade colhendo histórias exageradas dos moradores. Essas anotações, veremos, serão elas mesmas mentiras, falseamentos, dramatizações. Não é de cinema que estamos falando, afinal? *** Alexandre Werneck é sociólogo, doutor em sociologia, mestre em comunicação e professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Jornalista formado pela Escola de Comunicação da UFRJ, trabalhou como repórter e crítico de cinema em veículos como Jornal do Brasil e a revista eletrônica Contracampo.


Lisbela e o Prisioneiro Ano de produção: 2003 | Duração: 106’ | Direção: Guel Arraes | Roteiro: Guel Arraes, Jorge Furtado e Pedro Cardoso | Direção de fotografia: Ulrich Burtin | Elenco: Selton Mello, Débora Falabella, Marco Nanini, Bruno Garcia, Heloísa Périssé, Virginia Cavendish, Tadeu Mello e André Mattos | Produção: Paula Lavigne Direção de arte: Claudio Amaral Peixoto | Montagem: Paulo Henrique Farias | Edição de som: Miriam Biderman | Música: João Falcão e André Moraes Sinopse: Lisbela (Débora Falabella) é uma moça que adora ir ao cinema e vive sonhando com os galãs de Hollywood dos filmes que assiste. Leléu (Selton Mello) é um malandro conquistador, que em meio a uma de suas muitas aventuras chega à cidade de Lisbela. Após se conhecerem eles logo se apaixonam, mas há um problema: Lisbela está noiva. Em meio às dúvidas e aos problemas familiares que a nova paixão desperta, há ainda a presença de um matador (Marco Nanini) que está atrás de Leléu, 36 devido a ele ter se envolvido com sua esposa (Virginia Cavendish). Guel Arraes - Primordialmente diretor de televisão, iniciou no longa-metragem, inclusive, fazendo uma adaptação da série “O auto da Compadecida” para o cinema. Na verdade, o filme é um corte mais enxuto da obra televisiva de mesmo nome. O enorme sucesso abriu-lhe as portas para outras produções, como “Lisbela e o Prisioneiro”, também uma adaptação de uma outra obra sua para TV e uma peça de teatro. Na TV, foi o responsável por programas como TV Pirata, Programa legal e Comédia da Vida Privada, todos de enorme sucesso. Guel Arraes iniciou sua carreira em Paris, no Comitê do Filme Etnográfico dirigido por Jean Rouch, o fundador do Cinema Verdade. Principais filmes: O Bem Amado - 2010; Romance - 2008; Lisbela e o Prisioneiro - 2003; Caramuru - A Invenção do Brasil - 2001; O Auto da Compadecida – 2000

Nordeste Pop, por Érico Borgo Publicado originalmente no site Omelete em 21/08/2003 Egresso da telinha, Guel Arraes conhece bem o gosto do seu público. Nas últimas duas décadas dirigiu produções televisivas como telenovelas e seriados (entre eles os antológicos Armação Ilimitada e TV Pirata) e experimentou o sucesso cinematográfico pela primeira vez em 1999, quando a minissérie O Auto da Compadecida foi reeditada e lançada em circuito nacional. Um ano depois, a experiência rendeu mais um fruto no mesmo formato: Caramurú - A Invenção do Brasil. E em 2002, finalmente começou a rodar aquele que seria seu primeiro projeto efetivamente desenvolvido para a tela grande: Lisbela e o Prisioneiro.


A adaptação da obra de Osman Lins já havia sido transformada em um especial para a TV em 1993 e, posteriormente, ganhou nova montagem teatral que rodou o país. Como diretor da peça, Arraes pôde observar as reações da platéia durante as apresentações, usando o público como cobaia para o seu futuro filme e selecionando as melhores partes. Escolher o elenco para o longa foi fácil. Formado basicamente pela trupe dos palcos, a mudança mais substancial foi na hora de chamar artistas com maior apelo comercial para os papéis principais. Entram em cena, então, Selton Mello (O auto da compadecida) e Debora Falabella (Dois Perdidos Numa Noite Suja). O resultado é uma divertida comédia romântica ambientada no que o diretor chamou de “nordeste pop”: a Zona da Mata pernambucana e seu sonoro universo multicolorido de costumes e sotaques. No filme, assim como aconteceu em O auto da compadecida, os tipos marcantes e o humor físico têm espaço, contudo, Lisbela e o prisioneiro também alterna momentos de poesia, aventura, homenagens ao cinema e romance. Não é a toa que a sessão-teste com audiência selecionada, pela primeira vez realizada no Brasil, deu uma excepcional aceitação de 80% ao filme. Há elementos para todos os gostos ali. A dama e o vagabundo Lisbela e o prisioneiro conta a divertida história do malandro, aventureiro e conquistador Leléu (Mello), e da mocinha sonhadora Lisbela (Falabella), que adora ver filmes americanos e sonha com os astros do cinema. Leléu é um trambiqueiro viajante. Ele tem um caminhão lotado de tranqueiras. Em cada parada que chega ele assume uma persona: vendedor de tônico, profeta, dono do stand da Monga... Seus objetivos são simples, lucro fácil e meninas bonitas. Sua última conquista foi Inaura (Virginia Cavendish). Porém, a fogosa mulher é casada com Frederico Evandro (Marco Nanini, com cara de Waldick Soriano), matador por 37 profissão e marido traído, que sai no encalço do trambiqueiro decidido a vingar-se. Lisbela está noiva e de casamento marcado quando Leléu chega à cidade. A moça de família e o galanteador ficam subitamente apaixonados depois de um fortuito encontro e passam a ter de lidar com a oposição do pai de Lisbela (André Matos), tenente de polícia da cidade, e do agora ex-noivo da garota, o playboy Douglas (Bruno Garcia, ótimo). A situação se complica ainda mais quando o mais novo cornudo da região decide contratar um matador para livrar-se do rival. E adivinhe quem é o gatilho mais rápido da cidade? Prepare-se para muitas reviravoltas e surpresas, que só vão terminar depois do final dos créditos. Com uma trilha sonora competentíssima - que mistura estilos e intérpretes com um resultado rico e inovador -, fotografia primorosa, figurinos e atuações impecáveis, Lisbela e o prisioneiro cumpre a proposta de seu diretor: apresenta um digno exemplar do cinema popular brasileiro, que deve encantar a grande maioria dos espectadores.

*** Érico Borgo é designer gráfico e um dos criadores do Omelete, empresa líder no segmento de cultura pop no Brasil. Atualmente trabalha no desenvolvimento da CCXP - Comic Con Experience, primeiro evento do gênero no pais, inspirado nas grandes convenções internacionais que reúnem estúdio, fabricantes, lojistas e fãs.


Cinema, Aspirinas e Urubus

Ano de produção: 2004 | Duração: 90’ | Direção: Marcelo Gomes | Roteiro: Karim Ainouz, Paulo Caldas e Marcelo Gomes | Direção de fotografia: Mauro Pinheiro Jr. Elenco: João Miguel, Peter Ketnath, Veronica Cavalcanti, Daniela Câmara, Paula Francinete e Hermila Guedes | Produção: Maria Ionescu | Direção de arte: Marcos Pedroso | Montagem: Karen Harley | Som direto: Márcio Câmara | Edição de som: Beto Ferraz | Música: Tomaz Alves Souza | Principais prêmios: Prêmios da crítica 38 e do júri no Festival Internacional de São Paulo, Prêmio Especial do Júri no Festival Internacional do Rio de Janeiro e Melhor Filme Ibero-americano no Festial Mar del Plana. Sinopse: Em 1942, no meio do sertão nordestino, dois homens vindos de mundos diferentes se encontram. Um deles é Johann (Peter Ketnath), alemão fugido da 2ª Guerra Mundial, que dirige um caminhão e vende aspirinas pelo interior do país. O outro é Ranulpho (João Miguel), um homem simples que sempre viveu no sertão e que, após ganhar uma carona de Johann, passa a trabalhar para ele como ajudante. Viajando de povoado em povoado, a dupla exibe filmes promocionais sobre o remédio “milagroso” para pessoas que jamais tiveram a oportunidade de ir ao cinema. Aos poucos surge entre eles uma forte amizade. Marcelo Gomes - Iniciou o seu contato com o cinema participando de um cineclube criado por ele próprio em Recife. No início da década de 1990 foi estudar cinema na Inglaterra. De volta ao páis fundou a produtora Parabólica Brasil ao lado de Cláudio Assis e Adelina Pontual. É dele o curta-metragem “Maracatu, Maracatus”, ganhador de três prêmios no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Sua estreia nos longasmetragens acontece com “Cinema, Aspirinas e Urubus”, que teve grande repercussão. Em 2012 lançou “Era Uma Vez Eu, Verônica”, que faturou sete candangos no Festival de Brasília. Principais filmes: O Homem das Multidões - 2013; Era Uma Vez Eu, Verônica - 2012; Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo - 2009; Cinema, Aspirinas e Urubus – 2004


Perdendo países, por Aristeu Araújo Originalmente publicado em dezembro de 2005 Se viajar é perder países, como dizia Pessoa, partir é entrar em luto. Deixar as raízes culturais, abandoná-las para só encontrá-las em si mesmo, na memória e na nostalgia. “Cinema, Aspirinas e Urubus”, longa-metragem de estréia do pernambucano Marcelo Gomes, trata do encontro de dois viajantes: Ranulpho, que deixa o pequeno povoado em que mora no sertão, e Johann, alemão que cruza as estradas de terra do interior pernambucano. Ranulpho quer chegar ao Rio de Janeiro, terra prometida; Johann dirige um caminhão e vende aspirinas nas cidades onde para. No Sertão de Marcelo Gomes, o Sol e a noite cegam. Mis-en-scène de um Nordeste arcaico, que pouco sabia da Segunda Guerra noticiada pelo rádio. Metáfora do próprio encontro de dois viajantes tão distantes e próximos. Em 1942 Ranulpho desistia do Sertão do mesmo modo que Johann já havia desistido de sua Alemanha nazista. Dois personagens em metamorfose, perdendo pequenos países próprios. O primeiro plano de “Cinema, Aspirinas e Urubus” é didático e chave para o entendimento da jornada dos dois personagens. Um primeiro plano totalmente branco, extenso, que pouco a pouco vai nos mostrando detalhes de um retrovisor de um veículo e de seu motorista, como se os olhos imersos no escuro do cinema precisassem de tempo para se acostumar à claridade seca daquela região. Um alemão que está perdido pelas estradas esburacadas, que trava contato com sertanejos curiosos por ver um veículo, por ver um estrangeiro: um pequeno recorte da industrialização que começava a se espalhar pelo país de Getúlio Vargas. É aí que 39 se dá o encontro dos dois protagonistas. Inicia-se o road-movie de Marcelo Gomes, mesmo sendo esse um road-movie estranho. Um filme de estrada em que a câmera não acompanha a geografia, mas prefere ficar presa a seus personagens, na sombra da boleia do caminhão e próxima às velas e lamparinas que lutam contra a noite. O Sertão de Aspirinas é tão seco e duro que é pouco visto. É tão arisco, que não é permitido vê-lo em sua totalidade. As imagens surgem sempre esbranquiçadas, quase monocromáticas. Tudo é cor de terra. “Cinema, Aspirinas e Urubus” surge para romper com um naturalismo-classemédia que reina na dita retomada pós Collor, surge como um paradigma desse cinema contemporâneo brasileiro. Ao lado de “Amarelo Manga” e “Baile Perfumado”, ratifica o frescor criativo pernambucano e põe seu nome na História do cinema brasileiro. Mais a fundo, o filme de Marcelo Gomes trata não apenas do luto que é deixar suas raízes, mas da busca de uma nova identidade para aquele que se exila. Por isso é tão importante o encontro do alemão e do sertanejo, porque é no embate com o diferente que vai se delinear o novo ser que nasce. Se a viagem é a perda de países e, do mesmo modo, uma forma subjetiva de morte, o encontro é um renascer modificado, é também um exercício de alteridade. Talvez por isso, os road-movies carreguem consigo o clichê de ser uma metáfora para a transformação ou redenção de seus personagens, de redescoberta. E as redescoberta acontecem para os personagens à medida que vão exibindo seu cinema publicitário aos sertanejos; à medida que estreitam laços de cumplicidade e


descobrem no outro um laço de vida e suporte. É um filme em que tudo isso é dito sem muitas palavras, na lentidão do seu tempo diegético e na força física de suas atuações. É dito quando um povo de uma pequena cidade se assombra e se encanta com a primeira projeção cinematográfica de suas vidas (improvisada, ao ar livre). É dito nos muitos silêncios dos personagens.

*** Aristeu Araújo é curador da mostra Ser Tão Pop. Crítico de cinema e cineasta, tem no currículo seis curtas-metragens, entre eles “Naquela Noite Ele Sonhou com Um Mar Azul” e “Por que Corro?”.

