NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS
Sumário:
ARTE E CULTURA BRASILEIRA. UM ENFOQUE NAS VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE HÉLIO OITICICA: pg. 03
GÊNESIS POR SEBASTIÃO SALGADO: pg. 12
O ARTISTA PRÁTICO: pg. 16
LYGIA PAPE E A CIDADE TEIA: pg. 20
CASA DE PEDRA: RESSIGNIFICAÇÃO DO SENTIDO DOS OBJETOS: pg. 24
MARINA ABRAMOVIC – TERRA COMUNAL: pg. 28
COMO FALAR DE COISAS QUE NÃO EXISTEM pg. 31
ARTE E CULTURA BRASILEIRA. UM ENFOQUE NAS VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE HÉLIO OITICICA
Na contemporaneidade o diálogo entre arte e ciência cada vez mais vêm obtendo relevância e visibilidade nas pesquisas acadêmicas, na publicação de artigos, livros e tema de exposições, ressaltando a parceria e contribuição ao agregar teorias e produção artística em seus projetos e campos de estudos. Artistas visuais, críticos de arte, curadores, antropólogos e filósofos se aproximam, criam e compartilham suas bases teóricas demonstrando que o diálogo e suas práticas tendem a enriquecer essa relação tanto no cenário político e social, como também, na dimensão estética. No período moderno (1350-1850) a concepção e produção de arte era majoritariamente na pintura para fins acadêmico, de cunho religioso e amparada no modelo historicista. Já na contemporaneidade essa concepção se rompe em prol de um estilo e experiência não mais com base no visível, mas nas sensações, emoções e funcionalidade. Nesse contexto, os movimentos artísticos intensificam-se a partir das primeiras décadas de 1900, e novas linguagens, movimentos e técnicas são criadas como instalações, performances, objetos e outros, somados as questões culturais, políticas e sociais principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Rompe-se com o academicismo, ultrapassando os limites da moldura, dos costumes e hábitos. Nesse contexto, a arte contemporânea adquiri espaço e legitimidade a partir da década de 1950, superando os conceitos de base tradicional e hegemônica, elegendo espaços alternativos e as ruas na apresentação de suas obras e a inclusão e interação do público em seus projetos. Essa ideia de arte no Brasil ocorre com o movimento de artistas e críticos paulistas e cariocas tendo como referencial a fase do concretismo. No Rio de Janeiro Lygia Pape, Lygia Clark, Ferreira Gullar, Mário Pedrosa, Hélio Oiticica, entre outros, criam o Grupo Frente e, em São Paulo, Augusto e Haroldo de Campos, Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, entre outros, o Grupo Ruptura. Estes artistas marcam uma nova fase na arte contemporânea brasileira, e dentre eles, Hélio Oiticica pela abordagem e inclusão da vida cotidiana de pessoas comuns em seus experimentos e projetos adquirindo com isso visibilidade nacional e internacional. A aproximação de Hélio Oiticica com a arte surge na infância - final de 1940 - quando morou nos EUA com sua família. Ao retornar no início de 1950, dedica-se a escrever e a traduzir peças de teatro, assim como, nos estudos de arte com Ivan Serpa no MAM/RJ em que desenvolve sua própria linguagem artística com ênfase na livre criação e experimentação a fim de afastar a noção clássica do objeto de arte como tradicionalmente definido e inclusão do público na posição de participante, conduzindo-o a frente da obra de arte no “exercício experimental da liberdade” como bem definiu Mário Pedrosa.
Oiticica aspira à superação da arte conformista, elitista, condicionante, limitada e propõe uma arte que desloque o espectador do papel contemplativo e passivo para o de participante ativo por meio de experiências que promovam uma volta do sujeito a si mesmo e libertar-se de seus condicionamentos éticos e estéticos. Em suas obras, percebe-se o diálogo com a cultura popular, a cultura das comunidades dos morros cariocas, ora nas ruas, ora em exposições nos museus e galerias, priorizando a arte na mediação com as estâncias dos poderes simbólicos, políticos e culturais de modo inovador e performático. Em seus experimentos, Oiticica explora a interação com o público, acompanhados de elaborações teóricas juntamente com textos, comentários e poemas críticos e reflexivos. A esse respeito, o crítico e pesquisador de arte Celso Favareto dirá que a proposta de Oiticica consiste em dois momentos: uma mais visual que inicia em 1954 na arte concreta até a formulação dos Bólides em 1963, e outra sensorial, que segue até 1980. Isso mostra que sua produção artística não se limita somente no fator estético. Ele se inspira na sociedade e na relação com pessoas “comuns” principalmente os marginalizados e excluídos.
Bólide em homenagem a “Cara de Cavalo". Obra em que o artista homenageia o bandido morto pela polícia carioca. (Folha de São Paulo, 21 de setembro de 2010, bienal de artes, p.7).
Essa vivência experiência sensorial se inicia no final da década de 1960 quando começa a frequentar a comunidade do Morro da Mangueira. Desta união cria os Parangolés que na gíria do morro quer dizer conversa fiada. [...] Trata-se de tendas, estandartes, bandeiras e capas de vestir que fundem elementos como cor, danças, poesia e música e pressupõem uma manifestação cultural coletiva.” Posteriormente a noção de Parangolé é ampliada: “chamarei então Parangolé, de agora em diante, a todos os princípios formulados aqui... Parangolé é a antiarte por excelência; inclusive pretendo estender o sentido de 'apropriação' às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente enfim... (OITICICA, 1986)1
Em 1964, Oiticica expõe sua obra Manifestações Ambientais na mostra Opinião 65 no MAM/RJ, que inicia logo de modo conflituoso, pois a instituição impede a entrada dos integrantes da escola de samba da Mangueira, convidados de Oiticica. Diante dessa situação, em protesto, o artista decide realizar uma manifestação coletiva na frente do museu e os Parangolés são vestidos por seus amigos sambistas exibindo-os de modo performático.
Hélio Oiticica Parangolé P 08 Capa 05 – Mangueira, 1965; P 05 Capa 02, 1965; P 25 Capa 21- Nininha Xoxoba, 1968; P 04 Capa 01, 1964. Image from Ivan Cardoso’s film H.O, 1979. Credits: Catalogue Hélio Oiticica. The Body of Color, 2007, p. 317
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Grifo meu
As questões levantadas com o Parangolé (1967) desembocam nas Manifestações Ambientais com destaque para as obras Tropicália (1967), Apocalipopótese (1968) e Éden (1969). Já a obra Tropicália, considerada o apogeu de seu programa ambiental, apresentada na exposição Nova Objetividade Brasileira no MAM/RJ, consiste numa [...] espécie de labirinto sem teto que remete à arquitetura das favelas e em seu interior apresenta um aparelho de TV sempre ligado. (ENCICLOPÉIDIA ITAÚ CULTURAL, 2020)
Oiticica, Hélio. Tropicália, 1967. Plantas, areia, pedras, araras, aparelho de televisão, tecido e madeira Projeto Helio Oiticica (Rio de Janeiro, RJ) Reprodução fotográfica César Oiticica Filho.
Outro grande projeto que o artista denominou de Éden2, possui tendas, bólides e parangolés a fim de propor vivências individuais e coletivas ao público. Dessa proposta utópica da vida em comunidade cria a proposição Crelazer, que toma corpo em 1967 com a Cama-Bólide cabine onde as pessoas se deitam, experimentam sensações e recobram modos de viver, de “estar” no mundo - a fim de provocar a percepção criativa do lazer não repressivo e valorização do ócio.
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O projeto Éden foi exposto em 1969 na Whitechapel Gallery em Londres
[...] A proposição do Crelazer absorve ideias do Suprassensorial e do Projeto, incorporando-as numa concepção de vida-arte: atividade não-repressiva em que arte e mesmo antiarte nada significam (“são como sarampo ou catapora; tem-se uma vez só e se esquece, pois é preciso viver”). Importa “viver o Crelazer. (FAVARETO, 1992).
Para Oiticica Éden é: [...] um campus experimental, uma espécie de taba, onde todas as experiências humanas são permitidas – humano enquanto possibilidade da espécie humana. É uma espécie de lugar mítico para as sensações para as ações, para a feitura de coisas e construção do cosmo interior de cada um – por isso, proposições “abertas” são dadas e até mesmo materiais brutos e crus para “fazer coisas” que o participador será capaz de realizar (FAVARETO, 1992).