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Árido Movie Ano de produção: 2005 | Duração: 115’ | Direção: Lírio Ferreira | Roteiro: Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Eduardo Nunes e Sérgio Oliveira | Direção de fotografia: Murilo Salles | Elenco: Guilherme Weber, Giulia Gam, José Dumont, Mariana Lima, Selton Mello, Gustavo Falcão, Matheus Nachtergaele, Aramis Trindade, Luiz Carlos Vasconcelos, Maria de Jesus Bacarelli, Suyane Moreira, Renata Sorrah, Paulo César Pereio, José Celso Martinez Corrêa e Magdale Alves | Produção: Murilo Salles e Lírio Ferreira | Direção de arte: Renata Pinheiro | Montagem: Vânia Debs | Edição de som: Virginia Flores | Principais prêmios: Melhor filme e melhor diretor no CinePE. Sinopse: Jonas (Guilherme Weber) é o repórter do tempo de uma grande rede de TV, que mora em São Paulo mas está rumo à sua cidade-natal, localizada no interior do nordeste. O motivo é a morte de seu pai (Paulo César Pereio), com quem 41 teve pouquíssimo contato e que foi assassinado inesperadamente. Jonas enfrenta problemas para chegar à cidade, até que recebe carona de Soledad (Giulia Gam), uma videomaker que está fazendo um documentário sobre a água no sertão. Ao chegar ele encontra uma parte da família a qual não conhecia até então, que lhe cobra que se vingue da morte do pai. Lírio Ferreira - Antes de iniciar sua carreira em longas-metragens também com o filme “Baile Perfumado”, Lírio Ferreira foi diretor de curtas e videoclipes, trabalhando junto a diversos artistas. Lançou ao todo cinco longas-metragens, com destaque para os filmes “Cartola – Música para os Olhos”, codirigido com Hilton Lacerda, e “Árido Movie”, que levou seis troféus do CinePE Festival Audiovisual, entre eles os de Melhor Filme e Melhor Diretor. Neste ano de 2014, está lançando seu novo trabalho, “Sangue Azul”. Principais filmes: Sangue Azul – 2014; O Homem que Engarrafava Nuvens – 2009; Cartola - Música Para os Olhos – 2007; Árido Movie – 2005: Baile Perfumado – 1997

Esse filme é um barato, por Carlos Alberto Mattos Publicado originalmente no site Crítico em 25/04/2006 Numa passagem do Novo Testamento, do alto de uma montanha o demônio aponta a extensão do Universo e oferece a Cristo: “Tudo isto será Teu se te prostrares diante de mim”. Em “Árido Movie”, temos uma curiosa variante dessa parábola. Jonas, filho desgarrado de Lázaro, volta ao interior de Pernambuco para o enterro do pai e é confrontado pela lógica das vendetas familiares: “Você tem a ver com isso, sim senhor. Tudo isso é seu, mesmo que não queira”, impõe-lhe a voz do matriarcado.


A aproximação bíblica é apenas um dos muitos “textos” que se entrelaçam nesse suculento banquete de ideias cinematográficas. Diametralmente oposta à secura do ambiente sertanejo, a fartura de sugestões temáticas transforma o filme de Lírio Ferreira em novo jorro de criatividade e competência no cinema brasileiro recente. O excesso aqui é benéfico porque quase nada se perde na poeira do caminho. A água e a maconha funcionam como fios condutores que ligam Jonas, o “homem do tempo” na TV de São Paulo, às relações de poder de sua família nordestina, à fertilidade ocasional do sertão, à tragédia étnica dos índios, à apropriação do tema pela arte chique paulista e à piração dos seus três amigos pelas estradas do deserto e da caatinga. Surpreende que o roteiro, escrito a oito mãos, sustente os nexos de maneira ao mesmo tempo tão clara e sutil. Porque nada aqui é dado pronto ao espectador. É preciso minimamente somar, subtrair, deduzir – enfim, dar tratos à inteligência para montar a rede que se estende entre as personagens. A água, mãe de toda prole, está quase ausente das vistas, mas obsessivamente presente no imaginário de todos. Ela sinaliza o lado concreto da aventura, os projetos de cada um, sejam eles de trabalho, de morte ou de amor. O fumo, pai de todo de-lírio, é o que está quase sempre à mão, respondendo não só pelo desbunde de alguns, mas pela alucinação que parece permear toda essa estranha história de náufragos a seco. O ambiente engole o homem, cada um a sua maneira. Jonas faz seu estágio no ventre da baleia da família. O impagável trio de doidões fuma o sertão inteiro. O índio Jurandir paga o preço de desafiar a ordem coronelista. A pesquisadora Soledad faz do Nordeste o seu parangolé virtual. Não é de “Árido Movie” que se deve esperar ordem e método convencionais. Nem a relativa “certeza” de uma origem documental. Tudo é construção deliberada e afinação pelo humor. A linguagem e os sotaques são goma lúdica na boca dos atores. Nem mesmo a fotografia de Murilo Salles (também produtor do filme) comunga com 42 a tradição da “imagem sertaneja” no cinema brasileiro: é plúmbea, lunar, descorada – e magnífica. Como um fantasma, insinua-se aqui e ali a lembrança dos road movies dementes de Oliver Stone (“Assassinos por Natureza” e, especialmente, “Reviravolta/UTurn”), onde conviviam o gênero e seu comentário simultâneo. A pegada surrealista sugere que vejamos o filme com olhos ao mesmo tempo fascinados e incrédulos. Pois tudo tem o seu oposto. “Árido Movie” nos diverte, intriga e empurra para a frente. É um filme químico. De reação imediata. E tomara que permanente.

*** Carlos Alberto Mattos é crítico de cinema desde 1978, tendo passado pela Tribuna da Imprensa, Isto É, O Pasquim, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, O Globo e pelo web site NO. É autor dos livros “Walter Lima Júnior – Viver Cinema” e “Eduardo Coutinho – O Homem que Caiu Na Real”, entre outros.


A Máquina Ano de produção: 2005 | Duração: 90’ | Direção: João Falcão | Roteiro: Adriana Falcão e João Falcão | Direção de fotografia: Walter Carvalho | Elenco: Paulo Autran, Gustavo Falcão, Mariana Ximenes, Fabiana Karla Val Perré, Prazeres Barbosa, Osvaldo Mil, Cristiane Ferreira, Fernanda Beling, Aramis Trindade, Edmilson Barros, Karina Falcão, Fabricio Oliveira, Mariz, Felipe Koury e Zéu Britto | Produção: Diler Trindade | Direção de arte: Marcos Pedroso | Montagem: Natara Ney | Edição de som: Maria Muricy | Música: Chico Buarque de Hollanda, Robertinho do Recife e DJ Dolores | Principal prêmio: Melhor Filme pelo Júri Popular no Festival Internacional do Rio de Janeiro Sinopse: Em Nordestina, cidadezinha perdida no sertão, “Karina da rua de baixo” (Mariana Ximenes) sonha em ser atriz e partir para o mundo. Antes que seu amor lhe escape, “Antônio de Dona Nazaré” (Gustavo Falcão) adianta-se numa 43 cruzada kamikaze para trazer o mundo até Karina. Uma história em que os sonhos contradizem a realidade, as condições geográficas e políticas ameaçam conter a vida, e o amor desempenha o papel de elemento transformador. João Falcão - Predominantemente dramaturgo e roteirista, João Falcão estreou na direção de longas-metragens com o filme “A Máquina”, em 2005. Para a televisão, roteirizou a adaptação de “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, alguns episódios do seriado “A comédia da vida privada”. É, ainda, roteirista de outros diversos filmes, como “O Coronel e o Lobisomem”, direção de Maurício Farias. Principais filmes: Fica Comigo Esta Noite – 2006; A Máquina – 2005

A Máquina simples e mágica, por Pablo Villaça Publicado originalmente no site Cinema em Cena em 24/03/2006 É maravilhosa, a sensação de apaixonar-se por um filme. E foi isto que aconteceu quando saí da sessão na qual assistira a A Máquina: percebi que havia sido encantado de tal forma pela magia da história concebida por Adriana Falcão que, assim que cheguei em casa, não resisti à tentação de publicar o seguinte comentário em meu blog: “A Máquina se tornará o primeiro longa brasileiro a vencer o Oscar (de Melhor Filme Estrangeiro).Anotem aí: 21 de Março de 2006, às 23:40. Fui o primeiro a cantar a pedra.” Em menos de dois dias, o comentário já havia gerado discussões não apenas no blog, mas nos fóruns do Cinema em Cena, no Orkut e havia até mesmo chegado aos ouvidos do cineasta João Falcão – e o que era para ser apenas uma entusiasmada


declaração de amor acabou ganhando contornos de previsão amalucada e obviamente precipitada. Há muitos fatores que interferem numa premiação deste tipo – e nem todos dizem respeito à qualidade do filme: há a política da escolha de nosso representante; há o desafio de se ter uma distribuidora internacional disposta a gastar milhões de dólares; e há, finalmente, a necessidade imperativa de arquitetar uma campanha publicitária que atraia a atenção da Academia. Tudo isso por uma estatueta que, embora represente uma honra, é um mero detalhe na carreira de um filme brilhante como A Máquina, que será lembrado e admirado vencendo ou não o Oscar. Dito isso, explico por que realmente o considero um forte candidato: com um roteiro inteligente e bem-humorado escrito por Adriana e João Falcão (a partir do livro da primeira), A Máquina conta uma história que, apesar de ter apelo universal (é, afinal, uma história de amor), traz um regionalismo inegável que lhe confere charme e o distingue de tantos outros que poderiam julgar-se similares. E, ainda mais encantador, o filme conta sua fábula através de trama e diálogos agradavelmente poéticos, mas jamais enfadonhos. Para explicar por que os habitantes da pequena cidade de Nordestina insistem em abandoná-la, a jovem Karina (Ximenes) justifica: “Porque aqui não tem recursos!” – ao que seu pai retruca: “E por que não mandam recursos para cá?”. “Porque tá todo mundo indo embora!”, é a resposta final da moça, numa lógica perversa, irônica e irrefutável. Karina, como tantas moças sonhadoras do interior de um país miserável, sonha em ir para a “cidade grande” e tornar-se atriz de novela. Enquanto não atinge a maioridade que a libertará, ela ensaia pequenas cenas românticas ao lado de Antônio (Gustavo Falcão), que mal consegue conter sua paixão pela garota. Ele, no entanto, não tem o menor desejo de abandonar Nordestina e, para evitar que a amada parta, decide trazer o mundo até a cidadezinha – numa jornada que envolverá viagens no tempo, atrairá a atenção de toda a mídia sensacionalista e poderá lhe custar a vida. 44 Aliás, a aventura de Antônio está situada, de fato, em um passado distante, já que acompanhamos sua trajetória através da narração de um homem já idoso (Autran) que, em um hospício, prende a atenção de seus companheiros internos através de sua fascinante narrativa – que, como toda prosa mitológica que se preze, começa lá atrás, na própria gênese do universo (aqui, conhecemos a “motivação” de Deus ao criar o mundo). Demonstrando um imenso carinho pelas palavras, o roteiro jamais se cansa de demonstrar seu talento em utilizá-las como simples brincadeiras sonoras (“Que tempo era esse, ora essa?”), ironias semânticas (“Segurança era o cara que ganhava para deixar o outro camarada inseguro.”) ou mesmo para fazer incisivos comentários sobre uma cultura fragilizada pela obsessão com o sucesso imediato e efêmero (ao definir “clipe”, o narrador explica que eram “filmezinhos que ninguém precisava entender” e que “faziam sucesso no mês de setembro”, ou algo no gênero). Da mesma forma, A Máquina reforça esta crítica ao trazer Wagner Moura (obviamente inspirado em João Kléber) como o apresentador de um programa de tevê cujo conceito representa, ainda que de forma satírica, o objetivo absoluto de todas as produções do gênero: a busca ilimitada, sem preocupações éticas, pela maior audiência possível – algo que transforma a conseqüência (o “ibope” alto) em sua própria causa (os participantes têm um minuto para... aumentar o “ibope”). Mas não são apenas os diálogos e as idéias de A Máquina que transformam o filme em uma experiência única; estes nada seriam se não encontrassem uma representação visual adequada – e, neste sentido, a direção do estreante João Falcão surpreende pela coragem. Para retratar Nordestina, por exemplo, o cineasta (auxiliado pelas brilhantes direção de arte e cenografia) cria um ambiente auto-contido que, assim como em Dogville, traz a cidade como um lugarejo que parece não ter nada além de seus limite externos, já que suas fronteiras estão sempre mergulhadas na escuridão ou tomadas por um azul intenso (dependendo do momento do dia), sem jamais revelarem


indícios da existência de um mundo além da cidade, o que reforça seu isolamento total, transformando-a, como acredita Karina, em uma quase prisão. E não é só: trabalhando ao lado de um dos melhores diretores de fotografia do país, Walter Carvalho, o diretor cria uma série belíssima de imagens, como o diálogo entre Karina e Antônio por trás de um relógio estilizado, vistos em contraluz, ou a cena em que dona Nazaré (Fabiana Karla, fantástica) tira uma foto com seus dois filhos caçulas, utilizando grandes retratos como substitutos de seus outros 11 filhos que já partiram de Nordestina. Além disso, A Máquina se mostra inventivo e inteligente mesmo nos momentos mais simples: quando o protagonista participa de um programa de tevê, acompanhamos seu discurso em uma montagem enquadrada por inúmeros aparelhos de televisão, o que, além de conferir dinamismo a uma cena que se limita a um longo monólogo, cumpre o importante propósito narrativo de ilustrar a audiência crescente atingida por Antônio. Contando com um elenco impecável (desde o veterano Paulo Autran até o jovem Gustavo Falcão, passando por uma Mariana Ximenes adorável), A Máquina ainda vence o desafio auto-imposto de encontrar uma solução para o dilema fascinante de Antônio, que deve provar a ocorrência de uma viagem no tempo que parece jamais ter acontecido – e a resposta apresentada pelo roteiro é como o próprio filme: simples, mágica, contundente e linda.

*** Pablo Villaça é crítico cinematográfico e editor do Cinema em Cena, fundado por ele em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema e Replicante, e é atualmente colaborador do quadro Ponto Crítico da revista Set. Também é professor de 45 Linguagem & Crítica Cinematográficas.


O Céu de Suely Ano de produção: 2006 | Duração: 88’ | Direção: Karim Aïnouz | Roteiro: Karim Ainouz, Felipe Bragança e Mauricio Zacharias | Direção de fotografia: Walter Carvalho | Elenco: Hermila Guedes, Maria Menezes, Zezita Matos, João Miguel, Georgina Castro, Claudio Jaborandy, Marcelia Cartaxo, Flavio Bauraqui, Matheus Vieira e Gerkson Carlos | Produção: Thomas Häberle, Hengameh Panahi, Mauricio 46 Andrade Ramos, Peter Rommel e Walter Salles | Direção de arte: Marcos Pedroso | Montagem: Tina Baz e Isabela Monteiro de Castro | Som direto: Leandro Lima | Edição de som: Waldir Xavier | Música: Berna Ceppas e Kamal Kassin | Principais prêmios: Primeiro Prêmio Coral no Festival de Havana e os prêmios de Melhor Filme e Melhor Diretor no Festival Internacional do Rio de Janeiro. Sinopse: Hermila (Hermila Guedes) é uma jovem de 21 anos que está de volta à sua cidade-natal, a pequena Iguatu, localizada no interior do Ceará. Ela volta juntamente com seu filho, Mateuzinho, e aguarda para daqui a algumas semanas a chegada de Mateus, pai da criança, que ficou em São Paulo para acertar assuntos pendentes. Porém o tempo passa e Mateus simplesmente desaparece. Querendo deixar o lugar de qualquer forma, Hermila tem uma ideia inusitada: rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro suficiente para comprar passagens de ônibus para longe e iniciar nova vida. Karim Aïnouz - O cineasta tem um pé no Brasil e outro fora do país. Iniciou sua carreira cinematográfica nos Estados Unidos, onde cursou mestrado em teoria e história do cinema pela New York University no início dos anos 1990. Hoje reside em Berlim, na Alemanha, cidade cenário de seu mais novo filme, “Praia do Futuro”. Em 2002 estreou nos longas-metragens com o aclamado “Madame Satã”, vencedor de mais de vinte prêmios internacionais. “O Céu de Suely” é o seu segundo longametragem. Além de diretor, tem atuado como roteirista, participando da escrita de filmes como “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Cidade Baixa”. Em 2009, Aïnouz lançou o seu terceiro longa, com codireção de Marcelo Gomes, “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo”. Antes do mais recente filme, ainda viria “Abismo Prateado”, obra baseada em música de Chico Buarque de Holanda. Principais filmes: Praia do Futuro – 2014; O Abismo Prateado – 2011; Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo – 2009; O Céu de Suely – 2006; Madame Satã - 2002


Corpo valioso, por Paulo Santos Lima Publicado originalmente na Revista Cinética em setembro de 2006 O Céu de Suely começa com imagens captadas em Super 8, acompanhadas da narração em off da protagonista, que em tom poético-literário dá contornos românticos à cena, que mostra seu homem e ela brincando. Os tons remetem a um filme caseiro, ou, mais ainda, àquelas fotografias tiradas nos anos 70, aquelas guardadas preciosamente no álbum de família, reservas idílicas de férias que o tempo tratou de tornar ideais. Convidando ao saudosismo, é quase um ponto de partida irônico para aquilo que este extraordinário filme vai discorrer. Ponto de partida, não introdução, porque aquela imagem, de fato, é para ficar num álbum. O que detona o processo dramático do filme está uns 20 minutos à frente, e essa primeira seqüência, portanto, é apenas uma data que só tem sentido como imagem – imagem cinematográfica, no caso. E assim que Hermila toma ciência de que o projeto que tinha com seu marido foi abortado, ela dá as costas para o sonho colorido e tenta seguir em frente com novas regras do jogo. É a lógica do cinema de Karim Aïnouz. Hermila, assim, é como o João Francisco dos Santos de Madame Satã. Ambos lutam contra as adversidades de um mundo cruel com aqueles que nele sobrevivem. Improvisam escudos de defesa, forjam armas para espadar as ameaças. Conscientes de sua dignidade, lutam por sua manutenção. João Francisco dos Santos luta contra uma ordem de valores segregacionistas para se firmar como negro, homossexual, malandro da Lapa e artista, ou seja, ser o Madame Satã. Mas enquanto a condição natural (econômica, social etc) fecunda a revolta de Madame para ele então firmar sua identidade, Hermila trabalha na correnteza oposta: ela trapaceia sua identidade para arranjar dinheiro e assim sair do sertão cearense para o sul (e quem sabe um dia levar seu filho, tia e avó). Hermila e João dos Santos são a mesma pessoa, uma vez que primeiramente se lutou pela identidade para então, logo 47 depois, trabalhar na lógica do mundo, que (não há como fugir disso) é econômica. Hermila é a atriz Hermila Guedes. Mesmo nome, uma nascida da outra, o que garante a maior e mais intocável certeza do filme: seu corpo, único, dramático, com uma assinatura que garante o singular de sua identidade – os cabelos avermelhados e com mecha loira. A câmera de Karim continua fiel à essência das ações, usando elipses que deixam o instante encenado em estado de pureza, o que faz nossos olhos terem maior atenção ao que permanece imutável: a presença de corpos nos espaços. É, também, como se o os fragmentos fossem a parte do todo, que é o plano-sequência. O corpo será o instrumento de Hermila para viabilizar o seu salto no escuro, que é retornar para o sul do país. Ela vende uma rifa cujo prêmio, “uma noite no paraíso”, será uma (única) noite de amor com a mesma. Não podendo mudar de corpo, muda de identidade, ou melhor, ficcionaliza-se, virando Suely. Corpo valioso, o de Hermila (atriz/personagem), e por isso a câmera (na mão), sempre que enquadra dois personagens, mantém o foco fiel à sua mulher. Apesar do vigor em ir escalando vivências no correr da história – algo bem traduzido pela montagem soberba -, as manobras de Hermila serão para um destino incerto. Incerto porque maior, existencial. Isso está no plano final do filme, primo do também take final de O Anjo Nasceu, de Bressane, com uma estrada cujo fim está para além da tela. Plano alongado – porém bem mais ligeiro que o de 1967, pois o filme de Karim Aïnouz está interessado no movimento, no avanço, e não numa estrada vazia, desolada, longe daquelas fotos e, pior, sem a presença de Hermila *** Paulo Santos Lima é crítico de cinema e jornalista. É crítico da Revista Cinética, colaborador do jornal Valor Econômico e da revista Monet. Fez curadoria de mostras como “O cinema francês pós-Nouvelle Vague” e “Do curta ao longa - A criação autoral no cinema paulista da retomada”, no CCBB.


O fim e o Princípio

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Ano de produção: 2006 | Duração: 110’ | Direção: Eduardo Coutinho | Roteiro: Eduardo Coutinho | Direção de fotografia: Jacques Cheuiche | Produção: João Moreira Salles e Mauricio Andrade Ramos | Montagem: Jordana Berg | Som: Bruno Fernandes e José Luiz Sasso | Principal prêmio: Melhor documentário no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro Sinopse: Sem pesquisa prévia, sem personagens, locações nem temas definidos, uma equipe de cinema chega ao sertão da Paraíba em busca de pessoas que tenham histórias para contar. No município de São João do Rio do Peixe a equipe descobre o Sítio Araçás, uma comunidade rural onde vivem 86 famílias, a maioria ligada por laços de parentesco. Graças à mediação de uma jovem de Araçás, os moradores - na maioria idosos - contam sua vida, marcada pelo catolicismo popular, pela hierarquia, pelo senso de família e de honra. Eduardo Coutinho - Eduardo Coutinho foi um dos documentaristas mais importantes da história do cinema brasileiro. É autor do obrigatório “Cabra Marcado para Morrer”, filme que ganhou prêmio da crítica internacional do Festival de Berlim, entre outros. As filmagens de “Cabra...” tiveram início em 1964, mas não seguiram adiante, interrompidas pelo golpe militar. Coutinho o concluiu apenas em 1984. Começou sua carreira sendo gerente de produção, em 1962, do longa-metragem “Cinco Vezes Favela”. Foi corroteirista de “A Falecida”, de Leon Hirszman. Durante a década de 1980 dirigiu diversos documentários para o programa Globo Repórter, renovando a linguagem televisiva da época. A partir de 1987, com o filme “Santa Marta - Duas Semanas no Morro”, passa a se dedicar à direção de documentários. “Edifício Master”, em 2002, faz grande repercussão entre crítica e público e ganha o troféu de melhor documentário no Festival de Havana. O seu último longa, “As Canções”, foi lançado em 2011. Principais filmes: As Canções - 2011; Moscou - 2009; Jogo de Cena - 2007; O Fim e o Princípio - 2006; Peões - 2004; Edifício Master - 2002; Babilônia 2000 - 1999; Santo Forte - 1999; Boca de Lixo - 1993; Santa Marta - Duas Semanas no Morro - 1987; Cabra Marcado Para Morrer - 1985

Nunca ouvimos tanto a voz de Coutinho, por Cléber Eduardo Publicado originalmente na revista Contracampo Quando a voz de Eduardo Coutinho, no início de O Fim e o Princípio, anuncia a proposta do filme, estamos com as regras dadas. Diz o diretor que quer histórias: não importa quem as conte, desde que, seguindo o modelo de seus filmes, o narrador seja performático. Seguindo um método apenas parcialmente aleatório, escolhe uma cidade da Paraíba como endereço de sua viagem. Tanto faz se encontrará de cara au-