Projeto Éden, Whitechapel Gallery – Londres, 1969
Apesar de Oiticica não ser um artista que se debruçou na arte de protesto como muitos de seu tempo, seu engajamento torna-se algo muito mais amplo. Sua veia anarquista, herança de seu avô José Oiticica, tornam seus ideais um estado lírico e utópico. Vai além dos padrões, do determinismo de uma cultura estética estéril sob a dominação das elites, do Estado, e que nos faz acreditar em seus interesses de bom e ruim, feio e belo. Sua vida, ideias, obras, projetos se misturam. Estão em simbiose, para além da arte. Suas propostas integram algo que vai além do visível e do simplesmente. Estão no cerne da superação do modelo tradicional da estética que emoldura arte e vida libertando as através do diálogo com o mundo sensorial dos indivíduos no
rompimento das barreiras sociais. Os Parangolés e os Penetráveis, por exemplo, têm exatamente como proposta essa dimensão que é abandonar a distância que até então existia entre a arte e expectador. Como se pode notar, os projetos de Hélio Oiticica nos fazem refletir sobre nossa própria formação histórica e distancia social entre classes desde quando o território que hoje conhecemos como Brasil foi invadido e colonizado pelo europeu de modo violento, submetendo povos tradicionais a meros instrumentos de servidão e desmérito de humanidade. Um dos muitos fatores que faz parte desse abismo desigual entre classes é o livre acesso às instâncias artísticas e culturais em nossa sociedade. E, a fim de contextualizar o enfoque sobre arte e cultura nas propostas artísticas de Hélio Oiticica, incluo na discussão dois pensadores relevantes na discussão dessa temática. São eles: o sociólogo francês Pierre Bourdieu e o filósofo russo Mikhail Bakhtin. Pierre Bourdieu explicará que a falta de acesso ao campo da arte e da cultura pelas classes sociais não hegemônicas se fundamenta no modelo tradicional, hierarquizante que a sociedade ocidental foi calcada, ou seja, distância as pessoas e as condiciona em classes de divisão desigual entre grupos ou indivíduos a partir das relações que estabelece aos bens materiais e/ou econômicos e bens simbólicos: status e/ou culturais. Essa distribuição desigual de recursos e poderes e, consequentemente, de privilégios, são voltados para aqueles que pertencem a específicos grupos dentro da estrutura social hegemônica. Assim, a posição de privilégios ou ausência deles dá-se a partir do volume de “capitais” que ele possui nas dimensões material, simbólica e cultural que adquiriu e incorporou ao longo de sua trajetória na estratificação histórica e social. Bourdieu aponta também a desigualdade social que o sistema de escolarização promove desde cedo cobrando de todos os indivíduos conhecimento e acesso a uma cultura obtida somente no núcleo familiar das classes privilegiadas antes da escolarização, desconsiderando aqueles que pertencem ao segmento popular. Assim, ao invés da escolarização promover o acesso ao ensino de forma democrática acaba reforçando as diferenças e distinções existentes entre aqueles que possuem capital cultural daqueles que não os tem. No Brasil é muito presente esta questão. Pode-se evidenciar essa desigualdade de classes em diversos segmentos como, por exemplo, no acesso à educação, pois enquanto na rede pública faltam recursos e investimentos do Estado, a rede privada prima pela formação e inserção dos alunos no mercado de trabalho que repercuti numa competição e cobrança desigual entre estes dois grupos. A essa cobrança social Pierre Bourdieu denominou de violência simbólica, pois
impõe a todos uma única forma de cultura, um gosto legitimado, menosprezando outras formas e segmentos sociais. A violência simbólica para Bourdieu tem suas ramificações no gosto cultural que resulta da diferença entre os indivíduos e classifica o que é de bom ou mau gosto, hierarquizando assim o campo da cultura. Os estudos culturais de Pierre Bourdieu são importantes para compreender as contradições e tensões existentes entre cultura popular e cultura erudita e a relação de dominação e de subordinação entre elas. Já para o filósofo Mikhail Bakhtin, os estudos culturais estão relacionados à cultura popular que é uma concepção de mundo baseada na vida cotidiana e, só adquire sentido nas manifestações e tradições populares e não no conceito de civilização e da arte cristalizada. A cultura para Bakhtin não é homogênea, assim como os povos também não o são. É mais do que isso. É um modo de vida, porém não idêntico a ela. São atitudes, valores e formas simbólicas compartilhadas. O filósofo aborda o caráter polifônico em que o diálogo nunca se conclui, porque há diversas linguagens interagindo e absorvendo diversas características culturais, signos e significados de cada