to-narradores, como quer, ou se passará o filme inteiro procurando por eles. O Fim e O Princípio começa, assim, como uma aventura – mas com resultado garantido. Cria um solo de acasos para depois tentar atravessá-lo; mas, se não atravessar, torna-se um filme prisioneiro desses acasos. Nunca um filme de Coutinho, desde Cabra Marcado para Morrer, tematizou tanto seu próprio processo. Começamos a nos relacionar com as imagens já sabendo que, para o bem ou para o mal, essas são sobre a procura de um diretor por seu material. Essa procura dá uma engasgada no começo, mas, depois de eleger uma moradora de um povoado no sertão como “relações públicas” nos contatos iniciais com os entrevistados, Coutinho encontra seu filme: um ou outro resiste a falar, mas, aos poucos, vão se revelando. Contam da infância com enxada na mão, sobre os namoros e casamentos, até demonstrarem medo, ou ao menos consciência, da morte não tão distante. A maioria dos entrevistados é de pessoas idosas. Dois deles acreditam que, quando o filme estiver pronto e Coutinho retornar lá para exibi-lo, já não estarão vivos para assistir. O próprio diretor, incorporando a dúvida dos entrevistados, vacila em uma despedida: “Se pudermos voltar aqui.....”. Se revela em mais de um momento que os sertanejos têm pensamentos sólidos sobre a vida, praticando uma filosofia na qual os conceitos são fundidos à experiência real, O Fim e O Princípio expõe, antes de mais nada, a postura de seu diretor em seu espaço de filmagem. Nunca ouvimos tanto a voz de Coutinho, nunca ele teve de intervir tanto para arrancar palavras dos interlocutores, nunca sua respiração foi tão audível, nunca o jogo foi tão invertido. Se no final de Peões, ele era questionado se queria ser peão, respondendo com uma negativa, agora a inversão é mais complexa. Quando um dos entrevistados passa a ser entrevistador, perguntando se o diretor acredita em Deus, Coutinho tenta escapar com meia resposta. Diz que a questão, claro, é muito complexa. Dentro de seu esquema de realização, essa fuga da resposta é necessária. Escreve-se muito que, se Coutinho extrai ótimos depoimentos, como nenhum outro diretor de filmes-conversas ou filmes-entrevistas, é por conta de suas perguntas. 49 Ele saberia interrogar na hora certa e a questão precisa. Talvez seu ponto forte, mais que perguntar, seja a habilidade para ouvir. Mais importante que suas intervenções, às vezes até banais, às vezes engasgadas, é sua disponibilidade para escutar. Talvez seja essa generosidade de dar voz sem inquerir demais que conquiste a confiança de seus entrevistados. E parte desse êxito é fruto da capacidade do diretor ser uma folha em branca na qual as pessoas escrevem com suas vozes. Por isso, Coutinho, quando perguntado se acredita em Deus, escapa. Responder seria criar uma significação para si, preencher a folha em branco e contaminar a relação com quem fala. Mantendo-se ainda mais como um ouvido que como entrevistador propriamente dito, mesmo nesse filme tão próximo dele quanto de seus interlocutores, Coutinho vai colhendo os frutos da intimidade instantânea. Toda a força emotiva de O Fim e O Princípio surge, acima de tudo, pelo caráter aleatório daqueles encontros. Quando um afeto brota em suas relações temporárias e funcionais, já está na hora da equipe sair dali e romper os laços recém-criados. Essa ausência garantida de antemão, mais que a presença (de equipe, diretor, entrevistados), ressalta a impressão de finitude. Alguns intuem que jamais verão Coutinho. Esse “jamais”, queira-se ou não, tem estatuto de morte. De um nunca mais. De um desaparecimento. Quando o diretor vai se despedir, portanto, há uma despedida maior ali. Não se trata de um “até logo”, mas de um “adeus”, ao menos até a vida prove em contrário. Mas um adeus que, quando chega às telas, “bergsonianamente”, presentifica os encontros do passado, fazendo da memória uma eternização, portanto, parte de todos os presentes a serem vividos. *** Cléber Eduardo é jornalista, formado em ciências sociais e crítico de cinema. Foi crítico de cinema da revista Época por oito anos. Escreveu para a revista eletrônica Contracampo e editou a Revista Cinética.


Mutum Ano de produção: 2007 | Duração: 95’ | Direção: Sandra Kogut | Roteiro: Ana Luiza Martins Costa e Sandra Kogut | Direção de fotografia: Mauro Pinheiro Jr. | Elenco: Thiago da Silva Mariz, Wallison Felipe Leal Barroso, Maria Juliana Souza de Oliveira, Brenda Luana Rodrigues Lima, João Vitor Leal Barroso, João Miguel, Izadora Fernandes, Rômulo Braga, Paula Regina Sampaio da Silva, Maria das Graças Leal Macedo, Pedro Trovão, e Flavio Bauraqui | Produção: Laurent Lavolé, Isabelle Pragier e Flávio R. Tambellini | Direção de arte: Marcos Pedroso | Montagem: Sérgio Mekler | Som: Márcio Câmara; Principais prêmios: Melhor filme no Festival Internacional do Rio de Janeiro, segundo prêmio Coral no Festival de 50 Havana e menção especial no Festival de Berlim. Sinopse: Mutum é um local isolado do sertão de Minas Gerais, onde vivem Thiago (Thiago da Silva Mariz) e sua família. Thiago tem apenas 10 anos e, juntamente com seu irmão e único amigo Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso), é obrigado a enxergar o nebuloso mundo do adultos. Sandra Kogut - Embora o seu primeiro longa-metragem, “Passaporte Húngaro”, seja apenas de 2003, sua carreira teve início bem antes com trabalhos em diversos formatos. Sandra Kogut já passou pelo videoclipe, televisão, vídeos experimentais e instalações. Destaque para sua obra videográfica “Parabolic People”, vencedora de diversos prêmios internacionais. Na TV foi diretora geral do “Programa Legal”, da Rede Globo de Televisão. “Mutum”, há época do lançamento, encerrou a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. O filme alcançou a marca de 21 prêmios. Principais filmes: Mutum – 2007; Um Passaporte Húngaro - 2001

Filme de Kogut expõe a opacidade da vida, por Inácio Araújo Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 13/11/2007 “Por que o que acontece acontece?”, pergunta o menino Thiago (com essas palavras ou com outras, parecidas) a horas tantas de “Mutum”. E talvez seja esta a pergunta que faz todo o tempo a autora, Sandra Kogut. Essa é também a raiz de sua aposta estética: nunca mostrar o que acontece, o momento dramático, mas, com o uso contínuo de elipse, valorizar a incidência dos fatos sobre os personagens. Com isso, o “por quê” substitui o acontecimento, e da vida se expõe a opacidade.


Tentemos não complicar as coisas mais do que já são: “Mutum” se passa em um sertão qualquer, talvez em um tempo qualquer (tempo antes da histeria das comunicações). Thiago é um dos filhos de um lavrador. Um filho melancólico, digase, que tentará entender as muitas perdas que lhe cabem na vida: do tio, da cadela, do irmão, dos lugares, do pai etc. A vida não é feita de adições, mas de supressões, como se o mundo infantil começasse pleno para, aos poucos, se esvaziar. Desse vazio, dessas promessas de que o mundo nos enche para depois nos desiludir. Eis então um olhar bem pouco romântico da infância. E talvez sua localização seja bem mais exata do que parece num primeiro momento: o lugar de “Mutum” é a infância, isto é, a perda. O segundo tema relevante é o deslocamento. Ou exílio. Pois é isso que Thiago verá o tempo todo (do tio, do pai) ou viverá. Viver é também deixar o seu lugar, embora esse deslocamento nem sempre seja experimentado como perda. Ele é, no mais, uma fatalidade, que coincide com o tornar-se homem (não deixa de ser curioso, pois na família exogâmica quem circula é, tradicionalmente, a mulher: aqui, é sempre o homem). Existe, por fim, o tema do olhar. Ou antes, da incapacidade de ver. Não por acaso, o mal do menino está nos olhos: a opacidade do mundo é antes de tudo física. Não é impossível que todo o filme se organize em torno da luta para entender por que o que acontece acontece e a dor da incompreensão. Talvez o olhar, se corrigido, se revele, ao final, mais uma ilusão. Isso não saberemos, até porque este é um filme que se pergunta sobre o “por quê” ao mesmo tempo em que suprime as coisas. A idéia é mais completa do que a realização (onde se destaca uma ótima direção de arte), dada a dificuldade do desafio que se impôs Kogut. Segurar um filme dando ênfase aos tempos fracos implica, por vezes, confundir momentos baixos da existência com buracos narrativos, pois o cinema é, primeiro, 51 uma arte de registro do acontecer, antes de ser questionamento dos fenômenos. Nessas ocasiões, “Mutum” perde intensidade. Nada grave: se o cinema brasileiro atual padece, com enorme freqüência, de obviedade no partido tomado, a autora e seus colaboradores assumem o risco de uma bela aposta feita não no escuro, mas com plena consciência do quanto se tem a caminhar neste mundo perigoso.

*** Inácio Araújo é um dos principais críticos de cinema do país. Escreve para a Folha de S. Paulo desde a década de 1980. É autor de romances e de uma coletânea de críticas.


Baixio das Bestas

Ano de produção: 2007 | Duração: 80’ | Direção: Cláudio Assis | Roteiro: Hilton Lacerda | Direção de fotografia: Walter Carvalho | Elenco: Fernando Teixeira, Caio Blat, Matheus Nachtergaele, Dira Paes, Marcelia Cartaxo, Hermila Guedes, Conceição Camaroti, João Ferreira e Irandhir Santos | Produção: Cláudio Assis e Júlia Morais | Direção de arte: Renata Pinheiro | Montagem: Karen Harley | Som direto: Louis Robin | Edição de som: Ricardo Reis | Música: Pupillo | Principais prêmios: Melhor filme no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e Prêmio Tiger do Festival de Roterdã Sinopse: Auxiliadora (Mariah Teixeira) é uma jovem de 16 anos explorada por seu avô, seu Heitor (Fernando Teixeira). Ele vê falta de autoridade em tudo à sua volta, 52 mas não pensa duas vezes antes de explorar a neta. Cícero (Caio Blat) pertence a uma conhecida família local e está apaixonado por Auxiliadora. Mas para tê-la ele precisará enfrentar o avô dela Cláudio Assis - Um dos principais nomes do cinema pernambucano contemporâneo, Cláudio Assis estreou no cinema com o curta-metragem “Padre Henrique – Um crime político”, rodado em 1989. Foi o diretor de produção de “O Baile Perfumado”, em 1997. Seu primeiro longa como diretor é o aclamado “Amarelo Manga”, lançado em 2002 e ganhador de prêmios importantes nos festivais de Brasília e Toulouse. “Baixio das Bestas” é o seu segundo longa, sendo seguido quatro anos depois por “A Febre do Rato”. Principais filmes: A Febre do Rato – 2011; Baixio das Bestas – 2007; Amarelo Manga – 2002

Apontando a câmera para baixo, por Aristeu Araújo Publicado originalmente na Revista Moviola em 19/12/ 2007 Já se foram treze anos desde que inventaram a retomada. Com ela, o cinema brasileiro teve que reaprender a conquistar seu público. Por causa dele, passou por momentos constrangedores. Submeteu-se ao bom gosto classe média e sucumbiu a uma estranha culpa. Havia um bom mocismo que tomava conta da primeira fase do cinema de retomada. Embora exceções tenham existido, é possível afirmar que foi Cláudio Assis quem, para usar um termo chavão, colocou muita coisa de pernas pro ar.


Quando, aos brados, Cláudio Assis xingou Hector Babenco, em 2004, durante o Prêmio TAM do Cinema Brasileiro, era disso que ele estava falando. Sem entrar em julgamentos quanto à insolência do cineasta pernambucano, o que Assis fazia ali era tentar chamar a atenção para um cinema antigo que ainda dominava a produção audiovisual no Brasil. E conseguiu. Mas nem precisava tanto. Seu filme de estréia, até então seu único longametragem, “Amarelo Manga”, já tinha feito o mesmo. Logo no seu início, o público ouvia um categórico “vá tomar no cu”. Era a personagem de Leona Cavalli, a Lígia do filme, a Lígia do Fred Zero 4 e seu Mundo Livre S.A. Essa Lígia, adorada pelo Manguebit, em Amarelo Manga é a moça do bar. Ela é a mulher que serve os bêbados, os pinguços que a azucrinam durante todo o dia. E ela diz que “é tudo sempre igual”. Ela quer desistir daquela vida. Mas Lígia, assim como os outros personagem de Cláudio Assis, está presa a uma engrenagem gigantesca que, nesse exato momento, a esmaga. Lígia olha para a câmera quando exprime seu desejo: “Eu quero é que todo mundo vá tomar no cu”. Lígia olha para o espectador de cinema. Lígia olha para o olho da câmera-espectador. Lígia olha para cada um que se aventurou a sentar numa poltrona e assistir “Amarelo Manga”. Ao olhar para a câmera e ao exprimir seu ódio, Lígia está sendo mais que ela. Lígia é porta-voz de todos os miseráveis admoestados pela câmera de Cláudio Assis. Assim, Lígia é também Cláudio Assis. E Lígia, em uma leitura transversal, é também Everardo, o personagem de Matheus Nachtergaele no filme “Baixio das Bestas”, o segundo longa do cineasta pernambucano. Em Baixio das Bestas, o personagem de Nachtergaele encara a câmera, dá uma longa tragada no seu baseado e dispara: “Sabe o que é melhor no cinema? É que no cinema você pode fazer o que quiser”. É novamente o diretor falando com seu público. Só que agora, com mais firula. É que enquanto em “Amarelo Manga”, Assis (des)conquistou seus espectadores fazendo o que o cinema não tinha mais coragem, em “Baixio”, o cenário já havia mudado. “Amarelo Manga” fez tanto barulho que deve 53 ter colocado caraminholas na cabeça do criador. É o paradoxo pelo qual todo artista há de passar. O quanto avançar sobre o já feito? É possível avançar? O público sempre quer mais. “Baixio das bestas” continua com as marcas de seu criador. Mas há algo mais também. “Amarelo Manga” parece ser mais cru; “Baixio”, mais rebuscado. Mas não é só isso. A questão é que em “Baixio das Bestas”, o meta-cinema é um dos grandes símbolos do filme. O trio de agroboys-espancadores-de-prostitutas se reúne em um cinema fechado da cidade. É por isso que lá eles podem fazer o que quiserem. Porém, se assim como Lígia, Everardo fala olhando para nós, espectadores, é porque há ali uma extrapolação do limite clássico-narrativo. Mas esse cinema onde “se pode fazer tudo o que quiser”, é um cinema fechado. Está entregue às moscas; seus bancos, revirados. Cláudio Assis atira no pé. É que o cinema inventivo, segundo seu próprio filme, não tem público. É que o seu cinema não atinge as cidades pequenas. É que para extrapolar limites, há o risco de cair na marginalidade, restrito às poucas salas que se dedicam a exibir o cinema de poucos espectadores. É uma boa analogia. Há quem tenha a achado, entretanto, juvenil. Cláudio Assis diz que seu cinema não sofre de culpa. Realmente não parecer tê-la. Seu cinema enfrenta os códigos éticos. Mas, estranhamente, é um cinema que possui alguma inserção. Não é caquético de público como o categorizado em seu filme. Mas Cláudio Assis só funciona sozinho. Se um outro surgir experimentando falar grosso como ele, será suicídio. É inevitável. É a sua marca. Hoje, o Brasil possui cerca de duas mil salas de cinema. O número tem crescido, mas ainda é pouco alentador. Fala-se de mais de 90% das cidades brasileiras sem uma única mísera sala de cinema; há mais teatros, o que é uma contradição por si só. Em


Baixio das Bestas, a sala onde “se pode tudo” será vendida. Irá tornar-se uma igreja, renegando aquela pequena mas massacrante marginalidade que a usava como templo. O mesmo templo que, nos momentos finais, é palco ou altar da profanação do que há de mais crucial, a identidade humana. Cláudio Assis chega a ser esquemático na sua pujança por fechar o ciclo dos que sofrem e sofrerão. Refiro-me à sequência em que a personagem de Dira Paes é estuprada pelos agroboys. A cena, rodada com enfoque na silhueta projetada pelas sombras dos personagens, é intrigante. Há um pudor estranho na sequência. E isso acontece, talvez, porque Cláudio Assis quer falar mais coisas do que o enredo quer tratar. Tanto que o enfoque desse texto, até o momento, tem sido as entrelinhas abertas pelo filme e – não necessariamente – o enfoque central de “Baixio”, que é a exploração sexual, o machismo, a irreversível roda da fortuna. “Amarelo Manga” também possui um templo. Mas diferentemente desse cinema, que se tornará igreja, no primeiro filme a igreja não é nada. É o mesmo que o cinema de “Baixio”. É algo arruinado. É uma igreja com suas portas e janelas fechadas. O padre, incapaz e ateu, prega para cachorros vira-latas que por ali pastam ou ladram. Cláudio Assis parece sempre estar olhando de um ponto de vista distinto do que os nossos olhos estão acostumados; do que o nosso cinema está convencionado. No primeiro número da Revista Moviola, escrevi um pequeno artigo intitulado “Apontando a câmera para cima”. É sobre o cinema de Terrence Mallick e, mais propriamente, sobre seu filme “O Novo Mundo”. Mallick quer compreender o divino, o existencial. E, por isso, seu cinema olha para cima. Mallick faz com seu cinema algo parecido com o que muitas religiões fazem com seus templos. Ele eleva o pé direito, faz com que o espectador/fiel fique diminuto, uma formiguinha frente ao tamanho do sublime. Já Cláudio Assis faz o inverso. Seu cinema tem, entre outras pretensões, a vontade de mostrar o real tamanho do homem. E no universo escabroso do cineasta 54 pernambucano, o homem é como o verme. Assis, assim, aponta a câmera para baixo e cola seus personagens na terra. Olha de cima e os esmaga. Seja acompanhando a rotina de Lígia em seu bar (“Amarelo Manga”), seja observando Maninho a cavar uma fossa (“Baixio das Bestas”), seja no curta “Texas Hotel”, ao espionar seus hóspedes. Aqui ainda não foi dito: o curta-metragem “Texas Hotel” é uma espécie de ensaio sobre “Amarelo Manga”. São os mesmos personagens, as mesmas histórias. Também há quem diga que o cinema de Cláudio Assis é moralista. Talvez. É tamanha a sua necessidade de abordar as mazelas da alma e da carne, que é provável que o seu olhar esteja carregado com questões morais, pequeno-burguesas. Em ‘Texas Hotel’, aliás, a sua câmera assinatura olha do alto os hóspedes do hotel desvendando o que só é feito entre quatro paredes. Parece o olhar de Deus, onisciente. Em mais uma similaridade, o templo cinema de “Baixio das Bestas” também é apresentado com esse olhar vertical. A câmera de Walter Carvalho vê de cima os agroboys esparramados no velho cinema. Masturbam-se, bebem e fumam maconha. É essa a vida deles. Na sequência em que a personagem de Hermila Guedes é estuprada por Everardo, o mesmo recurso linguístico é utilizado. Enquanto Everardo arrasta e espanca a prostituta, lá está a câmera vendo tudo de cima, esmagando esse pobres e fodidos no chão. “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas” também têm outras aproximações. Em ambos os filmes, os roteiros parecem querer evidenciar as ruínas de um passado que só resiste entre uma população pobre, miserável. Os exemplos são as notícias de rádio, a arquitetura derruída do centro de Recife, os engenhos de cana-de-açúcar que submergiram frente as usinas. No plano narrativo, há também as várias histórias entrecortadas, a presença constante do documental. “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas” são filmes sobre a dor da carne.


Mas a característica mais gritante do diretor é a sua compulsão e capacidade em enojar o espectador. É um nojo moral esse que Assis procura no público. São muitas as cenas que podem ser evocadas como exemplo. Em “Baixio das Bestas” não é preciso muito tempo para elas surgirem. Já nos primeiros minutos, vemos o velho Heitor (Fernando Teixeira) explorando sua neta (Mariah Teixeira), exibindo-a a caminhoneiros. Ela é também sua filha. O filme gira em torno dessa relação e das implicações reais e simbólicas que esse homem tem em relação à sua filha-neta. Lá pelo início desse artigo, falei que os personagens de Cláudio Assis estão, invariavelmente, esmagados nas engrenagens da vida. Para a personagem de Mariah Teixeira, não é diferente. Prisioneira do avô-pai, a liberdade nunca lhe chegará. Ela, assim como todos os personagens dos dois longasmetragens do diretor, nunca irá se ver livre. A carne lhes aprisiona. Cláudio Assis os aprisiona em seu mundo escabroso e cão.

*** Aristeu Araújo é curador da mostra Ser Tão Pop. Crítico de cinema e cineasta, tem no currículo seis curtas-metragens, entre eles “Naquela Noite Ele Sonhou com Um Mar Azul” e “Por que Corro?”.

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Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo

Ano de produção: 2009 | Duração: 75’ | Direção: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes Roteiro: Karim Ainouz e Marcelo Gomes | Direção de fotografia: Heloísa Passos Elenco: Irandhir Santos | Produção: João Vieira Jr. | Montagem: Karen Harley Som: Ricardo Cutz e Waldir Xavier | Principais prêmios: Melhor diretor no Festival Internacional do Rio de Janeiro, melhor filme no Festival Sesc Melhores Filmes e terceiro prêmio Coral no Festival de Havana. Sinopse: José Renato (Irandhir Santos) tem 35 anos, é geólogo e foi enviado para realizar uma pesquisa, onde terá que atravessar todo o sertão nordestino. Sua missão é avaliar o possível percurso de um canal que será feito, desviando as águas do único rio caudaloso da região. À medida que a viagem ocorre ele percebe que possui muitas 56 coisas em comum com os lugares por onde passa. Desde o vazio à sensação de abandono, até o isolamento, o que torna a viagem cada vez mais difícil.

Marcelo Gomes - Iniciou o seu contato com o cinema participando de um cineclube criado por ele próprio em Recife. No início da década de 1990 foi estudar cinema na Inglaterra. De volta ao páis fundou a produtora Parabólica Brasil ao lado de Cláudio Assis e Adelina Pontual. É dele o curta-metragem “Maracatu, Maracatus”, ganhador de três prêmios no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Sua estreia nos longasmetragens acontece com “Cinema, Aspirinas e Urubus”, que teve grande repercussão. Em 2012 lançou “Era Uma Vez Eu, Verônica”, que faturou sete candangos no Festival de Brasília. Principais filmes: O Homem das Multidões – 2013; Era Uma Vez Eu, Verônica – 2012; Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo – 2009; Cinema, Aspirinas e Urubus - 2004 Karim Aïnouz – O cineasta tem um pé no Brasil e outro fora do país. Iniciou sua carreira cinematográfica nos Estados Unidos, onde cursou mestrado em teoria e história do cinema pela New York University no início dos anos 1990. Hoje reside em Berlim, na Alemanha, cidade cenário de seu mais novo filme, “Praia do Futuro”. Em 2002 estreou nos longas-metragens com o aclamado “Madame Satã”, vencedor de mais de vinte prêmios internacionais. “O Céu de Suely” é o seu segundo longametragem. Além de diretor, tem atuado como roteirista, participando da escrita de filmes como “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Cidade Baixa”. Em 2009, Aïnouz lançou o seu terceiro longa, com codireção de Marcelo Gomes, “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo”. Antes do mais recente filme, ainda viria “Abismo Prateado”, obra baseada em música de Chico Buarque de Holanda. Principais filmes: Praia do Futuro – 2014; O Abismo Prateado – 2011; Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo – 2009; O Céu de Suely – 2006; Madame Satã - 2002


Imagens latentes, por Aristeu Araújo Publicado originalmente na Revista Moviola em 20/07/2010 As imagens são latentes. As imagens, muitas vezes, não dizem nada. As imagens são o que são até que sejam postas frente a frente com contextos, situações, apropriações. As imagens são (res)significadas pela linguagem. É com muito apuro que Karim Aïnouz e Marcelo Gomes ressignificaram as imagens utilizadas na preparação do documentário “Sertão de Acrílico Azul Piscina”. São dessas imagens o material que dá base ao “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, filme ficcional feito a partir de um arcabouço de registros documentais. Mas qualquer imagem é também um registro documental. Qualquer imagem é registro daquilo que é visto. É justamente a linguagem, o contexto, quem transfigura os significados de cada plano, de cada enquadramento e diz ao espectador, “isso aqui é uma ficção”. Em “Viajo porque preciso…”, os diretores reescreveram os signos de imagens que já eram seus há pelo menos dez anos. Explica-se: em 1999 uma viagem de pesquisa pelo sertão deu origem ao documentário poético “Sertão de Acrílico Azul Piscina”. O material bruto foi revisitado agora e transformado em ficção. São imagens captadas a partir de bitolas 16mm, 35mm, super8 e digital, além das fotografias que também surgem aos borbotões. No filme, temos Zé Renato (Irandir Santos), um geólogo que viaja pelo interior. Ele faz uma viagem de 30 dias, estuda o solo, tem na linguagem os jargões duros do homem que trabalha com as pedras. Mas isso aqui é um road movie e são necessárias transformações. O que acontece é que essa mesma dura linguagem aos poucos vai virando chão de uma linguagem poética, confessional. O personagem a cada dia na solidão do seu trabalho, aos poucos abre-se frente àquele vazio que para ele é o sertão. É que ele está só e o que ouvimos, ao longo do filme, são seus pensamentos mais íntimos. É tudo tão 57 íntimo, na verdade, que tudo o que vemos é tudo o que o personagem vê. O sertão que vemos é o que Zé Renato enxerga; as mulheres (quase sempre putas) que vemos, é as que o personagem quer. Seria de esperar que o filme não funcionasse, que fosse estranho demais para envolver o público. É base do cinema clássico narrativo a identificação do espectador com o protagonista. Mas para isso, é preciso – como a fórmula ensina – que vejamos o herói em cena e que, só de vez em quando, enxergamos o que ele vê, que só de vez em quando entre em cena a câmera subjetiva (essa que nos empresta o olhar do personagem). Em “Viajo…”, entretanto, a regra é outra. Assim, nós espectadores, esperamos que o corpo de Zé Renato surja em algum momento, que a câmera se desloque de seus olhos e nos diga que tipo de homem é aquele. Mas isso não acontece e quando paramos de querê-lo, há algo de mágico sendo executado: Zé Renato toma forma. Como na leitura de um livro, esse homem começa a se formar em nossa mente. E quando a imagem está sólida, percebemos que há muita mentira ali, porque esse homem não é exatamente aquilo que diz ser. Zé Renato vai se mostrando como o sertão que ele vai descobrindo. Ele descobre a paisagem e nós esse cara sem rosto. Zé Renato tem dores tão profundas como as marcas que expõem as dobraduras das rochas sertanejas; como as marcas que mostram o poder do Sol naquele pedaço de chão seco; como a ausência do dente da menina que conversa com ele (único depoimento do filme). Se Zé Renato tivesse um corpo à mostra, a paisagem estaria em segundo plano, o documento ficcionado de Karim e Marcelo viraria ilustração e não o personagem vivo que é. Aquele colchão que repousa inusitadamente na terra, ao Sol, estaria mais próximo apenas de sua condição de mero colchão. Mas dentro do estratagema poético composto pelos diretores, aquele colchão é também a falta que dói no