povo que para alguns pensadores é denominado de hibridismo cultural ou multiculturalismo. A origem e o sentido da realidade como cultura para Bakhtin estão nas relações dos homens com a natureza e ocorrem pelo desejo, pelo trabalho e pela linguagem. Assim, Bakhtin constrói sua teoria de cultura a partir da teoria literária, em que ressalta as mais diversas manifestações sociais, das tradições eruditas a festas populares que aconteciam nas ruas e praças públicas na Europa desde o período medieval. Em suma, os estudos culturais apontados por Bourdieu e Bakhtin nos faz referenciar os elementos que Hélio Oiticica demonstrou em seus projetos e experimentos artísticos como no reconhecimento que espaços culturais é privilégio da elite. Assim propõe abolir a arte figurativa e contemplativa e cria uma arte que interaja com todos, como no projeto Éden, em que a proposta é a quebra das instâncias simbólicas de exclusão social, estabelecendo um diálogo polifônico, enfatizando o modo de ser e viver de grupos e indivíduos e não suas diferenças. As obras de Oiticica trazem à tona reflexão e crítica sobre os caminhos e descaminhos que a desigualdade social e desmerecimento da cultura popular integram uma proposta hegemônica e de soberania as classes que não possuem capital material e cultural. Sua arte contempla uma gama de experiências e vivenciais artísticas inspiradas no cotidiano, no sensorial, na cultura
popular, no corpo e na [...] ação comportamental como uma força criativa. (OITICICA, 1969) A arte para Oiticica é inusitada por excelência. Uma arte que deve ser experienciada e usufruída e ganha sentido somente quando o homem estabelece uma relação de proximidade entre a obra e sua existência. Enfim, a arte de Oiticica [...] está no mundo, assim como o mundo está na sua arte. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2020)
Referências bibliográficas: BAKTIN, M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Ed. Hucitec. 1999. BOURDIEU, P. O Amor Pela Arte. Ed. Edusp. São Paulo, 2003. O Poder Simbólico. Ed. Perspectiva. 1989. BRAGA, P. Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica. Ed. Perspectiva. 2011. Enciclopédia Itaú Cultural. Hélio Oiticica. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa48/helio-oiticica. Acesso:19/11/20 FAVARETO, C. A invenção de Hélio Oiticica. Ed. Edusp. São Paulo, 1992. JACQUES, B. P. Estética da Ginga. Ed. Casa da Palavra. 2011. OITICICA, H. Aspiro ao grande labirinto. Ed. Rocco. 1986. OITICICA, H. The Senses Pointing Towards a New Transformation. 22/12/1969 Programa HO. #tombo 0486/69. SETTON, M. G. J. A Produção da Crença. Ed. Zouk. São Paulo, 2002.
GÊNESIS POR SEBASTIÃO SALGADO
Gênesis do grego: origem, nascimento, criação. É o primeiro livro da Bíblia da tradição Judaico-Cristã sobre a origem do mundo. Gênesis também é o projeto do fotógrafo Sebastião Salgado que buscou capturar pelas imagens esse princípio que corresponde a dimensão da força da natureza em várias regiões do planeta. Entre 2004 e 2012, Salgado visitou 32 regiões do mundo - África, Ásia, Américas, Oceania e Antártica - na busca dessa natureza primal e a relação do homem com o meio. O próprio Sebastião Salgado explica que para ele Gênesis trata dos [...] primórdios, sobre um planeta intocado, suas partes mais puras, e um modo de vida tradicional que convive em harmonia com a natureza. Quero que as pessoas enxerguem o nosso planeta de outra forma, sintam-se comovidas e se aproximem mais dele”. (SALGADO, 2013) O projeto Gênesis é a carta de amor do fotógrafo ao planeta e resultou na publicação de um livro com mais de 245 fotos em preto e branco e ensaios- reportagens, exposição em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Europa, e também, no filme documentário Sal da Terra, assinado pelo cineasta alemão Wim Wenders e por Juliano Salgado. A ideia de Gênesis surgiu a partir do projeto ambiental Instituto Terra que Salgado e sua esposa desenvolvem há mais de uma década na propriedade da família, região do Vale do Rio Doce, onde o Sebastião Salgado nasceu. Na propriedade da família que antes abrigava uma floresta rica em diversidade de espécies da flora de Mata Atlântica com o passar dos anos foram se extinguindo e a iniciativa do casal e de parceiros fundaram em 1998, a organização ambiental dedicada ao desenvolvimento sustentável do Vale do Rio Doce em que mais de 4 milhões de mudas de espécies de Mata Atlântica já foram produzidas em viveiros para abastecer o plantio na região. Hoje a região voltou a florescer inclusive com espécies da fauna brasileira em risco de extinção. Salgado conseguiu retornar no tempo e trazer a imagem da doce lembrança e vivência de sua infância com a natureza num novo princípio que a palavra Gênesis significa.