protagonista, o sexo que ele procura nas meninas que cruzam seu caminho, a própria dor intransferível de Zé Renato. Na liberdade de uma leitura poética, é algo parecido com o que o protagonista Alex de “Na Natureza Selvagem” fala, sobre a necessidade de dar os verdadeiros nomes às coisas. Corpo; sexo; falta. Três dos nomes mais importantes na narrativa existencial do geólogo Zé Renato. Porque pedra, seixo, várzea, metamorfismo (palavras típicas do seu jargão técnico), faladas em profusão por este herói, pouco querem dizer no plano objetivo da linguagem. Zé Renato corta o Sertão porque sente falta, porque “viaja porque precisa” e não volta porque ainda ama. A ausência do corpo do protagonista é, também, a sentença de que ele é o que mais existe. E só é possível se dar conta disto quando se retira o que há de mais banal, porque não há possibilidade de narrativa sem corpos (desenhos animados incluídos). Omitindo o corpo de Zé Renato, deixamo-lo cada vez mais presente. Vemo-lo nos outros, nas sombras, na voz, no rádio do carro, no flash refletido no espelho quebrado do motel de beira de estrada. Vemos (ou tentamos ver) Zé Renato em tudo quanto é lugar. Foi o próprio Karim Aïnouz quem se auto-rotulou como um cineasta do corpo (provavelmente não com essas palavras exatas). Mas a verdade é que “Madame Satã” (seu primeiro longa-metragem) e “O Céu de Suely” (o filme seguinte), tem no corpo o foco e motor de seus enredos. Até em “Alice”, mini-série produzida pela HBO e com direção geral do cineasta, o corpo é mais do que presente. Com a chegada deste “Viajo…” houve uma corrida da crítica a apontar uma transformação do diretor, uma busca por outros espaços, outras aspirações. O que vejo, entretanto, é mais um desdobramento da mesma aspiração do artista. É o mesmo tema, o mesmo corpo, só que visto de outro ângulo. De um ângulo onde sua inexistência é ilusória. A arte tem dessas facetas. É comum o realizador (de livros, quadros, músicas, 58 filmes) se esmerar ao máximo sobre um determinado tema. Na pintura isso é bem fácil de perceber, vide as fases azul, rosa e cubista do espanhol Picasso; vide as mulheres de Klimt; vide as cores primárias de Mondrian. O corpo para Karim Aïnouz é, assim, a própria voz de seu cinema. Muito embora no “Viajo…” exista ainda a co-direção de Marcelo Gomes, os temas centrais parecem vir do universo fílmico do diretor de “Madame Satã”. Talvez exista aqui um tanto de injustiça, já que Karim também construiu seu cinema em parceria com Marcelo Gomes. Talvez esse universo que vemos mais claramente como de Karim, seja de ambos. Talvez. O corpo ou a falta do corpo (do próprio protagonista ou da amada por quem ele sofre) é também metáfora para entendermos outras faltas que afloram no caminho do “Viajo porque preciso”, volto porque te amo. Como disse, essa falta do corpo do protagonista nos mostra com muito mais detalhes o corpo da terra, o corpo dos outros. Nos mostra com muita veemência a falta do dente daquela menina que, lá pro fim do filme, nos diz em depoimento que quer uma “vida lazer”. É que lhe falta tudo, absolutamente tudo. E o tudo que ela quer, é ser feliz, é ter essa vida amena, lazer. Zé Renato conversa com essa garota, é uma das muitas prostitutas que cruzam seu caminho. E é ela quem verdadeiramente transforma a dor daquele homem, que faz ele mergulhar de cabeça numa nova vida, como vemos no final (talvez um tanto desnecessário – mas inegavelmente bonito no balé plástico em que se apresenta) os clavadistas, os mergulhadores de Acapulco. Esses homens saltam do penhasco em direção ao mar, de cabeça. Nesse momento, ali no final, o filme nos diz: assim é viver. *** Aristeu Araújo é curador da mostra Ser Tão Pop. Crítico de cinema e cineasta, tem no currículo seis curtas-metragens, entre eles “Naquela Noite Ele Sonhou com Um Mar Azul” e “Por que Corro?”.


Estrada para Ythaca Ano de produção: 2010 | Duração: 70’ | Direção, Produção, Roteiro, Fotografia, Som, Montagem: Pedro Diógenes, Guto Parente, Luiz Pretti e Ricardo Pretti Elenco: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, Rodrigo Capistrano, Uirá gos Reis, Ythallo Rodrigues | Figurino: Lia Damasceno, Themis Memória | Música original: Luiz Pretti | Principais prêmios: Melhor filme na Mostra de Cinema de Tiradentes e Prêmio Filme Livre na Mostra Livre. Sinopse: Quatro amigos em luto decidem, após uma noite de bebedeira, fazer uma viagem até a cidade natal do amigo falecido. 59

Enfim, Ythaca, por Carlos Alberto Mattos Publicado originalmente no site Críticos em 27/05/2011 O poema de Konstantinos Kaváfis citado no final de “Estrada para Ythaca” é um elogio da viagem em detrimento do destino. Um louvor ao percurso em detrimento da chegada. Ythaca não seria tanto o objetivo, mas o que nos faz partir e absorver os conhecimentos do trajeto. O filme dos Irmãos Pretti e dos Primos Parente está embebido (literalmente) desse espírito: um road movie perdidão, que começa num bar e termina em outro, em busca de algo que ninguém sabe o que é, mas que afinal não importa tanto assim. Rodado em 2009, premiado no Festival de Tiradentes de 2010 e consagrado como manifesto do Novíssimo Cinema Brasileiro, parecia condenado a permanecer puro trajeto, sem nunca chegar aos cinemas convencionais. Mas eis que, como um OVNI surgido da noite escura, aparece o projeto Sessão Vitrine e o coloca em cartaz em oito capitais brasileiras. “Ythaca” condensa diversos ingredientes/sintomas de um certo cinema jovem que hoje se faz no Brasil à margem da indústria. Foi realizado sem patrocínio público ou privado, criado e produzido por um grupo de amigos, tem escolhas estéticas bastante definidas e seu tema reverbera de certa maneira as condições em que foi feito. O livro “Cinema de Garagem”, de Marcelo Ikeda e Dellani Lima, faz a crônica dessa nova cena, com ênfase em suas vertentes cearense e mineira. Em Tiradentes este ano, o quarteto Pretti-Parente apresentou o opus seguinte, “Os Monstros”, em que confirmam um olhar afetuoso sobre si mesmos e sobre o cinema. Com suas barbas e seus chapéus de fancaria, os quatro realizadores-produtorestécnicos-atores saem pelo interior do Ceará numa viagem de luto pela morte de um amigo. Têm algo de Irmãos Marx, embora minimalistas e paradões. Não há limites


claros entre a tristeza pelo amigo desaparecido e a celebração bem-humorada da própria amizade. Na verdade, o filme se alimenta de suas suaves contradições. Tem, por exemplo, uma absoluta liberdade ficcional, ao mesmo tempo em que se prende a certos verismos documentais, como as bebedeiras e a difícil preparação de uma fogueira a certo ponto da jornada. É franciscanamente despojado na dramaturgia, mas abre espaço para intrigantes intervenções do sobrenatural. Embora exale aparentes despretensão e esvaziamento, não deixa de semear “mensagens” nas canções, nos letreiros, em frases pronunciadas pelo elenco e sobretudo na citação de Glauber Rocha em “Vento Leste, de Godard”: entre o cinema de aventuras e o cinema do Terceiro Mundo, o quarteto escolhe o segundo caminho. Na produção desse jovem cinema brasileiro fora do eixo, o trabalho dos PrettiParente se destaca por uma notável unidade de estilo, uma convergência de sentidos entre forma e conteúdo, e a busca constante de uma estética que renove a relação entre atores, câmera e espaços. A construção dos planos quase nunca soa gratuita ou casual, assim como a edição reinventa os ritmos da vida e quebra expectativas rasas, deixando mais ainda à vista a influência de Godard. O fato de ser um filme feito a quatro (e praticamente só quatro) mãos transparece todo o tempo, seja na câmera feita quase sempre por um deles diante dos outros três, seja pelo deslocamento dos personagens em relação a qualquer signo de sociedade ou contexto. Esse voltar-se para si mesmos requer do espectador uma disposição cúmplice e um interesse bastante focado. Há uma circulação de afetos dentro da tela que pode ou não se estender à plateia – e a comunicabilidade do filme depende em grande medida de isso acontecer. Um dado que pode contribuir muito para a empatia do espectador é o caráter musical do filme. Um musical bêbado, talvez, mas ainda assim um musical. Não só pelas músicas e as performances que incorpora, mas pelo que exclui. Ao atirar CDs de músicas “merda” pela janela do carro, Luiz (ou será Ricardo?) Pretti mostra que um 60 filme musical se faz também pela seleção, pela escolha do que não tocar.

*** Carlos Alberto Mattos é crítico de cinema desde 1978, tendo passado pela Tribuna da Imprensa, Isto É, O Pasquim, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, O Globo e pelo web site NO. É autor dos livros “Walter Lima Júnior – Viver Cinema” e “Eduardo Coutinho – O Homem que Caiu Na Real”, entre outros.


Mãe e Filha

Ano de produção: 2011 | Duração: 80’ | Direção: Petrus Cariry | Roteiro: Petrus Cariry, Rosemberg Cariry e Firmino Holanda | Direção de fotografia: Petrus Cariry Elenco: Juliana Carvalho e Zezita Matos | Produção: Petrus Cariry e Bárbara Cariry Direção de arte: Lana Patrícia | Montagem: Petrus Cariry e Firmino Holanda | Som direto: Yures Viana | Edição de som: Petrus Cariry e Érico Paiva | Música: Herlon Robson | Principais prêmios: Melhor filme e melhor roteiro no Cine Ceará e melhor filme no Festival Internacional do Rio de Janeiro. Sinopse: Após muitos anos sem se ver, Fátima (Juliana Carvalho) resolve visitar a mãe (Zezita Matos), que vive no interior do sertão nordestino. Junto ela leva seu filho natimorto, em uma tentativa de seguir um ritual fúnebre. Só que sua mãe tem dificuldades em enfrentar o fim das coisas, seja a morte do neto ou o marido que 61 jamais voltou. Petrus Cariry - Nascido em Fortaleza (CE), Petrus Cariry estreia no cinema com o curta-metragem “A Ordem dos Penitentes”, em 2002. O seu primeiro longametragem, “O Grão”, lançado em 2007, alcançou oito prêmios no Brasil e exterior. “Mãe e Filha” é o seu segundo filme de longa duração. Principais filmes: Mãe e Filha – 2011; O Grão – 2007

Contemporâneo, por Thiago Brito Publicado originalmente na Revista Cinética em outubro de 2011 De volta a Cococi, a filha deve trazer o filho natimorto aos olhos da mãe. A filha deseja enterrar logo a criança; a mãe deseja mantê-la, mesmo morta, à espera do falecido marido, afastado e possível fantasma. Destarte, a questão gira em torno do embate entre gerações, um embate entre tradições: de um lado, a filha, que busca uma forma de romper o peso do misticismo da mãe; do outro, a mãe, que busca unguentar o menino falecido à guisa de um contato espiritual com um além. A cidade do interior é reclusa e isolada. Por ser fantasma, guarda o peso de um passado revestido de tradição. É no minuto que a filha embrenha-se no mato que já vemos as figuras dos cangaceiros à espreita: a terra resguarda forças, um passado imantado. E, assim, o filme nos carrega inundado pelo misticismo daquele espaço: uma cidade abandonada (já filmada por Petrus Cariry em “Dos Restos e das Solidões”), onde cada pequena ruína guardaria em si a força tresloucada de um espírito em convulsão. Não à toa, é o ruído


arrufado que persegue todo o filme, onde os sons da noite se apresentam mesmo em cenas de dia - a noite, a floresta, o desconhecido; enfim, é um lamaçal de simbolismos e sensações sinistras. As questões apontam para um desfecho enérgico e, no mínimo, aberto a interpretações. A filha corre em direção aos cangaceiros, que embargam sua passagem. A corrida é exasperante. Há, portanto, briga, uma vontade de rompimento. Existe luta. Mas, o que exatamente está nossa protagonista buscando? Entre qualquer coisa, aparentemente, o ato, e não o fim. Isto é, importa mais a exasperação do que a finalidade para onde se deseja ir. Estes pequenos pontos não nos são estranhos. Aliás, podemos até mesmo aferir que eles constituem elementos possíveis de inúmeros filmes contemporâneos, que continuamente andam investindo em ideias abstratas de relação com o mundo, de maneira que procuram fugir, no mínimo, de uma perspectiva deveras concreta, realista, ou pura e simplesmente imediata, de um estar no mundo. Não apenas deve existir, mas tem que existir mais coisas no mundo do que sonha nossa vã filosofia. Este tipo de posicionamento de um cineasta, que se espraia num leque que vai de Terrence Malick até nosso Petrus Cariry, pode nos indicar muito claramente um sintoma que se busca resolver de forma bastante interessante através da ideia de um espaço. “Histórias que Só Existem Quando Lembradas”, “Girimunho” e “Mãe e Filha” (além de outros), todos se situam na ideia de um interior. Todos atuam na compreensão bastante clara de que, se alguma coisa pode existir de diferente nesse nosso mundo já todo tão igual, só pode realmente vir de uma situação limítrofe, em que esquecimento, lembrança, tradição e misticismo se encontram e auto-fecundamse em um painel indistinto de novas perspectivas de mundo. Em tudo, podemos dizer com alguma certeza: existe a necessidade de buscar algo de diferente. E, para isso, os filmes estão nos levando cada vez mais para um interior esquecido, arruinado, assolado, passado; um interior cada vez mais interior. De lá, buscam extrair qualquer coisa de excepcional que, necessariamente, justifique nossa viagem. Ou pelo menos, 62 é isso o que fazem os três longas-metragens aqui citados. Em todos, somos obrigados a achar alguma coisa de sublime, de diferente, alguma graça que esteja escondida abaixo de mil meandros. Petrus Cariry buscou resolver-se apostando em um quadro mais esquemático de uma divisão entre dois mundos: aquele de Cococi, e aquele do universo (claramente urbano: Fortaleza) da filha. Ao contrário de “Girimunho”, onde o espaço mais aparece como um facilitador, um meio fértil de onde personagens tão únicas (ou, pelo menos, é assim que o filme deseja que olhemos para elas) possam vir a ser; ou mesmo “Histórias...”, onde o espaço é, a um só tempo, um elemento que possibilita a existência daquelas personagens e um horizonte possível para uma nova existência, “Mãe e Filha” enchafurda-se no misticismo completo: Cococi é quase autárquico, um organismo que se auto-sustenta. Esta prerrogativa é o corte que ocasiona a divisão: a força de Cococi não pode viver ao lado de uma concepção de mundo como o da Filha; eles vivem um ao lado do outro, de forma combativa e eliminatória. Esse combate obriga o filme a fazer uma escolha, e a maneira quase reverencial com que filma cada ruína de Cococi não dificulta saber qual delas vence. Mas, qual é a imagem que nos sobra? Esta é uma questão confusa, bastante complicada. A todo momento, Cococi nos vem inviesado, indireto, já que aquilo que podemos considerar espiritual nunca pode ser visto em cheio, face a face. Assim como em muitos filmes contemporâneo – e aí podemos ir de “Mal dos Trópicos” até “A Fuga da Mulher Gorila”, ou mesmo “Árvore da Vida” e “Girimunho” – uma imagem não pode faltar: a tela preta, o som sugestivo (noite, aves, vento). Talvez essa seja a melhor resposta para o que se busca. Se o interesse é uma reverência, um respeito, um voltar-se completamente para aquilo que nos é desconhecido, invisível; se a função do cinema, atualmente, é nos entregar às sensações daquilo que não conhecemos, ou vivenciamos inteiramente; se é isso o que se deseja, calmamente vamos caminhando


a um tipo de radicalidade que é plenamente expressada na frase de Juliano Gomes, sobre “Tio Boonmee”: “Tio Boonmee é um filme sobre o cinema”. Afinal, o que é a tela escura e os sons sugestivos se não um voltar-se literalmente a si mesmo? Quando dentro do cinema, sentimos apenas o estar ali, não há imagem, não há horizonte: há a tela que nos retorna nada, há os sons que nos sugerem uma aventura ao desconhecido (a velha história, mais velha do que a palavra ser: o bosque de “Chapeuzinho Vermelho”, a senda por onde, caminhando, nos deparamos com o obscuro, aquilo que pode nos engolir ou revelar). A tela escura é uma unidade, e não um fragmento. Talvez a pior coisa que Apichatpong legou ao cinema: um novo misticismo. A salvação do cinema, ao que tudo indica, estava alí, na nossa cara, no início do cinema, no primeiro cinema (e mesmo no videoclipe, seu filho bastardo) - estava, caladinho, no próprio cinema, no ato de se sentar em uma cadeira, numa sala escura, e curtir seus elementos, se deparar com uma imagem e um som que se justificam por si mesmos, que nos intrigam e nos fazem continuar a ficar sentados. Agora, podemos ficar aqui deduzindo ao que possivelmente isso pode nos levar. Talvez a nada. No entanto, creio que pelo menos uma coisa pode ser dita: que, atualmente, e em crescimento, um dos maiores clichês do cinema contemporâneo - e está aqui, em “Mãe e Filha”, e está em “Girimunho”, e está em “Mal dos Tropicos” - é exatamente este pequeno momento: não ter imagem.

*** Thiago Brito foi curador das mostras “O Cinema é Nicholas Ray” e “Mostra Paisagens do Rio de Janeiro: A Poética de David Neves”. Realizou os curtas-metragens “Se Eu Morresse Amanhã de Manhã”, “Crisálida”, “Elas Vivem”, “Porto Arthur” e “Loïe & 63 Lucy”.


Girimunho Ano de produção: 2011 | Duração: 90’ | Direção: Clarissa Campolina e Helvécio

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Marins Jr. | Roteiro: Felipe Bragança | Direção de fotografia: Ivo Lopes Araújo | Elenco: Maria Sebastian Martins Alvaro, Luciene Soares da Silva, Wanderson Soares da Silva e Maria da Conceição Gomes de Moura | Produção: Paulo de Carvalho, Gudula Meinzolt, Luis Miñarro e Sara Silveira | Montagem: Marina Meliande | Principal prêmio: Prêmio especial do júri no Festival de Havana. Sinopse: Esta é a história de duas mulheres que observam os redemoinhos no rio, em pleno sertão mineiro. Uma delas perdeu o marido, e sofre em silêncio, tendo apenas as novidades dos netos como consolação. A outra carrega consigo um tambor, e marca o ambiente com seus sons. Clarissa Campolina - Sócia fundadora da Teia, Clarissa Campolina dirigiu os filmes “O Porto”, “Girimunho”, “Odete”, entre outros. Também autora de instalações, suas obras foram exibidas em importantes festivais de cinema e instituições artísticas no Brasil e exterior, como o MoMA – Museu de Arte contemporânea de Nova York. Clarissa também assina a montagem de filmes brasileiros que se destacaram no cenário brasileiro e internacional. Principais filmes: Girimunho - 2011; Notas flanantes - 2009 Helvécio Marins Jr. - Diretor e produtor, é um dos fundadores da Teia. “Girimunho” é o seu longa-metragem de estreia. Tem no currículo curtas como “Nascente” (2005) e “Trecho” (2006). Principais filmes: Girimunho - 2011; Desassossego (Filme das Maravilhas) - 2010

O sobrenatural no dia a dia e o tempo como companhia por Marcelo Hessel

Publicado originalmente no site Omelete em 26/04/ 2012 O sobrenatural é um elemento importante em “Girimunho”, filme dirigido por Helvécio Marins e Clarissa Campolina a partir de uma pesquisa de anos que Marins faz com potenciais personagens no sertão de Minas Gerais. Mas não é aquele “sobrenatural” típico, história de fantasma (embora tenha um pouco disso no fiapo de trama do filme), e sim sobrenatural em uma das definições da palavra: que vai além do natural.


Assim como é habitual nos filmes do coletivo mineiro Teia, como “O Céu Sobre os Ombros”, é muito difícil divisar encenação e documental em “Girimunho”. Bastu, a senhora de longos cabelos grisalhos que protagoniza o filme, acaba de perder seu marido, que faleceu no sono. Acontece que Bastu continua ouvindo-o pela casa, como se a permanência das coisas - a passagem do tempo e o trânsito de pessoas na cidade de São Romão obedecem à lógica cíclica do eterno retorno - ganhasse aqui uma manifestação física, a do morto que não quer partir. Esse luto não declarado, disfarçado de paranormalidade, pode servir de chave para o espectador assistir a “Girimunho” com o olhar ideal de quem desconfia de tudo que está diante dos olhos. Em outras palavras, pode tornar acessível aos desatentos um filme de imersão cujo público primeiro é aquele que procura sempre, no estado de suspensão que só o cinema permite, a oportunidade de espantar-se com o mundo. As “assombrações” presentes em “Girimunho” são do mesmo tipo que povoam filmes de Lucrecia Martel, Jia Zhang-ke ou Apichatpong Weerasethakul, cineastas que enxergam pulsão em cenários cansados, que filmam o banal e o estanque com a consciência de que mesmo o banal e o estanque estão sujeitos à mudança. Cineastas, enfim, que tornam sobrenaturais as coisas naturais justamente para devolver-lhes - neste nosso século em que os sentidos se perderam em meio à oferta absoluta de sentidos - a sua própria natureza. De Martel, especialmente em “A Mulher sem Cabeça”, “Girimunho” pega a predileção pelo extracampo, pelo que acontece fora de enquadramento, como na cena em que a mesa da máquina de costura é arrastada pela casa sem que vejamos a pessoa que a arrasta - solução literal para a ideia de devolver vida às coisas. Com Jia e Apichatpong, Marins e Clarissa dividem um senso de memória coletiva que é muito caro a essa geração de cineastas. Especificamente com “Mal dos Trópicos”, de Apichatpong, “Girimunho” se assemelha na forma como o folclore local se materializa como legado - nem que seja somente numa música que Maria do Boi, amiga de Bastu, 65 tenta impedir sem sucesso que seu neto saia cantando pelas ruas. O principal parentesco de “Girimunho”, porém, é com outro filme nacional de 2011, igualmente excepcional, o “Histórias que só Existem Quando Lembradas” (Marina Meliande é montadora de ambos). São esforços de procurar no Brasil Profundo - o Norte de MG em “Girimunho” e o Vale do Paraíba em “Histórias...” um espaço de fantasmagoria que permita, ao mesmo tempo, resgatar um sentido da imagem e criar novos vínculos com ela. A questão, então, é deixar que esses filmes cheguem a nós.

*** Marcelo Hessel é jornalista, tem 34 anos. Integrou a Associação Paulista dos Críticos de Arte, colaborou em veículos como a revista Bizz e, atualmente, edita o Omelete. É co-autor dos livros “101 Bares para Beber Antes de Morrer” e “Almanaque do Cinema”.


O Homem Que Não Dormia Ano de produção: 2011 | Duração: 98’ | Direção e roteiro: Edgard Navarro | Direção de fotografia: Hamilton Oliveira | Elenco: Evelin Buchegguer, Bertrand Duarte, Mariana Freire, Fernando Neves, Ramon Vane e Fábio Vidal | Produção: Sylvia Abreu e Edgar Navarro | Direção de arte: Moacyr Gramacho | Montagem: Cristina Amaral | Som: Nicolas Hallet | Principal prêmio: Melhor filme no Festival Sesc Melhores Filmes Sinopse: Numa mesma noite, cinco pessoas de uma cidadezinha do interior são acometidas por um mesmo pesadelo envolvendo um homem sinistro e um tesouro enterrado. Com a chegada de um misterioso peregrino, o vilarejo é arrebatado da 66 rotina medíocre e os personagens são lançados num vórtice de acontecimentos insólitos. Será assim que cada um terá sua verdade trazida à luz e se libertará do jugo perverso das hipocrisias, medos e doenças, assumindo as rédeas de seus destinos e reescrevendo suas vidas. Edgard Navarro - Cineasta com vasta experiência em curtas-metragens, teve sua estreia em longas apenas no ano de 2005 com “Eu me Lembro”. Dentre seus curtas mais importantes destacam-se “Porta de Fogo”, ganhador dos prêmios de melhor roteiro e melhor curta 35 mm no Festival de Brasília de 1985, e “Lin e Katazan”, que ganhou o Candango de melhor filme. É dele o clássico média-metragem “SuperOutro”, de 1989. Principais filmes: O Homem Que Não Dormia – 2012; Eu Me Lembro – 2005; SuperOutro – 1989

Instigante, referencial, safado, despudorado, por Sérgio Alpendre Publicado originalmente na Revista Interlúdio em 06/05/2012 No segundo longa-metragem de Edgard Navarro, “O Homem Que Não Dormia”, vemos a surpreendente e propositadamente desagradável imagem de dois velhos cegos se masturbando. É uma imagem que Luis Buñuel testemunhou em sua juventude e não teve coragem de colocar em um de seus filmes, apesar de ter sugerido ou mostrado coisas muito mais ousadas no decorrer de sua carreira. Navarro o homenageia arriscando perder uma boa parcela de seu público em potencial, que se choca ao ver algo fora do padrão ou ao ter sua noção de decência vilipendiada por algum artista raivoso. E Navarro está certo ao dar um dane-se a esse público em potencial. Tem cineasta que precisa mesmo se lixar para o mundo, para a crítica e para


o público. Navarro bom é Navarro desmedido, incorreto, exagerado e desagradável, que faz filmes imperfeitos, tortuosos, como este e “Superoutro”, que o revelou à cinefilia. Quando se policia para dar vazão ao fluxo de memórias, realiza obras menos pungentes como “Eu Me Lembro”, espécie de falsa estreia em longas. Ou melhor: um prólogo necessário para expurgar certos fantasmas. “O Homem Que Não Dormia” está longe de ser uma obra-prima. Seu ritmo desanda em vários momentos, ao sabor das desconexões criadas pelo desejo de chocar acima de qualquer outra coisa. Apesar disso, tem uma força que só se explica por anos e anos de sabotagem de um crescimento. Falo do hiato imposto a Navarro pelas parcas condições de produção do cinema brasileiro. Hoje em dia a coisa não está muito melhor, com o MINC andando para trás e essa burocracia nojenta que nos cerca por todos os lados. Por isso é um milagre que filmes como este, “O Gerente”, “Na Carne e Na Alma” e “Luz nas Trevas” ainda apareçam. O catálogo de bizarrices com que Navarro coloca o bom mocismo afetivo do cinema brasileiro de pernas para o ar é significativo de seu desejo explosivo: um padre que vai aos búzios, jovens sem perspectivas sob a sombra do coronelismo, uma mulher fogosa e liberal que dá prazer carnal a dois desses jovens, o personagemtítulo que não se encaixa num protagonismo, além dos louquinhos folclóricos de plantão. Trata-se de um filme para o qual cabem inúmeros adjetivos, por vezes até antagônicos. É desleixado e rigoroso dependendo do momento (a câmera tanto pode realizar um movimento elegante quanto ser balançada de um lado para o outro sem muito critério), delirante e desconexo, mas bem construído (já que os delírios e desconexões estão ligados aos personagens malucos, às lembranças e às histórias contadas). É instigante, referencial, safado, despudorado. Filme de veterano alijado e sedento, um esporro no cinema contemporâneo “fofinho”. 67 *** Sérgio Alpendre é crítico de cinema, professor, pesquisador e jornalista. Fundou e editou a revista Paisà (2005-2008). Foi redator da Contracampo de 2000 a 2010 e já colaborou com a revista Bravo, e os cadernos Ilustrada e Mais da Folha de S.Paulo.


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CURTAS METRAGENS


Cego Oliveira no Sertão do seu Olhar Ano de produção: 1998 | Duração: 17’ | Direção e roteiro: Lucila Meirelles Camera: Lucila Meirelles, Walter Silveira e Danilo Dall’acqua | Trilha Sonora: Cid Campos | Música: Cego Oliveira Sinopse: Cego Oliveira não era cego mas portador da visão subnormal. Ao registrar o mundo ocorriam-lhe alterações oculares que produziam interferências na sua maneira de olhar. Uma outra visão de mundo. Natural do Juazeiro do Norte, no Ceará, o tocador de rabeca morreu em 1977 com 94 anos.

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Passadouro Ano de produção: 1999 | Duração: 8’ | Direção: Torquato Joel | Direção de fotografia: Walter Carvalho | Elenco: Adeildo dos Santos, Geraldo Augusto e Maria José de Freitas | Produção: Durval Leal Filho | Direção de arte: Sacha Teixeira | Montagem: Francisco Sérgio Moreira | Som direto: Lênio Oliveira Sinopse: Os ciclos de ocupação humana em um lugar: as inscrições rupestres cristalizadas na paisagem como última memória de um povo extinto, o ritual de fim de tarde de um casal de idosos, e os novos tempos com outros hábitos e costumes trazidos pela parabólica.


Labirinto Ano de produção: 2002 | Duração: 19’ | Direção: Margarita Hernández e Tibico Brasil | Roteiro: Margarita Hernández | Direção de fotografia: Raul Perez Ureta | Produção: Valéria Cordeiro | Montagem: Mair Tavares | Som Direto: Márcio Câmara | Trilha original: Manasés de Souza Sinopse: Visões de discos voadores e aparições de Nossa Senhora no sertão do Ceará. Um labirinto de mistérios que giram em torno das palavras “ver” e “acreditar”.

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Águas de Romanza Ano de produção: 2002 | Duração: 15’ | Direção: Gláucia Soares e Patrícia Baía | Roteiro: Patrícia Baía | Direção de fotografia: Juarez Pavelak | Elenco: Leuda Bandeira, Michaela Farias Alves e Rodger Rogério | Produção: Valéria Cordeiro | Direção de Arte: André Scarlazzari | Montagem: Glaucia Soares | Som Direto: Anderson Ferreira | Edição de som: Trálogo | Trilha original: Eugênio Leandro, Idson Ricart e Mário Tadeu Sinopse: No Sertão nordestino uma menina sonha em conhecer a chuva. Sua avó, velha e doente, deseja realizar o sonho da neta. Um caixeiro viajante é a única esperança.


O Homem da Mata Ano de produção: 2004 | Duração: 17’ | Direção: Antonio Carrilho | Roteiro: Antônio Luiz Carrilho, Colaboração Guilherme Sarmiento e José Borba da Silva | Direção de fotografia: Mariano Pikman | Elenco: Hermila Guedes, José Borba da Silva, Louival Batista, Nerisvaldo, Simião Martiniano e Soraia Silva | Produção: Canoas Filmes | Direção de Arte: Antonio de Olinda, Cristiano Sidoti, Daniela Brilhante e Lourival Batista | Montagem: Karen Barros e Rodrigo Savastano | Som Direto: Bárbara Lito e Osman Assis | Música: Armando Lobo Sinopse: José Borba da Silva, cantor, canavieiro e pai de santo interpreta Jack - um vingador justiceiro - defensor dos canavieiros da zona da mata.

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A Curva Ano de produção: 2007 | Duração: 5’ | Direção e roteiro: Salomão Santana | Produção: Outros Filmes Sinopse: Salve! Hoje, ó Cidade do Progresso! Aquela que mais cresce no Ceará, Juazeiro! Tu és parte do Universo. Teu sucesso na História ficará.


Câmera Viajante Ano de produção: 2007 | Duração: 20’ | Direção: Joel Pimentel | Roteiro: Isabela Veras e Joe Pimentel | Elenco: Belo, Chico Alagoano, Dedé da Neusa, Isaías e Júlio Santos | Produção: Trio Filmes Sinopse: Documentário que retrata o universo e o ofício dos fotógrafos populares que atuam nas festas, feiras e romarias do interior nordestino. A visão do artista do retrato pintado, suas técnicas e seu trabalho.

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Tarabatara Ano de produção: 2007 | Duração: 23’ | Direção, roteiro e fotografia: Julia Zakia | Produção Executiva: Patrick Leblanc | Montagem: Hélio Villela e Julia Zakia | Som: Guile Martins | Edição de som: Guile Martins Sinopse: “Por que é que eu nunca morei definitivamente num setor só? Porque eu me sinto mal. Me sinto mal com o ar de um lugar só”. Tarabatara é um chamado ao cotidiano e aos encantos de uma família cigana do sertão de Alagoas. O documentário apreende momentos de um período de pausa no nomadismo desses ciganos. Na figura do mais velho e suas memórias, nas mulheres e crianças do grupo, com suas falas e gestos, com seus olhares e afazeres.


Muro Ano de produção: 2008 | Duração: 18’16’’ | Direção e roteiro: Tião | Direção de fotografia: Pedro Urano | Elenco: Antônio Edson, Inaê Veríssimo, José Humberto e Renata Lima | Produção: Stella Zimmerman | Direção de arte: Diego Balbino, Leonardo Lacca e Rita Carelli | Montagem: João Maria | Som: Nicolas Hallet Sinopse: Alma no vácuo, deserto em expansão.

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Homens Ano de produção: 2008 | Duração: 21’ | Direção: Lucia Caus e Bertrand Lira Sinopse: Histórias de coragem revelam desencontros e alegrias vividos por homossexuais em pequenas cidades do Nordeste do Brasil.


Sweet Karolynne Ano de produção: 2009 | Duração: 15’ | Direção: Ana Bárbara Ramos | Roteiro: Ana Barbara Ramos, Bruno de Sales | Direção de fotografia: Igor Cabral | Elenco: Edmundo, Jarbas, Karolynne, Nice | Produção: Ana Barbara Ramos e Gabriela Dowling | Co-produção: ABD-PB e Pigmento Cinematográfico | Montagem: Ely Marques | Edição de som: Guga Rocha Sinopse: Nem Elvis nem Jarbas morreram. É tudo uma grande invenção.

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Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos Ano de produção: 2009 | Duração: 12’ | Direção: Camilo Cavalcante | Roteiro: Coletivo moradores de Serrita | Direção de fotografia: Beto Martins | Elenco: Moradores dos Sítios Caracol, Sozinho | Produção Executiva: Stella Zimmerman | Co-produção: Camilo Cavalcante | Montagem: Caio Zatti | Edição de som: Luis Eduardo Carmo Carmo Sinopse: Sertão. 18h00.


Ensolarado Ano de produção: 2010 | Duração: 15’ | Direção e roteiro: Ricardo Targino | Direção de fotografia: Pedro Urano | Elenco: Antonio Moreira, Ariane Oliveira, Douglas, Fernando, Mariene de Castro, Marimbondo Chapéu, Paulo, Pereira da Viola, Ryan, Valderez Teixeira | Produção: Sandra Leite | Montagem: Marina Fraga | Música: Marimbondo Chapéu, Pereira da Viola Sinopse: Uma família frente ao gesto humano, simples e extraordinário, de dizer adeus debaixo da luz intensa do sol.

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Acercadacana Ano de produção: 2010 | Duração: 19’ | Direção: Felipe Peres Calheiros | Roteiro: Felipe Peres Calheiros e Paulo Sano | Direção de fotografia: Felipe Peres Calheiros e Luís Henrique Leal | Produção Executiva: Diego Ramos Medeiros | Co-produção: Diego Medeiros | Montagem: Paulo Sano | Edição de som: Nicolau Domingues e Rafael Travassos Sinopse: Nos anos 1990, com a valorização do etanol e a expansão do latifúndio canavieiro, 15 mil famílias foram expulsas de seus sítios na zona da mata de Pernambuco. Maria Francisca decidiu resistir.


O Som do Tempo Ano de produção: 2010 | Duração: 10’ | Direção, roteiro e fotografia: Petrus Cariry | Produção Executiva: Bárbara Cariry e Petrus Cariry | Co-produção: Teta Maia | Montagem: Firmino Holanda | Edição de som: Érico Paiva e Petrus Cariry Sinopse: “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente.” O concreto avança contra dona Maria, mas ela segue em frente, com toda calma do mundo.

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Presidente da CAIXA Jorge Fontes Hereda

Produção Haver Filmes e 3 Moinhos Produções

Curadoria e Concepção Aristeu Araújo

Produção Executiva Ana Alice de Morais

Coordenação de Produção Geo Abreu

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Assistência de Produção Ricardo de Aquino

Produção Local – Fortaleza Amanda Pontes

Organização do Catálogo e edição Aristeu Araújo

Textos Alexandre Werneck Aristeu Araújo Carlos Alberto Mattos Cléber Eduardo Érico Borgo Geraldo Sarno Inácio Araújo Ivana Bentes

José Carlos Avellar Marcelo Hessel Marise Berta Pablo Villaça Paulo Santos Lima Sérgio Alpendre Thiago Brito


Revisão de textos Vanessa C. Rodrigues

Designer e Identidade Visual Douglas Soares

Ilustração Adicional Renato Cafuzo

Webdesigner Aristeu Araújo

Vinhetas Aristeu Araújo

Revisão de Cópias Cristina Flores

Impressão Gráfica Grupo Gráfico Stamppa

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Este livro foi composto com as famílias tipográficas Arno Pro e Screw Your Guys! Capa em papel Supremo 300 g/m2 e miolo em Pólen Bold LD 70 g/m2. Impresso na Gráfica Stamppa Rio de Janeiro - setembro de 2014




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