Referência bibliográfica: SALGADO, S. Genesis. Ed. Taschen, 2013.
O ARTISTA PRÁTICO
O artista prático até parece título de um conto e até pode vir a ser, mas na realidade é como Guto Lacaz autodenomina sua profissão. Avesso aos velhos chavões que insistem em determinar e denominar grupos e indivíduos, engessando ideias e limitando a liberdade no processo de criação, Lacaz prefere caminhar na contramão criando seu próprio conceito de profissão e trabalho. [...] Não sou um artista plástico, mas sim prático. Sou um biscateiro, um sujeito do tipo que bate prego, pinta prateleira ou desencapa fios. Tem que acordar cedo, fazer, fazer, fazer, errar, errar, errar, gastar”. Para mim, a arte é um trabalho - e eu sou um trabalhador obsessivo. Gastar, gastar, expor, expor, expor, fracassar, fracassar, fracassar, fazer sucesso... (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL) A arte é seu ofício diário.
A produção artística de Guto Lacaz tem um leque de possibilidades que vai da ilustração a instalações de intervenções urbanas como Auditório para Questões Delicadas em que colocou 25 cadeiras enfileiradas flutuando no lago do Parque Ibirapuera. Já, as obras que cria a partir de objetos da vida cotidiana, Lacaz alia aspectos do campo tecnológico. Dessa união, os objetos são reinventados e trazidos para o mundo da arte num formato crítico e bem humorado como Crushfixo, um de seus primeiros trabalhos (garrafa de Crush fixada num bloco de gesso), Óleo Maria a Procura da Salada (lata de óleo movida à pilha andando de rodinhas por uma bandeja de madeira buscando a salada) e o Tijolo Prático (um tijolo com alça para carregar, entre outros.
Além dos trabalhos de ilustração que é seu ganha pão, Lacaz também contribui para causas filantrópicas como a criação do cartaz ECO 92 e o logo para a ONG Move Institute, organização sem fins lucrativos que une forças para organizar ações e projetos em prol da proteção animal. Uma das ilustrações que fez para a Move foi a campanha “Adote Animais, Não Compre” que estampa camisetas, canecas, caixas, panos de prato, adesivos ente outros produtos. A venda foi revertida 100% para as ações e projetos para os animais.
Outra ação com enfoque ambiental foi à ideia de criar Indivíduos Não Governamentais ING. Assim como uma ONG que luta e trabalha por um propósito coletivo o ING também, mas individualmente na causa que a pessoa acredita. Nessa proposta, Guto Lacaz recolhe pilhas e baterias que encontra na rua e as leva para locais que as reciclam para minimizar a contaminação no solo que estes dispositivos têm em suas embalagens. Entre tantas habilidades, podemos dizer que Lacaz é um homem engenhoca no mundo das artes. Uma mescla de artista-ator, inventor e mágico. Referência bibliográfica: Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/#!/q=Guto%20Lacaz www.gutolacaz.com.br
LYGIA PAPE E A CIDADE TEIA
Desde que a obra de arte emancipou-se do conceito de arte pura, decretado por acadêmicos e críticos, dos suportes e matéria-prima como: tela, mármore, madeira ou pedra e de técnicas rígidas, toda uma geração audaciosa e notável abraçou a arte priorizando a ideia e ação a partir da redefinição de Marcel Duchamp, trazendo-a para fora do cubo branco, buscando ultrapassar limites e conceitos tradicionais e inclusão do espectador. No caso brasileiro, vários artistas do neoconcretismo conseguiram responder positivamente a esse desafio. Assim fez Lygia Pape na sua trajetória artística de 1950 até 2002, que aqui destacarei e descreverei na instalação Ttéia 1C. Em uma grande sala escura, diversos fios de cobre dourados são esticados e alinhados no sentido vertical e perpendicular, presos em plataformas de madeira quadradas que são fixadas no teto e no chão, iluminados por pequenos focos de luz salientando suas formas no espaço. Assim é a instalação Ttéia 1C3 (2002). Última etapa do projeto de pesquisa da artista Lygia Pape na exploração da linguagem geométrica que iniciou nas séries Relevos (1955-56) e Tecelares (1956-57) - figuras geométricas em xilogravuras - que precedeu e inspirou a série Ttéias na década de 1970, junto com seus alunos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.
A instalação Tteia 1C encontra-se para visitação na Galeria Lygia Pape no Centro de Arte Contemporânea Inhotim - Brumadinho/MG. http://inhotim.org.br/ 3
Ttéias evidenciou a maturidade e desenvolvimento técnico de Pape ao explorar elementos tanto da materialidade: espacialidade, luz natural e artificial, tipo dos fios: cobre, prata, nylon transparente, como o elemento poético aliando o tempo subjetivo e a participação do público. Pode-se dizer que este projeto é o momento em que o desenho sai do papel e se concretiza num objeto tridimensional, prevendo o deslocamento e interação entre obra e espectador. Seus fios em grande dimensão capturam ocupam e reinventam espaços existentes, criam volume, cruzam-se como se fossem teias de aranha. A luz que incide ressalta aos olhos sua materialidade e, proporciona dimensões variadas da composição de suas formas geométricas. A criação das Ttéias foi inspirada na relação intima de Pape com a cidade do Rio de Janeiro. Seu hábito de caminhar por diferentes localidades e polos da cidade, fez com que percebesse seu dinamismo, movimentos, corpos, pulsões de vida e de morte. Um [...] espaço agressivo, terrível, furioso” –... para ela um espaço imantado, que a atraía por ser lugar em que se identificava de pronto “a tragédia do homem anônimo, perdido e só”, sendo por isso “desesperador e belo. (ANJOS, 2011.)
A artista cria possibilidades de unir lugares distintos relacionados com sua vida e obra, na sua cidade-teia assim como uma aranha que busca mapear seu território por escolhas individuais, deslocando-se para os pontos que mais lhe atraia. Pape emprega sua sensibilidade neste emaranhado que se entrecruzam em espaços vitais em que todos podem tecer seus projetos de vida e morte. Ttéia 1C é a conclusão deste processo que une arte, escolhas, dores, amores, ideias, planos de um modo de sentir e de viver.
Referência bibliográfica: ANJOS, M. dos. Revista Concinnitas, ano 12, volume 2. Rio de Janeiro, 2011.
CASA DE PEDRA: RESSIGNIFICAÇÃO DO SENTIDO DOS OBJETOS
Objetos na era pós industrial são meros utilitários para serem consumidos e descartados num curto espaço de tempo. No entanto, a história nos mostra que o destino dos objetos nem sempre foi assim. Houve um tempo em que eram tão importantes que através deles podia-se contar a vida de uma pessoa como: onde nasceu, cresceu, se pertencia a uma família tradicional, respeitável, trabalhadora ou não, religiosa ou pagã, entre outros atributos sociais e culturais. O mesmo significado tinha as roupas quando valiosas tanto que era usual serem dispostas nos testamentos dos aristocratas e camponeses na renascença europeia, conforme destaca Peter Stallybrass no ensaio “O Casaco de Marx”. As roupas eram avaliadas em moeda e atributo, pois estava atrelada a memória, classe e patrimônio cultural e social principalmente em relação a famílias de maior prestígio. Com a aceleração do capitalismo estas particularidades esvaziam-se e os objetos transformaram-se em pura mercadoria, um acessório para satisfazer o desejo dos consumidores. Falta-nos perceber que objetos descartados, trocados e esquecidos um dia tiveram sua importância. Neles, a história se faz presente, seja porque nos traz à lembrança de uma pessoa especial ou de um momento importante. Mas, como tudo não é estático e absoluto, recentemente conheci no bairro de Paraisópolis, na cidade de São Paulo, a Casa de Pedra construída pelo morador, pedreiro e jardineiro Estevão Silva da Conceição, e lembrei imediatamente das questões apresentadas no preâmbulo. Há 30 anos Estevão iniciou seu projeto, tendo como base a casa que já existia no local, e nela construiu três andares com cimento, ferro, pedras e uma infinidade de objetos que escolhe cuidadosamente em brechós. São xícaras, pratos, pires, relógios, talheres, broches, óculos, pulseiras, bonecas, pedras, conchas, esculturas de santos, máquinas fotográficas e de escrever, carrinhos de brinquedo, quadros, entre tantos e incontáveis, que ganharam um novo sentido e espaço a partir da percepção e olhar de Estevão. Cada objeto tem seu lugar na Casa de Pedra para unir e compor com outros, e depois são cimentados. Há uma memória afetiva em cada um deles, que a partir do projeto de Estevão encontraram propósito e sentido. Estevão migrou da Bahia para São Paulo no final dos anos 60 em busca de trabalho na construção civil. Em 1975 foi morar no loteamento que hoje está localizado o bairro de Paraisópolis e lá, iniciou sua criação que ultrapassa o conceito de uso e propriedade.
Estevão relata que no início, a ideia era construir um jardim, mas como o terreno é pequeno resolveu verticalizar. Seu jardim está no topo da casa. Um jardim suspenso com grande variedade de plantas, algumas frutíferas, atraindo diversos pássaros. Percebe-se que existe em Estevão uma necessidade de estar próximo da natureza e o bairro é muito carente de praças e jardins. Com certeza o gosto em conviver com a natureza está presente na história de vida de Estevão na Bahia e a trouxe na bagagem para São Paulo transformando em prática seus anseios, ressignificando o lugar que hoje habita.
Estevão em sua Casa de Pedra – foto: Arlete Fonseca de Andrade
Arte, cultura, educação, patrimônio existem e coexistem em lugares que muitas vezes nem percebemos e essa experiência possibilitou transpor a barreira do visível que a mercadoria, a cidade e o discurso nos impõem. A Casa de Pedra é um aprendizado na mudança de olhares, vieses e saberes. Permite a possibilidade de aproximações entre cidade e cidade periferia, de diálogo, troca de experiências entre cidadãos excluídos e marginalizados, e, reconhecer em nós, novos pares.
Referência bibliográfica: STALLYBRASS, P. O Casaco de Marx, Ed. Autêntica. São Paulo, 2008
MARINA ABRAMOVIC – TERRA COMUNAL
Algumas propostas para o cotidiano: caminhe muito lentamente, desacelere o pensamento, abafe o som externo, acorde seu corpo, perceba-o, escute seu coração, esqueça o celular e outros acessórios eletrônicos durante pelo menos duas horas. São ações simples, porém, será que dispomos de tempo, percepção e vontade para realizá-las? Principalmente vivendo no ritmo acelerado das grandes metrópoles como: Nova York, Londres, Tokyo, São Paulo, ente outras? Alguns dirão que não dispõem desse tempo, outros podem até pensar na possibilidade, e poucos, acredito, irão aceitar o desafio. Surgem indagações. Para que e por que estas propostas? Para responder, sugiro conhecer o método da artista Sérvia Marina Abramovic que foi apresentado na exposição “Terra Comunal” no Brasil, iniciativa do SESC, composta por uma série de vídeos e objetos que marcaram a trajetória da vida e de seu trabalho. É para ver, sentir, e se possível, crer nessa vivência que a artista traz ao público. Abramovic entende que a ferramenta para demonstrar sua arte é seu corpo, e para isso, é preciso compreender seus limites. Foi a partir dessa percepção que criou seu método. Primeiro é necessário despertar o corpo e seus sentidos com uma série de exercícios de respiração, alongamento, gerar calor e energia friccionando as mãos, tocar olhos, nariz, ouvidos e boca. Após esta etapa o público tomará contato com os objetos transitórios. Camas, cadeiras, totens confeccionados em madeira e vários cristais posicionados na direção dos shakras. Durante o contato com os objetos não se fala e nem se ouve o som exterior, pois a finalidade é tomar consciência do corpo, da mente, tempo e som que produzimos. Corpo e mente ou ambos guiarão sua própria vontade, seja divagando, não pensar em absolutamente nada, dormir, ouvir sons do nosso interior, refletir. Terra Comunal foi inspirada a partir das viagens que Abramovic fez ao Brasil, Austrália, Indonésia, China, Tibete, durante muitos anos para constatar a influência da meditação, cristais e outros minerais no corpo e na mente. Além dessa experiência, também conheceu comunidades tradicionais que comungam da crença na natureza para cura corpórea e espiritual. A busca da artista por elementos da natureza, costumes e crenças, é para compreender e aplicar nas formas imateriais da arte que desenvolve. O título da exposição, “Terra Comunal”, descreve exatamente esta experiência, sugerindo uma aproximação coletiva pela arte. Um ato de comunhão.
COMO FALAR SOBRE COISAS QUE NÃO EXISTEM
Thiago Martins de Melo - Martírio
É possível falar, viver, aprender, conviver com coisas que não existem? A princípio parece um tema intangível, mas quando nos aproximamos da questão, entende-se qual o propósito da 31ª edição da Bienal de São Paulo (2014). Este é um dos pontos inovadores desta edição, que pensou em discorrer sobre o mundo contemporâneo. Mundo em constante transformação, inovação - trabalho, modos de ser, de viver, estilos e na arte – e como vivenciá-los - pois velhas formas e costumes não se aplicam mais no mundo atual, e o novo ainda está sendo esboçado. Falar sobre coisas que não existem é falar sobre aquilo que muitas pessoas não conhecem, não vivenciam, não faz parte do cotidiano individual ou coletivo de outros, mas existe. O que é estranho ou desconhecido para um indivíduo, uma cultura pode ser habitual e pertencer à outra. Uma provocação poética que coordenadores, colaboradores, e curadores pretendem causar no público, ou seja, repensar os formatos de museus, centros culturais, bienais e dialogar com diferentes interlocutores sobre o papel da arte na sociedade. Outra proposta da 31ª bienal foi o processo de escolha da curadoria. Ao invés de um, cinco curadores foram escolhidos para discutir novas configurações. Uma curadoria coletiva. No final de 2012, a diretoria da fundação Bienal buscou dialogar com diretores de instituições, intelectuais e personalidades do circuito artístico nacional e internacional. Avaliaram o percurso de 14 profissionais, e destes, cinco receberam solicitação para o envio de seus projetos: Charles Esche, curador e escritor escocês, assumiu a curadoria geral, e a seu lado os curadores Pablo Lafuente e Nuria Enguita Mayo, (Espanha) e Galit Eilat e Oren Sagiv (Israel). A 31ª Bienal repensou e lançou um olhar renovado sobre sua história. Uma jornada exploratória de possibilidades por meio de projetos artísticos, palavras e ideias, discussões e performances enquanto durar no espaço expositivo, e que ecoe depois no dia a dia. Enfim, “dentro e em torno da 31ª Bienal, por meio do que são fundamentalmente atos artísticos da vontade, as coisas que não existem podem ser trazidas à existência e, assim, contribuir para uma visão diferente do mundo. É provável que seja este, no fim das contas, o potencial da arte”.
Mujeres Creando – Espaço para abortar
Voluspa Jarpa – Histórias de Aprendizagem
Referência bibliográfica: 31ª Bienal de Artes de São Paulo. Disponível em: http://www.31bienal.org.br/
Arlete nasceu e mora na cidade de São Paulo. É graduada em Ciências Políticas e Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, fez mestrado em Psicologia Social e doutorado em Ciências Sociais com concentração em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desde 2009 participa de grupos, estudos e projetos nas áreas de artes visuais e antropologia. Escreve artigos de artes visuais e cultura para os sites Domi Galeria de Arte Online e Obvious Magazine. * Todos os artigos aqui apresentados foram publicados nos sites: Obvious Magazine e Domi Galeria de Arte Online nos anos de 2014 e 2015. As fotos da capa e contra capa são da autora.
NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS